Translate this Page




ONLINE
4





Partilhe esta Página




A Zeno Media Station

 

 Conheça a Loja de cosméticos Cícero-Cultura

Acesse a Loja Cícero-Cultura

 

 

 

 

Rádio Hunter FM Gospel

    

A Melhor Rádio Gospel do Brasil!

 

 

 Rádio Hunter FM Gospel

 

 

Colabore com o

Projeto Cícero-Cultura

 

Faça sua doação:

Queridos...

Doem qualquer valor e colaborem com o crescimento do meu projeto.

Muito Obrigado! ☺️

 

                                                          

 

Ou

 

José Cícero Marchezine

 

Banco BMG: 318

Agência: 0044

Conta: 10929697-6

 

 Ou

 

 

Pix:

 

cicero-cultura@outlook.com

 

 

 

 

 

 

 


 

José Cícero Marchezine

 

Criador e Proprietário

do site Cícero-Cultura 

  

     

     


Espiritísmo
Espiritísmo

 

 

O livro dos Espíritos

Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita

Allan Kardec

I — ESPIRITISMO E ESPIRITUALISMO

Para as coisas novas necessitamos de palavras novas, pois assim o exige a clareza de linguagem, para evitarmos a confusão inerente aos múltiplos sentidos dos próprios vocábulos. As palavras espiritual, espiritualista, espiritualismo têm uma significação bem definida; dar-lhes outra, para aplicá- las à Doutrina dos Espíritos, seria multiplicar as causas já tão numerosas de anfibologia. Com efeito, o espiritualismo é o oposto do materialismo; quem quer que acredite haver em si mesmo alguma coisa além da matéria é espiritualista; mas não se segue daí que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível.

Em lugar das palavras espiritual e espiritualismo empregaremos, para designar esta última crença, as palavras espírita e espiritismo, nas quais a forma lembra a origem e o sentido radical e que por isso mesmo têm a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando para espiritualismo a sua significação própria. Diremos, portanto, que a Doutrina Espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos

ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se o quiserem, os espiritistas.

Como especialidade o Livro dos Espíritos contém a Doutrina Espírita; como generalidade liga-se ao Espiritualismo, do qual representa uma das fases. Essa a razão porque traz sobre o título as palavras: Filosofia Espiritualista.

II — ALMA, PRINCÍPIO VITAL E FLUIDO VITAL

Há outra palavra sobre a qual igualmente devemos entender-nos porque é uma das chaves de toda doutrina moral e tem suscitado numerosas controvérsias por falta de uma acepção bem determinada: é a palavra alma. A divergência de opiniões sobre a natureza da alma provém da aplicação particular que cada qual faz desse vocábulo. Uma língua perfeita, em que cada idéia tivesse a sua representação por um termo próprio, evitaria muitas discussões; com uma palavra para cada coisa todos se entenderiam.

Segundo uns, a alma é o princípio da vida orgânica material; não tem existência própria e se extingue com a vida: é o puro materialismo. Neste sentido e por comparação dizem de um instrumento quebrado, que não produz mais som, que ele não tem alma. De acordo com esta opinião a alma seria um efeito e não uma causa.

Outros pensam que a alma é o princípio da inteligência, agente universal de

que cada ser absorve uma porção. Segundo estes, não haveria em todo o Universo senão uma única alma, distribuindo fagulhas para os diversos seres inteligentes durante a vida; após a morte cada fagulha volta à fonte comum,confundindo-se no todo, como os córregos e os rios retornam ao mar de onde saíram. Esta opinião difere da precedente em que, segundo esta hipótese, existe em nós algo mais do que a matéria, restando qualquer coisa após a morte; mas é quase como se nada restasse, pois não subsistindo a individualidade não teríamos mais consciência de nós mesmos. De acordo com esta opinião, a alma universal seria Deus e cada ser uma porção da Divindade; é esta uma variedade do Panteísmo.

Segundo outros, enfim, a alma é um ser moral, distinto, independente da matéria e que conserva a sua individualidade após a morte. Esta concepção é incontestavelmente a mais comum, porque sob um nome ou outro a idéia desse ser que sobrevive ao corpo se encontra em estado de crença instintiva, e independente de qualquer ensinança, entre todos os povos, qualquer que seja o seu grau de civilização. Essa doutrina, para a qual a alma é causa e não efeito, é a dos espiritualistas.

Sem discutir o mérito dessas opiniões, e não considerando senão o lado lingüístico da questão, diremos que essas três aplicações da palavra alma constituem três idéias distintas, que reclamariam, cada uma, um termo

diferente. Essa palavra tem, portanto, significação tríplice, e cada qual está com a razão, segundo o seu ponto de vista, ao lhe dar uma definição; a falha se encontra na língua, que não dispõe de mais de uma palavra para três idéias. Para evitar confusões, seria necessário restringir a acepção da palavra alma a uma de suas idéias. Escolher esta ou aquela é indiferente, simples questão de convenção, e o que importa é esclarecer. Pensamos que o mais lógico é tomá- la na sua significação mais vulgar, e por isso chamamos alma ao ser imaterial e individual que existe em nós e sobrevive ao corpo. Ainda que este ser não existisse e não fosse mais que um produto da imaginação, seria necessário um termo para designá-lo.

Na falta de uma palavra especial para cada uma das duas outras idéias, chamaremos:

Princípio vital, o princípio da vida material e orgânica, seja qual for a sua fonte, que é comum a todos os seres vivos, desde as plantas ao homem. A vida podendo existir sem a faculdade de pensar, o princípio vital é coisa distinta e independente. A palavra vitalidade não daria a mesma idéia. Para uns, o princípio vital é uma propriedade da matéria, um efeito que se produz quando a matéria se encontra em dadas circunstâncias; segundo outros, e essa idéia é mais comum, ele se encontra num fluido especial, universalmente espalhado, do qual cada ser absorve e assimila uma parte durante a vida, como vemos os

corpos inertes absorverem a luz. Este seria então o fluido vital, que segundo certas opiniões, não seria outra coisa senão o fluido elétrico animalizado, também designado por fluido magnético, fluido nervoso, etc.

Seja como for, há um fato incontestável, — pois resulta da observação, — e é que os seres orgânicos possuem uma força íntima que produz o fenômeno da vida, enquanto essa força existe; que a vida material é comum a todos os seres orgânicos, e que ela independe da inteligência e do pensamento; que a inteligência e o pensamento são faculdades próprias de certas espécies orgânicas; enfim, que entre as espécies orgânicas dotadas de inteligência e pensamento, há uma, dotada de um senso moral especial, que lhe dá incontestável superioridade perante as outras, e que é a espécie humana.

Compreende-se que, com uma significação múltipla, a alma não exclui o materialismo, nem o panteísmo. Mesmo o espiritualista pode muito bem entender a alma segundo uma ou outra das duas primeiras definições, sem prejuízo do ser imaterial distinto, ao qual dará qualquer outro nome. Assim, essa palavra não representa uma opinião: é um Proteu, que cada qual ajeita a seu modo, o que dá origem a tantas disputas intermináveis.

Evitaríamos igualmente a confusão, mesmo empregando a palavra alma nos três casos, desde que lhe ajuntássemos um qualificativo para especificar a maneira pela qual a encaramos, ou a aplicação que lhe damos. Ela seria então

um termo genérico, representando ao mesmo tempo o princípio da vida material, da inteligência e do senso moral, que se distinguiriam pelo atributo, como o gás, por exemplo, que se distingue ajuntando-se-lhe as palavras hidrogênio, oxigênio e azoto. Poderíamos dizer, e talvez fosse o melhor, a alma vital, para designar o princípio da vida material, a alma intelectual, para o princípio da inteligência, e a alma espírita, para o princípio da nossa individualidade após a morte. Como se vê, tudo isto é questão de palavras, mas questão muito importante para nos entendermos. Dessa maneira, a alma vital seria comum a todos os seres orgânicos: plantas, animais e homens; a alma intelectual seria própria dos animais e dos homens, e a alma espírita pertenceria somente ao homem.

Acreditamos dever insistir tanto mais nestas explicações, quanto a Doutrina Espírita repousa naturalmente sobre a existência em nós, de um ser independente da matéria e que sobrevive ao corpo. Devendo repetir freqüentemente a palavra alma no curso desta obra tínhamos de fixar o sentido em que a tomamos, a fim de evitar qualquer engano.

Vamos, agora, ao principal objetivo desta instrução preliminar.

III — A DOUTRINA E SEUS CONTRADITORES

A Doutrina Espírita, como toda novidade, tem seus adeptos e seus contraditores. Tentaremos responder a algumas das objeções destes últimos, examinando o valor das razões em que se apóiam, sem termos entretanto a pretensão de convencer a todos; pois há pessoas que acreditam que a luz foi feita somente para eles. Dirigimo-nos às pessoas de boa-fé, sem idéias preconcebidas ou posições firmadas mas sinceramente desejosas de se instruirem, e lhes demonstraremos que a maior parte das objeções que fazem à doutrina provêm de uma observação incompleta dos fatos e de um julgamento formado com muita ligeireza e precipitação.

Recordemos inicialmente, em breves palavras, a série progressiva de fenômenos que deram origem a esta doutrina.

O primeiro fato observado foi o movimento de objetos; designaram-novulgarmente com os nomes de mesas girantes ou dança das mesas. Esse fenômeno, que parece ter sido observado primeiramente na América, ou melhor, que se teria repetido nesse país, porque a História prova que ele remonta à mais alta Antigüidade, produziu-se acompanhado de circunstâncias estranhas, como ruídos insólitos e golpes desferidos sem uma causa ostensiva, conhecida. Dali, propagou-se rapidamente pela Europa e por outras partes do mundo; a princípio provocou muita incredulidade, mas a multiplicidade das experiências em breve não mais permitiu que se duvidasse da sua realidade.

Se esse fenômeno se tivesse restringido ao movimento de objetos materiais poderia ser explicado por uma causa puramente física. Estamos longe de conhecer todos os agentes ocultos da Natureza e mesmo todas as propriedades dos que já conhecemos; a eletricidade, aliás, multiplica diariamente ao infinito os recursos que oferece ao homem e parece dever iluminar a Ciência com uma nova luz. Não haveria, portanto, nada de impossível em que a eletricidade, modificada por certas circunstâncias, ou qualquer outro agente desconhecido, fosse a causa desse movimento. A reunião de muitas pessoas, aumentando o poder da ação, parecia dar apoio a essa teoria porque se poderia considerar essa reunião como uma pilha múltipla, em que a potência corresponde ao número de elementos.

O movimento circular nada tinha de extraordinário: pertence à Natureza. Todos os astros se movem circularmente; poderíamos, pois, estar em face de um pequeno reflexo do movimento geral do Universo; ou, melhor dito, uma causa até então desconhecida poderia produzir acidentalmente, nos pequenos objetos e em dadas circunstâncias, uma corrente mais análoga à que impulsiona os mundos.

Mas o movimento não era sempre circular. Freqüentemente era brusco, desordenado, o objeto violentamente sacudido, derrubado, conduzido numa direção qualquer e contrariamente a todas as leis da Estática, suspenso e

mantido no espaço. Não obstante, nada havia ainda nesses fatos que não pudesse ser explicado pelo poder de um agente físico invisível. Não vemos a eletricidade derrubar edifícios, arrancar árvores, lançar à distância os corpos mais pesados, atraí-los ou repeli-los?

Supondo-se que os ruídos insólitos e os golpes não fossem efeitos comuns da dilatação da madeira ou de qualquer outra causa acidental, poderiam ainda muito bem ser produzidos por acumulação do fluido oculto. A eletricidade não produz os ruídos mais violentos?

Até esse momento, como se vê, tudo pode ser considerado no domínio dos fatos puramente físicos e fisiológicos. E sem sair dessa ordem de idéias, ainda haveria matéria para estudos sérios, digna de prender a atenção dos sábios. Por que não aconteceu assim? É penoso dizer, mas o fato se liga a causas que provam, entre mil outras semelhantes, a leviandade do espírito humano. De início, a vulgaridade do objeto principal que serviu de base às primeiras experiências talvez não lhe seja estranha. Que influência não teve uma simples palavra, muitas vezes, sobre as coisas mais graves! Sem considerar que o movimento poderia ser transmitido a um objeto qualquer, prevaleceu a idéia da mesa, sem dúvida por ser o objeto mais cômodo e porque todos se sentam mais naturalmente em torno de uma mesa que de qualquer outro móvel. Ora, os homens superiores são às vezes tão pueris, que não seria impossível certos

espíritos de elite se julgarem diminuídos se tivessem de ocupar-se daquilo que se convencionara chamar a dança das mesas. É mesmo provável que, se o fenômeno observado por Galvani o tivesse sido por homens vulgares e caracterizado por um nome burlesco, estivesse ainda relegado ao lado da varinha mágica. Qual o sábio que não se teria julgado diminuído aoocupar-se da dança das rãs?

Alguns, entretanto, bastante modestos para aceitarem que a Natureza poderia não lhes ter dito a última palavra, quiseram ver, para tranqüilidade de consciência. Mas aconteceu que o fenômeno nem sempre correspondeu à sua expectativa, e por não se ter produzido constantemente, à sua vontade e segundo a sua maneira de experimentação, concluíram eles pela negativa. Malgrado, porém, sua sentença, as mesas, pois que há mesas, continuam a girar, e podemos dizer com Galileu: "Contudo, elas se movem". Diremos ainda que os fatos se multiplicaram de tal modo que têm hoje direito de cidadania e que se trata apenas de encontrar para eles uma explicação racional.

Pode-se induzir qualquer coisa contra a realidade do fenômeno, pelo fato de ele não se produzir sempre de maneira idêntica, segundo a vontade e as exigências do observador? Os fenômenos de eletricidade e de química não estão subordinados a determinadas condições, e devemos negá-los porque não se produzem fora delas? Devemos estranhar que o fenômeno do movimento

de objetos pelo fluido humano tenha também as suas condições e deixe de se produzir quando o observador, firmado no seu ponta de vista; pretendefazê-lo seguir ao seu capricho ou sujeitá-lo às leis dos fenômenos comuns, sem considerar que para fatos novos pode e deve haver novas leis? Ora, para conhecer essas leis é necessário estudar as circunstâncias em que os fatos se produzem e esse estando não pode ser feito sem uma observação perseverante, atenta, e por vezes bastante prolongada.

Mas, objetam algumas pessoas, há freqüentemente fraudes visíveis. Perguntaremos inicialmente se estão bem certas de que há fraudes e se não tomaram por fraudes efeitos que não conseguiram apreender, mais ou menos como o camponês que tomava um sábio professor de Física, fazendo experiências, por um destro escamoteador. E mesmo supondo-se que as fraudes tenham ocorrido algumas vezes, seria isso razão para se negar o fato?Deve-se negar a Física, porque há prestidigitadores que se enfeitam com o título de físicos? É necessário aos demais considerar o caráter das pessoas e o interesse que elas poderiam ter em enganar. Seria tudo, então, simples brincadeira? Pode-se muito bem brincar um instante, mas uma brincadeira indefinidamente prolongada seria tão fastidiosa para o mistificador como para o mistificado. Haveria, além disso, numa mistificação que se propaga de um extremo a outro do mundo e entre as pessoas mais graves, mais veneráveis e

esclarecidas, alguma coisa pelo menos tão extraordinária quanto o próprio fenômeno.

IV — MANIFESTAÇÕES INTELIGENTES

Se os fenômenos de que nos ocupamos se restringissem ao movimento de objetos, teriam permanecido no domínio das Ciências Físicas: mas não aconteceu assim: estavam destinados a nos colocar na pista dos fatos de uma ordem estranha. Acreditou-se haver descoberto, não sabemos por iniciativa de quem, que o impulso dado aos objetos não era somente o produto de uma força mecânica cega, mas que havia nesse movimento a intervenção de uma causa inteligente. Esta via, uma vez aberta, oferecia um campo inteiramente novo de observações; era o véu que se levantava sobre muitos mistérios. Mas haverá realmente neste caso uma potência inteligente? Essa é a questão. Se essa potência existe, o que é ela, qual a sua natureza, a sua origem? É ela superior a Humanidade? Tais são as outras questões que decorrem da primeira.

As primeiras manifestações inteligentes verificaram-se por meio de mesas que se moviam e davam determinados golpes, batendo um pé, e assim respondiam, segundo o que se havia convencionado, por "sim" ou por "não" a questão proposta. Até aqui, nada há de bastante convincente para os céticos,

porque se poderia crer num efeito do acaso. Em seguida, obtiveram-serespostas mais desenvolvidas por meio das letras do alfabeto: dando o móvel um número de ordem de cada letra, chegava-se a formar palavras e frases que respondiam as questões propostas. A justeza das respostas e sua correspondência com a pergunta provocaram a admiração. O ser misterioso que assim respondia, interpelado sobre a sua natureza, declarou que era um Espírito ou Gênio, deu o seu nome e forneceu diversas informações a seu respeito. Esta é uma circunstância muito importante a notar. Ninguém havia então pensado nos Espíritos como um meio de explicar o fenômeno; foi o próprio fenômeno que revelou a palavra. Fazem-se hipóteses freqüentemente nas Ciências exatas para se conseguir uma base ao raciocínio; mas neste caso não foi o que se deu.

Esse meio de correspondência era demorado e incômodo. O Espírito, e esta é também uma circunstância digna de nota, indicou outro. Foi um desses seres invisíveis quem aconselhou a adaptar-se um lápis a uma cesta ou a outro objeto. A cesta, posta sobre uma folha de papel, é movimentada pela mesma potência oculta que faz girar as mesas; mas em lugar de um simples movimento regular, o lápis escreve por si mesmo, formando palavras, frases, discursos inteiros de muitas páginas, tratando das mais altas questões de Filosofia, de Moral de Metafísica, de Psicologia, etc., e isso com tanta rapidez

como se escrevesse a mão.

Esse conselho foi dado simultaneamente na América, na França e em diversos países. Eis os termos em que foi dado em Paris, a 10 de julho de 1853, a um dos mais fervorosos adeptos da doutrina, que há muitos anos, desde 1849, se ocupava com a evocação dos Espíritos: "Vá buscar no quarto ao lado a cestinha; prenda nela um lápis, coloque-a sobre o papel e ponha-lheos dedos na borda". Feito isso, depois de alguns instantes a cesta se pôs em movimento e o lápis escreveu legivelmente esta frase: "Isto que eu vos disse,proibo-vos expressamente de o dizer a alguém; da primeira vez que escrever, escreverei melhor".

O objeto a que se adapta o lápis, não sendo mais que simples instrumento, sua natureza e sua forma não importam; procurou-se a disposição mais cômoda e foi assim que muitas pessoas passaram a usar uma prancheta.

A cesta ou a prancheta não podem ser postas em movimento senão sob a influência de certas pessoas, dotadas para isso de um poder especial e que se designam pelo nome de médiuns, ou seja, intermediários entre os Espíritos e os homens. As condições que produzem este podes estão ligadas a causas ao mesmo tempo físicas e morais ainda imperfeitamente conhecidas, porquanto se encontram médiuns de todas as idades, de ambos os sexos e em todos os graus de desenvolvimento intelectual. Essa faculdade, entretanto, se

desenvolve pelo exercício.

V — DESENVOLVIMENTO DA PSICOGRAFIA

Mais tarde reconheceu-se que a cesta e a prancheta nada mais eram do que apêndices da mão, e o médium, tomando diretamente o lápis, pôs-se a escrever por um impulso involuntário e quase fébril. Por esse meio as comunicações se tornaram mais rápidas, mais fáceis e mais completas: é esse, hoje, o meio mais comum, tanto que o número de pessoas dotadas dessa aptidão é bastante considerável e se multiplica dia a dia. A experiência, por fim, tornou conhecidas muitas outras variedades da faculdade mediúnica,descobrindo-se que as comunicações podiam igualmente verificar-se através da escrita direta dos Espíritos, ou seja, sem o concurso da mão do médium nem do lápis.

Verificado o fato, um ponto essencial restava a considerar: o papel do médium nas respostas e a parte que nelas tomava, mecânica e moralmente. Duas circunstâncias capitais, que não escapariam a um observador atento, podem resolver a questão. A primeira é a maneira pela qual a cesta se move sob a sua influência, pela simples imposição dos dedos na borda; o exame demonstra a impossibilidade de o médium imprimir uma direção a cesta. Essa impossibilidade se torna sobretudo evidente quando duas ou três pessoas tocam ao mesmo tempo na mesma cesta; seria necessário entre elas uma

concordância de movimentos realmente fenomenal; seria ainda necessária a concordância de pensamentos para que pudessem entender-se sobre a resposta a dar. Outro fato, não menos original, vem ainda aumentar a dificuldade. É a mudança radical da letra, segundo o Espírito que se manifesta e a cada vez que o mesmo Espírito volta, repetindo-a. Seria pois necessário que o médium se tivesse exercitado em modificar a própria letra de vinte maneiras diferentes e, sobretudo, que ele pudesse lembrar-se da caligrafia deste ou daquele Espírito.

A segunda circunstância resulta da própria natureza das respostas, que são, na maioria dos casos, mormente quando se trata de questões abstratas ou científicas, notoriamente fora dos conhecimentos e às vezes do alcance intelectual do médium. Este, de resto, em geral não tem consciência do que escreve e por outro lado nem mesmo entende a questão proposta, que pode ser feita numa língua estranha ou mentalmente, sendo a resposta dada nessa língua. Acontece, por fim, que a cesta escreve de maneira espontânea, sem nenhuma questão proposta, sobre um assunto absolutamente inesperado.

As respostas, em certos casos, revelam um teor de sabedoria, de profundeza e de oportunidade; pensamentos tão elevados e tão sublimes, que não podem vir senão de uma inteligência superior, impregnada da mais pura moralidade. De outras vezes são tão levianas, tão frívolas, e mesmo tão banais que a razão se recusa a admitir que possam vir da mesma fonte. Essa diversidade de

linguagem não se pode explicar senão pela diversidade de inteligências que se manifestam. Essas inteligências são humanas ou não? Este é o ponto a esclarecer e sobre o qual se encontrará nesta obra a explicação completa, tal como foi dada pelos próprios Espíritos.

Eis, portanto, os efeitos evidentes que se produzem fora do círculo habitual de nossas observações; que não se passam de maneira misteriosa mas a luz do dia; que todos podem ver e constatar; que não são privilégios de nenhum indivíduo e que milhares de pessoas repetem a vontade todos os dias. Esses efeitos têm necessariamente uma causa e desde que revelam a ação de uma inteligência e de uma vontade, saem fora do domínio puramente físico.

Muitas teorias foram formuladas a respeito. Passaremos a examiná-lasdentro em pouco e veremos se podem tornar compreensíveis todos os fatos produzidos. Admitamos por enquanto a existência de seres distintos da humanidade, pois é essa a explicação dada pelas inteligências que se manifestam, e vejamos o que eles nos dizem.

VI — RESUMO DA DOUTRINA DOS ESPÍRITOS

Os seres que se manifestam designam-se a si mesmos, como dissemos, pelo nome de Espíritos ou Gênios, e dizem, alguns pelo menos, que viveram como homens na Terra. Constituem o mundo espiritual, como nós constituímos,

durante a nossa vida, o mundo corporal.

Resumimos em poucas palavras os pontos principais da doutrina que nos transmitiram, a fim de mais facilmente responder a certas objeções:

"Deus é eterno, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom.

Criou o Universo, que compreende todos os seres animados e inanimados, materiais e imateriais.

Os seres materiais constituem o mundo visível ou corporal e os seres imateriais o mundo invisível ou espírita, ou seja, dos Espíritos.

O mundo espírita é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente e sobrevivente a tudo.

O mundo corporal é secundário; poderia deixar de existir ou nunca ter existido, sem alterar a essência do mundo espírita.

Os Espíritos revestem temporariamente um invólucro material perecível e sua destruição pela morte os devolve a liberdade.

Entre as diferentes espécies de seres corporais. Deus escolheu a espécie humana para a encarnação dos Espíritos que chegaram a um certo grau de desenvolvimento, o que lhe dá superioridade moral e intelectual ante as demais.

A alma é um espírito encarnado, e o corpo apenas o seu invólucro.

Há no homem três coisas: lº) O corpo ou ser material, semelhante ao dos animais e animado pelo mesmo princípio vital; 2º) A alma ou ser imaterial, espírito encarnado no corpo; 3º) O laço que une a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o Espírito.

O homem tem assim duas naturezas: pelo corpo participa da natureza dos animais, dos quais possui os instintos; pela alma participa da natureza dos Espíritos.

O laço ou perispírito que une corpo e Espírito é uma espécie de invólucro semimaterial. A morte é a destruição do invólucro mais grosseiro. O Espírito conserva o segundo, que constitui para ele um corpo etéreo, invisível para nós no seu estado normal, mas que ele pode tornar acidentalmente visível e mesmo tangível, como se verifica nos fenômenos de aparição.

O Espírito não é, portanto, um ser abstrato, indefinido, que só o pensamento pode conceber. É um ser real, definido, que em certos casos pode ser apreendido pelos nossos sentidos da vista, da audição e do tato.

Os Espíritos pertencem a diferentes classes, não sendo iguais em poder nem em inteligência, saber ou moralidade. Os da primeira ordem são os Espíritos Superiores que se distinguem pela perfeição, pelos conhecimentos e pela proximidade de Deus, pela pureza dos sentimentos e o amor do bem: são os anjos ou Espíritos puros. As demais classes se distanciam mais e mais desta

perfeição. Os das classes inferiores são inclinados as nossas paixões: o ódio, a inveja, o ciúme, o orgulho, etc. e se comprazem no mal. Nesse número há os que não são nem muito bons, nem muito maus; antes, perturbadores e intrigantes do que maus; a malícia e a inconseqüência parecem ser as suas características: são os Espíritos estouvados ou levianos.

Os Espíritos não pertencem eternamente a mesma ordem. Todos melhoram, passando pelos diferentes graus da hierarquia espírita. Esse melhoramento se verifica pela encarnação, que a uns é imposta como uma expiação, a outros como missão. A vida material é uma prova a que devemsubmeter-se repetidas vezes até atingirem a perfeição absoluta; é uma espécie de peneira ou depurador de que eles saem mais ou menos purificados.

Deixando o corpo, a alma volta ao mundo dos Espíritos, de que havia saído para reiniciar uma nova existência material, após um lapso de tempo mais ou menos longo durante o qual permanecerá no estado de espírito errante.

Devendo o Espírito passar por muitas encarnações, conclui-se que todos nós tivemos muitas existências e que teremos outras, mais ou menos aperfeiçoadas, seja na Terra ou em outros mundos.

A encarnação dos Espíritos ocorre sempre na espécie humana. Seria um erro acreditar que a alma ou espírito pudesse encarnar num corpo de animal.

As diferentes existências corporais do Espírito são sempre progressivas e

jamais retrógradas, mas a rapidez do progresso depende dos esforços que fazemos para chegar à perfeição.

As qualidades da alma são as do Espírito encarnado. Assim, o homem de bem é a encarnação de um bom Espírito e o homem perverso a de um Espírito impuro.

A alma tinha a sua individualidade antes da encarnação e a conserva após a separação do corpo.

No seu regresso ao mundo dos Espíritos a alma reencontra todos os que conheceu na Terra e todas as suas existências anteriores se delineiam na sua memória, com a recordação de todo o bem e todo o mal que tenha feito.

O Espírito encarnado está sob a influência da matéria. O homem que supera essa influência, pela elevação e purificação de sua alma, aproxima-sedos bons Espíritos com os quais estará um dia. Aquele que se deixa dominar pelas más paixões e põe todas as suas alegrias na satisfação dos apetites grosseiros aproxima-se dos Espíritos impuros, dando preponderância a natureza animal.

Os Espíritos encarnados habitam os diferentes globos do Universo.

Os Espíritos não-encarnados ou errantes não ocupam nenhuma região determinada ou circunscrita; estão por toda parte, no espaço e ao nosso lado,vendo-nos e acotovelando-nos sem cessar. É toda uma população invisível que se agita ao nosso redor.

Os Espíritos exercem sobre o mundo moral e mesmo sobre o mundo físico uma ação incessante. Agem sobre a matéria e sobre o pensamento e constituem uma das forças da Natureza, causa eficiente de uma multidão de fenômenos até agora inexplicados ou mal explicados, que não encontram solução racional.

As relações dos Espíritos com os homens são constantes. Os bons Espíritos nos convidam ao bem, nos sustentam nas provas da vida e nos ajudam asuportá-las com coragem e resignação; os maus nos convidam ao mal: é para eles um prazer ver-nos sucumbir e cair no seu estado.

As comunicações ocultas verificam-se pela influência boa ou má que eles exercem sobre nós sem o sabermos, cabendo ao nosso julgamento discernir as más e boas inspirações. As comunicações ostensivas realizam-se por meio da escrita, da palavra ou de outras manifestações materiais, na maioria das vezes através dos médiuns que lhes servem de instrumento.

Os Espíritos se manifestam espontaneamente ou pela evocação. Podemos evocar todos os Espíritos: os que animaram homens obscuros e os dos personagens mais ilustres, qualquer que seja a época em que tenham vivido; os de nossos parentes, de nossos amigos ou inimigos e deles obter, por comunicações escritas ou verbais, conselhos, informações sobre a situação em que se acham no espaço, seus pensamentos a nosso respeito, assim como as

revelações que lhes seja permitido fazer-nos.

Os Espíritos são atraídos na razão de sua simpatia pela natureza moral do meio que os evoca. Os Espíritos superiores gostam das reuniões sérias em que predominem o amor do bem e o desejo sincero de instrução e de melhoria. Sua presença afasta os Espíritos inferiores, que encontram, ao contrário, livre acesso e podem agir com inteira liberdade entre as pessoas frívolas ou guiadas apenas pela curiosidade e por toda parte onde encontrem maus instintos. Longe de obtermos bons conselhos e informações úteis desses Espíritos, nada mais devemos esperar do que futilidades, mentiras, brincadeiras de mau gosto ou mistificações, pois freqüentemente se servem de nomes veneráveis para melhor nos induzirem ao erro.

Distinguir os bons e os maus Espíritos e extremamente fácil. A linguagem dos Espíritos superiores é constantemente digna, nobre, cheia da mais alta moralidade, livre de qualquer paixão inferior, seus conselhos revelam a mais pura sabedoria e têm sempre por alvo o nosso progresso e o bem da Humanidade. A dos Espíritos inferiores, ao contrário, é inconseqüente, quase banal e mesmo grosseira; se dizem às vezes coisas boas e verdadeiras, dizem com mais freqüência falsidades e absurdos, por malícia ou por ignorância; zombam da credulidade e divertem-se a custa dos que os interrogam,lisonjeando-lhes a vaidade e embalando-lhes os desejos com falsas esperanças.

Em resumo, as comunicações sérias, na perfeita acepção do termo, não se verificam senão nos centros sérios, cujos membros estão unidos por uma íntima comunhão de pensamentos dirigidos para o bem.

A moral dos Espíritos superiores se resume, como a do Cristo, nesta maxima evangélica: "Fazer aos outros o que desejamos que os outros nos façam", ou seja, fazer o bem e não o mal. O homem encontra nesse princípio a regra universal de conduta, mesmo para as menores ações.

Eles nos ensinam que o egoísmo, o orgulho, a sensualidade são paixões que nos aproximam da natureza animal, prendendo-nos a matéria: que o homem que, desde este mundo, se liberta da matéria pelo desprezo das futilidades mundanas e o cultivo do amor ao próximo, aproxima-se da natureza espiritual; que cada um de nós deve tornar-se útil segundo as faculdades e os meios que Deus nos colocou nas mãos para nos provar; que o Forte e o Poderoso devem apoio e proteção ao Fraco, porque aquele que abusa da sua força e do seu poder para oprimir o seu semelhante viola a lei de Deus. Eles ensinam, enfim, que no mundo dos Espíritos nada pode estar escondido: o hipócrita será desmascarado e todas as suas torpezas reveladas; a presença inevitável e incessante daqueles que prejudicamos é um dos castigos que nos estão reservados; ao estado de inferioridade e de superioridade dos Espíritos correspondem penas e alegrias que nos são desconhecidas na Terra.

Mas eles nos ensinam também que não há faltas irremissíveis, que não possam ser apagadas pela expiação. O homem encontra o meio necessário nas diferentes existências, que lhe permitem avançar, segundo o seu desejo e os seus esforços, na via do progresso, em direção a perfeição que é o seu objetivo final."

Este é o resumo da doutrina espírita, como ela aparece no ensinamento dos Espíritos superiores. Vejamos agora as objeções que lhe fazem.

VII — A CIÊNCIA E O ESPIRITISMO

A oposição das corporações científicas é, para muita gente, senão uma prova, pelo menos uma forte presunção contrária. Não somos dos que levantam a voz contra os sábios, pois não queremos dar motivo a nos chamarem de estouvados; temo-los, pelo contrário, em grande estima e ficaríamos muito honrados se fossemos contados entre eles. Entretanto, sua opinião não poderia representar todas as circunstâncias, um julgamento irrevogável.

Quando a Ciência sai da observação material dos fatos e trata deapreciá-los e explicá-los, abre-se para os cientistas o campo das conjecturas: cada um constrói o seu sistemazinho, que deseja fazer prevalecer e sustenta encarniçadamente. Não vemos diariamente as opiniões mais contraditórias

serem preconizadas e rejeitadas, repelidas como erros absurdos e depois proclamadas como verdades incontestáveis? Os fatos, eis o verdadeiro critério dos nossos julgamentos, o argumento sem réplica. Na ausência dos fatos, a dúvida é a opinião do homem prudente.

No tocante as coisas evidentes, a opinião dos sábios e justamente digna de fé, porque eles as conhecem mais e melhor que o vulgo. Mas no tocante a princípios novos, a coisas desconhecidas, a sua maneira de ver não é mais do que hipotética, porque eles não são mais livres de preconceitos que os outros. Direi mesmo que o sábio terá, talvez, mais preconceitos que qualquer outro, pois uma propensão natural o leva a tudo subordinar ao ponto de vista de sua especialidade: o matemático não vê nenhuma espécie de prova, senão através de uma demonstração algébrica, o químico relaciona tudo com a ação dos elementos, e assim por diante. Todo homem que se dedica a uma especialidade escraviza a ela as suas idéias. Afastai-o do assunto e ele quase sempre se confundirá, porque deseja tudo submeter ao seu modo de ver; é esta uma conseqüência da fragilidade humana. Consultarei, portanto, de bom grado e com absoluta confiança, um químico sobre uma questão de análise; um físico sobre a força elétrica; um mecânico sobre a força motriz; mas eles me permitirão, sem que isto afete a estima que lhes devo por sua especialização, que não tenha em melhor conta a sua opinião negativa sobre o Espiritismo do

que a de um arquiteto sobre questões de música.

As ciências comuns se apóiam nas propriedades da matéria, que pode ser experimentada e manipulada à vontade; os fenômenos espíritas se apoiam na ação de inteligências que têm vontade própria e nos provam a todo instante não estarem submetidas ao nosso capricho. As observações, portanto, não podem ser feitas da mesma maneira, num e noutro caso. No Espiritismo elas requerem condições especiais e outra maneira de encará-las: querersujeitá-las aos processos ordinários de investigação, seria estabelecer analogias que não existem. A Ciência propriamente dita, como Ciência, é incompetente para se pronunciar sobre a questão do Espiritismo: não lhe cabe ocupar-se do assunto e seu pronunciamento a respeito, qualquer que seja, favorável ou não, nenhum peso teria.

O Espiritismo é o resultado de uma convicção pessoal que os sábios podem ter como indivíduos, independente de sua condição de sábios. Querer, porém, deferir a questão à Ciência seria o mesmo que entregar a uma assembléia de físicos ou astrônomos a solução do problema da existência da alma. Com efeito, o Espiritismo repousa inteiramente sobre a existência da alma e o seu estado após a morte. Ora, é supinamente ilógico pensar que um homem deve ser grande psicólogo pelo simples fato de ser grande matemático ou grande anatomista. O anatomista, dissecando o corpo humano, procura a alma e

porque não a encontra com o seu bisturi, como se encontrasse um nervo, ou porque não a vê evolar-se como um gás, conclui que ela não existe. Isto, em razão de colocar-se num ponto de vista exclusivamente material. Segue-sedaí que ele esteja com a razão, contra a opinião universal? Não. Vê-se,portanto, que o Espiritismo não é da alçada da Ciência.

Quando as crenças espíritas estiverem vulgarizadas, quando forem aceitas pelas massas, — o que, a julgar pela rapidez com que se propagam, não estaria muito longe, — dar-se-á com elas o que se tem dado com todas as idéias novas que encontraram oposição: os sábios se renderão a evidência. Eles as aceitarão individualmente, pela força das circunstâncias. Até que isso aconteça, seria inoportuno desviá-los de seus trabalhos especiais paraconstrangê-los a ocupar-se de coisa estranha, que não está nas suas atribuições nem nos seus programas. Enquanto isso, os que, sem estudo prévio e aprofundado da questão, pronunciam-se pela negativa e zombam dos que não concordam com a sua opinião, esquecem que o mesmo aconteceu com a maioria das grandes descobertas que honram a Humanidade.Arriscam-se a ver os seus nomes aumentando a lista dos ilustres negadores das idéias novas, inscritos ao lado dos membros da douta assembléia que, em 1752, recebeu com estrondosa gargalhada o relatório de Franklin sobre ospára-raios, julgando-o indigno de figurar entre as comunicações da pauta, e daquela outra

que fez a França perder as vantagens da navegação a vapor ao declarar o sistema de Fulton um sonho impraticável. Não obstante, eram questões de alçada da Ciência. Se essas assembléias, que contavam com os maiores sábios do mundo, só tiveram zombaria e sarcasmo para as idéias que ainda não compreendiam e que alguns anos mais tarde deviam revolucionar a Ciência, os costumes e a indústria, como esperar que uma questão estranha aos seus trabalhos possa ser melhor aceita?

Esses erros lamentáveis não tirariam aos sábios, entretanto, os títulos com que, noutros assuntos, conquistam o nosso respeito. Mas é necessário um diploma oficial para se ter bom senso? E fora das cátedras acadêmicas não haverá mais do que tolos e imbecis? Basta olhar para os adeptos da doutrina espírita, para se ver se entre eles só existem ignorantes e se o número imenso de homens de mérito que a abraçaram permite que a releguemos ao rol das simples crendices. O caráter e o saber desses homens autorizam-nos a dizer: pois se eles o afirmam, deve pelo menos haver alguma coisa.

Repetimos ainda que, se os fatos de que nos ocupamos estivessem reduzidos ao movimento mecânico dos corpos, a pesquisa da causa física do fenômeno seria do domínio da Ciência; mas desde que se trata de uma manifestação fora do domínio das leis humanas, escapa a competência da Ciência material porque não pode ser explicada por números, nem por forças mecânicas.

Quando surge um fato novo, que não se enquadra em nenhuma Ciência conhecida, o sábio, para o estudar, deve fazer abstração de sua ciência e dizer a si mesmo que se trata de um estudo novo, que não pode ser feito com idéias preconcebidas.

O homem que considere a sua razão infalível está bem próximo do erro; mesmo aqueles que têm as mais falsas idéias apoiam-se na própria razão e é por isso que rejeitam tudo quanto lhes parece impossível. Os que ontem repeliram as admiráveis descobertas de que a Humanidade hoje se orgulha, apelaram a esse juiz para as rejeitar. Aquilo que chamamos razão é quase sempre o orgulho mascarado e quem quer que se julgue infalível coloca-secomo igual a Deus. Dirigimo-nos, portanto, aos que são bastante ponderados para duvidar do que não viram, e julgando o futuro pelo passado, não acreditam que o homem tenha chegado ao apogeu nem que a Natureza lhes tenha virado a última página do seu livro.

VIII — PERSEVERANÇA E SERIEDADE

Acrescentemos que o estudo de uma doutrina como a espírita, que nos lança de súbito numa ordem de coisas tão nova e grande, não pode ser feito proveitosamente senão por homens sérios, perseverantes, isentos de prevenções e animados de uma firme e sincera vontade de chegar a um

resultado. Não podemos classificar assim aos que julgam a priori, levianamente, sem terem visto tudo: os que não imprimem aos seus estudos nem a continuidade, nem a regularidade e o recolhimento necessários; e menos ainda aos que para não diminuírem a sua reputação de homens de espírito, esforçam-se por encontrar um lado burlesco nas coisas mais verdadeiras ou assim consideradas por pessoas cujo saber, caráter e convicções merecem a consideração dos que se prezam de urbanidade. Que se abstenham, portanto, os que não julgam os fatos dignos de sua atenção; ninguém pretende violentar-lhes a crença, — mas que eles também saibam respeitar as dos outros.

O que caracteriza um estudo sério é a continuidade. Devemos admirar-nosde não obter respostas sensatas a perguntas naturalmente sérias, quando as fazemos ao acaso e de maneira brusca, em meio a perguntas ridículas? Uma questão complexa requer, para ser esclarecida, perguntas preliminares ou complementares. Quem quer adquirir uma Ciência deve estudá-la de maneira metódica, começando pelo começo e seguindo o seu encadeamento de idéias. Aquele que propõe a um sábio, ao acaso, uma questão sobre Ciência de que ignora os rudimentos, obterá algum proveito? O próprio sábio poderá, com a maior boa vontade, dar-lhe uma resposta satisfatória? Essa resposta isolada será forçosamente incompleta e, por isso mesmo, quase sempre ininteligível,

ou poderá parecer absurda e contraditória. Acontece o mesmo em nossas relações com os Espíritos. Se desejamos aprender com eles, temos de seguir- lhes o curso; mas, como entre nós, é necessário escolher os professores e trabalhar com assiduidade.

Dissemos que os Espíritos superiores só comparecem as reuniões sérias, aquelas sobretudo em que reina perfeita comunhão de pensamentos e de bons sentimentos. A leviandade e as perguntas ociosas os afastam, como entre os homens afastam as criaturas ponderadas; o campo fica então livre a turba de Espíritos mentirosos e frívolos, sempre a espreita de oportunidades para zombarem de nós e se divertirem a nossa custa. Em que se transformaria uma pergunta séria, numa reunião dessas? Teria resposta? De quem? Seria o mesmo que lançarmos, numa reunião de gaiatos, estas perguntas: O que é a alma? O que é a morte? e outras coisas assim divertidas.

Se quereis respostas sérias, sede sérios vós mesmos, em toda a extensão do termo e mantende-vos nas condições necessárias: somente então obtereis grandes coisas. Sede, além disso, laboriosos e perseverantes em vossos estudos, para que os Espíritos superiores não vos abandonem como faz um professor com os alunos negligentes.

IX — MONOPOLIZADORES DO BOM SENSO

O movimento de objetos é um fato comprovado; resta saber se nesse movimento há ou não manifestação inteligente e, em caso afirmativo, qual a sua origem.

Não falamos do movimento inteligente de certos objetos, nem das comunicações verbais ou das que são escritas diretamente pelos médiuns. Esse gênero de manifestações, tão evidente para aqueles que viram e aprofundaram o assunto, não é, a primeira vista, bastante independente da vontade para convencer um observador novato. Não trataremos, portanto, senão da escrita obtida com a ajuda de um objeto munido de lápis, como a cesta, a prancheta, etc. A maneira por que os dedos do médium são postos sobre o objeto desafia, como já dissemos, a mais consumada destreza em particular de qualquer forma da formação das letras. Mas admitamos ainda que, por uma habilidade maravilhosa, possa ele enganar os olhos mais atentos. Como explicar a natureza das respostas, quando elas superam as idéias e os conhecimentos do médium? E note-se que não se trata de respostas monossilábicas, mas quase sempre de muitas páginas escritas com admirável rapidez, espontaneamente ou sobre assunto determinado. Pela mão do médium menos versado em literatura surgem poesias de uma sublimidade e de uma pureza impecáveis, que não desmereceriam os melhores poetas humanos. E o que aumenta ainda a

estranheza desses fatos é que eles se produzem por toda parte e que os médiuns se multiplicam ao infinito. Esses fatos são reais ou não? A essa pergunta só podemos responder: Vede e observai; não vos faltará, oportunidades; mas, sobretudo, observai com constância, por longo tempo e obedecendo as condições necessárias.

A evidência, o que respondem os antagonistas? Sois vítimas do charlatanismo, dizem eles, ou joguetes de uma ilusão. Responderemos de início que é preciso afastar a palavra charlatanismo de onde não existem lucros, pois os charlatões não agem gratuitamente. Seria, quando muito, uma mistificação. Mas por que estranha coincidência os mistificadores se teriam entendido, de um extremo a outro do mundo, para agir da mesma maneira, produzir os mesmos efeitos e dar aos mesmos assuntos e nas diversas línguas respostas idênticas, senão quanto as palavras, pelo menos quanto ao sentido? Como é que pessoas sérias, honradas e instruídas se prestariam a semelhantes manobras, e com que objetivo? Como teriam encontrado entre as crianças a paciência e a habilidade necessárias? Porque, se os médiuns não forem instrumentos passivos, é claro que necessitam de habilidade e de conhecimentos incompatíveis com certas idades e posições sociais.

Então acrescentam que, se não há embuste, os dois lados podem estar embuídos por uma ilusão. Em boa lógica, a qualidade das testemunhas tem um

certo peso; ora, é o caso de se perguntar se a doutrina espírita, que conta hoje milhões de adeptos, só os recruta entre os ignorantes. Os fenômenos em que ela se apóia são tão extraordinários que concebemos a dúvida, mas não se pode admitir a pretensão de alguns incrédulos ao monopólio do bom senso, ou que, sem respeito as conveniências e ao valor moral dos adversários, tachem de ineptos a todos os que não concordam com as suas opiniões. Aos olhos de toda pessoa judiciosa, a opinião dos homens esclarecidos que viram determinado fato por longo tempo e o estudaram e meditaram será sempre uma prova ou pelo menos uma presunção favorável, por ter podido prender a atenção de homens sérios que não tinham nenhum interesse em propagar erros, nem tempo a perder com futilidades.

X — A LINGUAGEM DOS ESPÍRITOS E O PODER DIABÓLICO

Entre as objeções, algumas são mais consideráveis pelo menos na aparência, porque baseiam-se na observação de pessoas sérias.

Uma dessas observações refere-se a linguagem de certos Espíritos, que não parece digna da elevação atribuída aos seres sobrenaturais. Se quisermosreportar-nos ao resumo da doutrina, atrás apresentado, veremos que os próprios Espíritos ensinam que não são iguais em conhecimentos, nem em qualidades morais, e que não se deve tomar ao pé da letra tudo o que dizem.

Cabe as pessoas sensatas separar o bom do mau. Seguramente os que deduzem, desse fato, que tratamos com seres malfazejos, cuja única intenção é a de nos mistificarem, não conhecem as comunicações dadas nas reuniões em que se manifestam Espíritos superiores, pois de outra maneira não pensariam assim, é pena que o acaso tenha servido tão mal a essas pessoas, não lhes mostrando senão o lado mau do mundo espírita, pois não queremos supor que uma tendência simpática atraia para elas os maus Espíritos em lugar dos bons, os Espíritos mentirosos ou esses cuja linguagem é de revoltante grosseria. Poderíamos concluir, quando muito que a solidez dos seus princípios não seja bastante forte para preservá-las do mal, e que, encontrando um certo prazer em lhes satisfazer a curiosidade, os maus Espíritos, por seu lado, aproveitam-se disso para se introduzirem entre elas, enquanto os bons se afastam.

Julgar a questão dos Espíritos por esses fatos seria tão pouco lógico como julgar o caráter de um povo pelo que se diz e se faz numa reunião de alguns estabanados, ou gente de má fama, a que não compareçem os sábios nem as pessoas sensatas. Os que assim julgam estão na situação de um estrangeiro que, chegando a uma grande capital pelo seu pior arrabalde, julgasse toda a população da cidade pelos costumes e a linguagem desse bairro mesquinho. No mundo dos Espíritos há também desníveis sociais; se aquelas pessoas quisessem estudar as relações entre os Espíritos elevados ficariam

convencidas de que a cidade celeste não contém apenas a escória popular. Mas, perguntam elas, os Espíritos elevados chegam até nós? Responderemos: não permanecais no subúrbio; vede, observai e julgai; os fatos aí estão para todos. A menos que a essas pessoas se apliquem estas palavras de Jesus: "Têm olhos e não vêem; têm ouvidos e não ouvem".

Uma variante desta opinião consiste em não ver nas comunicações espíritas e em todos os fatos materiais a que elas dão lugar senão a intervenção de um poder diabólico, novo Proteu que revestiria todas as formas para melhor nos iludir. Não a consideramos suscetível de um exame sério e por isso não nos deteremos no caso: ela já está refutada pelo que dissemos atrás. Acrescentaremos apenas que, se assim fosse, teríamos de convir que o diabo é às vezes bem inteligente, bastante criterioso, e sobretudo muito moral, ou então que existem bons diabos.

Como acreditar, de fato, que Deus não permita senão ao Espírito do malmanifestar-se para nos perder, sem nos dar por contrapeso os conselhos dos bons Espíritos? Se Ele não o pode, isto é uma impotência; se Ele o pode e não faz, isso é incompatível com a sua bondade; e uma e outra suposição seriam blasfêmías. Acentuemos que admitir a comunicação dos maus Espíritos é reconhecer o princípio das manitestações. Ora, desde que estas existem, será com a permissão de Deus. Como acreditar, sem cometer impiedade, que Ele

só permita o mal, com exclusão do bem? Uma doutrina assim é contraria ao bom senso e as mais simples noções da religião.

XI — GRANDES E PEQUENOS

É estranho, acrescentam, que só falem de Espíritos de personalidades conhecidas. E perguntam por que motivo só estes se manifestam. É um erro proveniente, como muitos outros, de observação superficial. Entre os Espíritos que se manifestam espontaneamente há maior número de desconhecidos do que de ilustres. Eles se designam por qualquer nome, muitas vezes por nomes alegóricos ou característicos. Quanto aos evocados, desde que não se trate de parentes ou amigos, é muito natural que sejam de preferência os conhecidos. Os nomes de personagens ilustres chamam mais a atenção por serem mais destacados.

Acham ainda estranho que os Espíritos de homens eminentes atendam familiarmente ao nosso apelo, ocupando-se às vezes de coisas insignificantes, em comparação com as de que se ocupavam durante a vida. Isso nada tem de estranho para os que sabem que o poder ou a consideração de que esses homens gozavam no mundo não lhes da nenhuma supremacia no mundo espírita. Os Espíritos confirmam com isto as palavras do Evangelho: Os grandes serão humilhados e os pequenos serão exaltados, que devem ser

entendidas em relação a categoria que cada um de nós ocupará entre eles. É assim que aquele que foi o primeiro na Terra podera encontrar-se entre os últimos; aquele que nos faz curvar a cabeça nesta vida pode voltar como o mais humilde artesão, porque ao deixar a vida perdeu toda a sua grandeza, e o mais poderoso monarca talvez lá se encontre abaixo do último dos seus soldados.

XI — DA IDENTIFICAÇÃO DOS ESPÍRITOS

Um fato demonstrado pela observação e confirmado pelos próprios Espíritos é que os Espíritos inferiores apresentam-se muitas vezes com nomes conhecidos e respeitados. Quem pode, portanto, assegurar que aqueles que dizem ter sido Sócrates, Júlio César, Carlos Magno, Fénelon, Napoleão, Washington, etc. tenham realmente animado esses personagens? Essa dúvida existe entre alguns adeptos bastante fervorosos da Doutrina Espírita. Admitem a intervenção e a manifestação dos Espíritos, mas perguntam que controle podemos ter da sua identidade. Esse controle é de fato bastante difícil de realizar, mas se não pode ser feito de maneira tão autêntica como por uma certidão de registro civil, pode sê-lo por presunção, através de certos indícios.

Quando se manifesta o Espírito de alguém que pessoalmente conhecemos, de um parente ou de um amigo, sobretudo se morreu há pouco tempo,

acontece geralmente que sua linguagem corresponde com perfeição às características que conhecíamos. Isto já é um indício de identidade. Mas a dúvida já não será certamente possível quando esse Espírito fala de coisas particulares, lembra casos familiares que somente o interlocutor conhece. Um filho não se enganará, por certo, com a linguagem de seu pai e de sua mãe, nem os pais com a linguagem do filho. Passam-se algumas vezes, nessas evocações íntimas coisas impressionantes, capazes de convencer o mais incrédulo. O cético mais endurecido é muitas vezes aterrado com as revelações inesperadas que lhe são feitas.

Outra circunstância bastante característica favorece a identidade. Dissemos que a caligrafia do médium muda geralmente com o Espírito evocado,reproduzindo-se exatamente a mesma, de cada vez que o mesmo Espírito se manifesta. Constatou-se inúmeras vezes que, para pessoas mortas recentemente, a escrita revela semelhança flagrante com a que tinha em vida:têm-se visto assinaturas perfeitamente idênticas. Estamos longe, entretanto, de citar esse fato como uma regra, sobretudo como constante;mencionamo-lo como coisa digma de registro.

Os Espíritos que atingiram certo grau de depuração são os únicos libertos de toda influência corporal; mas quando não estão completamente desmaterializados (esta é a expressão de que se servem) conservam a maior

parte das idéias, dos pendores e até mesmo das manias que tinham na Terra e este é ainda um meio pelo qual podemos reconhecê-los. Mas chegamos ao reconhecimento, sobretudo, através de uma multidão de detalhes que somente uma observação atenta e contínua pode revelar. Vêem-se escritores discutirem suas próprias obras ou suas doutrinas, aprovando-lhes oucondenando-lhes certas partes; outros Espíritos lembrarem circunstâncias ignoradas ou pouco conhecidas de suas vidas ou suas mortes; todas as coisas, enfim, que são pelo menos provas morais de identidade, as únicas que se podem invocar tratando- se de coisas abstratas.

Se, pois, a identidade do Espírito evocado pode ser, até certo ponto, estabelecida em alguns casos, não há razão para que ela não o possa ser em outros. E se, para as pessoas de morte mais remota não temos os mesmos meios de controle, dispomos sempre daqueles que se referem a linguagem e ao caráter. Porque, seguramente, o Espírito de um homem de bem nunca falará como o de um perverso ou imoral. Quanto aos Espíritos que se servem de nomes respeitáveis, logo se traem por sua linguagem e suas máximas. Aquele que se dissesse Fénelon, por exemplo, e ainda que acidentalmente ferisse o bom senso e a moral, mostraria nisso mesmo o seu embuste. Se, ao contrário, os pensamentos que exprime são sempre puros, sem contradições, constantemente a altura do caráter de Fénelon, não haverá motivos para

duvidar-se de sua identidade. Do contrário, teríamos de supor que um Espírito que só prega o bem pode conscientemente empregar a mentira, sem nenhuma utilidade. A experiência nos ensina que os Espíritos do mesmo grau, do mesmo caráter e animados dos mesmos sentimentos, reúnem-se em grupos e em famílias. Ora, o número dos Espíritos é incalculável e estamos longe de conhecê-los a todos; a maioria deles não tem nomes para nós.

Um Espírito da categoria de Fénelon pode, portanto, vir em seu lugar, às vezes mesmo com o seu nome, porque é idêntico a ele e pode substituí-lo e porque necessitamos de um nome para fixar as nossas idéias. Mas que importa, na verdade, que um Espírito seja realmente o de Fénelon? Desde que só diga boas coisas e não fale senão como o faria o próprio Fénelon, é um bom Espírito; o nome sob o qual se apresenta é indiferente e nada mais é, freqüentemente, do que um meio para a fixação de nossas idéias. Não se verifica o mesmo nas evocações íntimas, pois nestas, como já dissemos, a identidade pode ser estabelecida por meio de provas que são, de alguma forma, evidentes.

Por fim, é certo que a substituição dos Espíritos pode ocasionar uma porção de enganos, resultar em erros e muitas vezes em mistificações. Esta é uma das dificuldades do Espiritismo prático. Mas jamais dissemos que esta Ciência seja fácil nem que se possa aprendê-la brincando, como também não se dá com qualquer outra Ciência. Nunca será demais repetir que ela exige estudo

constante e quase sempre bastante prolongado. Não se podendo provocar os fatos, e necessário esperar que eles se apresentem por si mesmos, e freqüentemente eles nos são trazidos pelas circunstâncias em que menos pensávamos. Para o observador atento e paciente os fatos se tornam abundantes, porque ele descobre milhares de nuanças características que lhe parecem como raios de luz. O mesmo se dá com referência as ciências comuns; enquanto o homem superficial só vê numa flor a sua forma elegante, o sábio descobre verdadeiras maravilhas para o seu pensamento.

XIII — AS DIVERGÊNCIAS DE LINGUAGEM

Estas observações levam-nos a dizer algumas palavras sobre outra dificuldade, referente a divergência de linguagem dos Espíritos.

Sendo os Espíritos muito diferentes uns dos outros, quanto ao conhecimento e a moralidade, é evidente que a mesma questão pode ser resolvida por eles de maneira contraditória, de acordo com suas respectivas categorias, como o fariam, entre os homens, um sábio, um ignorante ou um brincalhão de mau gosto. O essencial é saber a quem nos dirigimos.

Mas, acrescentam, como se explica que os Espíritos reconhecidos como superiores não estejam sempre de acordo? Diremos, inicialmente, que além da causa já assinalada há outras que podem exercer certa influência sobre a

natureza das respostas, independente da qualidade dos Espíritos. Este é um ponto capital, cuja explicação obteremos pelo estudo. Eis porque dizemos que estes estudos requerem atenção contínua, observação profunda e, sobretudo, como aliás todas as ciências humanas, a continuidade e a perseverança. Necessitamos de anos para fazer um médico medíocre e três quartas partes da vida para fazer um sábio, mas quer-se obter em algumas horas a Ciência do infinito! Que ninguém, portanto, se iluda: o estudo do Espiritismo é imenso; liga-se a todas as questões metafísicas e de ordem social; é todo um mundo que se abre diante de nós. Será de espantar que exija tempo, e muito tempo, para a sua realização?

A contradição, aliás, não é sempre tão real quanto pode parecer. Não vemos todos os dias homens que professam a mesma Ciência divergirem nas suas definições, seja porque empregam termos diferentes, seja por diferenças de ponto de vista, embora a idéia fundamental seja sempre a mesma? Que se conte, se possível, o número de definições dadas sobre a gramática! Acrescentemos que a forma da resposta depende quase sempre da forma da pergunta. Seria pueril, portanto, ver-se uma contradição onde geralmente não existe mais do que uma diferença de palavras. Os Espíritos superiores não se preocupam absolutamente com a forma; para eles, a essência do pensamento é tudo.

Tomemos, por exemplo, a definição de alma. Não tendo esta palavra uma definição única, os Espíritos podem, como nós, divergir na sua aplicação: um poderá dizer que ela é o princípio da vida; outro, chamá-la de centelha anímica; um terceiro dizer que ela é interna; um quarto, que é externa, etc., e todos terão razão segundo os seus pontos de vista. Poderíamos mesmo acreditar que alguns deles professem teorias materialistas e no entanto não ser assim. O mesmo acontece com relação a Deus: será ele o princípio de todas as coisas, o Criador do Universo, a inteligência suprema, o infinito, o grande Espírito, etc., etc., mas em definitivo será sempre Deus. Citemos ainda a classificação dos Espíritos. Formam eles uma série ininterrupta, do mais baixo ao mais alto grau, e sua classificação é portanto arbitrária: um poderá estabelecê-la em três classes, outro em cinco, dez ou vinte, à vontade, sem por isso estar em erro.

Todas as ciências humanas oferecem o mesmo exemplo: cada sábio tem o seu sistema; os sistemas variam mas a Ciência é sempre a mesma. Quer se aprenda Botânica pelo sistema de Lineu, de Jussieu ou de Tournefort não se saberá menos Botânica. Deixemos, portanto, de dar as coisas puramente convencionais mais importância do que merecem, para nos atermos ao que é verdadeiramente sério, e não raro a reflexão nos fará descobrir, naquilo que parece mais contraditório, uma similitude que nos escapara ao primeiro

exame.

XIV — AS QUESTÕES DE ORTOGRAFIA

Passaríamos ligeiramente sobre a objeção de alguns céticos quanto as falhas ortográficas de alguns Espíritos, se ela não nos desse oportunidade a uma observação essencial. Essa ortografia, deve-se dizer, nem sempre é impecável; mas somente a falta de argumentos pode torná-la objeto de uma crítica séria, com a alegação de que se os Espíritos tudo sabem, devem saber ortografia. Poderíamos opor-lhes numerosos pecados desse gênero cometidos por sábios da Terra, sem que lhes tenha diminuído o mérito. Mas há neste fato uma questão mais grave.

Para os Espíritos, principalmente para os Espíritos superiores, a idéia é tudo, a forma não é nada. Livres da matéria, sua linguagem é rápida como o pensamento, pois é o próprio pensamento que entre eles se comunica sem intermediários. Devem, portanto, sentir-se mal quando são obrigados, a se comunicarem conosco, a se servirem das formas demoradas e embaraçosas da linguagem humana e sobretudo de sua insuficiência e imperfeição, para exprimirem todas as suas idéias. É o que eles mesmos dizem, sendo curioso observar os meios que empregam para atenuar esse inconveniente. O mesmo aconteceria conosco se tivéssemos de nos exprimir numa língua de palavras e

fraseados mais longos, e mais pobre de expressões do que a nossa. É a dificuldade que experimenta o homem de gênio, impaciente com a lentidão da pena, sempre atrasada em relação ao pensamento.

Compreende-se, pois, que os Espíritos liguem pouca importância as puerilidades ortográficas, principalmente quando tratam de um ensinamento profundo e sério. Não é, aliás, maravilhoso que se exprimam indiferentemente em todas as línguas, a todas compreendendo? Disso não se deve concluir, entretanto, que a correção convencional da linguagem lhes seja desconhecida, pois a observam quando necessário. Por exemplo, a poesia por eles ditada quase sempre desafia a crítica do mais exigente purista, e isto, apesar da ignorância do médium.

XV — A LOUCURA E SUAS CAUSAS

Há ainda criaturas que vêem perigo por toda parte, em tudo aquilo que não conhecem, não faltando as que tiram conclusões desfavoráveis ao Espiritismo do fato de terem algumas pessoas, que se entregaram a estes estudos, perdido a razão. Como podem os homens sensatos aceitar essa objeção? Não acontece o mesmo com todas as preocupações intelectuais, quando o cérebro é fraco?Conhece-se o número de loucos e maníacos produzidos pelos estudos matemáticos, médicos, musicais, filosóficos e outros? E devemos, por isso,

banir tais estudos? O que provam esses fatos? Nos trabalhos físicos,estropiam-se os braços e as pernas que são os instrumentos da ação material; nos trabalhos intelectuais, estropia-se o cérebro que é o instrumento do pensamento. Mas se o instrumento se quebrou, o mesmo não acontece com o Espírito: ele continua intacto e quando se libertar da matéria não desfrutará menos da plenitude de suas faculdades. Foi no seu setor, como homem, um mártir do trabalho.

Todas as grandes preocupações intelectuais podem ocasionar a loucura: as Ciências, as Artes e a Religião fornecem os seus contingentes. A loucura tem por causa primária uma predisposição orgânica do cérebro, que o torna mais ou menos acessível a determinadas impressões. Havendo essa predisposição à loucura, ela se manifestará com o caráter da preocupação principal do indivíduo, que se tornará uma idéia fixa. Essa idéia poderá ser a dos Espíritos, naquele que se ocupa do assunto, ou a de Deus, dos anjos, do diabo, da fortuna, do poder, de uma arte, de uma ciência, da maternidade ou de um sistema político ou social. É provável que o louco religioso se apresente como louco espírita, se o Espiritismo foi a sua preocupação dominante, como o louco espírita se apresentaria de outra forma, segundo as circunstâncias.

Digo, portanto, que o Espiritismo não tem nenhum privilégio neste assunto. E vou mais longe: digo que o Espiritismo bem compreendido é um

preservativo da loucura.

Entre as causas mais freqüentes de superexcitação cerebral devemos contar as decepções, as desgraças, as afeições contrariadas que são também as causas mais freqüentes do suicídio. Ora, o verdadeiro espírita olha as coisas deste mundo de um ponto de vista tão elevado; elas lhe parecem tão pequenas, tão mesquinhas, em face do futuro que o aguarda; a vida é para ele tão curta, tão fugitiva, que as tribulações não lhe parecem mais do que incidentes desagradáveis de uma viagem. Aquilo que para qualquer outro produziria violenta emoção, pouco o afeta, pois sabe que as amarguras da vida são provas para o seu adiantamento, desde que as sofra sem murmurar, porque será recompensado de acordo com a coragem demonstrada aosuportá-las. Suas convicções lhe dão uma resignação que o preserva do desespero e conseqüentemente de uma causa constante de loucura e suicídio. Além disso, conhece, pelo exemplo das comunicações dos Espíritos, a sorte daqueles que abreviam voluntariamente os seus dias, e esse quadro é suficiente para o fazer meditar. Assim, o número dos que tem sido detidos à beira desse funesto despenhadeiro é considerável. Este é um dos resultados do Espiritismo. Que os incrédulos se riam quanto quiserem: eu lhes desejo as consolações que ele proporciona a todos os que se dão ao trabalho de lhe sondar as misteriosas profundidades.

Entre as causas da loucura devemos ainda incluir o pavor, sendo que o medo do Diabo já desequilibrou alguns cérebros. Sabe-se o número de vítimas que ele tem feito ao abalar imaginações fracas com essa ameaça, que cada vez se procura tornar mais terrível através de hediondos pormenores? O diabo, dizem, só assusta as crianças, é um meio de torná-las mais ajuizadas. Sim, como o bicho-papão e o lobisomem. Mas quando elas deixam detemê-lo ficam piores do que antes. E para conseguir tão belo resultado não se levam em conta as epilepsias causadas pelo abalo de cérebros delicados. A religião seria bem fraca se, por não usar o medo, seu poder ficasse comprometido. Felizmente assim não acontece. Ela dispõe de outros meios para agir sobre as almas e o Espiritismo lhe fornece os mais eficazes e mais sérios, desde que os saiba aproveitar. Mostra as coisas na sua realidade e com isso neutraliza os efeitos funestos de um temor exagerado.

XVI — A TEORIA MAGNÉTICA E A DO MEIO AMBIENTE

Resta-nos examinar duas objeções: as únicas que realmente merecem esse nome porque se apoiam em teorias racionais. Uma e outra admitem a realidade de todos os fenômenos materiais e morais, mas excluem a intervenção dos Espíritos.

Para a primeira dessas teorias, todas as manifestações atribuídas aos

Espíritos seriam apenas efeitos magnéticos. Os médiuns ficariam num estado que se poderia chamar de sonambulismo acordado, fenômeno conhecido de todos os que estudaram o magnetismo. Nesse estado as faculdades intelectuais adquirem um desenvolvimento anormal, os círculos da percepção intuitiva se ampliam além dos limites de nossa percepção ordinária. Dessa maneira, o médium tiraria de si mesmo e por efeito de sua lucidez tudo quanto diz e todas as noções que transmite, mesmo sobre as coisas que lhe sejam mais estranhas no estado normal.

Não seremos nós quem contestará o poder do sonambulismo, cujos prodígios presenciamos, estudando-lhe todas as facetas, durante mais de trinta e cinco anos. Concordamos que, de fato, muitas manifestações espíritas podem ser explicadas por esse meio. Mas uma observação prolongada e atenta mostra uma multidão de fatos em que a participação do médium, a não ser como instrumento passivo, é materialmente impossível. Aos que participam desta opinião, diremos como já dissemos aos outros: "Vede e observai, porque seguramente ainda não vistes tudo".

E a seguir lhes apresentaremos duas considerações tiradas de sua própria doutrina. De onde veio a teoria espírita? É um sistema imaginado por alguns homens para explicar os fatos? De maneira alguma. Mas, então, quem as revelou? Precisamente esses médiuns de quem exaltais a lucidez. Se, portanto,

essa lucidez é tal como a supondes, por que teriam eles atribuído aos Espíritos aquilo que teriam tirado de si mesmos? Como teriam dado esses ensinamentos tão preciosos, tão lógicos, tão sublimes sobre a natureza das inteligências extra-humanas? De duas, uma: ou eles são lúcidos, ou não o são. Se o são, e se podemos confiar na sua veracidade, não se poderia admitir sem contradição que não estejam com a verdade. Em segundo lugar, se todos os fenômenos provêm do médium, deviam ser idênticos para um mesmo indivíduo e não se veria a mesma pessoa falar linguagens diferentes, nem exprimir alternadamente as coisas mais contraditórias. Essa falta de unidade nas manifestações de um mesmo médium prova a diversidade das fontes. Se, pois, não podemos encontrá-las todas no médium, é necessário procurá-lasfora dele.

Segundo a outra teoria, o médium é ainda a fonte das manifestações, mas em vez de tirá-las de si mesmo, tira-as do meio ambiente. O médium seria uma espécie de espelho refletindo todas as idéias, todos os pensamentos e todos os conhecimentos das pessoas que o cercam: nada diria que não fosse conhecido pelo menos de algumas delas. Não se poderia negar, e vai mesmo nisto um princípio da Doutrina, a influência exercida pelos assistentes sobre a natureza das manifestações. Mas esta influência é bem diversa do que se pretende e entre ela e a que faria do médium um eco dos pensamentos alheios, há grande

distância, pois milhares de fatos demonstram peremptoriamente o contrário. Há, portanto, um erro grave, que mais uma vez prova o perigo das conclusões prematuras.

Essas pessoas, incapazes de negar a existência de um fenômeno que a Ciência comum não consegue explicar, e não querendo admitir a intervenção dos Espíritos, explicam-no a seu modo. A teoria que sustentam seria sedutora, se pudesse abarcar todos os fatos, mas assim não acontece. E quando se demonstra, até a evidência, que algumas comunicações do médium são completamente estranhas aos pensamentos, aos conhecimentos, as próprias opiniões de todos os presentes, e que essas comunicações são muitas vezes espontâneas e contradizem as idéias preconcebidas, elas não se entregam por tão pouco. A irradiação, respondem, amplia-se muito além do círculo imediato; o médium é o reflexo de toda a Humanidade e dessa maneira, se não encontra as inspirações ao seu redor, vai procurá-las fora: na cidade, no país, no mundo inteiro e até mesmo em outras esferas.

Não creio que esta teoria encerre uma explicação mais simples e mais provável que a do espiritismo, pois supõe uma causa bem mais maravilhosa. A idéia de que seres do espaço, em contato permanente conosco, nos comuniquem os seus pensamentos, nada tem que choque mais a razão do que a suposição dessas irradiações universais, vindas de todos os pontos do

Universo para se concentrarem no cérebro de um indivíduo.

Diremos ainda uma vez — e este é um ponto capital, sobre o qual nunca será demais insistir, — que a teoria sonambúlica e a que se poderia chamar reflectiva foram imaginadas por alguns homens; são opiniões individuais, formuladas para explicar um fato, enquanto a Doutrina dos Espíritos não é uma concepção humana; foi ditada pelas próprias inteligências que se manifestam, quando ninguém a imaginava e a opinião geral até mesmo a repelia. Ora, perguntamos, onde os médiuns foram buscar uma doutrina que não existia no pensamento de ninguém sobre a Terra? Perguntamos ainda por que estranha coincidência milhares de médiuns espalhados por todas as partes do globo, sem nunca se terem visto, concordaram em dizer a mesma coisa? Se o primeiro médium que apareceu em França sofreu a influência de opiniões já aceitas na América, por que estranha razão foi ele buscar as suas idéias a duas mil léguas além-mar, no seio de um povo estranho por seus costumes e sua língua, em vez de tomar o que estava ao seu redor?

Mas há ainda uma circunstância em que não se pensou bastante. As primeiras manifestações, em França como na América, não se verificam nem pela escrita, nem pela palavra, mas através de pancadas correspondentes as letras do alfabeto, formando palavras e frases. Foi por esse meio que as inteligências manifestantes declararam ser Espíritos. Se, portanto, pudéssemos

supor a intervenção do pensamento do médium nas comunicações verbais ou escritas, o mesmo não se poderia fazer com relação as pancadas, cuja significação não poderia ser conhecida previamente.

Poderíamos citar numerosos fatos que demonstram na inteligência manifestante uma individualidade evidente e uma absoluta independência de vontade. Enviaremos, portanto, os nossos contraditores a uma observação mais atenta, e se eles quiserem estudar bem, sem prevenções, nada concluindo antes de terem visto o necessário, reconhecerão a impotência de suas teorias para explicar todos os fatos. Limitar-nos-emos a propor as seguintes questões: Por que a inteligência que se manifesta, qualquer que seja, recusa-se a responder a algumas perguntas sobre assuntos perfeitamente conhecidos, como por exemplo o nome ou a idade do interrogante, o que ele traz na mão, o que fez na véspera, o que pretende fazer amanhã e assim por diante? Se o médium é o espelho do pensamento dos presentes, nada lhe seria mais fácil de responder.

Os adversários respondem a esse argumento perguntando, por sua vez, por que os Espíritos, que tudo devem saber, não podem dizer coisas tão simples, segundo o axioma: "Quem pode o mais, pode o menos". E disso concluem que não se trata de Espíritos. Se um ignorante ou um brincalhão, apresentando-se perante uma douta assembléia, perguntasse, por exemplo, por que se faz dia

pleno ao meio-dia, seria crível que ela se desse ao trabalho de responder seriamente e seria lógico concluir, do seu silêncio ou das zombarias que dirigisse ao interpelante, que seus membros eram tolos? Ora, é precisamente por serem superiores que os Espíritos não respondem a perguntas ociosas ou ridículas, não querem entrar na berlinda; é por isso que eles se calam ou dizem que só se ocupam de coisas mais sérias.

Perguntaremos, afinal, por que os Espíritos vêm e vão, muitas vezes, num dado momento, e por que, passando esse momento não há nem preces nem súplicas que os façam voltar? Se o médium não agisse senão pela impulsão mental dos assistentes é claro que, nessa circunstância, o concurso de todas as vontades reunidas deveria estimular a sua clarividência. Se, entretanto, ele não cede aos desejos da assembléia, apoiado pela sua própria vontade, é porque obedece a uma influência estranha, tanto a ele quanto aos demais, e essa influência demonstra com isso a sua independência e a sua individualidade.

XVII — PREENCHENDO OS VAZIOS NO ESPAÇO

O ceticismo, no tocante a Doutrina Espírita, quando não resulta de uma oposição sistemática, interesseira, provém quase sempre de um conhecimento incompleto dos fatos, o que não impede algumas pessoas de liquidarem a questão como se a conhecessem perfeitamente. Pode-se ter muito espírito e até

mesmo muita instrução e não se ter bom senso; ora, o primeiro indício da falta de senso é a crença na própria infalibilidade. Muitas pessoas também não vêem nas manifestações espíritas mais que um motivo de curiosidade. Esperamos que, pela leitura deste livro, encontrem nesses fenômenos estranhos alguma coisa além de um simples passatempo.

A Ciência Espírita contém duas partes: uma experimental, sobre as manifestações em geral; outra filosófica, sobre as manifestações inteligentes. Quem não tiver observado senão a primeira estará na posição daquele que só conhecesse a Física pelas experiências recreativas, sem haver penetrado na Ciência. A verdadeira Doutrina Espírita está no ensinamento dado pelos Espíritos, e os conhecimentos que esse ensinamento encerra são muito sérios para serem adquiridos em outro modo que não por um estudo profundo e continuado, feito no silêncio e no recolhimento. Mesmo porque só nestas condições pode ser observado um número infinito de fatos e suas nuanças, que escapam ao observador superficial e que permitem firmar-se uma opinião.

Se este livro não tivesse por fim mais do que mostrar o lado sério da questão, provocando estudos a respeito, isto já seria bastante e nos felicitaríamos por termos sido escolhidos para realizar uma obra sobre a qual não pretendemos ter nenhum mérito pessoal, pois os princípios aqui expostos não são de nossa criação: o mérito é, portanto, inteiramente dos Espíritos que

o ditaram. Esperamos que ele tenha outro resultado, —o de guiar os homens desejosos de se esclarecerem, mostrando-lhes nestes estudos um objetivo grande e sublime, o do progresso individual e social, e indicando-lhes o caminho a seguir para a sua consecução.

Concluiremos com uma derradeira consideração. Os astrônomos, sondando os espaços, encontraram na distribuição dos corpos celestes lacunas injustificáveis e em desacordo com as leis do conjunto. Suspeitaram que essas lacunas deviam corresponder a corpos que haviam escapado as observações. Por outro lado, observaram certos efeitos cuja causa lhes era desconhecida e disseram a si mesmos: "ali deve haver um mundo, porque essa lacuna não pode existir e esses efeitos devem ter uma causa". Julgando então da causa pelos efeitos puderam calcular os elementos, e mais tarde os fatos vieram justificar as suas previsões.

Apliquemos este raciocínio a outra ordem de idéias. Se observamos a série dos seres percebemos que eles formam uma cadeia sem solução de continuidade, desde a matéria bruta até o homem mais inteligente. Mas, entre o homem e Deus, que são o alfa e o ômega de todas as coisas, que imensa lacuna! Será razoável pensar que seja o homem o último anel dessa cadeia? Que ele transponha, sem transição, a distância que o separa do infinito? A razão nos diz que entre os mundos conhecidos devia haver outros mundos.

Qual a filosofia que preencheu essa lacuna? O Espiritismo no-la apresenta preenchida pelos seres de todas as categorias do mundo invisível, e esses seres não são mais que os Espíritos dos homens nos diferentes graus que conduzem a perfeição. E assim tudo se liga, tudo se encadeia, do alfa ao ômega. Vós, que negais a existência dos Espíritos, preenchei o vazio que eles ocupam. E vós, que deles rides, ousai rir das obras de Deus e da sua onipotência!

Allan Kardec

Prolegômenos

Fenômenos que escapam as leis da Ciência ordinária manifestam-se por toda parte. E revelam como causa a acão de uma vontade livre e inteligente.

A razão nos diz que um efeito inteligente deve ter como causa uma força inteligente. E os fatos provaram que essa força pode entrar em comunicação com os homens, através de sinais materiais.

Essa força, interrogada sobre a sua natureza, declarou pertencer ao mundo dos seres espirituais que se despojaram do envoltório corporal do homem. Desta maneira é que foi revelada a Doutrina dos Espíritos.

As comunicações entre o mundo espírita e o mundo corpóreo pertencem a Natureza e não constituem nenhum fato sobrenatural. E por isso que encontramos os seus traços entre todos os povos e em todas as épocas, hoje

elas são gerais e evidentes por todo o mundo.

Os Espíritos anunciam que os tempos marcados pela Providência para uma manifestação universal estão chegados e que, sendo os ministros de Deus e os agentes da sua vontade, cabe-lhes a missão de instruir e esclarecer os homens, abrindo uma nova era para a regeneração da Humanidade.

Este livro é o compêndio dos seus ensinamentos. Foi escrito por ordem e sob ditado dos Espíritos superiores para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, livre dos prejuízos do espírito de sistema. Nada contém que não seja a expressão do seu pensamento e não tenha sofrido o seu controle. A ordem e a distribuição metódica das materias, assim como as notas e a forma de algumas partes da redação constituem a única obra daquele que recebeu a missão de o publicar.

No número dos Espíritos que concorreram para a realização desta obra há muitos que viveram em diferentes épocas na Terra, onde pregaram e praticaram a virtude e a sabedoria. Outros não pertencem, por seus nomes, a nenhum personagem de que a História tenha guardado a memória, mas a sua elevação é atestada pela pureza de sua doutrina e pela união com os que trazem nomes venerados.

Eis os termos em que nos deram, por escrito e por meio de muitos médiuns, a missão de escrever este livro:

"Ocupa-te, com zelo e perseverança, do trabalho que empreendeste com o nosso concurso, porque esse trabalho é nosso. Nele pusemos as bases do novo edifício que se eleva e que um dia devera reunir todos os homens num mesmo sentimento de amor e caridade; mas, antes de o divulgares,reve-lo-emos juntos, a fim de controlar todos os detalhes.

Estaremos contigo sempre que o pedires, para te ajudar nos demais trabalhos, porque esta não é mais do que uma parte da missão que te foi confiada e que um de nós já te revelou.

Entre os ensinamentos que te são dados há alguns que deves guardar somente para ti, até nova ordem; avisar-te-emos quando chegar o momento de os publicar. Enquanto isso, medita-os a fim de estares pronto quando te avisarmos.

Porás no cabeçalho do livro o ramo de parreira que te desenhamos, porque é ele o emblema do trabalho do Criador. Todos os princípios materiais que podem melhor representar o corpo e o espírito nele se encontram reunidos: o corpo é o ramo; o espírito é a seiva; a alma, ou o espírito ligado a matéria é o bago. O homem quintessência o espírito pelo trabalho e tu sabes que não é senão pelo trabalho do corpo que o espírito adquire conhecimentos.

Não te deixes desencorajar pela crítica. Encontrarás contraditores encarniçados, sobretudo entre as pessoas interessadas em trapaças. Encontrá-

los-as mesmo entre os Espíritos, pois aqueles que não estão completamente desmaterializados procuram muitas vezes semear a dúvida, por malícia ou por ignorância. Mas prossegue sempre; crê em Deus e marcha confiante: aqui estaremos para te sustentar e aproxima-se o tempo em que a verdade brilhará por toda parte.

A vaidade de certos homens, que crêem saber tudo e tudo querem explicar à sua maneira, dará origem a opiniões dissidentes; mas todos os que tiverem em vista o grande princípio de Jesus se confundirão no mesmo sentimento de amor ao bem e se unirão por um laço fraterno que envolverá o mundo inteiro; deixarão de lado as mesquinhas disputas de palavras para somente se ocuparem das coisas essenciais. E a doutrina será sempre a mesma, quanto ao fundo, para todos os que receberem as comunicações dos Espíritos superiores.

E com perseverança que chegarás a recolher o fruto dos teus trabalhos. A satisfação que terás, vendo a doutrina propagar-se e bem compreendida, será para ti uma recompensa, cujo valor total conhecerás, talvez, mais no futuro do que no presente. Não te inquietem, pois, os espinhos e as pedras que os incrédulos ou os maus espalharão no teu caminho; conserva a confiança; com ela chegarás ao alvo e merecerás sempre a nossa ajuda.

Lembra-te de que os Bons Espíritos assistem aos que servem a Deus com humildade e desinteresse, e repudiam a qualquer que procure, no caminho do

céu, um degrau para as coisas da Terra; eles se afastam dos orgulhosos e dos ambiciosos. O orgulho e a ambição serão sempre uma barreira entre o homem e Deus; são um véu lançado sobre as claridades celestes e Deus não pode servir-se do cego para fazer-nos compreender a luz".

São João Evangelista, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, São Luiz, O Espírito da Verdade, Sócrates, Platão, Fénelon, Franklin, Swedenborg, etc.

LIVRO PRIMEIRO

As Causas Primárias

Capítulo I

Deus

I — Deus e o Infinito

1. O que é Deus?

Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas. 2. O que devemos entender por infinito?

Aquilo que não tem começo nem fim: o desconhecido; todo o desconhecido é infinito.

3. Poderíamos dizer que Deus é o infinito?

Definição incompleta. Pobreza da linguagem dos homens, insuficiente

para definir as coisas que estão além da sua inteligência.

Deus é infinito nas suas perfeições, mas o infinito é uma abstração; dizer que Deus é o infinito é tomar o atributo de uma coisa por ela mesma, definir uma coisa, ainda não conhecida, por outra que também não o é.

II— Provas da Existência de Deus

4.Onde podemos encontrar a prova da existência de Deus?

Num axioma que aplicais as vossas ciências: Não há efeito sem causa. Procurai a causa de tudo o que não é obra do homem, e vossa razão vos responderá.

Para crer em Deus é suficiente lançar os olhos as obras da Criação. O Universo existe; ele tem, portanto, uma causa. Duvidar da existência de Deus seria negar que todo efeito tem uma causa, e avançar que o nada pode fazer alguma coisa.

5. Que conseqüência podemos tirar do sentimento intuitivo, que todos os homens trazem consigo, da existência de Deus?

Que Deus existe; pois de onde lhes viria esse sentimento, se ele não se apoiasse em nada? É uma conseqüência do princípio de que não há efeito sem causa.

6. O sentimento íntimo da existência de Deus, que trazemos conosco, não seria o efeito da educação e o produto de idéias adquiridas?

Se assim fosse, por que os vossos selvagens também teriam esse sentimento?

Se o sentimento da existência de um ser supremo não fosse mais que o produto de um ensinamento, não seria universal e nem existiria, como as noções científicas, senão entre os que tivessem podido receber esse ensinamento.

7. Poderíamos encontrar a causa primária da formação das coisas nas propriedades íntimas da matéria?

Mas, então, qual seria a causa dessas propriedades? É sempre necessária uma causa primária.

Atribuir a formação primária das coisas as propriedades íntimas da matéria seria tomar o efeito pela causa, pois essas propriedades são em si mesmas um efeito, que deve ter uma causa.

8. Que pensar da opinião que atribui a formação primária a uma combinação fortuita da matéria, ou seja, ao acaso?

Outro absurdo! Que homem de bom senso pode considerar o acaso como um ser inteligente? E, além disso, o que é o acaso? Nada.

A harmonia que regula as forças do Universo revela combinações e fins determinados, e por isso mesmo um poder inteligente. Atribuir a formação primária ao acaso seria uma falta de senso, por que o acaso é cego e não pode

produzir efeitos inteligentes. Um acaso inteligente já não seria acaso.

9.Onde se pode ver, na causa primária, uma inteligência suprema, superior a todas as outras?

— Tendes um provérbio que diz o seguinte: Pela obra se conhece o autor. Pois bem: vede a obra e procurai o autor! É o orgulho que gera a incredulidade. O homem orgulhoso nada admite acima de si, e é por isso que se considera um espírito forte. Pobre ser, que um sopro de Deus pode abater!

Julga-se o poder de uma inteligência pelas suas obras. Como nenhum ser humano pode criar o que a Natureza produz, a causa primária há de estar numa inteligência superior à Humanidade.

Sejam quais forem os prodígios realizados pela inteligência humama, esta inteligência tem também uma causa primária. É a inteligência superior a causa primária de todas as coisas, qualquer que seja o nome pelo qual o homem a designe.

III — Atributos da Divindade

10.0 homem pode compreender a natureza íntima de Deus?

— Não. Falta-lhe, para tanto, um sentido.

11. Será um dia permitido ao homem compreender o mistério da Divindade?

— Quando o seu espírito não estiver mais obscurecido pela matéria, e pela sua perfeição tiver se aproximado dela, então a verá e compreenderá.

A inferioridade das faculdades do homem não lhe permite compreender a natureza íntima de Deus. Na infância da humanidade, o homem o confunde muitas vezes com a criatura, cujas imperfeições lhe atribui; mas, à medida que o seu senso moral se desenvolve, seu pensamento penetra melhor o fundo das coisas, e ele faz então, a seu respeito, uma idéia mais justa e mais conforme com a boa razão, embora sempre incompleta.

12.Se não podemos compreender a natureza íntima de Deus, podemos ter uma idéia de algumas de suas perfeições?

— Sim, de algumas. O homem as compreende melhor, à medida que se eleva sobre a matéria; ele as entrevê pelo pensamento.

13.Quando dizemos que Deus é eterno, infinito, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, não temos uma idéia completa de seus atributos?

— Do vosso ponto de vista, sim, porque acreditais abranger tudo; mas ficai sabendo que há coisas acima da inteligência do homem mais inteligente, e para as quais a vossa linguagem, limitada às vossas idéias e às vossas sensações, não dispõe de expressões. A razão vos diz que Deus deve ter essas perfeições em grau supremo, pois se tivesse uma de menos, ou que não fosse em grau infinito, não seria superior a tudo, e por conseguinte não seria Deus. Para estar acima de todas as coisas, Deus não deve estar sujeito a vicissitudes

e não pode ter nenhuma das imperfeições que a imaginação é capaz de conceber.

DEUS É ETERNO. Se ele tivesse tido um começo, teria saído do nada, ou, então, teria sido criado por um ser anterior. É assim que, pouco a pouco, remontamos ao infinito e a eternidade,

ÉIMUTÁVEL. Se Ele estivesse sujeito a mudanças as leis que regem o Universo não teriam nenhuma estabilidade.

ÉIMATERIAL. Quer dizer, sua natureza difere de tudo o que chamamos matéria, pois de outra forma Ele não seria imutável, estando sujeito as transformações da matéria.

ÉÚNICO. Se houvesse muitos Deuses, não haveria unidade de vistas nem de poder na organização do Universo.

ÉTODO-PODEROSO. Porque é único. Se não tivesse o poder soberano, haveria alguma coisa mais poderosa ou tão poderosa quanto Ele, que assim não teria feito todas as coisas. E aquelas que ele não tivesse feito seriam obra de um outro Deus.

ÉSOBERANAMENTE JUSTO E BOM. A sabedoria providencial das leis divinas se revela nas menores como nas maiores coisas, e esta sabedoria não nos permite duvidar da sua justiça nem da sua bondade.

IV — Panteísmo

14.Deus é um ser distinto, ou seria, segundo a opinião de alguns, o resultante de todas as forças e de todas as inteligências do Universo, reunidas?

— Se assim fosse, Deus não existiria, porque seria efeito e não causa; ele não pode ser, ao mesmo tempo, uma coisa e outra.

— Deus existe, não o podeis duvidar, e isso é o essencial. Acreditai no que vos digo e não queirais ir além. Não vos percais num labirinto, de onde não poderíeis sair. Isso não vos tornaria melhores, mas talvez um pouco mais orgulhosos, porque acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, pois, de lado, todos esses sistemas; tendes que vos desembaraçar de muitas coisas que vos tocam mais diretamente. Isto vos seria mais útil do que querer penetrar o que é impenetrável.

15.Que pensar da opinião segundo a qual todos os corpos da Natureza, todos os seres, todos os globos do Universo, seriam partes da Divindade e constituiriam, pelo seu conjunto, a própria Divindade, ou seja, que pensar da doutrina panteísta?

— Não podendo ser Deus, o homem quer pelo menos ser uma parte de Deus.

16.Os que professam esta doutrina pretendem nela encontrar a demonstração de alguns dos atributos de Deus. Sendo os mundos infinitos, Deus é, por isso mesmo, infinito; o vácuo ou o nada não existindo em parte

alguma, Deus está em toda parte; Deus estando em toda parte, pois que tudo é parte integrante de Deus, dá a todos os fenômenos da Natureza uma razão de ser inteligente. O que se pode opor a este raciocínio?

— A razão. Refleti maduramente e não vos será difícil reconhecer-lhe o absurdo.

Esta doutrina faz de Deus um ser material que, embora dotado de inteligência suprema, seria em ponto grande aquilo que somos em ponto pequeno. Ora, a matéria se transformando sem cessar, Deus, nesse caso, não teria nenhuma estabilidade e estaria sujeito a todas as vicissitudes e mesmo a todas as necessidades da humanidade; faltar-lhe-ia um dos atributos essenciais da Divindade: a imutabilidade. As propriedades da matéria não podem ligar-se a idéia de Deus, sem que o rebaixemos em nosso pensamento, e todas as sutilezas do sofisma não conseguirão resolver o problema da sua natureza íntima. Não sabemos tudo o que ele é, mas sabemos aquilo que não pode ser, e este sistema está em contradição com as suas propriedades mais essenciais, pois confunde o criador com a criatura precisamente como se quiséssemos que uma máquina engenhosa fosse parte integrante do mecânico que a concebeu.

A inteligência de Deus se revela nas suas obras, como a de um pintor no seu quadro; mas as obras de Deus não são o próprio Deus, como o quadro não é o pintor que o concebeu e executou.

Capítulo II

Elementos Gerais do Universo

I — Conhecimento do Princípio das Coisas

17. Pode o homem conhecer o princípio das coisas?

Não. Deus não permite que tudo seja revelado no homem, aqui na Terra. 18. O homem penetrará um dia o mistério das coisas que lhe estão ocultas?

O véu se ergue na medida em que ele se depura; mas, para a compreenção de certas coisas, necessita de faculdades que ainda não possui.

19. O homem não poderá, pelas investigações da Ciência, penetrar alguns dos segredos da Natureza?

A Ciência lhe foi dada para o seu adiantamento em todos os sentidos, mas ele não pode ultrapassar os limites fixados por Deus.

Quanto mais é permitido ao homem penetrar nesses mistérios, maior deve ser a sua admiração pelo poder e a sabedoria do Criador. Mas, seja por orgulho, seja por fraqueza, sua própria inteligência o torna freqüentemente joguete da ilusão. Ele formula sistemas sobre sistemas, e cada dia que passa mostra quantos erros tomou por verdades e quantas verdades repeliu como erros. São outras tantas decepções para o seu orgulho.

20. Pode o homem receber, fora das investigações da Ciência, comunicações de uma ordem mais elevada sobre aquilo que escapa ao testemunho dos

sentidos?

— Sim, se Deus o julgar útil, pode revelar-lhe aquilo que a Ciência não consegue apreender.

É através dessas comunicações que o homem recebe, dentro de certos limites, o conhecimento do seu passado e do seu destino futuro.

II— Espírito e Matéria

21.A matéria existe desde toda a eternidade, como Deus, ou foi criada por Ele num certo momento?

— Só Deus o sabe. Há, entretanto, uma coisa que a vossa razão deve indicar:

éque Deus, modelo de amor e de caridade, jamais esteve inativo. Qualquer que seja a distância a que possais imaginar o início da sua ação, podereiscompreendê-lo um segundo na ociosidade?

22.Define-se geralmente a matéria como aquilo que tem extensão, que pode impressionar os sentidos e é impenetrável. Essa definição é exata?

— Do vosso ponto de vista, sim, porque só falais daquilo que percebeis. Mas a matéria existe em estados que não conheceis. Ela pode ser, por exemplo, tão etérea e sutil que não produza nenhuma impressão nos vossos sentidos: entretanto, será sempre matéria, embora não o seja para vós.

— A matéria é o liame que escraviza o espírito; é o instrumento que ele usa,

e sobre o qual, ao mesmo tempo, exerce a sua ação.

De acordo com isto, pode-se dizer que a matéria é o agente, o intermediário, com a ajuda do qual e sobre o qual o espírito atua.

23. Que é o espírito?

O princípio inteligente do Universo. 23-a. Qual é a sua natureza íntima?

Não é fácil analisar o espírito na vossa linguagem. Para vós, ele não é nada, porque não é coisa palpável; mas, para nós, é alguma coisa. Ficai sabendo: nenhuma coisa é o nada e o nada não existe.

24. Espírito é sinônimo de inteligência?

A inteligência é um atributo essencial do espírito; mas um e outro se confundem num princípio comum, de maneira que, para vós, são uma e a mesma coisa.

25. O espírito é independente da matéria ou não é mais do que uma propriedade desta, como as cores são propriedades da luz e o som uma propriedade do ar?

São distintos, mas é necessária a união do espírito e da matéria para dar inteligência a esta.

25-a Esta união é igualmente necessária para a manifestação do espírito? (Por espírito, entendemos aqui o princípio da inteligência, abstração feita das

individualidades designadas por esse nome).

É necessária para vós, porque não estais organizados para perceber o espírito sem a matéria; vossos sentidos não foram feitos para isso.

26. Pode-se conceber o espírito sem a matéria e a matéria sem o espírito?

Pode-se, sem dúvida, pelo pensamento.

27. Haveria, assim, dois elementos gerais do Universo; a matéria e o espírito?

— Sim, e acima de ambos Deus, o Criador, o pai de todas as coisas. Essas três coisas são o princípio de tudo o que existe, a verdade universal. Mas, ao elemento material é necessário ajuntar o fluido universal, que exerce o papel de intermediário entre o espírito e a matéria propriamente dita, demasiado grosseira para que o espírito possa exercer alguma ação sobre ela. Embora, de certo ponto de vista, se pudesse considerá-lo como elemento material, ele se distingue por propriedades especiais. Se fosse simplesmente matéria, não haveria razão para que o espírito não o fosse também. Ele está colocado entre o espírito e a matéria; é fluido, como a matéria é matéria; susceptível, em suas inumeráveis combinações com esta, e sob a ação do espírito, de produzir infinita variedade de coisas, das quais não conheceis mais do que uma ínfima parte. Esse fluido universal, ou primitivo, ou elemento, sendo o agente de que o espírito se serve, é o princípio sem o qual a matéria permaneceria em

perpétuo estado de dispersão e não adquiriria jamais as propriedades que a

gravidade lhe dá.

27-a. Será esse fluido o que designamos por eletricidade?

Dissemos que ele é susceptível de inumeráveis combinações. O que chamais fluido elétrico, fluido magnético são modificações do fluido universal, que é, propriamente falando, uma matéria mais perfeita, mais sutil, que se pode considerar como independente.

28. Sendo o espírito, em si mesmo, alguma coisa, não será mais exato, e menos sujeito a confusões, designar esses dois elementos gerais pelas expressões: matéria inerte e matéria inteligente?

As palavras pouco nos importam. Cabe a vós formular a vossa linguagem de maneira a vos entenderdes. Vossas disputas provam, quase sempre, de não vos entenderdes sobre as palavras. Porque a vossa linguagem é incompleta para as coisas que não vos tocam os sentidos.

Um fato patente domina todas as hipóteses: vemos matéria sem inteligência e um princípio inteligente independente da matéria. A origem e a conexão dessas duas coisas nos são desconhecidas, que elas tenham ou não uma fonte comum e os pontos de contato necessários; que a inteligência tenha existência própria, ou que seja uma propriedade, um efeito; que seja, mesmo, segundo a opinião de alguns, uma emanação da Divindade, — é o que ignoramos. Elas

nos aparecem distintas, e é por isso que as consideramos formando dois princípios constituintes do Universo. Vemos, acima de tudo isso, uma inteligência que domina todas as outras, que as governa, que delas se distingue por atributos essenciais: é a esta inteligência suprema que chamamos Deus.

III— Propriedades da Matéria

29.A ponderabilidade é atributo essencial da matéria?

Da matéria como a entendeis, sim; mas não da matéria considerada como fluido universal. A matéria etérea e sutil que forma esse fluido é imponderável para vós, mas nem por isso deixa de ser o princípio da vossa matéria ponderável.

A ponderabilidade é uma propriedade relativa. Fora das esferas de atração dos mundos, não há peso, da mesma maneira que não há alto nem baixo.

30. A matéria é formada de um só ou de muitos elementos?

De um só elemento primitivo. Os corpos que considerais como corpos simples não são verdadeiros elementos, mas transformações da matéria primitiva.

31. De onde provêm as diferentes propriedades da matéria?

Das modificações que as moléculas elementares sofrem, ao se unirem, e em determinadas circunstâncias.

32.De acordo com isso, o sabor, o odor, as cores, as qualidades venenosas ou salutares dos corpos não seriam mais do que modificações de uma única e mesma substância primitiva?

— Sim, sem dúvida, e só existem pela disposição dos órgãos destinados apercebê-las.

Esse princípio é demonstrado pelo fato de nem todos perceberem as qualidades dos corpos da mesma maneira: enquanto um acha uma coisa agradável ao gosto, outro a acha má; uns vêem azul o que outros vêem vermelho; o que para uns é veneno, para outros é inofensivo ou salutar.

33.A mesma matéria elementar é susceptível de passar por todas as modificações e adquirir todas as propriedades?

— Sim, e é isso que deveis entender, quando dizemos que tudo está em tudo. O oxigênio, o hidrogênio, o azoto, o carbono, e todos os corpos que consideramos simples, não são mais do que modifições de uma substância primitiva. Na impossibilidade, em que nos encontramos ainda, de remontar de outra maneira, que não pelo pensamento a essa matéria, esses corpos são para nós verdadeiros elementos, e podemos, sem maiores conseqüências,

considerá-los assim até nova ordem.

33-a. Essa teoria não parece dar razão à opinião dos que não admitem, para a matéria, mais do que dois elementos essenciais: a força e o movimento,

entendendo que todas as outras propriedades não são senão efeitos

secundários, que mudam segundo a intensidade da força e a direção do

movimento?

Essa opinião é exata. Falta acrescentar que, também, segundo a disposição das moléculas. Como se vê, por exemplo, num corpo opaco que pode tornar-se transparente e vice-versa.

34. As moléculas tem uma forma determinada?

Sem dúvida que as moléculas tem uma forma, mas não a podeis apreciar. 34-a. Essa forma é constante ou variável?

Constante para as moléculas elementares primitivas, mas variável para as moléculas secundárias, que são aglomerações das primeiras. Isso que chamais molécula está ainda longe da molécula elementar.

IV — Espaço Universal

35. O espaço universal é infinito ou limitado?

— Infinito. Supõe limites para ele: o que haverá além? Isto confunde a tua razão, bem o sei, e no entanto a razão te diz que não pode ser de outra maneira. O mesmo se dá com o infinito, em todas as coisas; não é na vossa pequena esfera que o podeis compreender.

Supondo se um limite para o espaço, qualquer que seja a distância a que o

pensamento possa concebê-lo, a razão diz que, além desse limite, há alguma coisa. E assim, pouco a pouco, até o infinito, porque essa alguma coisa, mesmo que fosse o vazio absoluto, ainda seria espaço.

36. O vazio absoluto existe em alguma parte do espaço universal?

— Não, nada é vazio. O que é vazio para ti está ocupado por uma matéria que escapa aos teus sentidos e aos teus instrumentos.

Capítulo III

Criação

I — Formação dos Mundos

O Universo compreende a infinidade dos mundos que vemos e não vemos, todos os seres animados e inanimados, todos os astros que se movem no espaço e os fluidos que o preenchem.

37. O Universo foi criado, ou existe de toda a eternidade, como Deus?

— Ele não pode ter sido feito por si mesmo; e se existisse de toda a eternidade, como Deus, não poderia ser obra de Deus.

A razão nos diz que o Universo não poderia fazer-se por si mesmo, e que, não podendo ser obra do acaso, deve ser obra de Deus.

38. Como criou Deus o Universo?

Para me servir de uma expressão corrente: por sua vontade. Nada exprime melhor essa vontade todo-poderosa do que estas belas palavras do Gênese: "Deus disse: Faça-se a luz, e a luz foi feita".

39. Podemos conhecer o modo de formação dos mundos?

Tudo o que se pode dizer, e que podeis compreender, é que os mundos se formam pela condensação da matéria espalhada no espaço.

40. Os cometas seriam, como agora se pensa, um começo de condensação da matéria, mundos em vias de formação?

Isso está certo; absurdo, porém, é acreditar na sua influência. Quero dizer, a influência que vulgarmente lhe atribuem; porque todos os corpos celestes têm a sua parte de influência em certos fenômenos físicos.

41. Um mundo completamente formado pode desaparecer e a matéria que o compõe espalhar-se de novo no espaço?

Sim, Deus renova os mundos, como renova os seres vivos.

42. Podemos conhecer a duração da formação dos mundos; da Terra, por exemplo?

— Nada te posso dizer, porque somente o Criador o sabe; e bem louco seria quem pretendesse sabê-lo, ou conhecer o número de séculos dessa formação.

II— Formação dos Seres Vivos

43.Quando a Terra começou a ser povoada?

No começo, tudo era caos; os elementos estavam fundidos. Pouco a pouco, cada coisa tomou o seu lugar; então, apareceram os seres vivos, apropriados ao estado do globo.

44. De onde vieram os seres vivos para a Terra?

A Terra continha os germes, que esperavam o momento favorável paradesenvolver-se. Os princípios orgânicos reuniram-se, desde o instante em que cessou a força de dispersão, e formaram os germes de todos os seres vivos. Os germes permaneceram em estado latente e inerte, como a crisálida e as sementes das plantas, até o momento propício à eclosão de cada espécie; então, os seres de cada espécie se reuniram e se multiplicaram.

45 Onde estavam os elementos orgânicos, antes da formação da Terra?

Estavam, por assim dizer, em estado fluídico no espaço, entre os Espíritos, ou em outros planetas, esperando a criação da Terra, para começarem uma nova existência sobre um novo globo.

A Química nos mostra as moléculas dos corpos inorgânicos unindo-se para formar cristais de uma pluralidade constante, segundo cada espécie, desde que estejam nas condições necessárias. A menor perturbação destas condições é suficiente para impedir a reunião dos elementos, ou pelo menos a disposição

regular que constitui o cristal. Por que não ocorreria o mesmo com os elementos orgânicos? Conservamos durante anos germes de plantas e de animais, que não se desenvolvem a não ser numa dada temperatura e num meio apropriado; viram-se grãos de trigo germinar depois de muitos séculos. Há, portanto, nesses germes, um princípio latente de vitalidade, que só espera uma circunstância favorável para desenvolver-se.

O que se passa diariamente sob os nosso olhos não pode ter existido desde a origem do globo? Esta formação dos seres vivos, partindo do caos pela própria força da Natureza, diminui alguma coisa a grandeza de Deus? Longe disso, corresponde melhor à idéia que fazemos do seu poder, exercendo-sesobre os mundos infinitos através de leis eternas. Esta teoria não resolve, é verdade, a questão da origem dos elementos vitais; mas Deus tem os seus mistérios e estabeleceu limites as nossas investigações.

46. Há seres que ainda nascem espontaneamente?

— Sim, mas o germe primitivo já existia em estado latente. Sois, todos os dias, testemunhas desse fenômeno. Os tecidos dos homens e dos animais não contam os germes de uma multidão de vermes que esperam, para eclodir, a fermentação pútrica necessária à sua existência? É um pequeno mundo que dormita e que se cria.

47. A espécie humana se achava entre os elementos orgânicos do globo

terrestre?

Sim, e veio a seu tempo. Foi isso que deu motivo a dizer-se que o homem foi feito do limo da terra.

48. Podemos conhecer a época da aparição do homem e de outros seres vivos sobre a Terra?

Não; todos os vossos cálculos são quiméricos.

49.Se o germe da espécie humana estava entre os elementos orgânicos do globo, por que os homens não mais se formam espontaneamente, como em sua origem?

— O princípio das coisas permanece nos segredos de Deus; mas podemos dizer que os homens, uma vez dispersos sobre a Terra, absorveram em si mesmos os elementos necessários à sua formação, para transmiti-los segundo as leis da reprodução. O mesmo aconteceu com as demais espécies de seres vivos.

III — Povoamento da Terra. Adão

50.A espécie humana começou por um só homem?

— Não; aquele que chamais Adão não foi o primeiro nem o único a povoar a

Terra.

51. Podemos saber em que época viveu Adão?

— Mais ou menos naquela que lhe assinalais: cerca de quatro mil anos antes de Cristo.

O homem cuja tradição se conservou sob o nome de Adão foi um dos que sobreviveram, em alguma região, a um dos grandes cataclismos que em diversas épocas modificaram a superfície do globo, e tornou-se o tronco de uma das raças que hoje o povoam. As leis da Natureza contradizem a opinião de que os progressos da Humanidade, constatados muito tempo antes de Cristo, se tivessem realizado em alguns séculos, como o teria de ser, se o homem não estivesse aparecido depois da época assinalada para a existência de Adão. Alguns, e com muita razão, consideram Adão como um mito ou um alegoria, personificando as primeiras idades do mundo.

IV — Diversidade das Raças Humanas

52.De onde vêm as diferenças físicas e morais que distinguem as variedades de raças humanas na Terra?

— Do clima, da vida e dos hábitos. Dá-se o mesmo que com duas crianças da mesma mãe, que, educadas uma longe da outra e de maneira diferente, não se assemelhassem em nada quanto a moral.

53.0 homem apareceu em muitos pontos do globo?

— Sim, e em diversas épocas, e é essa uma das causas da diversidade das

raças; depois, o homem se dispersou pelos diferentes climas, e aliando-se os de uma raça aos de outras, formaram-se novos tipos.

53-a. Essas diferenças representam espécies distintas?

Certamente não, pois todos pertencem a mesma família. As variedades do mesmo fruto acaso não pertencem a mesma espécie?

54. Se a espécie humana não procede de um só tronco, não devem os homens deixar de considerar-se irmãos?

Todos os homens são irmãos em Deus, porque são animados pelo espírito e tendem para o mesmo alvo. Quereis sempre tomar as palavras ao pé da letra.

V — Pluralidade dos Mundos

55. Todos os globos que circulam no espaço são habitados?

— Sim, e o homem terreno está bem longe de ser, como acredita, o primeiro em inteligência, bondade e perfeição. Há, entretanto, homens que se julgam espíritos fortes e imaginam que só este pequeno globo tem o privilégio de ser habitado por seres racionais. Orgulho e vaidade! Crêem que Deus criou o Universo somente para eles.

Deus povoou os mundos de seres vivos, e todos concorrem para o objetivo final da Providência. Acreditar que os seres vivos estejam limitados apenas ao ponto que habitam no Universo, seria por em dúvida à sabedoria de Deus, que

nada fez de inútil e deve ter destinado esses mundos para um fim mais sério do que o de alegrar os nossos olhos. Nada, aliás, nem na posição, no volume ou na constituição física da Terra, pode razoavelmente levar-nos à suposição de que detenha o privilégio de ser habitada, com exclusão de tantos milhares de mundos semelhantes.

56.A constituição física dos diferentes globos é a mesma?

— Não; eles absolutamente não se assemelham.

57.A constituição física dos mundos não sendo a mesma para todos, os seres que os habitam terão organização diferente?

— Sem dúvida, como entre vós os peixes são feitos para viver na água e os pássaros no ar.

58.Os mundos mais distanciados do Sol são privados de luz e calor, de vez que o Sol lhes aparece apenas como uma estrela?

— Acreditais que não há outras fontes de luz e de calor, além do Sol? não tendes em conta a eletricidade, que em certos mundos desempenha um papel desconhecido para vós, bem mais importante que o que lhe cabe na Terra? Aliás, não dissemos que todos os seres vivem da mesma maneira que vós, com órgãos semelhantes aos vossos.

As condições de existência dos seres nos diferentes mundos devem ser apropriadas ao meio em que têm de viver. Se nunca tivéssemos visto peixes,

não compreenderíamos como alguns seres pudessem viver na água. O mesmo acontece com outros mundos, que sem dúvida contam elementos para nós desconhecidos. Não vemos na Terra às longas noites polares iluminadas pela eletricidade das auroras boreais? Que impossibilidade haveria para a eletricidade ser mais abundante que na Terra, desempenhando um papel geral cujos efeitos não podemos compreender? Esses mundos podem conter em si mesmos as fontes de luz e calor necessários aos seus habitantes.

VI — Considerações e Concordâncias Bíblicas Referentes a Criação

59. Os povos fizeram idéias bastante divergentes sobre a Criação, segundo o grau de seus conhecimentos. A razão apoiada na Ciência reconheceu a inverossimilhança de algumas teorias. A que os Espíritos nos oferecem confirma a opinião há muito admitida pelos homens mais esclarecidos.

A objeção que se pode fazer a essa teoria é a de estar em contradição com os textos dos livros sagrados. Mas um exame sério nos leva a reconhecer que essa contradição é mais aparente que real, resultante da interpretação dada a passagens que, em geral, só possuíam sentido alegórico.

A questão do primeiro homem, na pessoa de Adão, como único tronco da Humanidade, não é a única sobre a qual as crenças religiosas têm demodificar-se. O movimento da Terra parecia, em determinada época, tão

contrário aos textos sagrados, que não há formas de perseguição a que essa teoria não tenha dado pretexto. Não obstante, a Terra gira, malgrado os anátemas, e ninguém hoje em dia poderia contestá-lo, sem ofender a sua própria razão.

A Bíblia diz igualmente que o mundo foi criado em seis dias, e fixa a época da Criação em cerca de quatro mil anos antes da Era Cristã. Antes disso, a Terra não existia; ela foi tirada do nada. O texto é formal. E eis que a Ciência positiva, a Ciência inexorável, vem provar o contrário. A formação do globo está gravada em caracteres indeléveis no mundo fóssil, e está provado que os seis dias da Criação representam outros tantos períodos, cada um deles, talvez, de muitas centenas de milhares de anos. E não se trata de um sistema, uma doutrina, uma opinião isolada, mas de um fato tido constante como o do movimento da Terra, e que a Teologia não pode deixar de admitir, prova evidente do erro em que se pode cair, quando se tomam ao pé da letra as expressões de uma linguagem freqüentemente figurada. Devemos concluir, então, que a Bíblia é um erro? Não; mas que os homens se enganaram na sua interpretação.

A Ciência, escavando os arquivos da Terra, descobriu a ordem em que os diferentes seres vivos apareceram na sua superfície, e essa ordem concorda com a indicada no Gênesis, com a diferença de que essa obra, em vez de ter

saído miraculosamente das mãos de Deus, em apenas algumas horas, realizou- se, sempre pela sua vontade, mas segundo a lei das forças naturais, em alguns milhões de anos. Deus seria, por isso, menor e menos poderoso? Sua obra se tornada menos sublime, por não ter o prestígio da instantaneidade? Evidentemente, não. É preciso fazer da Divindade, uma idéia bem mesquinha, para não reconhecer a sua onipotência nas leis eternas que ela estabeleceu para reger os mundos. A Ciência, longe de diminuir a obra divina, no-la mostra sob um aspecto mais grandioso e mais conforme com as noções que temos do poder e da majestade de Deus, pelo fato mesmo de ter ela se realizado sem derrogar as leis da Natureza.

A Ciência, de acordo neste ponto com Moisés, coloca o homem por último na ordem da criação dos seres vivos. Moisés, porém, coloca o dilúvio universal no ano 1654 da formação do mundo, enquanto a Geologia nos mostra o grande cataclismo como anterior a aparição do homem, tendo em vista que, até agora, não se encontra nas camadas primitivas nenhum traço da sua presença, nem da presença dos animais que, sob o ponto de vista físico, são da sua mesma categoria. Mas nada prova que isso seja impossível; várias descobertas já lançaram dúvidas a respeito, podendo acontecer, portanto, que de um momento para outro se adquira a certeza material da anterioridade da raça humana. E então se reconhecerá que, nesse ponto, como em outros, o

texto bíblico é figurado.

A questão está em saber se o cataclismo é o mesmo de Noé. Ora, a duração necessária a formação das camadas fósseis não dá lugar a confusões, e no momento em que se encontrarem os traços da existência do homem, anteriores a grande catástrofe, ficará provado que Adão não foi o primeiro homem, ou que a sua criação se perde na noite dos tempos. Contra a evidência não há raciocínios possíveis, e será necessário aceitar o fato, como se aceitou o do movimento da Terra e o dos seis períodos da Criação.

A existência do homem antes do dilúvio geológico e, não há dúvida, ainda hipotética, mas eis como nos parece menos. Admitindo-se que o homem tenha aparecido pela primeira vez na Terra há quatro mil anos antes de Cristo, se 1650 anos mais tarde toda a raça humana foi destruída, com exceção apenas de uma família, conclui-se que o povoamento da Terra data de Noé, ou seja, de 2.350 anos antes da nossa era. Ora, quando os hebreus emigraram para o Egito, no décimo oitavo século, encontraram esse país hastante povoado e já bem avançado em civilização. A História prova que, nessa época, a Índia e outros países eram igualmente florescentes, mesmo sem levarmos em conta a cronologia de certos povos, que remonta a uma época mais recuada. Teria sido então necessário que do vigésimo quarto ao décimo oitavo século, quer dizer, num espaço de seiscentos anos, não somente a posteridade de um único

homem tivesse podido povoar todas as imensas regiões então conhecidas,supondo-se que as outras não estivessem povoadas, mas também que, nesse curto intervalo, a espécie humana tivesse podido elevar-se da ignorância absoluta do estado primitivo ao mais alto grau de desenvolvimento intelectual, o que é contrado a todas as leis antropológicas.

A diversidade das raças humanas vem ainda em apoio desta opinião. O clima e os hábitos produzem, sem dúvida, modificações das características físicas, mas sabe-se até onde pode chegar a influência dessas causas, e o exame fisiológico prova a existência, entre algumas raças, de diferenças constitucionais mais profundas que as produzidas pelo clima. O cruzamento de raças produz os tipos intermediários; tende a superar os caracteres extremos, mas não cria estes, produzindo apenas as variedades. Ora, para que tivesse havido cruzamento de raças, era necessário que houvesse raças distintas, e como explicarmos a sua existência, dando-lhes um tronco comum, e sobretudo tão próximo? Como admitir-se que, em alguns séculos, certos descendentes de Noé se tivessem transformado, a ponto de produzirem a raça etíope, por exemplo? Uma tal metamorfose não é mais admissível que a hipótese de um tronco comum para o lobo e a ovelha, o elefante e o pulgão, a ave e o peixe. Ainda uma vez, nada poderia prevalecer contra a evidência dos fatos.

Tudo se explica, pelo contrário, admitindo-se a existência do homem antes da época que lhe é vulgarmente assinalada; a diversidade das origens; Adão, que viveu há seis mil anos, como tendo povoado uma região ainda inabitada; o dilúvio de Noé como uma catástrofe parcial, que se tomou pelo cataclismo geológico; e tendo-se em conta, por fim, a forma alegórica peculiar ao estilo oriental, que se encontra nos livros sagrados de todos os povos. Eis porque é prudente não se acusar muito ligeiramente de falsas as doutrinas que podem, cedo ou tarde, como tantas outras, oferecer um desmentido aos que as combatem. As idéias religiosas, longe de perder, se engrandecem, ao marchar com a Ciência; esse o único meio de não apresentarem ao ceticismo um elo vulnerável.

Capítulo IV

Princípio Vital

I — Seres Orgânicos e Inorgânicos

Os seres orgânicos são os que trazem em si mesmos uma fonte de atividade íntima, que lhes dá a vida. Nascem, crescem, reproduzem-se e morrem; são providos de órgãos especiais para a realização dos diferentes atos da vida e apropriados às necessidades de sua conservação. Compreendem os homens, os animais e as plantas. Os seres inorgânicos são os que não possuem vitalidade

nem movimentos próprios, sendo formados apenas pela agregação da matéria:

os minerais, a água, o ar, etc.

60.É a mesma a força que une os elementos materiais nos corpos orgânicos e inorgânicos?

— Sim, a lei de atração é a mesma para todos.

61.Há uma diferença entre a matéria dos corpos orgânicos e inorgânicos?

— É sempre a mesma matéria, mas nos corpos orgânicos é animalizada.

62.Qual a causa da animalização da matéria?

— Sua união com o princípio vital.

63.O princípio vital é propriedade de um agente especial, ou apenas da matéria organizada; numa palavra, é um efeito ou uma causa?

— É uma e outra coisa. A vida é um efeito produzido pela ação de um agente sobre a matéria. Esse agente, sem a matéria, não é vida, da mesma forma que a matéria não pode viver sem ele. É ele que dá vida a todos os seres que o absorvem e assimilam.

64.Vimos que o espírito e a matéria são dois elementos constitutivos do Universo. O princípio vital formará um terceiro?

— É um dos elementos necessários a constituição do Universo, mas tem a sua fonte nas modificações da matéria universal. É um elemento, para vós, como o oxigênio e o hidrogênio, que, entretanto, não são elementos

primitivos, pois todos procedem de um mesmo princípio.

64-a. Parece resultar daí que a vitalidade não tem como princípio um agente primitivo distinto, sendo antes uma propriedade especial da matéria universal, devida a certas modificações desta?

— É essa a conseqüência do que dissemos.

65. O princípio vital reside num dos corpos que conhecemos?

Ele tem como fonte o fluido universal é o que chamais fluido magnético ou fluido elétrico animalizado. É o intermediário, o liame entre o espírito e a matéria.

66. O princípio vital é o mesmo para todos os seres orgânicos?

Sim, modificado segundo as espécies. É ele que lhes dá movimento e atividade, e os distingue da matéria inerte: pois o movimento da matéria não é a vida, ela recebe esse movimento, não o produz.

67. A vitalidade é um atributo permanente do agente vital, ou somente se desenvolve com o funcionamento dos órgãos?

Desenvolve-se com o corpo. Não dissemos que esse agente, sem a matéria, não é vida? É necessária a união de ambos para produzir a vida.

67-a. Podemos dizer que a vitalidade permamece latente, quando o agente vital ainda não se uniu ao corpo?

Sim, é isso.

O conjunto dos órgãos constitui uma espécie de mecanismo, impulsionado pela atividade íntima ou princípio vital, que neles existe. O princípio vital é a força motriz dos corpos orgânicos. Ao mesmo tempo que o agente vital impulsiona os órgãos, a ação destes entretém e desenvolve o agente vital, mais ou menos como o atrito produz o calor.

II— A Vida e a Morte

68.Qual é a causa da morte, nos seres orgânicos?

— A exaustão dos órgãos.

68-a. Pode-se comparar a morte à cessação do movimento numa máquina

desarranjada?

Sim, pois se a máquina estiver mal montada, a sua mola se quebra: se o corpo estiver doente, a vida se esvai.

69. Por que uma lesão do coração, mais que a dos outros órgãos, causa a morte?

O coração é uma máquina de vida. Mas não é ele o único órgão em que uma lesão causa a morte; ele não é mais do que uma das engrenagens essenciais.

70. Em que se transformam a matéria e o princípio vital dos seres orgânicos, após a morte?

— A matéria inerte se decompõe e vai formar novos seres o princípio vital retorna a massa.

Após a morte do ser orgânico, os elementos que o formaram passam por novas combinações, constituindo novos seres, que haurem na fonte universal o princípio da vida e da atividade, absorvendo-o e assimilando-o, para novamente o devolverem a essa fonte, logo que deixarem de existir.

Os órgãos estão, por assim dizer, impregnados de fluido vital. Esse fluido dá a todas as partes do organismo uma atividade que lhes permite comunicarem- se entre si, no caso de certas lesões, e restabelecerem funções momentaneamente suspensas. Mas quando os elementos essenciais do funcionamento dos órgãos foram destruídos, ou profundamente alterados, o fluido vital não pode transmitir-lhes o movimento da vida, e o ser morre.

Os órgãos reagem mais ou menos necessariamente uns sobre os outros é da harmonia do seu conjunto que resulta essa reciprocidade de ação. Quando uma causa qualquer destrói esta harmonia, suas funções cessam, como o movimento de um mecanismo cujas engrenagens essenciais se desarranjaram; como um relógio gasto pelo uso ou desmontado por um acidente, que a força motriz não pode pôr em movimento.

Temos uma imagem mais exata da vida e da morte num aparelho elétrico. Esse aparelho recebe a eletricidade e a conserva em estado potencial, como

todos os corpos da Natureza. Os fenômenos elétricos, porém, não se manifestam enquanto o fluido não fôr posto em movimento por uma causa especial, e só então se poderá dizer que o aparelho está vivo. Cessando a causa da atividade, o fenômeno cessa: o aparelho volta ao estado de inércia. Os corpos orgânicos seriam, assim, como pilhas ou aparelhos eletricos nos quais a atividade do fluido produz o fenômeno da vida: a cessação dessa atividade ocasiona a morte.

A quantidade de fluido vital não é a mesma em todos os seres orgânicos: varia segundo as espécies e não é constante no mesmo indivíduo, nem nos vários indivíduos de uma mesma espécie. Há os que estão, por assim dizer, saturados de fluido vital, enquanto outros o possuem apenas em quantidade suficiente. É por isso que uns são mais ativos, mais enérgicos, e de certa maneira, de vida superabundante.

A quantidade de fluido vital se esgota. Pode tornar-se incapaz de entreter a vida, se não for renovada pela absorção e assimilação de substâncias que o contêm.

O fluido vital se transmite de um indivíduo a outro. Aquele que o tem em maior quantidade pode dá-lo ao que tem menos, e em certos casos fazer voltar uma vida prestes a extinguir-se.

III— Inteligência e Instinto

71.A inteligência é um atributo do princípio vital?

Não: pois as plantas vivem e não pensam, não tendo mais do que vida orgânica. A inteligência e a matéria são independentes, pois um corpo pode viver sem inteligência, mas a inteligência só pode manifestar-se por meio dos órgãos materiais: somente a união com o espírito dá inteligência a matéria animalizada.

A inteligência é uma faculdade especial, própria de certas classes de seres orgânicos, aos quais dá, com o pensamento, a vontade de agir, a consciência de sua existência e de sua individualidade, assim como os meios de estabelecer relações com o mundo exterior e de prover as suas necessidades.

Podemos fazer a seguinte distinção: 1º) os seres inanimados, formados somente de matéria, sem vitalidade nem inteligência: são os corpos brutos; 2º) os seres animados não pensantes, formados de matéria e dotados de vitalidade, mas desprovidos de inteligência; 3º) os seres animados pensantes, formados de matéria, dotados de vitalidade, e tendo ainda um princípio inteligente que lhes dá a faculdade de pensar.

72. Qual é a fonte da inteligência?

Já o dissemos a inteligência universal.

72-a Poder-se-ia dizer que cada ser tira uma porção de inteligência da fonte

universal e a assimila, como tira e assimila o princípio da vida material?

Isto não é mais que uma comparação mas não exata, porque a inteligência é uma faculdade própria de cada ser e constitui a sua individualidade moral. De resto, bem o sabeis, há coisas que não é dado ao homem penetrar, e esta, por enquanto, é uma delas.

73. O instinto é independente da inteligência?

Precisamente, não, porque é uma espécie de inteligência. O instinto é uma inteligência não racional: é por ele que todos os seres provêm as suas necessidades.

74. Pode-se assinalar um limite entre o instinto e a inteligência, ou seja, precisar onde acaba um e onde começa a outra?

Não, porque eles freqüentemente se confundem: mas podemos muito bem distinguir os atos que pertencem ao instinto dos que pertencem a inteligência.

75. É acertado dizer que as faculdades instintivas diminuem, a medida que crescem as intelectuais?

Não. O instinto existe sempre, mas o homem o negligencia. O instinto pode também conduzir ao bem: ele nos guia quase sempre, e às vezes mais seguramente que a razão: ele nunca se engana.

75-a. Por que a razão não é sempre um guia infalível?

— Ela seria infalível se não estivesse falseada pela má educação, pelo orgulho e o egoísmo. O instinto não raciocina; a razão permite ao homem escolher, dando-lhe o livre arbítrio.

O instinto é uma inteligência rudimentar, que difere da inteligência propriamente dita por serem quase sempre espontâneas as suas manifestações, enquanto as daquele são o resultado de apreciações e uma deliberação.

O instinto varia em suas manifestações segundo as espécies e suas necessidades. Nos seres dotados de consciência e de percepção das coisas exteriores, ele se alia à inteligência, o que quer dizer, à vontade e à liberdade.

LIVRO SEGUNDO

Mundo Espírita ou dos Espíritos

Capítulo I

Dos Espíritos

I — Origem e Natureza dos Espíritos

76. Como podemos definir os Espíritos?

— Podemos dizer que os Espíritos são os seres inteligentes da Criação. Eles povoam o Universo, além do mundo material.

NOTA — A palavra Espírito é aqui empregada para designar os seres extra-

corpóreos e não mais o elemento inteligente Universal.

77.Os Espíritos são seres distintos da Divindade, ou não seriam mais do que emanações ou porções da Divindade, por essa razão chamados filhos de Deus?

— Meu Deus! São sua obra, precisamente como acontece com um homem que faz uma máquina; esta é obra do homem, e não ele mesmo. Sabes que o homem, quando faz uma coisa bela e útil, chama-a sua filha, sua criação. Pois bem: dá-se o mesmo com Deus; nós somos seus filhos porque somos sua obra.

78.Os Espíritos tiveram princípio ou existem de toda a eternidade? — Se os Espíritos não tivessem tido princípio, seriam iguais a Deus, mas pelo contrário, são sua criação, submetidos à sua vontade. Deus existe de toda a eternidade, isso é incontestável: mas quando e como ele criou, não o sabemos. Podes dizer que não tivemos princípio, se com isso entendes que Deus, sendo eterno, deve ter criado sem cessar; mas quando e como cada um de nós foi feito, eu te repito, ninguém o sabe; isso é mistério.

79.Uma vez que há dois elementos gerais do Universo: o inteligente e o material, podemos dizer que os Espíritos são formados do elemento inteligente, como os corpos inertes são formados do material?

— É evidente. Os Espíritos são individualizações do princípio inteligente, como os corpos são individualizações do princípio material; a época e a maneira dessa formação é que desconhecemos.

80.A criação dos Espíritos é permanente ou verificou-se apenas na origem dos tempos?

— É permanente, o que quer dizer que Deus jamais cessou de criar.

81.Os Espíritos se formam espontaneamente, ou procedem uns dos outros?

— Deus os criou, como a todas as outras criaturas, pela sua vontade, mas

repito ainda uma vez que a sua origem é um mistério. 82. E certo dizer que os Espíritos são imateriais?

— Como podemos definir uma coisa, quando não dispomos de termos de comparação e usamos uma linguagem insuficiente? Um cego de nascença pode definir a luz? Imaterial não é o termo apropriado; incorpóreo, seria mais exato pois deves compreender que, sendo uma criação, o Espírito deve ser alguma coisa. E uma matéria quintessenciada, para a qual não dispondes de analogia, é tão eterizada, que não pode ser percebida pelos vossos sentidos.

Dizemos que os Espíritos são imateriais porque a sua essência difere de tudo o que conhecemos pelo nome de matéria. Um povo de cegos não teria palavras para exprimir a luz e os seus efeitos. O cego de nascença julga ter todas as percepções pelo ouvido, o olfato, o paladar e o tato; não compreende as idéias que lhe seriam dadas pelo sentido que lhe falta. Da mesma maneira, no tocante à essência dos seres super-humanos, somos como verdadeiros cegos. Não podemos defini-los, a não ser por meio de comparações sempre imperfeitas,

ou por um esforço da imaginação.

83.Os Espíritos terão fim? Compreende-se que o princípio de que eles emanam seja eterno, mas o que perguntamos é se a sua individualidade terá um termo, e se, num dado tempo, mais ou menos longo, o elemento de que são formados não se desagregará e não retornará a massa de que saíram, como acontece com os corpos materiais. É difícil compreender que uma coisa que teve começo não tenha fim.

— Há muitas coisas que não compreendeis, porque a vossa inteligência é limitada: mas não é isso razão para as repelirdes. O filho não compreende tudo o que o pai compreende, nem o ignorante tudo o que o sábio compreende. Nós te dizemos que a existência dos Espíritos não tem fim: é tudo quanto podemos dizer, por enquanto.

II — Mundo Normal Primitivo

84.Os Espíritos constituem um mundo à parte, além daquele que vemos?

— Sim, o mundo dos Espíritos ou das inteligências incorpóreas.

85.Qual dos dois, o mundo espírita ou o mundo corpóreo, é o principal na ordem das coisas?

— O mundo espírita: ele preexiste e sobrevive a tudo.

86.O mundo corpóreo poderia deixar de existir, ou nunca ter existido, sem

com isso alterar a essência do mundo espírita?

Sim, eles são independentes, e não obstante, a sua correlação é incessante, porque reagem incessantemente um sobre o outro.

87. Os Espíritos ocupam uma região circunscrita e determinada no espaço?

Os Espíritos estão por toda parte: povoam ao infinito os espaços infinitos. Há os que estão sem cessar ao vosso lado, observando-vos e atuando sobre vós, sem o saberdes: porque os Espíritos são uma das forças da Natureza, e os instrumentos de que Deus se serve para o cumprimento de seus desígnios providenciais: mas nem todos vão a toda parte, porque há regiões interditas aos menos avançados.

III— Forma e Ubiqüidade dos Espíritos

88. Os Espíritos tem uma forma determinada, limitada e constante?

Aos vossos olhos, não: aos nossos, sim. Eles são, se o quiserdes, uma flama, um clarão ou uma centelha etérea.

88-a. Esta flama ou centelha tem alguma cor?

Para vós, ela varia do escuro ao brilho do rubi, de acordo com a menor ou maior pureza do Espírito.

Representam-se ordinariamente os gênios, com uma flama ou uma estrela na fronte. É essa uma alegoria, que lembra a natureza essencial dos Espíritos.

Colocam-na no alto da cabeça, por ser ali que se encontra a sede da

inteligência.

89.Os Espíritos gastam algum tempo para atravessar o espaço?

— Sim; mas rápido como o pensamento.

89-a. O pensamento não é a própria alma que se transporta?

— Quando o pensamento está em alguma parte, a alma também o está, pois

éa alma que pensa. O pensamento é um atributo.

90.O Espírito que se transporta de um lugar a outro tem consciência da distância que percorre e dos espaços que atravessa, ou é subitamente transportado para onde deseja ir?

— Uma e outra coisa. O Espírito pode perfeitamente, se o quiser, dar-seconta da distância que atravessa, mas essa distância pode também desaparecer por completo isso depende de sua vontade e também da sua Natureza, se mais ou menos depurada.

91.A matéria oferece obstáculo aos Espíritos?

Não, eles penetram tudo, o ar, a terra, as águas, o próprio fogo lhes são igualmente acessíveis.

92. Os Espíritos tem o dom da ubiqüidade, ou, em outras palavras, o mesmo Espírito pode dividir-se ou estar ao mesmo tempo em vários pontos?

Não pode haver divisão de um Espírito; mas cada um deles é um centro

que irradia para diferentes lados, e é por isso que parecem estar em muitos lugares ao mesmo tempo. Vês o Sol, que não é mais do que um, e não obstante irradia por toda parte e envia os seus raios até muito longe. Apesar disso, ele não se divide.

92-a. Todos os Espíritos irradiam com o mesmo poder?

— Bem longe disso, o poder de irradiação depende do grau de pureza de cada um.

Cada Espírito é uma unidade indivisível; mas cada um deles pode estender o seu pensamento em diversas direções, sem por isso se dividir. É somente nesse sentido que se deve entender o dom de ubiqüidade atribuido aos Espíritos. Como uma fagulha que projeta ao longe a sua claridade e pode ser percebida de todos os pontos do horizonte. Como, dada, um homem que, sem mudar de lugar e sem se dividir, pode transmitir ordens, sinais e produzir movimentos em diferentes lugares.

IV — Perispírito

93. O Espírito propriamente dito vive a descoberto, ou, como pretendem alguns, envolvido por alguma substância?

— O Espírito é envolvido por uma substância que é vaporosa para ti, mas ainda bastante grosseira para nós; suficientemente vaporosa, entretanto, para

que ele possa elevar-se na atmosfera e transportar-se para onde quiser.

Como a semente de um fruto é envolvida pelo perisperma, o Espírito propriamente dito é revestido de um envoltório que, por comparação, se pode chamar perispírito.

94.De onde tira o Espírito o seu envoltório semimaterial?

Do fluido universal de cada globo. É por isso que ele não é o mesmo em todos os mundos; passando de um mundo para outro, o Espírito muda de envoltório, como mudais de roupa.

94-a. Dessa maneira, quando os Espíritos de mundos superiores vêm até nós, tomam um perispírito mais grosseiro?

— É necessário que eles se revistam da vossa matéria, como já dissemos.

95.O envoltório semimaterial do Espírito tem formas determinadas e pode ser perceptível?

— Sim, uma forma ao arbítrio do Espírito; e é assim que ele vos aparece algumas vezes, seja nos sonhos, seja no estado de vigília, podendo tomar uma forma visível e mesmo palpável.

V — Diferentes Ordens de Espíritos

96.Os Espíritos são todos iguais, ou existe entre eles alguma hierarquia?

— São de diferentes ordens, segundo o grau de perfeição a que tenham

chegado.

97.Há um número determinado de ordens ou de graus de perfeição entre os Espíritos?

— É ilimitado o número dessas ordens, pois não há entre elas uma linha de demarcação, traçada como barreira, de maneira que se podem multiplicar ou restringir as divisões, à vontade. Não obstante, se considerarmos os caracteres gerais, poderemos reduzi-las a três ordens principais.

Na primeira ordem, podemos colocar os que já chegaram a perfeição os Espíritos puros. Na segunda, estão os que chegaram ao meio da escala, o desejo do bem é a sua preocupação. Na terceira, os que estão ainda na base da escala, os Espíritos imperfeitos, que se caracterizam pela ignorância, o desejo do mal e todas as más paixões que lhes retardam o desenvolvimento.

98.Os Espíritos da segunda ordem só têm o desejo do bem; terão também o poder de o fazer?

— Eles tem esse poder, de acordo com o grau de sua perfeição uns possuem a ciência; outros a sabedoria e a bondade. Todos, entretanto, ainda têm provas a sofrer.

99.Os Espíritos da terceira ordem são todos essencialmente maus?

— Não, uns não fazem bem nem mal, outros, ao contrário, se comprazem no mal e ficam satisfeitos quando encontram ocasião de praticá-lo. Há ainda Espíritos levianos ou estouvados, mais travessos do que malignos, que se

comprazem mais na malícia do que na maldade, encontrando prazer em mistificar e causar pequenas contrariedades, das quais se riem.

VI — Escala Espírita

100. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES. A classificação dos Espíritosfunda-se no seu grau de desenvolvimento, nas qualidades por eles adquiridas e nas imperfeições de que ainda não se livraram. Esta classificação nada tem de absoluta: nenhuma categoria apresenta caráter bem definido, a não ser no conjunto: de um grau a outro a transição é insensível, pois, nos limites, as diferenças se apagam, como nos reinos da Natureza, nas cores do arco-íris ou ainda nos diferentes períodos da vida humana. Pode-se, portanto, formar um número maior ou menor de classes, de acordo com a maneira por que se considerar o assunto. Acontece o mesmo que em todos os sistemas de classificação científica: os sistemas podem ser mais ou menos completos, mais ou menos racionais, mais ou menos cômodos para a inteligência; mas, sejam como forem, nada alteram quanto à substância da Ciência. Os Espíritos, interpelados sobre isto, puderam, pois, variar quanto ao número das categorias, sem maiores conseqüências. Houve quem se apegasse a esta contradição aparente, sem refletir que eles não dão nenhuma importância ao que é puramente convencional. Para eles o pensamento é tudo: deixam-nosos

problemas da forma, da escolha dos termos, das classificações, em uma palavra, dos sistemas.

Ajuntemos ainda esta consideração, que jamais se deve perder de vista: entre os Espíritos, como entre os homens, há os que são muito ignorantes, e nunca será demais estarmos prevenidos contra a tendência a crer que eles tudo sabem, por serem Espíritos. Toda classificação exige método, análise e conhecimento aprofundado do assunto. Ora, no mundo dos Espíritos, os que têm conhecimentos limitados são como os ignorantes deste mundo, incapazes de apreender um conjunto e formular um sistema; eles não conhecem ou não compreendem senão imperfeitamente qualquer classificação; para eles todos os Espíritos que lhes sejam superiores são de primeira ordem, pois não podem apreciar as suas diferenças de saber, de capacidade e de moralidade, como entre nos fará um homem rude em relação aos homens ilustrados. E aqueles mesmos que sejam capazes, podem variar nos detalhes, segundo os seus pontos de vista, sobretudo quando uma divisão nada tem de absoluto. Linneu, Jussieu, Tournefort, tiveram cada qual o seu método e a Botânica não se alterou por isso. É que eles não inventaram nem as plantas, nem os seus caracteres, mas apenas observaram a analogia, segundo as quais formaram os grupos e as classes. Foi assim que procedemos. Nós também não inventamos os Espíritos nem os seus caracteres. Vimos e observamos; julgamos pelas suas

palavras e os seus atos, e depois os classificamos pelas semelhanças,baseando-nos nos dados que eles nos forneceram.

Os Espíritos admitem, geralmente, três categorias principais ou três grandes divisões. Na última, aquela que se encontra na base da escala, estão os Espíritos imperfeitos, caracterizados pela predominância da matéria sobre o espírito e pela propensão ao mal. Os da segunda se caracterizam pela predominância do espírito sobre a matéria e pelo desejo de praticar o bem: são os Espíritos bons. A primeira, enfim, compreende os Espíritos puros, que atingiram o supremo grau de perfeição.

Esta divisão nos parece perfeitamente racional e apresenta caracteres bem definidos; não nos resta senão destacar, por um número suficiente de subdivisões, as nuanças principais do conjunto. Foi o que fizemos, com o concurso dos Espíritos, cuja benevolentes instruções jamais nos faltaram.

Com a ajuda deste quadro será fácil determinar a ordem e o grau de superioridade ou inferioridade dos Espíritos com os quais podemos entrar em relação, e, por conseguinte o grau de confiança e de estima que eles merecem. Esta é, de alguma maneira, a chave da Ciência espírita, pois só ela pode explicar-nos as anomalias que as comunicações apresentam,esclarecendo-nos sobre as irregularidades intelectuais e morais dos Espíritos. Observaremos, entretanto, que os Espíritos não pertencem para sempre e exclusivamente a

esta ou aquela classe; o seu progresso se realiza gradualmente, e como muitas vezes se efetua mais num sentido que noutro, eles podem reunir às características de várias categorias, o que é fácil avaliar por sua linguagem e seus atos.

TERCEIRA ORDEM — ESPÍRITOS IMPERFEITOS

101. CARACTERES GERAIS. Predominância da matéria sobre o Espírito. Propensão ao mal.

Ignorância, orgulho, egoísmo e todas as más paixões conseqüentes. Têm a intuição de Deus, mas não o compreendem.

Nem todos são essencialmente maus; em alguns, há mais leviandade. Uns não fazem o bem, nem o mal; mas, pelo simples fato de não fazerem o bem, revelam a sua inferioridade. Outros, pelo contrário, se comprazem no mal e ficam satisfeitos quando encontram ocasião de praticá-lo.

Podem aliar a inteligência à maldade ou à malícia: mas, qualquer que seja o seu desenvolvimento intelectual, suas idéias são pouco elevadas e os seus sentimentos mais ou menos abjetos.

Os seus conhecimentos sobre as coisas do mundo espírita são limitados, e o pouco que sabem a respeito se confunde com as idéias e os preconceitos da vida corpórea. Não podem dar-nos mais do que noções falsas e incompletas

daquele mundo; mas o observador atento encontra freqüentemente, nas suas comunicações, mesmo imperfeitas, a confirmação das grandes verdades ensinadas pelos Espíritos superiores.

O caráter desses Espíritos se revela na sua linguagem. Todo Espírito que, nas suas comumicações, trai um pensamento mau, pode ser colocado na terceira ordem; por conseguinte, todo mau pensamento que nos for sugerido provém de um Espírito dessa ordem.

Vêem a felicidade dos bons, e essa visão é para eles um tormento incessante, porque lhes faz provar as angústias da inveja e do ciúme.

Conservam a lembrança e a percepção dos sofrimentos da vida corpórea, e essa impressão e freqüentemente mais penosa que a realidade. Sofrem, portanto, verdadeiramente, pelos males que suportaram e pelos que acarretaram aos outros; e como sofrem por muito tempo, julgam sofrer para sempre. Deus, para os punir, quer que eles assim pensem.

Podemos dividi-los em cinco classes principais.

102. DÉCIMA CLASSE. ESPÍRITOS IMPUROS. — São inclinados ao mal e o fazem objeto de suas preocupações. Como Espíritos, dão conselhos pérfidos, insuflam a discórdia e a desconfiança e usam todos os disfarces para melhor enganar.

Apegam-se às pessoas de caráter bastante fraco para cederem as suas sugestões, a fim de as levar à perda, satisfeitos de poderem retardar o seu adiantamento, ao fazê-los sucumbir ante as provas que sofrem.

Nas manifestações, reconhecem-se esses Espíritos pela linguagem: a trivialidade e a grosseria das expressões, entre os Espíritos como entre os homens, é sempre um índice de inferioridade moral, senão mesmo intelectual. Suas comunicações revelam a baixeza de suas inclinações, e se eles tentam enganar, falando de maneira sensata, não podem sustentar o papel por muito tempo e acabam sempre por trair a sua origem.

Alguns povos os transformaram em divindades malfazejas, outros os designam como demônios, gênios maus, Espíritos do mal.

Quando encarnados, inclinam-se a todos os vícios que as paixões vis e degradantes engendram: a sensualidade, a crueldade, a felonia, a hipocrisia, a cupidez e a avareza sórdida. Fazem o mal pelo prazer de fazê-lo, no mais das vezes sem motivo, e, por aversão ao bem, que sempre escolhem suas vítimas entre as pessoas honestas. Constituem verdadeiros flagelos para a Humanidade, seja qual for a posição social que ocupem e o verniz da civilização não os livra do opróbrio e da ignomínia.

103. NONA CLASSE ESPÍRITOS LEVIANOS. — São ignorantes, malignos, inconseqüentes e zombeteiros. Metem-se em tudo e a tudo respondem sem se importarem com a verdade. Gostam de causar pequenas contrariedades e pequenas alegrias, de fazer intrigas, de induzir maliciosamente ao erro, por meio de mistificações e de espertezas. A esta classe pertencem os Espíritos vulgarmente designados pelos nomes de duendes, diabretes, gnomos, trasgos. Estão sob a dependência de Espíritos superiores, que deles muitas vezes se servem como fazemos com os criados.

Nas suas comunicações com os homens, a sua linguagem é muitas vezes espirituosa e alegre, mas quase sempre sem profundidade; apanham as esquisitices e os defeitos humanos, que interpretam de maneira mordaz e satírica. Se tomam nomes supostos, é mais por malícia do que por maldade.

104. OITAVA CLASSE. ESPÍRITOS PSEUDO-SÁBIOS. — Seus conhecimentos são bastante amplos, mas julgam saber mais do que realmente sabem. Tendo realizado alguns progressos em diversos sentidos, sua linguagem tem um caráter sério, que pode iludir quanto à sua capacidade e às suas luzes. Mais isso, freqüentemente, não é mais do que um reflexo dos preconceitos e das idéias sistemáticas que tiveram na vida terrena. Sua linguagem é uma mistura de algumas verdades com os erros mais absurdos, entre os quais repontam a presunção, o orgulho, a inveja e a teimosia de que

não puderam despir-se.

105. SÉTIMA CLASSE. ESPÍRITOS NEUTROS. — Nem são bastante bons para fazerem o bem, nem bastante maus para fazerem o mal; tendem tanto para um como para outro e não se elevam sobre a condição vulgar da humanidade, quer pela moral ou pela inteligência. Apegam-se às coisas deste mundo, saudosos de suas grosseiras alegrias.

106. SEXTA CLASSE. ESPÍRITOS BATEDORES E PERTURBADORES.

— Estes Espíritos não formam, propriamente falando, uma classe diferente quanto às suas qualidades pessoais, e podem pertencer a todas as classes da terceira ordem. Manifestam freqüentemente sua presença por efeitos sensíveis e físicos, como golpes, movimento e deslocamento anormal de corpos sólidos, do ar, etc. Parece que estão mais apegados à matéria do que os outros, sendo os agentes principais das vicissitudes dos elementos do globo, quer pela sua ação sobre o ar, a água, o fogo, os corpos sólidos, ou nas entranhas da Terra. Reconhecesse que esses fenômenos não são devidos a uma causa fortuita e física, quando têm um caráter intencional e inteligente. Todos os Espíritos podem produzir esses fenômenos, mas os Espíritos elevados os deixam, em geral, a cargo dos Espíritos subalternos, mais aptos para as coisas materiais que para as inteligentes. Quando julgam que as manifestações desse gênero são úteis, servem-se desses Espíritos como auxiliares.

SEGUNDA ORDEM — ESPÍRITOS BONS

1O7. CARACTERES GERAIS. Predomínio do Espírito sobre a matéria; desejo do bem. Suas qualidades e seu poder de fazer o bem estão na razão do grau que atingiram: uns possuem a ciência, outros a sabedoria e a bondade; os mais adiantados juntam ao seu saber as qualidades morais. Não estando ainda completamente desmaterializados, conservam mais ou menos, segundo sua ordem, os traços da existência corpórea, seja na linguagem, seja nos hábitos, nos quais se encontram até mesmo algumas de suas manias. Se não fosse assim seriam Espíritos perfeitos.

Compreendem Deus e o infinito e gozam já da felicidade dos bons. Sentem- se felizes quando fazem o bem e quando impedem o mal. O amor que os une é para eles uma fonte de inefável felicidade, não alterada pela inveja nem pelos remorsos, ou por qualquer das más paixões que atormentam os Espíritos imperfeitos; mas terão ainda de passar por provas, até atingirem a perfeição absoluta.

Como Espíritos, suscitam bons pensamentos, desviam os homens do caminho do mal, protegem durante a vida aqueles que se tornam dignos e neutralizam a influência dos Espíritos imperfeitos sobre os que não se comprazem nela.

Quando encarnados, são bons e benevolentes para com os semelhantes; não

se deixam levar pelo orgulho, nem pelo egoísmo, nem pela ambição; não provam ódio, nem rancor, nem inveja ou ciúme, fazendo o bem pelo bem.

A esta ordem pertencem os Espíritos designados nas crenças vulgares pelos nomes de bons gênios, gênios protetores, Espíritos do bem. Nos tempos de superstição e de ignorância, foram considerados divindades benfazejas.

Podemos dividi-los em quatro grupos principais:

108.QUINTA CLASSE. ESPÍRITOS BENÉVOLOS. — Sua qualidade dominante é a bondade; gostam de prestar serviços aos homens e de os proteger; mas o seu saber é limitado: seu progresso realizou-se mais no sentido moral que no intelectual.

109.QUARTA CLASSE. ESPÍRITOS SÁBIOS. — O que especialmente os distingue é a amplitude dos conhecimentos. Preocupam-se menos com as questões morais do que com as científicas, para as quais têm mais aptidão; mas só encaram à Ciência pela sua utilidade, livres das paixões que são próprias dos Espíritos imperfeitos.

110.TERCEIRA CLASSE. ESPÍRITOS PRUDENTES. —Caracterizam-se pelas qualidades morais de ordem mais elevada. Sem possuir conhecimentos ilimitados, são dotados de uma capacidade intelectual que lhes permite julgar com precisão os homens e as coisas.

111.SEGUNDA CLASSE. ESPÍRITOS SUPERIORES. — Reunem a

ciência, a sabedoria e a bondade. Sua linguagem, que só transpira benevolência, é sempre digna, elevada e freqüentemente sublime. Sua superioridade os torna, mais que os outros, aptos a nos proporcionar as mais justas noções sobre as coisas do mundo incorpóreo, dentro dos limites do que nos é dado conhecer. Comunicam-se voluntariamente com os que procuram de boa fé a verdade, e cujas almas estejam bastante libertas dos liames terrenos para a compreender; mas afastam-se dos que são movidos apenas pela curiosidade, ou que, pela influência da matéria, desviam-se da prática do bem.

Quando, por exceção, encarnam na Terra, é para cumprir uma missão de progresso, e então nos oferecem o tipo de perfeição a que a Humanidade pode aspirar neste mundo.

PRIMEIRA ORDEM — ESPÍRITOS PUROS

112.CARACTERES GERAIS. Nenhuma influência da matéria. Superioridade intelectual e moral absoluta, em relação aos Espíritos das outras ordens.

113.PRIMEIRA CLASSE. Classe única. Percorreram todos os graus da escala e se despojaram de todas as impurezas da matéria. Havendo atingido a soma de perfeições de que é suscetível a criatura, não têm mais provas nem expiações a sofrer. Não estando mais sujeitos à reencarnação em corpos perecíveis, vivem a vida eterna, que desfrutam no seio de Deus.

Gozam de uma felicidade inalterável, porque não estão sujeitos nem às necessidades nem às vicissitudes da vida material, mas essa felicidade não é a de uma ociosidade monótona, vivida em contemplação perpétua. São os mensageiros e os ministros de Deus, cujas ordens executam, para a manutenção da harmonia universal. Dirigem a todos os Espíritos que lhes são infefiores, ajudam-nos a se aperfeiçoarem e determinam as suas missões. Assistir os homens nas suas angústias, incitá-los ao bem ou a expiação de faltas que os distanciam da felicidade suprema, é para eles uma ocupação agradável. São às vezes designados pelos nomes de anjos, arcanjos ou serafins.

Os homens podem comunicar-se com eles, mas bem presunçoso seria o que pretendesse tê-los constantemente às suas ordens.

VI — Progresso dos Espíritos

114.Os Espíritos são bons ou maus por natureza, ou são eles mesmos que procuram melhorar-se?

— Os Espíritos mesmos se melhoram; melhorando-se, passam de uma ordem inferior para uma superior.

115.Uns Espíritos foram criados bons e outros maus?

— Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, ou seja, sem conhecimento. Deu a cada um deles uma missão, com o fim de os esclarecer e

progressivamente conduzir a perfeição, pelo conhecimento da verdade e para os aproximar Dele. A felicidade eterna e sem perturbações, eles a encontrarão nessa perfeição. Os Espíritos adquirem o conhecimento passando pelas provas que Deus lhes impõe. Uns aceitam essas provas com submissão e chegam mais prontamente ao seu destino; outros não conseguemsofrê-las sem lamentação, e assim permanecem, por sua culpa, distanciados da perfeição e da felicidade prometida.

115-a. Segundo isto, os Espíritos, na sua origem, se assemelham a crianças, ignorantes e sem experiência, mas adquirindo pouco a pouco os conhecimentos que lhes faltam, ao percorrer as diferentes fases da vida?

Sim, a comparação é justa: a criança rebelde permanece ignorante e imperfeita; seu menor ou maior aproveitamento depende da sua docilidade. Mas a vida do homem tem fim, enquanto a dos Espíritos se estende ao infinito.

116. Há Espíritos que ficarão perpetuamente nas classes inferiores?

Não; todos se tornarão perfeitos. Eles mudam, embora devagar, porque, como já dissemos uma vez, um pai justo e misericordioso não pode banir eternamente os seus filhos. Querias que Deus, tão grande, tão justo e tão bom, fosse pior que vós mesmos?

117. Depende dos Espíritos apressar o seu avanço para a perfeição?

Certamente. Eles chegam mais ou menos rapidamente, segundo o seu desejo e a sua submissão à vontade de Deus. Uma criança dócil não se instrui mais depressa que uma rebelde?

118. Os Espíritos podem degenerar?

Não. A medida que avançam, compreendem o que os afasta da perfeição. Quando o Espírito conclui uma prova, adquiriu conhecimento e não mais o perde. Pode permanecer estacionado, mas não retrogradar.

119. Deus pode livrar os Espíritos das provas que devem sofrer para chegar a primeira ordem?

Se eles tivessem sido criados perfeitos, não teriam merecimento para gozar dos benefícios dessa perfeição. Onde estaria o mérito, sem a luta? De outro lado, a desigualdade existente entre eles é necessária a sua personalidade, e a missão que lhes cabe, nos diferentes graus, está nos desígnios da Providência, com vistas a harmonia do Universo.

Como, na vida social, todos os homens podem chegar aos primeiros postos, também poderíamos perguntar por que motivo o soberano de um país não faz, de cada um dos seus soldados um general; por que todos os empregados subalternos não são superiores; por que todos os alunos não são professores. Ora, entre a vida social e a espiritual existe ainda a diferença de que a primeira

élimitada e nem sempre permite a escalada de todos os seus degraus,

enquanto a segunda é indefinida e deixa a cada um a possibilidade de se elevar

ao posto supremo.

120.Todos os Espíritos passam pela fieira do mal, para chegar ao bem?

— Não pela fieira do mal, mas pela da ignorância.

121.Por que alguns Espíritos seguiram o caminho do bem, e outros o do

mal?

— Não tem eles o livre-arbítrio? Deus não criou Espíritos maus; criou-ossimples e ignorantes, ou seja, tão aptos para o bem quanto para o mal; os que são maus, assim se tornaram por sua vontade.

122.Como podem os Espíritos, em sua origem, quando ainda não têm a consciência de si mesmos, ter a liberdade de escolher entre o bem e o mal? Há neles um princípio, uma tendência qualquer que os leve mais para um lado que para outro?

— O livre-arbítrio se desenvolve à medida que o Espírito adquire consciência de si mesmo. Não haveria liberdade, se a escolha fosse provocada por uma causa estranha a vontade do Espírito. A causa não está nele, mas no exterior, nas influências a que ele cede em virtude de sua espontânea vontade. Esta é a grande figura da queda do homem e do pecado original: uns cederam

àtentação e outros a resistiram.

122-a. De onde vêm as influências que se exercem sobre ele?

Dos Espíritos imperfeitos que procuram envolvê-lo e dominá-lo, e que ficam felizes de o fazer sucumbir. Foi o que se quis representar na figura de Satanás.

122-b. Esta influência só se exerce sobre o Espírito na sua origem?

Segue-o na vida de Espírito, até que ele tenha de tal maneira adquirido o domínio de si mesmo, que os maus desistam de obsidiá-lo.

123. Por que Deus permitiu que os Espíritos pudessem seguir o caminho do mal?

Como ousais pedir a Deus conta dos seus atos? Pensais poder penetrar os seus desígnios? Entretanto, podeis dizer: A sabedoria de Deus se encontra na liberdade de escolha que concede a cada um, porque assim cada um tem o mérito de suas obras.

124. Havendo Espíritos que, desde o princípio, seguem o caminho do bem absoluto, e outros o do mal absoluto, haverá gradações, sem dúvida, entre esses dois extremos?

Sim, por certo, e constituem a grande maioria.

125. Os Espíritos que seguiram o caminho do mal poderão chegar ao mesmo grau de superioridade que os outros?

— Sim, mas as eternidades serão mais longas para eles.

Por essa expressão, as eternidades, devemos entender a idéia que os

Espíritos inferiores fazem da perpetuidade dos seus sofrimentos, cujo termo não lhes é dado ver. Essa idéia se renova em todas as provas nas quais sucumbem.

126.Os Espíritos que chegam ao supremo grau, depois de passarem pelo mal, têm menos mérito que os outros, aos olhos de Deus?

— Deus contempla os extraviados com o mesmo olhar, e os ama a todos do mesmo modo. Eles são chamados maus porque sucumbiram; antes, não eram mais que simples Espíritos.

127.Os Espíritos são criados iguais quanto as faculdades intelectuais?

— São criados iguais, mas não sabendo de onde vêm, é necessário que olivre-arbítrio se desenvolva. Progridem mais ou menos rapidamente, tanto em inteligência como em moralidade.

Os Espíritos que seguem desde o princípio o caminho do bem, nem por isso são Espíritos perfeitos; se não têm mais tendências, não estão menos obrigados a adquirir a experiência e os conhecimentos necessários à perfeição. Podemos compará-los a crianças que, qualquer que seja a bondade dos seus instintos naturais, têm necessidade de desenvolver-se, deesclarecer-se, e não chegam sem transição da infância à maturidade. Assim como temos homens que são bons e outros que são maus, desde a infância, há Espíritos que são bons ou maus, desde o princípio, com a diferença capital de que a criança traz

os seus instintos formados, enquanto o Espírito, na sua formação, não possui mais maldade que bondade. Ele tem todas as tendências, e toma uma direção ou outra em virtude do seu livre-arbítrio.

VII — Anjos e Demônios

128.Os seres que chamamos anjos, arcanjos, serafins, formam uma categoria especial, de natureza diferente da dos outros Espíritos?

— Não; são Espíritos puros: estão no mais alto grau da escala e reunem em si todas as perfeições.

A palavra anjo desperta geralmente a idéia da perfeição moral; não obstante,

éfreqüentemente aplicada a todos os seres, bons e maus, que não pertencem à Humanidade. Diz-se: o bom e o mau anjo; o anjo da luz e o anjo das trevas; e nesse caso ele é sinônimo de Espírito ou de gênio. Tomamo-lo aqui na sua boa significação.

129.Os anjos também percorreram todos os graus?

— Percorreram todos. Mas, como já dissemos: uns aceitaram a sua missão sem murmurar e chegaram mais depressa; outros empregaram maior ou menor tempo para chegar a perfeição.

130. Se a opinião de que há seres criados perfeitos e superiores a todos os outros é errônea, como se explica a sua presença na tradição de quase todos os

povos?

Aprende que o teu mundo não existe de toda a eternidade, e que muito antes de existir já havia Espíritos no grau supremo; os homens, por isso, acreditaram que eles sempre haviam sido perfeitos.

131. Há demônios, no sentido que se dá a essa palavra?

Se houvesse demônios, eles seriam obra de Deus. E Deus seria justo e bom, criando seres infelizes, eternamente voltados ao mal? Se há demônios, é no teu mundo nferior e em outros semelhantes, que eles residem: são esses homens hipócritas que fazem de um Deus justo um Deus mau e vingativo, e que pensam lhe ser agradáveis pelas abominações que cometem em seu nome.

A palavra demônio não implica a idéia de Espírito mau, a não ser na sua acepção moderna, porque o termo grego daimon, de que ela deriva, significa gênio, inteligência, e se aplicou aos seres incorpóreos, bons ou maus, sem distinção.

Os demônios, segundo a significação vulgar do termo, seriam entidades essencialmente malfazejas: e seriam, como todas as coisas, criação de Deus. Mas Deus, que é eternamente justo e bom, não pode ter criado seres predispostos ao mal por sua própria natureza e condenados pela eternidade. Se não fossem obra de Deus, seriam eternos como ele, e nesse caso haveria muitas potências soberanas.

A primeira condição de toda doutrina é a de ser lógica; ora, a dos demônios, no seu sentido absoluto, falha neste ponto essencial. Que na crença dos povos atrasados, que não conheciam os atributos de Deus, admitindo divindades malfazejas, também se admitissem os demônios, é concebível; mas para quem quer que faça da bondade de Deus um atributo por excelência é ilógico e contraditório supor que ele tenha criado seres voltados ao mal e destinados a praticá-lo perpetuamente, porque isso negaria a sua bondade. Os partidários do demônio se apoiam nas palavras do Cristo e não seremos nós que iremos contestar a autoridade dos seus ensinos, que desejamos ver mais no coração do que na boca dos homens; mas estariam bem certos do sentido que ele atribuia à palavra demônio? Não se sabe que a forma alegórica é uma das características da sua linguagem? Tudo o que o Evangelho contém deve ser tomado ao pé da letra? Não queremos outra prova, além desta passagem:

"Logo após esses dias de aflição, o sol se obscurecerá e a lua não dará mais a sua luz, as estrelas cairão do céu e as potências celestes serão abaladas. Em verdade vos digo que esta geração não passará, antes que todas essas coisas se cumpram". Não vimos a forma do texto bíblico contraditas pela Ciência, no que se refere criação e ao movimento da Terra? Não pode acontecer o mesmo com certas figuras empregadas pelo Cristo, que devia falar de acordo com o tempo e a região em que se achava? O Cristo não poderia ter dito

conscientemente uma falsidade. Se, portanto, nessas palavras há coisas que parecem chocar a razão, é que não as compreendemos ou que as interpretamos mal.

Os homens fizeram, com os demônios, o mesmo que com os anjos. Da mesma forma que acreditaram na existência de seres perfeitos, desde toda a eternidade, tomaram também os Espíritos inferiores por seres perpetuamente mau. A palavra demônio deve portanto ser entendida como referente aos Espíritos impuros, que freqüentemente não são melhores que os designados por esse nome, mas com a diferença de ser o seu estado apenas transitório. São esses os Espíritos imperfeitos que murmuram contra as suas provações e por isso as sofrem por mais tempo, mas chegarão por sua vez à perfeição, quando se dispuserem a tanto. Poderíamos aceitar a palavra demônio com esta restrição. Mas, como ela é agora entendida num sentido exclusivo, poderia induzir em erro, dando margem à crença na existência de seres criados especialmente para o mal.

A propósito de Satanás, é evidente que se trata da personificação do mal sob uma forma alegórica, porque não se poderia admitir um ser maligno lutando de igual para igual com a Divindade, e cuja única preocupação seria a de contrariar os seus desígnios. Como o homem necessita de imagens e figuras para impressionar a sua imaginação, pintou os seres incorpóreos com formas

materiais dotadas de atributos que lembram as suas qualidades ou os seus defeitos. Foi assim que os antigos, querendo personificar o Tempo,deram-lhe a figura de um velho com foice e uma ampulheta, uma figura de jovem, nesse caso, seria um contra-senso. O mesmo se deu com as alegorias da Fortuna, da Verdade, etc. Os modernos representaram os anjos, os Espíritos puros numa figura radiosa, com asas brancas, símbolos da pureza, e Satanás com chifres, garras e os atributos da bestidade, símbolos das baixas paixões. O vulgo, que toma as coisas ao pé da letra, viu nesses símbolos entidades reais, como outrora vira Saturno na alegoria do Tempo.

Capítulo II

Encarnação dos Espíritos

I — Finalidade da Encarnação

132. Qual é a finalidade da encarnação dos Espíritos?

— Deus a impõe com o fim de levá-los à perfeição. Para uns é uma expiação; para outros uma missão. Mas, para chegar a essa perfeição, eles devem sofrer todas as vicissitudes da existência corpórea: nisto é que está a expiação. A encarnação tem ainda outra finalidade, que é a de por o Espírito em condições de enfrentar a sua parte na obra da criação. É para executá-laque ele toma um aparelho em cada mundo, em harmonia com a sua matéria

essencial, a fim de nele cumprir, daquele ponto de vista, as ordens de Deus. E dessa maneira, concorrendo para a obra geral, também progride.

A ação dos seres corpóreos é necessária à marcha do Universo. Mas Deus, na sua sabedoria, quis que eles tivessem, nessa mesma ação, um meio de progredir e de se aproximarem d'Ele. É assim que, por uma lei admirável da sua providência, tudo se encadeia, tudo é solidário na Natureza.

133.Os Espíritos que, desde o princípio, seguiram o caminho do bem, têm necessidade da encarnação?

— Todos são criados simples e ignorantes e se instruem através das lutas e tribulações da vida corporal. Deus, que é justo, não podia fazer felizes a alguns, sem penas e sem trabalhos, e por conseguinte sem mérito.

133a. Mas, então, de que serve aos Espíritos seguirem o caminho do bem, se isso não os isenta das penas da vida corporal?

— Chegam mais depressa ao alvo. Além disso, as penas da vida são freqüentemente a conseqüência da imperfeição do Espírito. Quanto menos imperfeito ele for, menos tormentos sofrerá. Aquele que não for invejoso, nem ciumento, nem avarento ou ambicioso, não passará pelos tormentos que se originam desses defeitos.

II — Da Alma

134.O que é a alma?

— Um Espírito encarnado.

134-a. O que era a alma, antes de unir-se ao corpo?

— Espírito.

134-b. As almas e os Espíritos são, portanto, uma e a mesma coisa?

Sim, as almas não são mais do que os Espíritos. Antes de ligar-se ao corpo, a alma é um dos seres inteligentes que povoam o mundo invisível, e depois reveste temporariamente um invólucro carnal, para se purificar e esclarecer.

135. Há no homem outra coisa, além da alma e do corpo?

Há, o liame que une a alma e o corpo.

135-a. Qual é a natureza desse liame?

— Semimaterial: quer dizer, um meio-termo entre a natureza do Espírito e a do corpo. E isso é necessário para que eles possam comunicar-se. É por meio desse liame que o Espírito age sobre a matéria, e vice-versa.

O homem é assim formado de três partes essenciais:

1°) O corpo ou ser material, semelhante ao dos animais e animado pelo mesmo princípio vital;

2°) A alma, Espírito encarnado, do qual o corpo é a habitação;

3°) O perispírito, princípio intermediário, substância semi-material, que serve de primeiro envoltório ao Espírito e une a alma ao corpo. Tais são, num

fruto, a semente, a polpa e a casca.

136. A alma é independente do princípio vital?

O corpo não é mais que o envoltório, sempre o repetimos. 136-a. O corpo pode existir sem a alma?

Sim e não obstante, desde que o corpo deixa de viver, a alma o abandona. Antes do nascimento, não há uma união decisiva entre a alma e o corpo, ao passo que, após o estabelecimento dessa união, a morte do corpo rompe os liames que a unem a ele, e a alma o deixa. A vida orgânica pode animar um corpo sem alma, mas a alma não pode habitar um corpo sem vida orgânica.

136-b. O que seria o nosso corpo, se não tivesse alma?

Uma massa de carne sem inteligência; tudo o que quiserdes, menos um homem.

137. O mesmo Espírito pode encarnar-se de uma vez em dois corpos diferentes?

Não. O Espírito é indivisível e não pode animar simultaneamente duas criaturas diferentes (Ver, no "Livro dos Médiuns", o capítulo "Bicorporeidade e transfiguração").

138. Que pensar da opinião dos que consideram a alma como o princípio da vida material?

Simples questão de palavras, com a qual nada temos. Começai por vos

entenderdes.

l39. Alguns Espíritos, e antes deles alguns filósofos, assim definiram a alma: Uma centelha anímica emanada do Grande Todo. Por que essa contradição?

— Não há contradição; depende da significação das palavras. Por que não tendes uma palavra para cada coisa?

A palavra alma é empregada para exprimir as coisas mais diferentes. Uns chamam alma ao princípio da vida, e nessa acepção é exato dizer, figuradamente, que a alma é uma centelha animíca, emanada do Grande Todo. Essas últimas palavras se referem à fonte universal do princípio vital, em que cada ser absorve uma porção, que devolve ao todo após a morte. Esta idéia não exclui absolutamente a de um ser moral, distinto, independente da matéria e que conserva a sua individualidade. É a este ser que se chama igualmente alma e nesta acepção pode-se dizer que a alma é um Espírito encarnado. Dando a alma diferentes definições, os Espíritos falaram segundo as aplicações que faziam da palavra e segundo as idéias terrestres de que estavam ainda mais ou menos imbuídos. Isso decorre da insuficiência da linguagem humana, que não tem um termo para cada idéia, o que acarreta uma multidão de mal entendidos e discussões. Eis porque os Espíritos superiores dizem que devemos, primeiro, nos entendermos quanto as palavras.

l40. Que pensar da teoria da alma subdividida em tantas partes quantos são

os músculos, presidindo cada uma as diferentes funções do corpo?

Isso também depende do sentido que se atribuir à palavra alma. Se por ela se entende o fluido vital, está certo; se o Espírito quando encarnado, está errado. Já dissemos que o Espírito é indivisível, ele transmite o movimento aos órgãos através do fluido intermediário, sem por isso se dividir.

140-a. Não obstante, há Espíritos que deram esta definição.

Os Espíritos ignorantes podem tomar o efeito pela causa.

A alma age por meio dos órgãos, e estes são animados pelo fluido vital que se reparte entre eles, e com mais abundância nos que são os centros ou focos de movimento. Mas essa explicação não pode aplicar-se à alma como sendo o Espírito que habita o corpo durante a vida e o deixa com a morte.

141. Há qualquer coisa de certo na opinião dos que pensam que a alma é externa e envolve o corpo?

— A alma não está encerrada no corpo, como o pássaro numa gaiola. Ela irradia e se manifesta no exterior, como a luz através de um globo de vidro ou como o som em redor de um centro sonoro. É por isso que se pode dizer que ela é externa, mas não como um envoltório do corpo. A alma tem dois envoltórios um, sutil e leve, o primeiro, que chamas perispírito; o outro, grosseiro, material e pesado, que é o corpo. A alma é o centro desses envoltório, como a amêndoa na casca, já o dissemos.

142.Que dizer da teoria segundo a qual, na criança, a alma vai se completando a cada período da vida?

— O Espírito é apenas um inteiro na criança, como no adulto; são os órgãos, instrumentos de manifestação da alma, que se desenvolvem e se completam. Isto é ainda tomar o efeito pela causa.

143.Por que todos os Espíritos não definem a alma da mesma maneira?

— Os Espíritos não são todos igualmente esclarecidos sobre essas questões.

Há Espíritos ainda limitados, que não compreendem as coisas abstratas, como as crianças entre vós. Há também Espíritos pseudo-sábios que, para se imporem, como acontece ainda entre vós, fazem rodeios de palavras. Além disso, mesmo os Espíritos esclarecidos podem exprimir-se em termos diferentes, que no fundo têm o mesmo valor, sobretudo quando se trata de coisas que a vossa linguagem é incapaz de esclarecer; há então necessidade de figuras, de comparações, que tomais pela realidade.

144. Que se deve entender por alma do mundo?

— O princípio universal da vida e da inteligência, de que nascem as individualidades. Mas os que se servem dessa expressão, freqüentemente não se entendem. A palavra alma tem aplicação tão elástica que cada um a interpreta de acordo com as suas fantasias. Têm-se às vezes atribuído uma alma à Terra, e por ela é necessário entender o conjunto dos Espíritos

abnegados que dirigem as vossas ações no bom sentido, quando os escutais, e que são de certa maneira os lugares-tenentes de Deus junto ao vosso globo.

l45. Como é que tantos filósofos antigos e modernos tem longamente discutidos sobre a Ciência psicológica, sem chegar à verdade?

Esses homens eram os precursores da doutrina espírita eterna, e prepararam o caminho. Eram homens e puderam enganar-se, porque tomaram pela luz as suas próprias idéias; mas os seus mesmos erros, através dos prós e contras de suas doutrinas, servem para evidenciar a verdade. Aliás, entre esses erros se encontram grandes verdades, que um estudo comparativo vos fará compreender.

146. A alma tem, no corpo, uma sede determinada e circunscrita?

Não. Mas ela se atua mais particularmente na cabeça, entre os grandes gênios e todos aqueles que usam bastante o pensamento, e no coração dos que sentem bastante, dedicando todas as suas ações a humanidade.

146-a. Que pensar da opinião dos que situam a alma num centro vital?

Que o Espírito se encontra de preferência nessa parte do vosso organismo, que é o ponto a que se dirigem todas as sensações. Os que a situam naquilo que consideram como o centro da vitalidade, a confundem com o fluido ou princípio vital. Não obstante, pode-se dizer que a sede da alma se encontra mais particularmente nos órgãos que servem para as manifestações

intelectuais e morais.

III— Materialismo

147.Por que os anatomistas, os fisiologistas e em geral os que se aprofundam nas Ciências naturais são freqüentemente levados ao materialismo?

— O fisiologista refere tudo ao que vê. Orgulho dos homens, que tudo crêem saber, não admitindo que alguma coisa possa ultrapassar o seu entendimento. Sua própria Ciência os torna presunçosos. Pensam que a Natureza nada lhes pode ocultar.

148.Não é estranho que o materialismo seja uma conseqüência de estudos que deveriam, ao contrário, mostrar ao homem a superioridade da inteligência que governa o mundo? Deve-se concluir que esses estudos são perigosos?

— Não é verdade que o materialismo seja uma conseqüência desses estudos. É o homem que deles tira uma falsa conseqüência, pois ele pode abusar de tudo, mesmo das melhores coisas. O nada, aliás, os apavora mais do que eles se permitem aparentar, e os espíritos fortes são quase sempre mais fanfarrões do que valentes. A maior parte deles são materialistas porque não dispõem de nada para preencher o vazio. Diante desse abismo que se abre ante eles, mostrai-lhes uma tábua de salvação, e a ela se agarrarão ansiosamente.

Por uma aberração da inteligência há pessoas que não vêem no seres orgânicos nada mais que a ação da matéria, e a esta atribuem todos os nossos atos. Não vêem no corpo humano senão a máquina elétrica; estudaram o mecanismo da vida e no funcionamento dos órgãos; viram-nos extinguir-semuitas vezes pela ruptura de um fio e nada mais perceberam além desse fio; procuraram descobrir o que restava e como não encontraram mais do que a matéria inerte, não viram a alma escapar-se e nem puderam pegá-la,concluíram que tudo estava nas propriedades da matéria e que, portanto, após a morte o pensamento se reduz ao nada. Triste conseqüência, se assim fosse porque então o bem e o mal não teriam sentido, o homem estaria certo ao não pensar senão em si mesmo e ao colocar acima de tudo a satisfação dos prazeres materiais; os laços sociais estariam rompidos e os mais santos afetos destruídos para sempre. Felizmente, essas idéias estão longe de ser generalizadas; pode-se mesmo dizer que estão muito circunscritas, não constituindo mais do que opiniões individuais, porque em parte alguma foram erigidas em doutrina. Uma sociedade fundada sobre essas bases traria em si mesma os germes da dissolução, e os seus membros se devorarem entre si como animais ferozes.

O homem tem instintivamente a convicção de que tudo não se acaba, para ele, com a vida; tem horror ao nada; é em vão que se obstina contra a idéia da

vida futura, e quando chega o momento supremo, são poucos os que não perguntam o que deles vai ser, porque a idéia de deixar a vida para sempre tem qualquer coisa de pungente. Quem poderá, com efeito, encarar com indiferença uma separação absoluta e eterna de tudo o que ama? Quem poderia ver, sem terror, abrir-se à sua frente o imenso abismo do nada, pronto a tragar para sempre todas as nossas faculdades, todas as nossas esperanças, e ao mesmo tempo dizer: Qual! Depois de mim, nada, nada mais que o nada; tudo se acaba sem apelo; mais alguns dias e a minha lembrança se apagará da memória dos que sobrevivem a mim: dentro em breve nenhum traço haverá de minha passagem pela terra; o próprio bem que eu fiz será esquecido pelos ingratos a quem servi; e nada para compensar tudo isso, nenhuma perspectiva, a não ser a do meu corpo devorado pelos vermes!

Este quadro não tem qualquer coisa de horroroso e de glacial? A religião nos ensina que não pode ser assim e a razão o confirma. Mas uma existência futura, vaga e indefinida, nada tem que satisfaça o nosso amor do positivo. E é isso que, para muitos, engendra a dúvida. Está certo que tenhamos uma alma; mas o que é a nossa alma? Tem ela uma forma, alguma aparência? É um ser limitado ou indefinido? Dizem alguns que é um sopro de Deus; outros, que é uma centelha; outros, uma parte do Grande Todo, o princípio da vida e da inteligência. Mas o que é que tudo isso nos oferece? Que nos importa ter uma

alma, se depois da morte ela se confunde com a imensidade, como as gotas d'água no oceano? A perda da nossa individualidade não é, para nós, o mesmo que o nada? Diz-se ainda que ela é imaterial. Mas uma coisa imaterial não pode ter proporções definidas, e para nós equivale ao nada. A religião nos ensina também que seremos felizes ou desgraçados, segundo o bem ou o mal que tenhamos feito. Mas qual é esse bem que nos espera no seio de Deus? É uma beatitude, uma contemplação eterna, sem outra ocupação que a de cantar louvores ao Criador? As chamas do inferno são uma realidade ou apenas um símbolo? A própria Igreja as compreende nesse último sentido; mas, então, que sofrimentos são esses? Onde se encontra o lugar de suplício? Em uma palavra, o que se faz e o que se vê, nesse mundo que nos espera a todos?

Ninguém, costuma-se dizer, voltou de lá para nos dar conta do que existe. Isto, porém, é um erro, e a missão do Espiritismo é precisamente a de nos esclarecer sobre esse futuro, a de nos fazer, até certo ponto, vê-lo e tocá-lo,não mais pelo raciocínio, mas através dos fatos. Graças às comunicações espíritas, isto não é mais uma presunção, uma probabilidade sobre a qual cada um imagina a vontade, que os poetas embelezam com suas ficções ou enfeitam de imagens alegóricas que nos seduzem e a realidade que nos mostra a sua face, porque são os próprios seres de além-túmulo que nos vêm contar a sua situação, dizer-nos o que fazem, permitem-nos assistir, por assim dizer, a

todas as peripécias da sua nova vida e por esse meio nos mostram a sorte inevitável que nos está reservada, segundo os nossos méritos ou os nossos débitos. Há nisso alguma coisa de anti-religioso? Bem pelo contrário pois os incrédulos assim encontram a fé, e os tíbios uma renovação do fervor e da confiança. O Espiritismo é o mais poderoso auxiliar da Religião. E se assim acontece é porque Deus o permite, e o permite para reanimar as nossas esperanças vacilantes e nos conduzir ao caminho do bem, pelas perspectivas do futuro.

Capítulo III

Retorno da Vida Corpórea à Vida Espiritual

I — A Alma Após a Morte

149. Em que se transforma a alma no instante da morte?

Volta a ser Espírito, ou seja, retorna ao mundo dos Espíritos, que ela havia deixado temporariamente.

150. A alma conserva a sua individualidade após a morte?

Sim, não a perde jamais. O que seria ela, se não a conservasse?

150-a. Como a alma constata a sua individualidade, se não tem mais o corpo

material?

Tem um fluido que lhe é próprio, que tira da atmosfera do seu planeta e que representa a aparência da sua última encarnação: seu perispírito.

150-b. A alma não leva nada deste mundo?

Nada mais que a lembrança e o desejo de ir para um mundo melhor. Essa lembrança é cheia de doçura ou de amargor, segundo o emprego que tenha dado a vida. Quanto mais pura ela for, mais compreenderá a futilidade daquilo que deixou na Terra.

151. Que pensar da opinião de que a alma, após a morte, retorna ao todo universal?

O conjunto dos Espíritos não constitui um todo? Quando estás numa assembléia, fazes parte integrante da mesma, e não obstante conservas a tua individualidade.

152. Que prova podemos ter da individualidade da alma após a morte?

Não tendes esta prova pelas comunicações que obtendes? Se não estiverdes cegos, vereis; e se não estiverdes surdos, ouvireis; pois freqüentemente uma voz vos fala e vos revela a existência de um ser que está ao vosso redor.

Os que pensam que a alma, com a morte, volta ao todo universal, estarão errados, se por isso entendem que ela perde a sua individualidade como uma gota d'água que caisse no oceano. Estarão certos, entretanto, se entenderem

pelo todo universal o conjunto dos seres incorpóreos de que cada alma ou Espírito é um elemento.

Se as almas se confundissem no todo, não teriam senão as qualidades do conjunto, e nada as distinguiria entre si; não teriam inteligência nem qualidades próprias. Entretanto, em todas as comunicações elas revelam a consciência do eu e uma vontade distinta. A diversidade infinita que apresentam, sob todos os aspectos, é a conseqüência da sua individualização. Se não houvesse, após a morte, senão o que se chama o Grande Todo, absorvendo todas as individualidades, esse todo seria homogêneo e então as comunicações recebidas do mundo invisível seriam todas idênticas. Desde que encontramos seres bons e maus, sábios e ignorantes, felizes e desgraçados, desde que há de todos os caracteres: alegres e tristes, levianos e sérios, etc. é evidente que se trata de seres distintos.

A individualização ainda se evidência quando estes seres provam a sua identidade através de sinais incontestáveis, de detalhes pessoais relativos à vida terrena, e que podem ser constatados; ela não pode ser posta em dúvida quando eles se manifestam por meio das aparições. A individualidade da alma foi teoricamente ensinada como um artigo de fé, mas o Espiritismo a torna patente, e de certa maneira, material.

153. Em que sentido se deve entender a vida eterna?

É a vida do Espírito que é eterna: a do corpo é transitória, passageira. Quando o corpo morre, a alma retoma a vida eterna.

153-a. Não seria mais exato chamar vida eterna a dos Espíritos puros, que tendo atingido o grau de perfeição, não tem mais provas a sofrer?

Essa é a felicidade eterna. Mas tudo isto é uma questão de palavras: chamai as coisas como quiserdes, desde que vos entendais.

II— Separação da Alma e do Corpo

l54. A separação da alma e do corpo é dolorosa?

Não; o corpo, freqüentemente, sofre mais durante a vida que no momento da morte; neste, a alma nada sente. Os sofrimentos que às vezes se provam no momento da morte são um prazer para o Espírito, que vê chegar o fim do seu exílio.

Na morte natural, que se verifica pelo esgotamento da vitalidade orgânica, em conseqüência da idade, o homem deixa a vida sem o perceber: é uma lâmpada que se apaga por falta de energia.

155. Como se opera a separação da alma e do corpo?

Desligando-se os liames que a retinham ela se desprende. 155-a. A separação se verifica instantaneamente, numa transição brusca? Há uma linha divisória bem marcada entre a vida e a morte?

— Não; a alma se desprende gradualmente e não escapa como um pássaro cativo que fosse libertado. Os dois estados se tocam e se confundem, de maneira que o Espírito se desprende pouco a pouco dos seus liames; estes se soltam e não se rompem.

Durante a vida o Espírito está ligado ao corpo pelo seu envoltório material ou perispírito; a morte é apenas a destruição do corpo, e não desse envoltório, que se separa do corpo quando cessa a vida orgânica. A observação prova que no instante da morte o desprendimento do Espírito não se completa subitamente; ele se opera gradualmente, com lentidão variável, segundo os indivíduos. Para uns é bastante rápido e pode dizer-se que o momento da morte é também o da libertação, que se verifica logo após. Noutros, porém, sobretudo naqueles cuja vida foi toda material e sensual, o desprendimento é muito mais demorado, e dura às vezes alguns dias, semanas e até mesmo meses, o que não implica a existência no corpo de nenhuma vitalidade, nem a possibilidade de retorno à vida, mas a simples persistência de uma afinidade entre o corpo e o Espírito, afinidade que está sempre na razão da preponderância que, durante a vida, o Espírito deu à matéria. É lógico admitir que quanto mais o Espírito estiver identificado com a matéria, mais sofrerá para separar-se dela. Por outro lado, a atividade intelectual e moral e a elevação dos pensamentos operam um começo de desprendimento, mesmo

durante a vida corpórea, e quando a morte chega é quase instantânea. Este é o resultado dos estudos efetuados sobre todos os indivíduos observados no momento da morte. Essas observações provam ainda que a afinidade que persiste, em alguns indivíduos, entre a alma e o corpo, é às vezes muito penosa, porque o Espírito pode experimentar o horror da decomposição. Este caso é excepcional e peculiar a certos gêneros de morte, verificando-se em alguns suicídios.

156.A separação definitiva entre a alma e o corpo pode verificar-se antes da cessação completa da vida orgânica?

— Na agonia, às vezes, a alma já deixou o corpo, que nada mais tem do que a vida orgânica. O homem não tem mais consciência de si mesmo, e não obstante ainda lhe resta um sopro de vida. O corpo é uma máquina que o coração põe em movimento. Ele se mantém enquanto o coração lhe fizer circular o sangue pelas veias e para isso não necessita da alma.

157.No momento da morte a alma tem às vezes uma aspiração ou êxtase, que lhe faz entrever o mundo para o qual regressa?

— A alma sente, muitas vezes, que se desatam os liames que a prendem ao corpo, e então emprega todos os seus esforços para se desligar de uma vez. Já parcialmente separado da matéria, vê o futuro desenrolar-se ante ela e goza por antecipação do estado de Espírito.

158.O exemplo da larva que primeiro se arrasta pela terra, depois se fecha na crisálida, numa morte aparente, para renascer numa existência brilhante, pode dar-nos uma idéia da vida terrena, seguida do túmulo e por fim de uma nova existência?

— Uma pálida idéia. A imagem é boa, mas é necessário não tomá-la ao pé da letra, como sempre fazeis.

159.Que sensação experimenta a alma no momento em que se reconhece no mundo dos Espíritos?

— Depende. Se fizeste o mal com o desejo de fazê-lo, estarás, no primeiro momento, envergonhado de o haver feito. Para o justo, é muito diferente: ele se sente aliviado de um grande peso, porque não receia nenhum olhar perquiridor.

160.O Espírito encontra imediatamente aqueles que conheceu na Terra e que morreram antes dele?

— Sim, segundo a afeição que tenham mantido reciprocamente. Quase sempre eles o vêm receber na sua volta ao mundo dos Espíritos, e o ajudam alibertar-se das faixas da matéria. Vê também a muitos que havia perdido de vista durante a passagem pela Terra; vê os que estão na erraticidade, bem como os que se encontram encarnados, que vai visitar.

161.Na morte violenta ou acidental, quando os órgãos ainda não se

debilitaram pela idade ou pelas doenças, a separação da alma e a cessação da

vida se verificam simultaneamente?

Geralmente é assim: mas, em todos os casos, o instante que os separa é muito curto.

162. Após a decapitação, por exemplo, o homem conserva por alguns instantes a consciência de si mesmo?

Freqüentemente ele a conserva por alguns minutos, até que a vida orgânica se extingua de uma vez. Mas muitas vezes a preocupação da morte lhe faz perder a consciência antes do instante do suplício.

Não se trata, aqui, senão da consciência que o supliciado pode ter do si mesmo como homem, por meio do corpo, e não como Espírito. Se não perdeu essa consciência antes do suplício, ele pode conservá-lo por alguns instantes, mas de duração muito curta, e a perde necessariamente com a vida orgânica do cérebro. Isso não quer dizer que o perispírito esteja inteiramente desligado do corpo, mas pelo contrário, pois em todos os casos de morte violenta, quando esta não resulta da extinção gradual das forças vitais, os liames que unem o corpo ao perispírito são mais tenazes, e o desprendimento completo é mais lento.

III— Perturbação Espírita

163.Deixando o corpo, a alma tem imediata consciência de si mesma?

Consciência imediata não é o termo: ela fica perturbada por algum tempo.

l64. Todos os Espíritos experimentam, no mesmo grau e pelo mesmo tempo, a perturbação que se segue a separação da alma e do corpo?

Não, pois isso depende da sua elevação. Aquele que já está depurado se reconhece quase imediatamente, porque se desprendeu da matéria durante a vida corpórea, enquanto o homem carnal, cuja consciência não é pura, conserva por muito mais tempo a impressão da matéria.

l65. O conhecimento do Espiritismo exerce alguma influência sobre a duração maior ou menor da perturbação?

Uma grande influência, pois o Espírito compreende antecipadamente a sua situação: mas a prática do bem e a pureza de consciência são o que exerce maior influência.

No momento da morte, tudo, a princípio, é confuso; a alma necessita de algum tempo para se reconhecer; sente-se como atordoada, no mesmo estado de um homem que saísse de um sono profundo e procurasse compreender a situação. A lucidez das idéias e a memória do passado voltam, a medida que se extingue a influência da matéria e que se dissipa essa espécie de nevoeiro

que lhe turva os pensamentos.

A duração da perturbação de após morte é muito variável: pode ser de algumas horas, como de muitos meses e mesmo de muitos anos. Aqueles em que é menos longa, são os que se identificaram durante a vida com o seu estado futuro, porque então compreendem imediatamente a sua posição.

Essa perturbação apresenta circunstâncias particulares, segundo o caráter dos indivíduos e sobretudo de acordo com o gênero de morte. Nas mortes violentas, por suicídio, suplício, acidente, apoplexia, ferimentos, etc., o Espírito é surpreendido, espanta-se, não acredita que esteja morto e sustenta teimosamente que não morreu. Não obstante, vê o seu corpo, sabe que é dele, mas não compreende que esteja separado. Procura as pessoas de sua afeição,dirige-se a elas e não entende por que não o ouvem. Esta ilusão se mantém até o completo desprendimento do Espírito, e somente então ele reconhece o seu estado e compreende que não faz mais parte do mundo dos vivos.

Esse fenômeno é facilmente explicável. Surpreendido pela morte imprevista, o Espírito fica aturdido com a brusca mudança que nele se opera. Para ele, a morte é ainda sinônimo de destruição, de aniquilamento; ora, como continua a pensar, como ainda vê e escuta, não se considera morto. E o que aumenta a sua ilusão é o fato de se ver num corpo semelhante ao que deixou na Terra, cuja natureza etérea ainda não teve tempo de verificar. Ele o julga sólido e

compacto como o primeiro, e quando se chama a sua atenção para esse ponto, admira-se de não poder apalpá-lo.

Assemelha-se este fenômeno ao dos sonâmbulos inexperientes, que não crêem estar dormindo. Para eles, o sono é sinônimo de suspensão das faculdades; ora, como pensam livremente e podem ver, não acham que estejam dormindo. Alguns Espíritos apresentam esta particularidade, embora a morte não os tenha colhido inopinadamente; mas ela é sempre mais generalizada entre os que, apesar de doentes, não pensavam em morrer.Vê-se então o espetáculo singular de um Espírito que assiste os próprios funerais como os de um estranho, deles falando como de uma coisa que não lhe dissesse respeito, até o momento de compreender a verdade.

A perturbação que se segue à morte nada tem de penosa para o homem de bem: é calma e em tudo semelhante à que acompanha um despertar tranqüilo. Para aquele cuja consciência não está pura é cheia de ansiedades e angústias.

Nos casos de morte coletiva observou-se que todos os que perecem ao mesmo tempo nem sempre se revêem imediatamente. Na perturbação que se segue à morte cada um vai para o seu lado ou somente se preocupa com aqueles que lhe interessam.

Capítulo IV

Pluralidade das Existências

I — Da Reencarnação

166.A alma que não atingiu a perfeição durante a vida corpórea, como acaba de depurar-se?

— Submetendo-se a prova de uma nova existência.

166-a. Como realiza ela essa nova existência? Pela sua transformação como Espírito?

— Ao se depurar, a alma sofre sem dúvida uma transformação, mas para isso necessita da prova da vida corpórea.

166-b. A alma tem muitas existências corpóreas?

— Sim. todos nós temos muitas existências. Os que dizem o contrário querem manter-vos na ignorância em que eles mesmos se encontram esse é o seu desejo.

166-c. Parece resultar, desse princípio, que após ter deixado o corpo a alma toma outro. Dito de outra maneira, que ela se reencarna em novo corpo. É assim que se deve entender?

— É evidente.

167.Qual é a finalidade da reencarnação?

— Expiação, melhoramento progressivo da humanidade. Sem o que, onde

estaria a justiça?

168. O número das existências corpóreas é limitado, ou o Espírito se

reencarna perpetuamente?

A cada nova existência o Espírito dá um passo na senda do progresso quando se despojou de todas as suas impurezas, não precisa mais das provas da vida corpórea.

169. O número das encarnações é o mesmo para todos os Espíritos?

Não. Aquele que avança rapidamen1e poupa-se das provas. Não obstante, as encarnações sucessivas são sempre muito numerosas, porque o progresso é quase infinito.

170. Em que se transforma o Espírito, depois da sua última encarnação?

Espírito bem-aventurado, um Espírito puro.

II — Justiça da Reencarnação

171. Sobre o que se funda o dogma da reencarnação?

— Sobre a justiça de Deus e a revelação, pois não nos cansa-mos de repetir: um bom pai deixa sempre aos filhos uma porta aberta ao arrependimento. A razão nos diz que seria injusto privar para sempre da felicidade eterna aqueles cujo melhoramento não dependeu deles mesmos? Todos os homens não são filhos de Deus? Somente entre os homens egoístas é que se encontram a iniqüidade, o ódio im-placável e os castigos sem perdão.

Todos os Espíritos tendem a perfeição, e Deus lhes proporciona os meios de

consegui-la com as provas da vida corpórea. Mas, na sua justiça, permite-lherealizar, em novas existências, aquilo que não puderam fazer ou acabar numa primeira prova.

Não estaria de acordo com a eqüidade, nem segundo a bondade de Deus, castigar para sempre aqueles que encontraram obstáculos ao seu melhoramento, independentemente de sua vontade, no próprio meio em que foram colocados. Se a sorte do homem fosse irrevogavelmente fixada após a sua morte, Deus não teria pesado as ações de todos na mesma balança e não os teria tratado com imparcialidade.

A doutrina da reencarnação, que consiste em admitir para o homem muitas existências sucessivas, é a única que corresponde a idéia da justiça de Deus com respeito aos homens de condição moral inferior; a única que pode explicar o nosso futuro e fundamentar as nossas esperanças, pois oferece-noso meio de resgatarmos os nossos erros através de novas provas. A razão assim nos diz, e é o que os Espíritos nos ensinam.

O homem que tem a consciência da sua inferioridade encontra na doutrina da reencarnação uma consoladora esperança. Se crê na justiça de Deus, não pode esperar que, por toda a eternidade, haja de ser igual aos que agiram melhor do que ele. O pensamento de que essa inferioridade não o deserdará para sempre do bem supremo, e do que ele poderá conquistá-lo através de

novos esforços, o ampara e lhe reanima a coragem. Qual é aquele que no fim da sua carreira, não lamenta ter adquirido demasiado tarde uma experiência que já não pode aproveitar? Pois esta experiência tardia não estará perdida: ele a aproveitará numa nova existência.

III— Encarnação nos Diferentes Mundos

172.Nossas diferentes existências corpóreas se passam todas na Terra?

— Não, mas nos diferentes mundos. As deste globo não são as primeiras

nem as últimas, porém as mais materiais e distantes da perfeição.

173.A cada nova existência corpórea a alma passa de um mundo a outro, ou pode viver muitas vidas num mesmo globo?

— Pode reviver muitas vezes num mesmo globo, não estiver bastante adiantada para passar a um mundo superior.

173-a. Podemos então reaparecer muitas vezes na Terra?

— Certamente.

173-b. Podemos voltar a ela, depois de ter vivido em outros mundos?

— Seguramente; podeis ter já vivido noutros mundos, bem como na Terra.

174.É uma necessidade reviver na Terra?

— Não. Mas se não progredistes, podeis ir para outro mundo que não seja

melhor, e que pode mesmo ser pior.

175. Há vantagem em voltar a viver na Terra?

Nenhuma vantagem particular, a não ser que se venha em missão, pois então se progride, como em qualquer outro mundo.

175-a. Não seria melhor continuar como Espírito? — Não, não! Ficar-se-iaestacionário, e o que se quer é avançar para Deus.

176. Os Espíritos, depois de se haverem encarnado em outros mundos, podem encarnar-se neste, sem jamais terem passado por aqui?

Sim, como vós em outros globos. Todos os mundos são solidários: o que não se faz num, pode fazer-se noutro.

176-a. Assim, existem homens que estão na Terra pela primeira vez?

Há muitos, e em diversos graus.

176-b. Pode-se reconhecer, por um sinal qualquer, quando um Espírito se encontra pela primeira vez na Terra?

— Isso não teria nenhuma utilidade.

177. Para chegar à perfeição e a felicidade suprema, que é o objetivo final de todos os homens, o Espírito deve passar pela série de todos os mundos que existem no Universo?

— Não, porque há muitos mundos que se encontram no mesmo grau, e onde os Espíritos nada aprenderiam de novo.

177-a. Como então explicar a pluralidade de suas existências num mesmo

globo?

Eles podem ali se encontrar, de cada vez, em posições bastante diferentes, que serão outras tantas ocasiões de adquirir experiência.

178. Os Espíritos podem renascer corporalmente num mundo relativamente inferior aquele em que já vivemos?

Sim, quando têm uma missão a cumprir, para ajudar o progresso; e então aceitam com alegria as tribulações dessa existência, porque lhes fornecem um meio de se adiantarem.

178-a. Isso não pode também acontecer como expiação, e Deus não pode enviar os Espíritos rebeldes a mundos inferiores?

Os Espíritos podem permanecer estacionários, mas nunca retrogradam; sua punição pois, é a de não avançar e ter de recomeçar as existências mal empregadas, no meio que convêm a sua natureza.

178-b. Quais são os que devem recomeçar a mesma existência?

Os que faliram em sua missão ou em suas provas.

179.Os seres que habitam cada mundo estão todos no mesmo grau de perfeição?

— Não. É como na Terra: há os que estão mais ou menos adiantados.

180.Ao passar deste mundo para outro, o Espírito conserva a inteligência que tinha aqui?

— Sem dúvida, pois a inteligência nunca se perde. Mas ele pode não dispor dos mesmos meios para manifestá-la. Isso depende da sua superioridade e do estado do corpo que adquirir. (Ver: Influência do organismo, item 367).

181.Os seres que habitam os diferentes mundos têm corpos semelhantes aos nossos?

— Sem dúvida que têm corpos, porque é necessário que o Espírito se revista de matéria para agir sobre ela: mas esse envoltório é mais ou menos material, segundo o grau de pureza a que chegaram os Espíritos, e é isso que determina as diferenças entre os mundos que temos de percorrer. Porque há muitas moradas na casa de nosso Pai, e muitos grãos, portanto. Alguns o sabem, e têm consciência disso aqui na Terra, mas outros nada sabem.

182.Podemos conhecer exatamente o estado físico e moral dos diferentes mundos?

— Nós, Espíritos, não podemos responder senão na medida do vosso grau de evolução. Quer dizer que não devemos revelar estas coisas a todos, porque nem todos estão em condições de compreendê-las, e elas os perturbariam.

À medida que o Espírito se purifica o corpo que o reveste aproxima-seigualmente da natureza espírita. A matéria se torna menos densa, ele já não se arrasta penosamente pelo solo, suas necessidades físicas são menos grosseiras, os seres vivos não têm mais necessidade de se destruirem para se alimentar. O

Espírito é mais livre, e tem, para as coisas distanciadas, percepções que desconhecemos: vê pelos olhos do corpo aquilo que só vemos pelo pensamento.

A purificação dos Espíritos reflete-se na perfeição moral dos seres em que estão encarnados. As paixões animais se enfraquecem, o egoísmo da lugar ao sentimento fraternal. É assim que, nos mundos superiores ao nosso, as guerras são desconhecidas, os ódios e as discórdias não têm motivo, porque ninguém pensa em prejudicar o seu semelhante. A intuição do futuro, a segurança que lhes dá uma cons-ciência isenta de remorsos fazem que a morte não lhes cause nenhuma apreensão: eles a recebem sem medo e como uma simples transformação.

A duração da vida, nos diferentes mundos, parece proporcional ao seu grau de superioridade física e moral, e isso é perfeitamente racional. Quanto menos material é o corpo, menos sujeito está às vicissitudes que o desorganizam; quanto mais puro é o Espírito, menos sujeito as paixões que o enfraquecem. Este é ainda um auxílio da Providência, que deseja assim abreviar os sofrimentos.

183. Passando de um mundo para outro, o Espírito passa por nova infância?

— A infância é por toda parte uma transição necessária, mas não é sempre tão ingênua como entre vós.

184. 0 Espírito pode escolher o novo mundo em que vai habitar?

Nem sempre; mas pode pedir e obter o que deseja, se o merecer. Porque os mundos só são acessíveis aos Espíritos de acordo com o grau de sua elevação.

184-a. Se o Espírito nada pede, o que determina o mundo onde iráreencarnar-se?

O seu grau de elevação.

185.0 estado físico e moral dos seres vivos é perpetuamente o mesmo, em cada globo?

— Não; os mundos também estão submetidos à lei do progresso. Todos começaram como o vosso, por um estado inferior, e a Terra mesma sofrerá uma transformação semelhante, tornando-se um paraíso terrestre, quando os homens se fizerem bons.

Assim, as raças que atualmente povoam a Terra desaparecerão um dia e serão substituídas por seres mais e mais perfeitos. Essas raças transformadas sucederão às atuais como esta sucedeu a outras que eram mais grosseiras.

186.Há mundos em que o Espírito, cessando de viver num corpo material, só tem por envoltório o perispírito?

— Sim, e esse envoltório torna-se de tal maneira etéreo que para vós é como se não existisse eis então o estado dos Espíritos puros.

186-a. Parece resultar daí que não existe uma demarcação precisa entre o

estado das últimas encarnações e o do Espírito puro?

Essa demarcação não existe. A diferença se dilui pouco a pouco e se torna insensível, como a noite se dilui ante as primeiras claridades do dia.

187. A substância do perispírito é a mesma em todos os globos?

Não; é mais eterizada em uns do que em outros. Ao passar de um para outro mundo, o Espírito se reveste da matéria própria de cada um, com mais rapidez que o relâmpago.

188. Os Espíritos puros habitam mundos especiais, ou encontram-se no espaço universal, sem estar ligados especialmente a um globo?

Os Espíritos puros habitam determinados mundos, mas não estão confinados a eles como os homens a Terra; eles podem, melhor que os outros, estar em toda parte.

IV — Transmigração Progressiva

189. Desde o princípio da sua formação o Espírito goza da plenitude de suas faculdades?

— Não; porque o Espírito, como o homem, tem também a sua infância. Em sua origem, os Espíritos não têm mais do que uma existência instintiva, possuindo apenas a consciência de si mesmos e de seus atos. Só pouco a

pouco a inteligência se desenvolve.

l90. Qual é o estado da alma em sua primeira encarnação?

O estado da infância na vida corpórea. Sua inteligência apenas desabrocha: ela ensaia para a vida.

191. As almas dos nossos selvagens estão no estado de infância?

Infância relativa, pois são almas já desenvolvidas, dotadas de paixões. 191-a. As paixões, então, indicam desenvolvimento?

Desenvolvimento, sim, mas não perfeição. São um sinal de atividade e de consciência própria, enquanto na alma primitiva a inteligência e a vida estão em estado de germes.

A vida dos Espíritos, no seu conjunto, segue as mesmas fases da vida corpórea; passa gradativamente do estado de embrião ao de infância, para chegar, por uma sucessão de períodos, ao estado de adulto, que é o da perfeição, com a diferença de que nesta não existe o declínio nem a decrepitude da vida corpórea; que a sua vida, que teve um começo, não terá fim; que lhe é necessário, do nosso ponto de vista, um tempo imenso para passar da infância espírita a um desenvolvimento completo, e o seu progresso realizar-se, não sobre uma esfera apenas, mas através de diversos mundos. A vida do Espírito constitui-se, assim, de uma série de existências corporais, sendo cada qual uma oportunidade de progresso, como cada existência

corporal se compõe de uma série de dias, nos quais o homem adquire maior experiência e instrução. Mas, da mesma maneira que na vida humana há dias infrutíferos, na do Espírito há existências corpóreas sem proveito, porque ele não soube conduzi-las.

192. Por uma conduta perfeita podemos vencer já nesta vida todos os graus e tornar-nos Espírito puro, sem passar pelos intermediários?

Não, pois o que o homem julga perfeito está longe da perfeição: há qualidades que ele desconhece e nem pode compreender. Pode ser tão perfeito quanto a sua natureza eterna o permita, mas esta não é a perfeição absoluta. Da mesma maneira que uma criança, por mais precoce que seja, deve passar pela juventude, antes de chegar à maturidade, e um doente deve passar pela convalescença, antes de recuperar a saúde. Além disso, o Espírito deve adiantar-se em conhecimento e moralidade, e se ele não progrediu senão num senti-do, é necessário que o faça no outro, para chegar ao alto da escala. Entretanto, quanto mais o homem se adianta na vida presente, menos longas e penosas serão as provas seguintes.

192-a. O homem pode assegurar-se nesta vida uma existência futura menos cheia de amarguras?

Sim, sem dúvida, pode abreviar o caminho e reduzir as dificuldades. Somente o desleixado fica sempre no mesmo ponto.

193.Pode um homem descer em suas novas existências, abaixo do que já havia atingido?

— Em sua posição social, sim como Espírito, não.

194.A alma de um homem de bem pode animar, noutra encarnação, o corpo de um celerado?

— Não, pois ela não pode degenerar.

194-a. A alma de um homem perverso pode transformar-se na de um homem de bem?

— Sim, se ela se arrepender, e então será uma recompensa.

A marcha dos Espíritos é progressiva e jamais retrógrada. Eles se elevam gradualmente na hierarquia, e não descem do plano atingido. Nas suas diferentes existências corporais podem descer como homens, mas não como Espíritos. Assim, a alma de um poderoso da Terra pode mais tarde animar um humilde artesão, e vice-versa. Porque as posições entre os homens são freqüentemente determinadas pelo inverso da elevação dos sentimentos morais. Herodes era rei, e Jesus carpinteiro.

195.A possibilidade de melhorar numa outra existência não pode levar certas pessoas a permanecerem no mau caminho, com o pensamento de que poderão corrigir-se mais tarde?

— Aquele que assim pensa não acredita em nada, e a idéia de um castigo

eterno não o coibiria mais, porque a sua razão a repele e essa idéia conduz a incredulidade. Se apenas se houvessem empregado os meios racionais para orientar os homens, não existiriam tantos céticos. Um Espírito imperfeito pode pensar como dizes, em sua vida corporal, mas uma vez liberto da matéria pensará de outra maneira, porque logo perceberá que calculou mal, e é então que trará, numa nova existência, um sentimento diverso. É assim que se efetiva o progresso. E eis porque tendes na Terra uns homens mais adiantados que outros. Uns já têm uma experiência que os outros ainda nãotive-ram, mas que adquirirão pouco a pouco. Deles depende impulsionar o próprio progresso ou retardá-lo indefinidamente.

O homem que se encontra numa posição má deseja mudá-la o mais rapidamente possível. Aquele que se persuadiu de que as tribulações desta vida são a conseqüência de suas próprias imperfeições procuraráassegurar-se uma nova existência menos penosa. E este pensamento o desviará mais da senda do mal, que o pensamento do fogo eterno, no qual não acredita.

196. Só podendo os Espíritos melhorar-se pelo sofrimento e as tribulações da existência corporal, segue-se que a vida material seria uma espécie de crivo ou de depurador, pelo qual devem passar os seres do mundo espírita, para chegarem a perfeição?

— Sim, é bem isso. Eles melhoram através dessas provas, evitando o mal e

praticando o bem. Mas somente depois de muitas encarnações ou depurações sucessivas é que atingem, num tempo mais ou menos longo, e segundo os seus esforços, o alvo para o qual se dirigem.

196-a. É o corpo que influi sobre o Espírito, para o melhorar, ou o Espírito que influi sobre o corpo?

— Teu Espírito é tudo; teu corpo é uma veste que apodrece; eis tudo. Temos, no suco da vinha, uma imagem material dos diferentes graus de

depuração da alma. Ele contém o licor chamado espírito ou álcool, mas enfraquecido por grande quantidade de matérias estranhas que lhe alteram a essência, e não chega à pureza absoluta senão de-pois de muitas destilações em cada uma das quais se despoja de alguma impureza. O alambique é o corpo no qual ele deve entrar para se depurar; as matérias estranhas são como o perispírito, que se purifica a si mesmo, à medida que o Espírito se aproxima da perfeição.

V — Sorte das Crianças Após a Morte

l97. O Espírito de uma criança morta em tenra idade é tão adiantado como o de um adulto?

— Às vezes bem mais, porque pode ter vivido muito mais e possuir maiores experiências, sobretudo se progrediu.

197-a. O Espírito de uma criança pode então ser mais adiantado que o do seu pai?

— Isso é bastante freqüente; não o vêdes tantas vezes na Terra?

198.O Espírito da criança que morre em tenra idade, não tendo podido fazer o mal, pertence aos graus superiores?

— Se não fez o mal, também não fez o bem, e Deus não o afasta das provas que deve sofrer. Se é puro, não é pelo fato de ter sido criança, mas porque já se havia adiantado.

199.Por que a vida se interrompe com freqüência na infância?

A duração da vida da criança pode ser, para o seu Espírito, o complemento de uma vida interrompida antes do termo devido, e sua morte é freqüentemente uma prova ou uma expiação para os pais.

199-a. Em que se transforma o Espírito de uma criança morta em tenra idade.

Recomeça uma nova existência.

Se o homem só tivesse uma existência, e se após essa a sua sorte fosse fixada para a eternidade, qual seria o merecimento da metade da espécie humana, que morre em tenra idade, para gozar sem esforço da felicidade eterna? E com que direito seria ela libertada das condições, quase sempre duras, impostas a outra metade? Uma tal ordem de coisas não poderia estar de

acordo com a justiça de Deus. Pela reencarnação faz-se a igualdade para todos: o futuro pertence a todos, sem exceção e sem favoritismo, e os que chegarem por último só poderão queixar-se de si mesmos. O homem deve ter o mérito das suas ações, como tem a sua responsabilidade.

Não é, aliás, razoável, considerar-se a infância como um estado de inocência. Não se vêem crianças dotados dos piores instintos, numa idade em que a educação ainda não pode exercer a sua influência? Não se vêem algumas que parecem trazer inatos a astúcia, a falsidade, a perfídia, o instinto mesmo do roubo e do assassínio, e não obstante os bons exemplos do meio? A lei civil absolve os seus erros, por considerar que elas agem mais instintivamentc do que por deliberado propósito. Mas de onde podem provir esses instintos, tão diferentes entre as crianças da mesma idade, educadas nas mesmas condições e submetidas as mesmas influências? De onde vem essa perversidade precoce, a não ser da inferioridade do Espírito, pois que a educação nada tem com ela? Aqueles que são viciosos, é que progrediram menos e têm então de sofrer as conseqüências, não dos seus atos da infância, mas das suas existências anteriores. É assim que a lei se mostra a mesma para todos e a justiça de Deus a todos abrange.

VI — Sexo nos Espíritos

200. Os Espíritos tem sexo?

Não como o entendeis, porque os sexos dependem da constituição orgânica. Há entre eles amor e simpatia, mas baseados na afinidade de sentimentos.

201. O Espírito que animou o corpo de um homem pode animar o de uma mulher, numa nova existência, e vice-versa?

Sim, pois são os mesmos Espíritos que animam os homens e as mulheres. 202. Quando somos Espíritos, preferimos encarar num corpo de homem ou

de mulher?

— Isso pouco importa ao Espírito; depende das provas que ele tiver de sofrer.

Os Espíritos encarnam-se homens ou mulheres, porque não tem sexo. Como devem progredir em tudo, cada sexo, como cada posição social,oferece-lhes provas e deveres especiais e novas ocasiões de adquirir experiências. Aquele que fosse sempre homem, só saberia o que sabem os homens.

VII — Parentesco, Filiação

203. Os pais transmitem aos filhos uma porção de sua alma, ou nada mais fazem do que lhes dar a vida animal, a que uma nova alma vem juntar depois a vida moral?

Somente a vida animal, porque a aima é indivisível. Um pai estúpido pode ter filhos inteligentes, e vice-versa.

204. Desde que tivemos muitas existências, o parentesco re-monta as anteriores?

Não poderia ser de outra maneira. A sucessão das existências corpóreas estabelece entre os Espíritos liames que remontam as existências anteriores; disso decorrem freqüentemente as causas de simpatia entre vós e alguns Espíritos que vos parecem estranhos.

205. Segundo certas pessoas, a doutrina da reencarnação parece destruir os laços de família, fazendo-os remontar as existências anteriores.

Ela os amplia, em vez de destruí-los. Baseando-se o parentesco em afeições anteriores, os laços que unem os membros de uma mesma família são menos precários. A reencarnação amplia os deveres da fraternidade, pois no vosso vizinho ou no vosso criado pode encontrar-se um Espírito que foi do vosso sangue.

205-a. Ela diminui, entretanto, a importância que alguns atribuem a filiação, porque se pode ter tido como pai um Espírito que pertencia a uma outra raça, ou que tivesse vivido em condição bem diversa.

É verdade; mas essa importância se baseia no orgulho. O que a maioria honra nos antepassados são os títulos, a classe, a fortuna. Este coraria de haver

tido por avô um sapateiro honesto, e se vangloria de descender de um gentil- homem debochado. Mas digam ou façam o que quiserem, não impedirão que as coisas sejam como são, porque Deus não regulou as leis da Natureza pela nossa vaidade.

206.Desde que não há filiação entre os Espíritos dos descendentes de uma mesma família, o culto dos antepassados seria uma coisa ridícula?

— Seguramente não, porque devemos sentir-nos felizes de pertencer a uma família na qual se encarnam Espíritos elevados. Embora os Espíritos não procedam uns dos outros, não têm menos afeição pelos que estão ligados a eles por laços de família, porque os Espíritos são freqüentemente atraídos a esta ou aquela família por causa de simpatias ou ligações anteriores. Mas acreditai que os Espíritos de vosso antepassados não se sentem absolutamente honrados com o culto que lhes tributais por orgulho. Seu mérito não recai sobre vós senão na medida em que vos esforçais por seguir os seus bons exemplos. Somente assim a vossa lembrança lhes pode ser, não apenas agradável, mas até mesmo útil.

VIII — Semelhanças Físicas e Morais

207.Os pais transmitem aos filhos, quase sempre, semelhança física. Transmitem também semelhança moral?

— Não, porque se trata de almas ou Espíritos diferentes. O corpo procede do

corpo, mas o Espírito não procede do Espírito. Entre os descendentes das raças nada mais existe do que consangüinidade.

207-a. De onde vêm as semelhanças morais que existem às vezes entre os pais e os filhos?

— São Espíritos simpáticos, atraídos pela afinidade de suas inclinações.

208.O Espírito dos pais não exerce influência sobre o do filho, após o nascimento?

— Exerce, e muito, pois como já dissemos, os Espíritos devem concorrer para o progresso recíproco. Pois bem: o Espírito dos pais tem a missão de desenvolver o dos filhos pela educação: isso é para ele uma tarefa? Se nela falhar, será culpado.

209.Por que pais bons e virtuosos têm filhos perversos? Ou seja: por que as boas qualidades dos pais não atraem sempre, por simpatia, bons Espíritos como filhos?

— Um mau Espírito pode pedir bons pais, na esperança de que os seus conselhos o dirijam por uma senda melhor, e muitas vezes Deus o atende.

210.Os pais poderão, pelos seus pensamentos e as suas preces, atrair para o corpo do filho um bom Espírito, em lugar de um Espírito inferior?

— Não. Mas podem melhorar o Espírito da criança a que deram nascimento e que lhes foi confiada. Esse é o seu dever; filhos maus são uma prova para os

pais.

211.De onde vem a semelhança de caráter que existe freqüentemente entre os irmãos, sobretudo entre os gêmeos?

— Espíritos simpáticos, que se aproximam pela similitude de seus sentimentos e que se sentem felizes de estar juntos.

212.Nas crianças cujos corpos nascem ligados, e que têm certos órgãos comuns, há dois Espíritos, ou seja, duas almas?

— Sim, mas a sua semelhança faz que muitas vezes não vos pareçam mais do que uma.

213.Mas se os Espíritos se encarnam nos gêmeos por simpatia, de onde lhes vem a aversão que às vezes se nota entre eles?

— Não é uma regra que os gêmeos tenham de ser Espíritos simpáticos; Espíritos maus podem querer lutar juntos no teatro da vida.

214.Que pensar das histórias de crianças que lutam no ventre da mãe?

Imagem! Para figurar que o seu ódio era muito antigo, fazendo remontar

àfase anterior ao nascimento. Geralmente não percebeis bem as imagens poéticas.

215. De onde vem o caráter distintivo que se observa em cada povo?

Os Espíritos também formam famílias pela similitude de suas tendências, mais ou menos purificadas, segundo a sua elevação. Pois bem: um povo é uma

grande família em que se reúnem Espíritos simpáticos. A tendência a se unirem, que têm os membros dessas famílias, é a origem da semelhança que determina o caráter distintivo de cada povo. Acreditas que Espíritos bons e humanos procurarão um povo duro e grosseiro? Não. Os Espíritos simpatizam com as coletividades, como simpatizam com os indivíduos. Procuram o seu meio.

216.O homem conserva, em suas novas existências, os traços do caráter moral das existências anteriores?

— Sim, isso pode acontecer. Mas ao melhorar-se ele se modifica. Sua posição social também pode não ser a mesma. Se de senhor ele se torna escravo, suas inclinações serão muito diferentes e teríeis dificuldades emreconhecê-lo. O Espírito sendo o mesmo, nas diversas encarnações, suas manifestações podem ter, de uma para outra, certas semelhanças. Estas, entretanto, serão modificadas pelos costumes da nova posição, até que um aperfeiçoamento notável venha a mudar completamente o seu caráter, pois de orgulhoso e mau pode tornar-se humilde e humano, desde que se haja arrependido.

217.Nas suas diferentes encarnações, o homem conserva os traços do caráter físico das existências anteriores.

— O corpo é destruído e o novo corpo não tem nenhuma relação com o

antigo. Entretanto, o Espírito se reflete no corpo. Embora seja este apenas matéria, é modelado pelas qualidades do Espírito, que lhe imprimem um certo caráter, principalmente ao semblante, sendo pois com razão que se apontam os olhos como o espelho da alma, o que quer dizer que o rosto, mais particularmente, reflete a alma. Porque há pessoas excessivamente feias, que no entanto tem alguma coisa que agrada, quando encerram um Espírito bom, sensato, humano, enquanto há belos semblantes que nada te despertam, ou até mesmo provocam a tua repulsa. Poderias supor que só os corpos perfeitos encarnam Espíritos mais perfeitos que eles, quando encontras, todos os dias, homens de bem sob aparências disformes? Sem uma parecença pronunciada, a semelhança dos gostos e das tendências pode dar, portanto, aquilo que se chama um ar de conhecido.

O corpo que reveste a alma numa nova encarnação, não tendo nenhuma relação necessária com o anterior, pois que pode provir de origem muito diversa, seria absurdo supor uma sucessão de existências ligadas por uma semelhança apenas fortuita. Não obstante, a qualidades do espírito modificam quase sempre os órgãos que servem para as suas manifestações, imprimindo no rosto, e mesmo no conjunto das maneiras um cunho distintivo. É assim que, sob o envoltório mais humilde, pode se encontrar a expressão da grandeza e da dignidade, enquanto sob o hábito do grande senhor vêem-se

algumas vezes a da baixeza e da ignomínia. Certas pessoas, saídas da mais ínfímas posições, adquirem sem esforços os hábitos e as maneiras da uma sociedade, parecendo que reencontram o seu elemento, enquanto outras, malgrado seu nascimento e sua educação, estão sempre deslocadas. Como explicar esse fato de outra maneira, senão pelo reflexo daquilo que o Espírito foi?

IX — Idéias Inatas

218. O Espírito encarnado conserva algum traço das percepções que teve e dos conhecimentos que adquiriu nas existências anteriores?

Resta-lhe uma vaga lembrança, que lhe dá o que chamamos idéias inatas. 218-a. A teoria das idéias inatas não é quimérica?

Não, pois os conhecimentos adquiridos em cada existência não se perdem; o Espírito, liberto da matéria, sempre se recorda. Durante a encarnação pode esquecê-los em parte, momentaneamente, mas a intuição que lhe fica ajuda o seu adiantamento. Sem isso, ele sempre teria de recomeçar. A cada nova existência, o Espírito toma como ponto de partida aquele em que se achava na precedente.

218-b. Deve então haver uma grande conexão entre duas existências sucessivas?

Nem sempre tão grande como podias pensar, porque as po-sições são

quase sempre muito diferentes, e no intervalo de ambas o Espírito pôde

progredir. (Ver o item 216).

219.Qual é a origem das faculdades extraordinárias dos indivíduos que, sem estudo prévio, parecem ter a intuição de certos conhecimentos, como as línguas, o cálculo, etc.?

— Lembrança do passado; progresso anterior da alma, mas do qual ela mesma não tem consciência. De onde queres que das venham? Os corpos mudam, mas o Espírito não muda, embora troque a vestimenta.

220.Com a mudança dos corpos, podem perder-se certas faculdades intelectuais, deixando-se de ter, por exemplo, o gosto pelas artes?

— Sim, desde que se tenha desonrado essa faculdade, empregando-a mau. Uma faculdade pode, também, ficar adormecida durante uma existência, porque o Espírito quer exercer outra, que não se relacione com ela. Nesse caso, permanece em estado latente, para reaparecer mais tarde.

22l. É a uma lembrança retrospectiva que deve o homem, mesmo no estado de selvagem, o sentimento instintivo da existência de Deus e o pressentimento da vida futura?

— É uma lembrança que ele conserva daquilo que sabia como Espírito, antes de encarnar; mas o orgulho freqüentemente abafa esse sentimento.

22l-a. É a mesma lembrança que se devem certas crenças relativas a doutrina

espírita encontradas em todos os povos?

— Esta doutrina é tão antiga quanto o mundo. É por isso que a encontramos por toda parte, e é esta uma prova da sua veracidade. O Espírito encarnado, conservando a intuição do seu estado de Espírito, tem a consciência instintiva do mundo invisível. Mas quase sempre ela é falseada pelos preconceitos, e a ignorância mistura a ela a superstição.

Capítulo V

Considerações sobre a Pluralidade das Existências

222. O dogma da reencarnação, dizem algumas pessoas, não é novo; foi ressuscitado de Pitágoras. Mas jamais dissemos que a Dou-trina Espírita fosse uma invenção moderna. O Espiritismo deve ter existido desde a origem dos tempos, pois decorre da própria Natureza. Temos sempre procurado provar que se encontram os seus traços desde a mais alta Antigüidade. Pitágoras, como se sabe, não é o criador do sistema da metempsicose, que tomou dos filósofos indianos e dos meios egípcios, onde ela existia desde épocas imemoriais. A idéia da transmigração das almas era portanto uma crença comum, admitida pelos homens mais eminentes. Por que maneira chegou até eles? Pela revelação, ou por intuição? Não o sabemos. Mas, seja como for, uma idéia não atravessa as idades e não é aceita pelas inteligências mais

adiantadas, se não tiver um aspecto sério. A antiguidade desta doutrina, portanto, em vez de ser uma objeção, devia ser antes uma prova a seu favor. Há, porém, como igualmente se sabe, entre a metempsicose dos antigos e a moderna doutrina da reencarnação, a grande diferença de que os Espíritos rejeitam, da maneira mais absoluta, a transmigração do homem nos animais evice-versa.

Os Espíritos, ensinando o dogma da pluralidade das existências corpóreas, renovam uma doutrina que nasceu nos primeiros tempos do mundo e que se conservou até os nossos dias, no pensamento íntimo de muitas pessoas.Apresentam-na, porém, de um ponto de vista mais racional, mais conforme com as leis progressivas da Natureza e mais em harmonia com a sabedoria do Criador, ao despojá-la de todos os acréscimos da superstição. Uma circunstância digna de nota é que não foi apenas neste livro que eles a ensinaram, nos últimos tempos: desde antes da sua publicação, numerosas comunicações da mesma natureza foram obtidas, em diversas regiões, emultiplicaram-se consideravelmente depois. Seria o caso, talvez, de examinar- se porque todos os Espíritos não parecem de acordo sobre este ponto. É o que faremos logo depois.

Examinemos o assunto por outro ângulo, fazendo abstração da intervenção dos Espíritos. Deixemo-los de lado por um instante. Suponhamos que esta

teoria não foi dada por eles; suponhamos mesmo que nunca se tenha cogitado disto com os Espíritos. Coloquemo-nos momentaneamente numa posição neutra, admitindo o mesmo grau de probabilidade para uma hipótese e outra, a saber: a da pluralidade e a da unicidade das existências corpóreas, e vejamos para que lado nos levam a razão e o nosso próprio interesse.

Certas pessoas repelem a idéia da reencarnação pelo único motivo de que ela não lhes convém, dizendo que lhes basta uma existência e não desejam iniciar outra semelhante. Conhecemos pessoas que, a simples idéia de voltar a Terra, ficam enfurecidas. Só temos a lhes perguntar se Deus deviapedir-lhes conselho e consultar os seus gostos, para ordenar o Universo? De duas uma: a reencarnação existe ou não existe. Se existe, é inútil opor-se a ela, pois terão de sofrê-la, sem que Deus lhes peça permissão para isso.Parece-nos ouvir um doente dizer: Já sofri hoje demais e não quero tornar a sofrer amanhã. Qualquer que seja a sua má vontade, isso não o fará sofrer menos amanhã e nos dias seguintes, até que consiga curar-se. Da mesma maneira, se essas pessoas devem reviver corporalmente, reviverão, tornarão areencarnar-se; perderão o tempo de protestar, como uma criança que não quer ir a escola ou um condenado a prisão, pois terão de passar por ela. Objeções dessa espécie são demasiado pueris para merecerem exame mais sério. Diremos, entretanto, a essas pessoas, para tranquilizá-las, que a doutrina espírita sobre a

reencarnação não é tão terrível como pensam, e que se a estudassem a fundo não teriam do que se assustar. Saberiam que a situação dessa nova existência depende delas mesmas: será feliz ou desgraçada, segundo o que tiverem feito neste plano, e podem desde já elevar-se tão alto, que não mais deverão temer nova queda no lodaçal.

Supomos falar a pessoas que acreditam num futuro qualquer após a morte, e não as que só têm o nada como perspectiva, ou que desejam mergulhar a sua alma no Todo Universal, sem conservar a individualidade, como as gotas de chuva no oceano, o que vem a ser mais ou menos a mesma coisa. Se acreditais num futuro qualquer, por certo não admitireis que ele seja o mesmo para todos, pois qual seria a utilidade do bem? Por que reprimir se, por que não satisfazer a todas as paixões, a todos os desejos, mesmo a custa dos outros, se isso não teria conseqüência?

Acreditai, pelo contrário, que esse futuro será mais ou menos feliz ou desgraçado, segundo o que tiver-mos feito durante a vida, e tereis o desejo de que ele seja o mais feliz possível, pois devera durar toda a eternidade. Terieis a pretensão de ser uma das criaturas mais perfeitas que já passaram pela Terra, tendo assim o direito imediato a felicidade dos eleitos? Não. Admitis, então, que há criaturas que valem mais do que vós e têm direito a uma situação melhor, sem por isso vos considerardes entre os reprobos. Pois bem: colocai-

vos por um instante, pelo pensamento, nessa situação intermediária, que será a vossa, como o admitis, e suponde que alguém venha dizer-vos: "Sofreis, não sois tão felizes como poderieis ser, enquanto tendes diante de vós os que gozam de uma felicidade perfeita: quereis trocar a vossa posição com a deles?" — Sem dúvida responderíeis, "mas o que devo fazer?" — Quase nada, recomeçar o que fizestes mal e tratar de faze-lo melhor. — Hesita-ríeisem aceitar, mesmo que fosse ao preço de muitas existências de provas? Façamos uma comparação mais prosaica. Se a um homem que, sem estar na miséria extrema, passa pelas privações decorrentes da sua precariedade de recursos, viessem dizer: "Eis uma imensa fortuna que podereis gozar, sendo porém necessário trabalhar rudemente durante um minuto". Fosse ele o maior preguiçoso da Terra, e diria sem hesitar: "Trabalhemos um minuto, dois minutos, uma hora, um dia, se for preciso! O que será isso, para acabar a minha vida na abundância?" Ora, o que é a duração da vida corporal em relação a da eternidade? Menos que um minuto, menos que um segundo.

Ouvimos algumas vezes este raciocínio: Deus, que é soberanamente bom, não pode impor ao homem o reinício de uma série de misérias e tribulações. Acharão, por acaso, que há mais bondade em condenar o homem a um sofrimento perpétuo, por alguns momentos de erro, do que em lhe conceder os meios de reparar as sua faltas? "Dois fabricantes tinham, cada qual, um

operário que podia aspirar a se tornar sócio da firma. Ora, aconteceu que esses dois operários empregaram mal, certa vez, o seu dia de trabalho, e mereceram ser despedidos. Um dos fabricantes despediu o seu empregado, apesar de suas súplicas, e este, não mais encontrando emprego, morreu na miséria. O outro disse ao seu empregado: "Perdeste um dia e me deves uma compensação; fizeste mal o trabalho e me deves a reparação; eu te permito recomeçar; trata de fazê-lo bem, e eu te conservarei e poderás continuar aspirando a posição superior que te prometi". Seria necessário perguntar qual dos dois fabricantes foi mais humano? Deus, que é a própria clemência, seria mais inexorável que um homem? O pensamento de que a nossa sorte esta para sempre fixada em alguns anos de prova, ainda mesmo quando nem sempre dependesse de nós atingir a perfeição sobre a Terra, teria qualquer coisa de pungente enquanto a idéia contrária é eminentemente consoladora, pois não nos tira a esperança. Assim, sem nos pronunciarmos pró ou contra a pluralidade das existências, sem admitir uma hipótese mais do que a outra, diremos que, se pudéssemos escolher, ninguém preferiria um julgamento sem apelo. Um filósofo disse que, se Deus não existisse, seria necessárioinventá-lo para a felicidade do gênero humano; o mesmo se poderia dizer da pluralidade das existências. Mas, como dissemos, Deus não nos pede licença, não consulta as nossas preferências; as coisas são ou não são. Vejamos de que lado estão as probabilidades, e

tomemos o problema sob outro ponto de vista, fazendo sempre abstração do ensinamento dos Espíritos e unicamente, por tanto, como estudo filosófico.

Se não há reencarnação, não há mais do que uma existência corporal, isso é evidente. Se nossa existência corporal é a única, a alma de cada criatura foi criada por ocasião do nascimento, a menos que admitamos a anterioridade da alma. Mas neste caso perguntaríamos o que era a alma antes do nascimento, e se o seu estado não constituiria uma existência, sob qualquer forma. Não há, pois, meio-termo: ou a alma existia ou não existia antes do corpo. Se ela existia, qual era a sua situação? Tinha ou não consciência de si mesma? se não a tinha, era mais ou menos como se não existisse se tinha, sua individualidade era progressiva ou estacionária? Num e noutro caso, qual a sua situação ao tomar o corpo? Admitindo, de acordo com a crença vulgar, que a alma nasce com o corpo, ou o que dá no mesmo, que antes da encarnação só tinha faculdades negativas, formulemos as seguintes questões:

1.Por que a alma revela aptidões tão diversas e independentes das idéias adquiridas pela educação?

2.De onde vem a aptidão extranormal de algumas crianças de pouca idade para esta ou aquela ciência, enquanto outras permanecem inferiores ou medíocres por toda a vida?

3.De onde vêm, para uns, as idéias inatas ou intuitivas, que não existem

para outros7

4.De onde vêm, para certas crianças, os impulsos precoces de vícios ou virtudes, esses sentimentos inatos de dignidade ou de baixeza, que contrastam com o meio em que nasceram?

5.Por que alguns homens, independentemente da educação, são mais adiantados que outros?

6.Por que há selvagens e homens civilizados? Se tomarmos uma criança hotentote, de peito, e a educarmos enviando-a depois aos mais renomados liceus, faremos dela um Laplace ou um Newton?

Perguntamos qual a Filosofia ou a Teosofia que pode resolver esses problemas. Ou as almas são iguais ao nascer, ou não são: quanto a isso não há dúvida. Se são iguais, por que essas tamanhas diferenças de aptidões? Dirão que dependem do organismo. Mas, nesse caso, teríamos a doutrina mais monstruosa e mais imoral. O homem não seria mais que uma máquina, joguete da matéria; não teria a responsabilidade dos seus atos; tudo poderia atribuir as suas imperfeições físicas. Se as almas são desiguais, foi Deus quem as criou assim. Então, por que essa superioridade inata, conferida a alguns? Essa parcialidade estaria conforme a sua justiça e ao amor que dedica por igual a todas as criaturas?

Admitamos, ao contrário, uma sucessão de existências anteriores e

progressivas, e todo se explicará. Os homens trazem, ao nascer, a intuição do que já haviam adquirido. São mais ou menos adiantados, segundo o número de existências por que passaram ou conforme estejam mais ou menos distanciados do ponto de partida: precisamente como, numa reunião de pessoas de todas as idades, cada uma terá um desenvolvimento de acordo com o número de amos vividos. Para a vida da alma, as existências sucessivas serão o que os anos são para vida do corpo. Reuni um dia mil indivíduos de um até oitenta anos, suponde que um véu tenha sido lançado sobre todos os dias anteriores, e que, na vossa ignorância, julgeis todos eles nascidas no mesmo dia: perguntareis, naturalmente, por que uns são grandes e outros pequenos, uns velhos e outros jovens, uns instruídas e outras ainda ignorantes. Mas, se a nuvem que vos oculta o passado for afastada, se compreenderdes que todos viveram por mais ou menos tempo, tudo estará explicado. Deus, na sua justiça, não podia ter criado almas mais perfeitas e outras menos perfeitas. Mas, com a pluralidade das existências, a desigualdade que vemos nada tem de contrário a mais rigorosa eqüidade. porque só vemos o presente e não o passado, que não o compreendemos. Este raciocínio repousa sobre algum sistema, alguma suposição gratuíta? Não, pois partimos de um fato patente, incontestável: a desigualdade de aptidões e do desenvolvimento intelectual e moral. E verificamos que esse fato é inexplicável por todas as teorias

correntes, enquanto a explicação é simples, natural, lógica, por uma nova teoria. Seria racional preferirmos aquela que nada explica a outra que tudo explica?

No tocante a sexta pergunta, dirão sem dúvida que o hotentote é de uma raça inferior. Então perguntaremos se o hotentote é ou não humano. Se é humano, por que teria Deus, a ele e a toda a sua raça, deserdado dos privilégios concedidos a raça caucásica? Se o não é, por que procurar fazê-locristão? A Doutrina Espírita é mais ampla que tudo isso. Para ela, não há muitas espécies de homens, mas apenas homens, seres humanos cujos espíritos são mais ou menos atrasados, mas sempre susceptíveis de progredir. lsto não está mais conforme a Justiça de Deus?

Vimos a alma no seu passado e no seu presente. Se a considerarmos quanto ao futuro, encontraremos as mesmas dificuldades.

1.Se a existência presente deve ser decisiva para a sorte futura, qual é, na vida futura, respectivamente, a posição do selvagem e a do homem civilizado? Estarão no mesmo nível ou estarão distanciados no tocante a felicidade eterna?

2.O homem que trabalhou toda a vida para melhorar-se estará no mesmo plano daquele que permaneceu inferior, não por sua culpa, mas por que não teve o tempo nem a possibilidade de melhorar?

3.O homem que praticou o mal, por não ter podido esclarecer-se, é culpado por um estado de coisas que dele em nada dependeu?

4.Trabalha-se para esclarecer os homens, para os moralizar e civilizar. Mas, para um que se esclarece, há milhões que morrem cada dia, antes que a luz consiga atingi-los. Qual é a sorte destes? Serão tratados como répobros? Caso contrário, o que fizeram eles, para merecerem estar no mesmo plano que os outros?

5.Qual é a sorte das crianças que morrem em tenra idade, antes de poderem ter feito o mal ou o bem? Se estiverem entre os eleitos, por que esse favor, sem nada terem feito para o merecer? Por que privilégio foram elas subtraídas as tribulações da vida?

Há uma doutrina que possa resolver essas questões?

Admiti as existências sucessivas, e tudo estará explicado de acordo com a justiça de Deus. Aquilo que não pudemos fazer numa existência, fazemos em outra. É assim que ninguém escapa a lei do progresso. Cada um será recompensado segundo o seu verdadeiro merecimento, ninguém é excluído da felicidade suprema, a que pode aspirar, sejam quais forem os obstáculos que encontre no seu caminho.

Essas questões poderiam ser multiplicadas ao infinito, porque os problemas psicológicos e morais que não encontram solução, a não ser na pluralidade das

existências, são inumeráveis. Limitamo-nos apenas aos mais gerais. Seja como for, talvez se diga que a doutrina da reencarnação não é admitida pela Igreja: isto seria, portanto, a subversão da religião. Nosso objetivo não é, portanto, tratar desta questão, bastando-nos haver demonstrado que ela é eminentemente moral e racional. Ora, o que é moral e racional não pode ser contrário a uma religião que proclame Deus como a bondade e a razão por excelência. O que teria acontecido a religião se, contra a opinião universal e o testemunho da Ciência, tivesse resistido a evidência e expulsado de seu seio quem não acreditasse no movimento do Sol e nos seis dias da Criação? Que crédito mereceria, e que autoridade teria, entre os povos esclarecidos, uma religião baseada nos erros evidentes, oferecidos como artigos de fé? Quando a evidência foi demonstrada, a lgreja sabiamente se alinhou ao seu lado. Se está provado que existem coisas que seriam impossíveis sem a reencarnação, se certos pontos do dogma não podem ser explicados senão por este meio, será necessário admiti-la e reconhecer que o antagonismo entre essa doutrina e os dogmas é apenas aparente. Mais tarde mostraremos que a religião talvez esteja menos afastada desta doutrina do que se pensa, e que ela não sofreria mais, ao admiti-la, do que com a descoberta do movimento da Terra e dos períodos geológicos, que a princípio pareciam opor um desmentido aos textos sagrados. O princípio da reencarnação ressalta, aliás, de muitas passagens das Escrituras

encontrando-se especialmente formulado, de maneira explícita, no Evangelho:

— "Descendo eles da montanha (após a transfiguração) Jesus lhes preceituou, dizendo: Não digais a ninguém o que vistes, até que o Filho do Homem seja ressuscitado de entre os mortos. Seus discípulos então o interrogaram, e lhe disseram: Por que dizem pois os escribas que é necessário que Elias venha primeiro? E Jesus, respondendo, lhes disse: em verdade, Elias virá primeiro e restabelecerá todas as coisas. Mas eu vos declaro que Elias já veio, e eles não o conheceram, antes o fizeram sofrer tudo quanto quiseram. Assim também eles farão morrer ao Filho do Homem. Então entenderam os discípulos que era de João Batista que ele lhes havia falado". (São Mateus, cap. XVII).

Seja qual for, de resto, a opinião que se tenha sobre a reencarnação, quer a aceitem ou não, ninguém a ela escapará por causa da crença em contrário. O ponto essencial é que o ensinamento dos Espíritos é eminentemente cristão: ele se apóia na imortalidade da alma, nas penas e recompensas futuras, no livre arbítrio do homem, na moral do Cristo, e portanto não é anti-religioso.

Raciocinamos, como dissemos, fazendo abstração de todo o ensinamento espírita, que, para certas pessoas, não tem autoridade. Se, como tantos outros, adotamos a opinião referente a pluralidade das existências, não e somente por que ela nos veio dos Espíritos, mas porque nos parece a mais lógica e a única

que resolve as questões até então insolúveis. Que ela nos viesse de um simples mortal, e a adotamos da mesma maneira, não hesitando em renunciar as nossas próprias idéias. Do mesmo modo, nós a teríamos repelido, embora viesse dos Espíritos, se nos parecesse contrária a razão, como repeli-mostantas outras. Porque sabemos, por experiência, que não se deve aceitar de olhos fechados tudo o que vem dos Espíritos, como aquilo que vem da parte dos homens. Seu primeiro título aos nossos olhos é, antes de tudo, o de ser lógico. Mas ainda tem outro, que é o de ser confirmada pelos fatos: fatos positivos e por assim dizer materiais, que um estudo atento e raciocinado pode revelar a quem se der ao trabalho de observá-los com paciência e perseverança, e diante dos quais a dúvida não é mais possível. Quando esses fatos se popularizarem, como os da formação e do movimento da Terra, será necessário reconhecer a evidência, e os seus opositores terão gasto em vão seus argumentos contrários.

Reconheçamos, em resumo, que a doutrina da pluralidade das existências é a única a explicar aquilo que, sem ela, é inexplicável. Que é eminentemente consoladora e conforme a justiça mais rigorosa, sendo para o homem a tábua de salvação que Deus lhe concedeu, na sua misericórdia.

As próprias palavras de Jesus não podem deixar dúvida a respeito. Eis o que se lê no Evangelho segundo São João, capítulo III:

3. "Jesus, respondendo a Nicodemos, disse: Em verdade, em verdade te digo

que se um homem não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.

4.Nicodemos lhe disse: Como pode um homem nascer, quando está velho? Pode ele entrar de novo no ventre de sua mãe e nascer ou-tra vez?

5.Jesus respondeu: Em verdade, em verdade te digo que, se um homem não nascer da água e do espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do espírito e espírito. Não te maravilhes de eu te haver dito: necessário vos é nascer de novo". (Ver, a seguir, o artigo Ressurreição da carne, item 1.010).

Nota do Tradutor — A reencarnação está hoje provada através dos casos de lembranças de vidas anteriores em crianças, de pesquisas hipnóticas de regressão da memória, de avisos mediúnicos, de renascimentos com sinaís e condições posteriormente verificados. Embora as ciências oficiais ainda relutem em aceitar essas provas, a Ciência espírita as considera válidas e espera para breve a sua aceitação oficial. — Platão, em "A República", apresentou o famoso Mito da Caverna para explicar a vida espiritual. Kardec nos oferece, nas considerações acima, o Mito do Véu para esclarecer o problema da reencarnação. Chamamos para ele a atenção do leitor;pusemo-lo em negrito na página 129.

Capítulo VI

Vida Espírita

I — Espíritos Errantes

223. A alma se reencarna imediatamente após a separação do corpo?

Às vezes, imediatamente, mas, na maioria das vezes, depois de intervalos mais ou menos longos. Nos mundos superiores a reencarnação é quase sempre imediata. A matéria corpórea sendo menos grosseira, o Espírito encarnado goza de quase todas as faculdades do Espírito. Seu estado normal é o dos vossos sonâmbulos lúcidos.

224. O que é a alma, nos intervalos das encarnações?

Espírito errante, que aspira a um novo destino e o espera.

224-a. Qual poderá ser a duração desses intervalos?

— De algumas horas a alguns milhares de séculos. De resto, não existe, propriamente falando, limite extremo determinado para o estado errante, que pode prolongar-se por muito tempo, mas que nunca é perpétuo. O Espírito tem sempre a oportunidade, cedo ou tarde, de recomeçar uma existência que sirva à purificação das anteriores.

224-b. Essa duração está subordinada à vontade do Espírito, ou lhe pode ser imposta como expiação?

— É uma conseqüência do livre arbítrio. Os Espíritos sabem perfeitamente o

que fazem, mas para alguns é também uma punição infligida por Deus. Outros pedem o seu prolongamento para prosseguir estudos que não poderia ser feitos com proveito a não ser no estado de Espírito.

225.A erraticidade é, por si mesma, um sinal de inferioridade entre os Espíritos?

— Não, pois há Espíritos errantes de todos os graus. A encarnação é um estado transitório, já o dissemos. No seu estado normal, o Espírito é livre da matéria.

226.Pode-se dizer que todos os Espíritos não-encarnados são errantes?

— Os que devem reencarnar-se, sim; mas os Espíritos puros, que chegaram

àperfeição, não são errantes: seu estado é definitivo.

No tocante às suas qualidades íntimas os Espíritos pertencem a diferentes ordens ou graus, pelos quais passam sucessivamente, à medida que se purificam. No tocante ao estado podem ser: encarnados, que quer dizer ligados a um corpo; errantes, ou desligados do corpo material e esperando uma nova encarnação para se melhorarem; Espíritos puros ou perfeitos e não tendo mais necessidade da encarnação.

227. De que maneira se instruem os Espíritos errantes; pois certamente não o fazem da mesma maneira que nós?

— Estudam o seu passado e procuram o meio de se elevarem. Vêem,

observam o que se passa nos lugares que percorrem; escutam os discursos dos homens esclarecidos e os conselhos dos Espíritos mais elevados que eles, e isso lhes proporciona idéias que não possuíam.

228.Os Espíritos conservam algumas das paixões — Os Espíritos elevados, ao perderem o seu invólucro, deixam as más paixões e só guardam a do bem; mas os Espíritos inferiores as conservam, pois de outra maneira pertenceriam à primeira ordem.

229.Por que os Espíritos, ao deixarem a Terra, não abandonam as suas más paixões, desde que vêem os seus inconvenientes?

— Tens nesse mundo pessoas que são excessivamente vaidosas. Acredita que, ao deixá-lo, perderão esse defeito? Após a partida da Terra, sobretudo para aqueles que tiverem paixões bem vivas, resta uma espécie de atmosfera, que os envolve, guardando todas essas coisas más, pois o Espírito não está inteiramente desprendido. E apenas por momentos que ele entrevê a verdade, como para mostrar-lhe o bom caminho.

230.O Espírito progride no estado errante?

— Pode melhorar-se bastante, sempre de acordo com a sua vontade e o seu desejo; mas é na existência corpórea que ele põe em prática as novas idéias adquiridas.

231. Os Espíritos errantes são felizes ou infelizes?

Mais ou menos, segundo os seus méritos. Sofrem as paixões cujos germes conservaram, ou são felizes, segundo a sua maior ou menor desmaterialização. No estado errante, o Espírito entrevê o que lhe falta para ser mais feliz. E assim que ele busca os meios de o atingir; mas nem sempre lhe é permitido reencarnar-se à vontade, e isso é uma punição.

232. No estado errante os Espíritos podem ir a todos os mundos?

Conforme. Quando o Espírito deixa o corpo, ainda não está completamente desligado da matéria e pertence ainda ao mundo em que viveu ou a um mundo do mesmo grau; a menos que, durante sua vida, tenha se elevado. Esse é o objetivo a que deve voltar-se, pois sem isso jamais se aperfeiçoaria. Ele pode, entretanto, ir a alguns mundos superiores, passando por eles como estrangeiro. Nada mais faz do que os entrever, e é isso que lhe dá o desejo de se melhorar, para ser digno da felicidade que neles se desfruta e poder habitá-los.

233. Os Espíritos já purificados vêm aos mundos inferiores?

Vêm freqüentemente, a fim de os ajudar a progredir; sem isso, esses mundos estariam entregues a si mesmos, sem guias para os orientar.

II — Mundos Transitórios

234. Existem, como foi dito, mundos que servem de estações ou de lugares

de repouso aos Espíritos errantes?

Sim, há mundos particularmente destinados aos seres errantes, mundos que eles podem habitar temporariamente, espécies de acampamentos, de lugares em que possam repousar de erraticidades muito longas, que são sempre um pouco penosas. São posições intermediárias entre os mundos, graduadas de acordo com a natureza dos Espíritos que podem atingi-los e que neles gozam de maior ou menor bem-estar.

234-a. Os Espíritos que habitam esses mundos podem deixá-los à vontade?

Sim, os Espíritos que se encontram nesses mundos podem deixá-lospara seguir o seu destino. Figurai-os como aves de arribação descendo numa ilha para recuperarem suas forças e seguirem avante.

235. Os Espíritos progridem durante essas estações nos mundos transitórios?

Certamente. Os que assim se reúnem têm o fito de se instruírem e de mais facilmente obter a permissão de ir a lugares melhores, até chegar à posição dos eleitos.

236. Os mundos transitórios são, por sua natureza especial, perpetuamente destinados aos Espíritos errantes?

Não, sua posição é apenas temporária.

236-a. São eles ao mesmo tempo habitados por seres corpóreos?

— Não, sua superfície é estéril. Os que os habitam não precisam de nada. 236-b. Essa esterilidade é permanente e se liga à sua natureza especial?

— Não; são estéreis transitoriamente.

236-c. Esses mundos seriam, então, desprovidos de belezas naturais?

A Natureza se traduz pelas belezas da imensidade, que não são menos admiráveis do que as que chamais belezas naturais.

236-d. Sendo transitório o estado desses mundos, a Terra terá um dia de estar entre eles?

Já esteve.

236-e. Em que época?

— Durante a sua formação.

Nada existe de inútil na Natureza: cada coisa tem a sua finalidade, a sua destinação; nada é vazio, tudo é habitado, a vida se expande por toda parte. Assim durante a longa série de séculos que se escoou antes da aparição do homem sobre a Terra durante os lentos períodos de transição atestados pelas camadas geológicas, antes mesmo da formação dos primeiros seres orgânicos, sobre essa massa informe, nesse árido caos em que os elementos se confundiam não havia ausência de vida. Seres que não tinham as nossas necessidades, nem as nossas sensações físicas, ali encontravam refúgio. Deus quis que, mesmo nesse estado imperfeito, ela servisse para alguma coisa. Quem, pois, ousaria dizer que entre os bilhões de mundos que circulam na imensidade apenas um, e um dos menores, perdido na multidão, teve o

privilégio exclusivo de ser povoado? Qual seria a utilidade dos outros? Deus os teria feito só para recrear os nossos olhos?

Suposição absurda, incompatível com a sabedoria que brilha em todas as suas obras, inadmissível quando se pensa em todas as que não podemos perceber. Ninguém poderá negar que há, nesta idéia dos mundos ainda impróprios para a vida material, e entretanto povoados de seres apropriados ao seu estado, alguma coisa de grande e sublime, onde talvez se encontre a solução de muitos problemas.

III— Percepções, Sensações e Sofrimentos dos Espíritos

237.A alma, uma vez no mundo dos Espíritos, tem ainda as percepções que tinha nesta vida?

— Sim, e outras que não possuía, porque o seu corpo era como um véu que a obscurecia. A inteligência é um atributo do Espírito, mas se manifesta mais livremente quando não tem entraves.

238.As percepções e os conhecimentos dos Espíritos são indefinidos; em uma palavra, sabem eles todas as coisas?

— Quanto mais se aproximam da perfeição mais sabem: se são superiores, sabem muito; os Espíritos inferiores são mais ou menos ignorantes em todos os assuntos.

239.Os Espíritos conhecem o princípio das coisas?

Conforme a sua elevação e a sua pureza. Os Espíritos inferiores não sabem mais do que os homens.

240. Os Espíritos compreendem a duração como nós?

Não; e isso faz que nem sempre nos compreendais, quando se trata de fixar datas ou épocas.

Os Espíritos vivem fora do tempo, tal como o compreendemos; a duração, para eles, praticamente não existe, e os séculos, tão longos para nós, não são aos seus olhos mais do que instantes que desaparecem na eternidade, da mesma maneira que as desigualdades do solo se apagam e desaparecem para aquele que se eleva no espaço.

241. Os Espíritos fazem do presente uma idéia mais precisa e mais justa do que nós?

Mais ou menos como aquele que vê claramente tem uma idéia mais justa das coisas, do que o cego. Os Espíritos vêem o que não vedes, e julgam diferentes de vós. Mas ainda uma vez: isso depende da sua elevação.

242. Como têm os Espíritos o conhecimento do passado? Esse conhecimento

épara eles limitado?

O passado quando dele nos ocupamos, é um presente, precisamente como te lembras de uma coisa que te impressionou durante o teu exílio. Entretanto, como não temos mais o véu material que obscurece a tua inteligência,

lembramo-nos das coisas que desapareceram para ti. Mas nem tudo os Espíritos conhecem, a começar pela sua própria criação.

243. Os Espíritos conhecem o futuro?

Isso ainda depende da sua perfeição. Quase sempre, nada mais fazem do que entrevê-lo, mas nem sempre têm a permissão de o revelar; quando o vêem, ele lhes parece presente. O Espírito vê o futuro mais claramente à medida que se aproxima de Deus. Depois da morte, a alma vê e abarca de relance as suas migrações passadas, mas não pode ver o que Deus lhe prepara. Para isso é necessário que esteja integrada nele, depois de muitas existências.

243-a. Os Espíritos chegados à perfeição absoluta têm completo conhecimento do futuro?

Completo não é o termo, porque Deus é o único e soberano Senhor, e ninguém o pode igualar.

244. Os Espíritos vêem a Deus?

Somente os Espíritos superiores o vêem e compreendem; os Espíritos inferiores o sentem e adivinham.

244-a. Quando um Espírito inferior diz que Deus lhe proíbe ou permite uma coisa, como sabe que a ordem vem d'Ele?

Ele não vê a Deus, mas sente a sua soberania, e quando uma coisa não deve ser feita ou uma palavra não deve ser dita, ele o sente como uma

intuição, uma advertência invisível que o inibe de fazê-lo. Vós mesmos tendes pressentimentos que são para vós como advertências secretas, para fazerdes ou não alguma coisa. O mesmo acontece conosco, mas em grau superior, pois compreendes que, sendo mais sutil do que a vossa a essência dos Espíritos, podemos receber mais facilmente as advertências divinas.

244-b. A ordem é transmitida diretamente por Deus, ou por intermédio de outros Espíritos?

Não lhe chega diretamente de Deus, pois para comunicar-se com ele é preciso merecê-lo. Deus transmite as suas ordens pelos Espíritos que estão mais elevados em perfeição e instrução.

245. A vista dos Espíritos é circunscrita como nos seres corpóreos?

Não, é uma faculdade geral.

246. Os Espíritos precisam de luz para ver?

— Vêem pela luz própria, sem necessidade de luz exterior; para eles não há trevas, a não ser aquelas em que podem encontrar-se por expiação.

247. Os Espíritos precisam transportar-se para ver em dois lugares diferentes? Podem ver ao mesmo tempo num e noutro hemisfério do globo?

— Como o Espírito se transporta com a rapidez do pensamento, podemos dizer que vê por toda parte de uma só vez. Seu pensamento pode irradiar edirigir-se para muitos pontos ao mesmo tempo. Mas essa faculdade depende

da sua pureza: quanto menos puro ele for, mais limitada é a sua vista; somente os Espíritos superiores podem ter visão de conjunto.

A faculdade de ver dos Espíritos, inerente à sua natureza, difunde-se por todo o seu ser, como a luz num corpo luminoso. E uma espécie de lucidez universal, que se estende a tudo, envolve simultaneamente o espaço, o tempo e as coisas, e para a qual não há trevas nem obstáculos materiais. Compreendo- se que assim deve ser, pois no homem a vista funciona através de um órgão que recebe a luz, e sem luz ele fica na obscuridade. Mas, nos Espíritos, a faculdade de ver sendo um atributo próprio que independe de qualquer agente exterior, a vista não precisa de luz. (Ver Ubiqüidade item 92).

248. O Espírito vê as coisas tão distintamente como nós?

Mais distintamente, porque a sua vista penetra o que a vossa não pode penetrar; nada a obscurece.

249. O Espírito percebe os sons?

Sim, e percebe até mesmo os que os vossos sentidos obtusos não podem perceber.

249-a. A faculdade de ouvir, como a de ver, está em todo o seu ser?

Todas as percepções são atributos do Espírito e fazem parte do seu ser. Quando ele se reveste do corpo material, eles se manifestam pelos meios orgânicos; mas, no estado de liberdade, não estão mais localizadas.

250.Sendo as percepções atributos do próprio Espírito, ele pode deixar deusá-las?

— O Espírito só vê e ouve o que ele quiser. Isto de uma maneira geral, e sobretudo para os Espíritos elevados, porque os imperfeitos ouvem e vêem freqüentemente, queiram ou não, aquilo que pode ser útil ao seu melhoramento.

251.Os Espíritos são sensíveis à música?

Queres falar da vossa música? O que é ela perante a música celeste, essa harmonia da qual ninguém na Terra pode ter idéia? Uma é para a outra o que o canto do selvagem é para a suave melodia: Não obstante os Espíritos vulgares podem provar um certo prazer ao ouvir a vossa música porque não estão ainda capazes de compreender outra mais sublime. A música tem, para os Espíritos, encantos infinitos, em razão de suas qualidades sensitivas muito desenvolvidas. Refiro-me à música celeste, que é tudo quanto a imaginação espiritual pode conceber de mais belo e mais suave.

252. Os Espíritos são sensíveis às belezas naturais?

As belezas naturais dos vários globos são tão diversas que estamos longe de as conhecer. Sim, são sensíveis a elas, segundo as suas aptidões para as apreciar e compreender. Para os Espíritos elevados há belezas de conjunto, diante das quais se apagam, por assim dizer, as belezas dos detalhes.

253.Os Espíritos experimentam as nossas necessidades e os nossos sofrimentos físicos?

— Eles os conhecem, porque os sofreram, mas não os experimentam materialmente como vós, porque são Espíritos.

254.Os Espíritos sentem fadiga e necessidade de repouso?

Não podem sentir a fadiga como a entendeis, e portanto não necessitam do repouso corporal, pois não possuem órgãos em que as forças tenham de ser restauradas. Mas o Espírito repousa, no sentido de não permanecer numa atividade constante. Ele não age de maneira material, porque a sua ação é toda intelectual e o seu repouso é todo moral. Há momentos em que o seu pensamento diminui de atividade e não se dirige a um objeto determinado; este é o verdadeiro repouso, mas não se pode compará-lo ao do corpo. A espécie de fadiga que os Espíritos podem provar está na razão da sua inferioridade, pois quanto mais se elevam, de menos repouso necessitam.

255. Quando um Espírito diz que sofre, de que natureza é o seu sofrimento?

Angústias morais, que o torturam mais dolorosamente que os sofrimentos físicos.

256. Como alguns Espíritos se queixam de frio ou calor?

Lembrança do que sofreram durante a vida, e algumas vezes tão penosa como a própria realidade. Freqüentemente é uma comparação que fazem, para

exprimirem a sua situação. Quando se lembram do corpo experimentam uma espécie de impressão, como quando se tira uma capa e algum tempo depois ainda se pensa estar com ela.

IV — Ensaio Teórico Sobre a Sensação nos Espíritos

257. O corpo é o instrumento da dor; se não é a sua causa primeira, é pelo menos a imediata. A alma tem a percepção dessa dor: essa percepção é o efeito. A lembrança que dela conserva pode ser muito penosa mas não pode implicar ação física. Com efeito, o frio e o calor não podem desorganizar os tecidos da alma; a alma não pode regelar-se nem queimar. Não vemos, todos os dias, a lembrança ou a preocupação de um mal físico produzir os seus efeitos? E até mesmo ocasionar a morte? Todos sabem que as pessoas que sofreram amputações sentem dor no membro que não mais existe. Seguramente não é esse membro a sede, nem o ponto de partida da dor: o cérebro conservou a impressão, eis tudo. Podemos portanto supor que há qualquer coisa de semelhante nos sofrimentos dos Espíritos depois da morte. Um estudo mais aprofundado do perispírito, que desempenha papel tão importante em todos os fenômenos espíritas, — nas aparições vaporosas ou tangíveis, no estado do Espírito no momento da morte, na idéia tão freqüente de que ainda está vivo, na situação surpreendente dos suicidas, dos

supliciados, dos que se absorveram nos prazeres materiais, e tantos outros fatos, — veio lançar luz sobre esta questão, dando lugar às explicações de que apresentamos em resumo.

O perispírito é o liame que une o Espírito à matéria do corpo; é tomado do meio ambiente, do fluido universal; contém ao mesmo tempo eletricidade, fluido magnético, e até um certo ponto, a própria matéria inerte. Poderíamos dizer que é a quintessência da matéria. E o princípio da vida orgânica, mas não o da vida intelectual, porque esta pertence ao Espírito. E também o agente das sensações externas. No corpo, estas sensações estão localizadas nos órgãos que lhes servem de canais. Destruído o corpo, as sensações se tornam generalizadas. Eis porque o Espírito não diz que sofre mais da cabeça que dos pés. E necessário, aliás, nos precavermos de confundir as sensações do perispírito independente com as do corpo: não podemos tomar estas últimas senão como termo de comparação, e não como analogia. Liberto do corpo, o Espírito pode sofrer, mas esse sofrimento não é o mesmo do corpo; não obstante, não é também um sofrimento exclusivamente moral, como o remorso, pois ele se queixa de frio e de calor. Mas não sofre mais no inverno do que no verão: vemo-los passar através das chamas sem nada experimentar de penoso, o que mostra que a temperatura não exerce sobre eles nenhuma impressão. A dor que sentem não é dor física propriamente dita: é um vago

sentimento interior, de que o próprio Espírito nem sempre tem perfeita consciência, porque a dor não está localizada e não é produzida por agentes exteriores: é, antes, uma lembrança também penosa. Algumas vezes, há mais que uma lembrança, como veremos.

A experiência nos ensina que, no momento da morte, o perispírito se desprende mais ou menos lentamente do corpo. Nos primeiros instantes, o Espírito não compreende a sua situação; não acredita que morreu; sente-sevivo; vê o seu corpo de lado, sabe que é o seu e não entende porque está separado.

Esse estado dura todo o tempo em que existir um liame entre o corpo e o perispírito. Um suicida nos dizia: "Não, eu não estou morto", e acrescentava: "e entretanto sinto os vermes que me roem". Ora, seguramente, os vermes não roíam o perispírito, e menos ainda o Espírito, mas o corpo. Como a separação do corpo e do perispírito não estava completa, havia uma espécie de repercussão emocional, que lhe transmitia a sensação do que se passava no corpo. Repercussão não é bem o termo, pois poderia dar idéia de um efeito muito material. Era antes a visão do que se passava no corpo, ao qual o perispírito continuava ligado que produzia essa ilusão, tomada por real. Assim, não se tratava de uma lembrança, pois durante a vida ele não fora roído pelos vermes: era uma sensação atual.

Vemos, pois, as deduções que podemos tirar dos fatos, quando atentamente observados. Durante a vida; o corpo recebe as impressões exteriores e as transmite ao Espírito por intermédio do perispírito, que constitui, provavelmente, o que se costuma chamar de fluido nervoso. O corpo, estando morto, não sente mais nada, porque não possui Espírito nem perispírito. O Espírito, desligado do corpo, experimenta a sensação, mas como esta não lhe chega por um canal limitado, torna-se geral. Como o perispírito é apenas um agente de transmissão, pois é o Espírito que possui a consciência, deduz-seque se pudesse existir perispírito sem Espírito, ele não sentiria mais do que um corpo morto. Da mesma maneira, se um Espírito não tivesse perispírito seria inacessível a todas as sensações penosas: é o que acontece com os Espíritos completamente purificados. Sabemos que quanto mais o Espírito se purifica, mais eterizada se torna a essência do perispírito, de maneira que a influência material diminui à medida que o Espírito progride, ou seja, à medida que o perispírito se torna menos grosseiro.

Mas, dir-se-á, as sensações agradáveis são transmitidas ao Espírito pelo perispírito, tanto quanto as desagradáveis. Ora, se o Espírito puro é inacessível a umas, deve sê-lo igualmente às outras. Sim, sem dúvida, àquelas que provêm unicamente da influência da matéria que conhecemos: o som dos nossos instrumentos, o perfume das nossas flores não lhes produzem nenhuma

impressão, e não obstante eles gozam de sensações íntimas, de um encanto indefinível das quais não podemos fazer a mínima idéia, porque estamos para elas como os cegos de nascença para a luz. Sabemos que elas existem, mas de que maneira? Aí se detêm o nosso conhecimento. Sabemos que o Espírito tem percepção, sensação, audição, visão, que essas faculdades são atributos de todo o seu ser, e não apenas de certos órgãos como nos homens. Mas, ainda uma vez, de que forma? Isso é o que não sabemos. Os próprios Espíritos não podem explicar-nos, porque a nossa linguagem não foi feita para exprimir idéias que não possuímos, assim como na língua dos selvagens não há termos para a expressão de nossas artes, nossas ciências e nossas doutrinas filosóficas.

Ao dizer que os Espíritos são inacessíveis às impressões da nossa matéria, queremos falar dos Espíritos mais elevados, cujo envoltório eterizado não encontra termos de comparação na Terra. Não se dá o mesmo com aquele cujo perispírito é mais denso, pois ele percebe os nossos sons e sente os nossos odores, mas não por uma parte determinada do seu organismo, como quando vivo. Poderíamos dizer que as vibrações moleculares se fazem sentir em todo o seu ser, chegando assim ao seu sensorium commune, que é o próprio Espírito, mas de maneira diversa, produzindo talvez uma impressão diferente, que acarreta uma modificação na percepção. Eles ouvem o som da nossa voz,

e no entanto nos compreendem sem necessidade da palavra, pela simples transmissão do pensamento, o que é demonstrado pelo fato de ser essa penetração mais fácil para o Espírito desmaterializado. A faculdade de ver é um atributo essencial da alma, para a qual não há obscuridade, e apresenta-semais ampla e penetrante entre os que estão mais purificados. A alma, ou o Espírito, tem portanto em si mesma a faculdade de todas as percepções. Na vida corpórea elas são obliteradas pela grosseria dos nossos órgãos; na vidaextra-corpórea, libertam-se mais e mais, à medida que se torna menos denso o envoltório semimaterial.

Tomado do meio ambiente, esse envoltório varia segundo a natureza dos mundos. Ao passar de um mundo para outro, os Espíritos mudam de envoltório, como mudamos de roupa ao passar do inverno ao verão, ou do pólo ao equador. Os Espíritos mais elevados, quando vêm visitar-nos,revestem o perispírito terrestre, e então as suas percepções se assemelham às dos Espíritos vulgares. Mas todos eles, inferiores e superiores, só ouvem e sentem o que querem ouvir e sentir. Como não possuem órgãos sensoriais, podem tornar à vontade as suas percepções ativas ou nulas havendo apenas uma coisa que são forçados a ouvir: os conselhos dos bons Espíritos. A vista é sempre ativa, mas eles podem tornar-se invisíveis uns para os outros. Conforme a classe a que pertençam, podem ocultar-se dos que lhes são

inferiores, mas não dos superiores. Nos primeiros momentos após à morte a vista do Espírito é sempre turva e confusa, esclarecendo-se na proporção em que ele se liberta e podendo adquirir a mesma clareza que tinha durante a vida, além da possibilidade de penetrar nos corpos opacos. Quanto à sua extensão através do espaço infinito, no passado e no futuro, depende do grau de pureza e elevação do Espírito.

Toda esta teoria, dir-se-á, não é muito tranqüilizadora. Pensávamos que, uma vez desembaraçados do nosso envoltório grosseiro, instrumento de nossas dores, não sofreríamos mais, e nos ensinais que sofreremos ainda, pois podemos ainda sofrer, e muito, durante longo tempo. Mas podemos também não sofrer mais, desde o instante em que deixamos esta vida corpórea.

Os sofrimentos deste mundo às vezes decorrem de nossa própria vontade. Que se remonte à origem e ver-se-á que a maioria são conseqüências de causas que poderíamos ter evitado. Quantos males, quantas enfermidades o homem deve apenas aos seus excessos, à sua ambição, às suas paixões, enfim? O homem que tivesse vivido sempre sobriamente, que não houvesse abusado de nada, que tivesse sido sempre de gostos simples e desejos modestos, se pouparia de muitas tribulações. O mesmo acontece ao Espírito: os sofrimentos que ele enfrenta são sempre conseqüência da maneira por que viveu na Terra. Não terá, sem dúvida, a gota e o reumatismo, mas terá outros sofrimentos, que

não serão menores.

Já vimos que esses sofrimentos são o resultado dos laços que ainda existem entre o Espírito e a matéria. Que quanto mais ele estiver desligado da influência da matéria, ou seja, quanto mais desmaterializado, menos sensações penosas sofrerá. Depende dele afastar-se dessa influência, desde esta vida, pois tem o livre arbítrio e por conseguinte a faculdade de escolha entre o fazer e o não fazer. Que dome as suas paixões animais; que não tenha ódio, nem inveja, nem ciúme, nem orgulho: que não se deixe dominar pelo egoísmo; que purifique sua alma, pelos bons sentimentos; que pratique o bem; que não dê às coisas deste mundo senão a importância que elas merecem; e então, mesmo sob o seu envoltório corpóreo, já se terá purificado, desprendido da matéria, e quando o deixar, não sofrerá mais a sua influência. Os sofrimentos físicos por que tiver passado não lhe deixarão nenhuma lembrança penosa; não lhe restará nenhuma impressão desagradável, porque estas não afetaram o Espírito, mas apenas o corpo;sentir-se-á feliz por se ter libertado, e a tranqüilidade de sua consciência o afastará de todo sofrimento moral.

Interpelamos sobre o assunto milhares de Espíritos, pertencentes a todas as classes sociais, a todas as posições. Estudamo-los em todos os períodos da vida espírita, desde o instante em que deixaram o corpo. Seguimo-los passo a passo na vida de além-túmulo, para observar as modificações que neles se

operavam, nas suas idéias, nas suas sensações. E a esse respeito os homens vulgares não foram os que nos forneceram menos preciosos elementos de estudo. Vimos sempre que os sofrimentos estão em relação com a conduta, da qual sofrem as conseqüências, e que essa nova existência é uma fonte de felicidade inefável para aqueles que tomaram o bom caminho. De onde se segue que os que sofrem é porque assim quiseram e só devem queixar-se de si mesmos, tanto no outro mundo quanto neste.

V — Escolha das Provas

258. No estado errante, antes de nova existência corpórea, o Espírito tem consciência e previsão do que lhe vai acontecer durante a vida?

Ele mesmo escolhe o gênero de provas que deseja sofrer; nisto consiste o seu livre arbítrio.

258-a. Não é Deus quem lhe impõe as tribulações da vida, como castigo?

Nada acontece sem a permissão de Deus, porque foi Ele quem estabeleceu todas as leis que regem o universo. Perguntareis agora por que Ele fez tal lei em vez de tal outra! Dando ao Espírito a liberdade de escolha, deixa- lhe toda a responsabilidade dos seus atos e das suas conseqüências; nada lhe estorva o futuro; o caminho do bem está à sua frente, como o do mal. Mas se sucumbir, ainda lhe resta uma consolação, a de que nem tudo se acabou para ele, pois Deus, na sua bondade, permite-lhe recomeçar o que foi mal feito. É

necessário distinguir o que é obra da vontade de Deus e o que é da vontade do homem. Se um perigo vos ameaça, não fostes vós que o criastes, mas Deus; tivestes, porém, a vontade de vos expordes a ele, porque o considerastes um meio de adiantamento; e Deus o permitiu.

259. Se o Espírito escolhe o gênero de provas que deve sofrer, todas as tribulações da vida foram previstas e escolhidas por nós?

— Todas, não é bem o termo, pois não se pode dizer que escolhestes e previstes tudo o que vos acontece no mundo, até as menores coisas. Escolhestes o gênero de provas; os detalhes são conseqüências da posição escolhida, e freqüentemente de vossas próprias ações. Se o Espírito quis nascer entre malfeitores, por exemplo, já sabia a que deslize se expunha, mas não conhecia cada um dos atos que praticaria; esses atos são produtos de sua vontade ou do seu livre arbítrio: O Espírito sabe que, escolhendo esse caminho, terá de passar por esse gênero de lutas; e sabe de que natureza são as vicissitudes que irá encontrar; mas não sabe quais os acontecimentos que o aguardam. Os detalhes nascem das circunstâncias e da força das coisas. Só os grandes acontecimentos, que influem no destino, estão previstos. Se tomas um caminho cheio de desvios, sabes que deves ter muitas precauções, porque corres o perigo de cair, mas não sabes quando cairás, e pode ser que nem caias, se fores bastante prudente. Se ao passar pela rua uma telha te cair na

cabeça, não penses que estava escrito, como vulgarmente se diz.

260. Como o Espírito pode querer nascer entre gente de má vida?

É necessário ser enviado ao meio em que possa sofrer a prova pedida. Pois bem: o semelhante atrai o semelhante, e para lutar contra o instinto do banditismo é preciso que ele se encontre entre gente dessa espécie.

260-a. Se não houvesse gente de má vida na Terra, o Espírito não poderia encontrar nela o meio necessário a certas provas?

E deveríamos lamentar isso? É o que acontece nos mundos superiores, onde o mal não tem acesso. É por isso que neles só existem bons Espíritos. Fazei que o mesmo aconteça, bem logo, em vossa Terra.

261. O Espírito, nas provas que deve sofrer para chegar à perfeição, terá de experimentar todos os gêneros de tentações? Deverá passar por todas as circunstâncias que possam provocar-lhe o orgulho, o ciúme, a avareza, a sensualidade, etc.?

Certamente não, pois sabeis que há os que tomam, desde o princípio, um caminho que os afasta de muitas provas. Mas aquele que se deixa levar pelo mau caminho corre todos os perigos do mesmo. Um Espírito pode pedir a riqueza e esta lhe ser dada; então, segundo o seu caráter, poderá tornar-seavarento ou pródigo, egoísta ou generoso, ou ainda entregar-se a todos os prazeres da sensualidade. Mas isso não quer dizer que ele devia cair

forçosamente em todas essas tendências.

262.Como pode o Espírito, que em sua origem é simples, ignorante e sem experiência, escolher uma existência com conhecimento de causa e ser responsável pela sua escolha?

— Deus supre a sua inexperiência, traçando-lhe o caminho que deve seguir como fazes com uma criança desde o berço. Mas deixa-lhe pouco a pouco a liberdade de escolher, à medida que o seu livre arbítrio se desenvolve. É então que ele muitas vezes se extravia, tomando o mau caminho, por não ouvir os conselhos dos bons Espíritos. E a isso que podemos chamar a queda do homem.

262-a. Quando o Espírito goza do seu livre arbítrio a escolha da existência corpórea depende sempre exclusivamente da sua vontade, ou essa existência pode lhe ser imposta pela vontade de Deus, como expiação?

— Deus sabe esperar: não precipita a expiação. Entretanto pode impor certa existência a um Espírito, quando este, por sua inferioridade ou má vontade, não está apto a compreender o que lhe seria mais proveitoso, e quando vê que essa existência pode servir para a sua purificação, o seu adiantamento, e ao mesmo tempo servir-lhe de expiação.

263.O Espírito faz a sua escolha imediatamente após a morte?

— Não, pois muitos crêem na eternidade das penas, e como já vos foi dito,

isso é um castigo.

264. O que orienta o Espírito na escolha das provas?

Ele escolhe as que lhe podem servir de expiação, segundo a natureza de suas faltas, e fazê-lo adiantar mais rapidamente. Uns podem impor-se uma vida de misérias e privações, para tentar suportá-la com coragem; outros, experimentar as tentações da fortuna e do poder, bem mais perigosas pelo abuso e o mau emprego que lhes pode dar e pelas más paixões que desenvolvem; outros, enfim, querem ser provados nas lutas que terão de sustentar no contato com o vício.

265. Se alguns Espíritos escolhem o contato com o vício, como prova, há os que o escolhem por simpatia e pelo desejo de viver num meio adequado aos seus gostos, ou para poderem entregar-se livremente às suas inclinações materiais?

Há, por certo, mas só entre aqueles cujo senso moral é ainda pouco desenvolvido; a prova decorre disso, e eles a sofrem por tempo mais longo. Cedo ou tarde compreenderão que a satisfação das paixões brutais tem para eles conseqüências deploráveis, que terão de sofrer durante um tempo que lhes parecerá eterno. Deus poderá deixá-los nesse estado até que eles tenham compreendido suas faltas, pedindo por si mesmos o meio de resgatá-las em provas proveitosas.

266. Não parece natural que os Espíritos escolham as provas menos penosas?

— Para vós, sim; para o Espírito, não. Quando ele está liberto da matéria, cessa a ilusão, e a sua maneira de pensar é diferente.

O homem, submetido na Terra à influência das idéias carnais, só vê nas suas provas o lado penoso. E por isso que lhe parece natural escolher as que, do seu ponto de vista, podem subsistir com os prazeres materiais. Mas na vida espiritual ele compara os prazeres fugitivos e grosseiros com a felicidade inalterável que entrevê, e então que lhe importam alguns sofrimentos passageiros. O Espírito pode escolher a prova mais rude e em conseqüência a existência mais penosa, com a esperança de chegar mais depressa a um estado melhor, como o doente escolhe muitas vezes o remédio mais desagradável para se curar mais rapidamente. Aquele que deseja ligar o seu nome à descoberta de um país desconhecido não escolhe um caminho coberto de flores, pois sabe os perigos que corre, mas sabe também a glória que o espera, se for feliz.

A doutrina da liberdade de escolha das nossas existências, e das provas que devemos sofrer, deixa de parecer estranha. Quando consideramos que os Espíritos, libertos da matéria, apreciam as coisas de maneira diferente da nossa. Eles antevêm o fim, e esse fim lhes parece muito mais importante que

os prazeres fugitivos do mundo. Depois de cada existência, vêem o progresso que fizeram e compreendem quanto ainda lhes falta em pureza para o atingirem. Eis porque se submetem voluntariamente a todas as vicissitudes da vida corpórea, pedindo eles mesmos aquelas que podem fazê-los chegar mais depressa. Não há pois, motivo para nos admirarmos de ver o Espírito não dar preferência à existência mais suave. No seu estado de imperfeição, ele não pode desfrutar a vida sem amarguras, que apenas entrevê; e é paraatingi-la que procura melhorar-se.

Não vemos diariamente exemplos de coisas parecidas? O homem que trabalha uma parte de sua vida, sem tréguas nem descanso, a fim de ajuntar o necessário para o seu bem-estar não desempenha uma tarefa que se impôs, com vistas a um futuro melhor? O militar que se oferece para uma missão perigosa, o viajante que não enfrenta menores perigos, no interesse da Ciência ou de sua própria fortuna, não se submetem a provas voluntárias, que devem proporcionar-lhes honra e proveito, se as vencerem? A que o homem não se expõe, pelo seu interesse ou pela sua glória? Todos os concursos não são provas voluntárias para melhorar na carreira escolhida? Não se chega a nenhuma posição social de elevada importância, nas Ciências, nas artes, na indústria, sem passar pela série de posições inferiores, que são outras tantas provas. A vida humana é assim o decalque da vida espiritual. Nela

encontramos em menor escala todas as peripécias daquela. Se na vida terrena escolhemos muitas vezes as provas mais difíceis, com vistas a um fim mais elevado, por que o Espírito, que vê mais longe, e para quem a vida do corpo é apenas um incidente fugitivo, não escolherá uma existência penosa e laboriosa, se ela o deve conduzir a uma felicidade eterna? Aqueles que dizem que se pudessem escolher a sua existência teriam pedido a de príncipes ou milionários, são como os míopes que não vêem o que tocam, ou como as crianças gulosas que respondem, quando perguntamos que profissão preferem: pasteleiros ou confeiteiros.

Da mesma maneira, o viajante no fundo de um vale nevoento, não pode ver a extensão nem os pontos extremos da sua rota; mas, chegando ao cume da montanha, seu olhar abrange o caminho percorrido e o que falta a percorrer, vê o final de sua viagem, os obstáculos que ainda tem de vencer, e pode então escolher com mais segurança os meios de o atingir. O Espírito encarnado é como o viajante no fundo do vale; desembaraçado dos liames terrestres, é como o que atingiu o cume. Para o viajante, o fim é o repouso após a fadiga para o Espírito, é a felicidade suprema, após as tribulações e as provas.

Todos os Espíritos dizem que, no estado errante, buscam, estudam, observam, para fazerem suas escolhas. Não temos um exemplo disso na vida corpórea? Não buscamos muitas vezes através dos anos a carreira que

livremente acabamos por escolher, porque a achamos a mais apropriada aos nossos objetivos? Se fracassamos numa, procuramos outra. Cada carreira que abraçamos é uma fase, um período de vida: Não empregamos cada dia em escolher o que faremos no outro? Ora, o que são as diferentes existências corpóreas, para o Espírito, senão fases, períodos, dias da sua vida espírita, que, como o sabemos, é a vida normal, não sendo a vida corporal mais o que transitória, passageira?

267. O Espírito poderia fazer a sua escolha durante a vida corporal?

Seu desejo pode ter influência. Isso depende da intenção. Mas, no estado de Espírito, freqüentemente vê as coisas de maneira bem diversa. É o Espírito quem faz a escolha. Mas, ainda assim, ele pode fazê-la nesta vida material, porque o Espírito tem sempre os momentos em que se liberta da matéria.

267-a. Muitas pessoas desejam grandezas e riquezas, mas não como expiação nem como prova.

Sem dúvida; a matéria deseja essa grandeza para gozá-la, e o Espírito a deseja para conhecer-lhe as vicissitudes.

268. Até que chegue ao estado de perfeita pureza, o Espírito tem de passar constantemente por provas?

Sim, mas elas não são como as entendeis. Chamais provas às tribulações materiais; ora, o Espírito, chegado a um certo grau, mesmo sem ser perfeito,

não tem mais nada a sofrer. Mas tem sempre deveres que o ajudam a se aperfeiçoar, e que não são penosos para ele, a não ser os de ajudar os outros a se aperfeiçoarem.

269. O Espírito pode enganar-se quanto à eficácia da prova que escolher?

Pode escolher uma que esteja acima das suas forças, e então sucumbe. Pode também escolher uma que não lhe dê proveito algum, como um gênero de vida ociosa e inútil. Mas, nesse caso, voltando ao mundo dos Espíritos, percebe que nada ganhou e pede para recuperar o tempo perdido.

270. A que se devem as vocações de certas pessoas e sua vontade de seguir uma carreira em vez de outra?

Parece-me que podeis responder por vós mesmos a esta questão. Não é a conseqüência de tudo o que dissemos sobre a escolha das provas e sobre o progresso realizado numa existência anterior?

271. Quando o Espírito estuda, na erraticidade, as diversas condições em que poderá progredir, como julga poder fazê-lo, se nascer entre canibais?

Não são os Espíritos já adiantados que nascem entre os canibais, mas os Espíritos da mesma natureza dos canibais, ou que lhes são inferiores.

Sabemos que os nossos antropófagos não estão no último grau da escala, e que há mundos onde o embrutecimento e a ferocidade ultrapassam tudo que existe na Terra. Esses Espíritos são, portanto, ainda inferiores aos mais

inferiores do nosso mundo, e vir para o meio dos nossos selvagens é para eles um progresso, como seria um progresso para os nossos antropófagos exercer entre nós uma profissão que não os obrigasse a derramar sangue. Se eles não visam a mais alto, é porque a sua inferioridade moral não lhes permite compreender um progresso mais completo. O Espírito não pode avançar senão gradualmente; não pode transpor de um salto a distância que separa a barbárie da civilização. E está nisso uma necessidade da reencarnação, que se mostra verdadeiramente de acordo com a justiça de Deus. De outra maneira, em que se transformariam esses milhões de seres que morrem diariamente no último estado de degradação, se não tivessem meios de se elevar? Por que Deus os teria deserdado dos favores concedidos aos demais?

272.Os Espíritos procedentes dum mundo inferior à Terra, ou dum mundo muito atrasado, como os canibais, poderiam nascer entre os povos civilizados?

— Sim, há os que se extraviam, ao quererem subir muito alto; mas ficam deslocados entre vós, porque têm hábitos e instintos que se chocam com os vossos.

Esses seres nos dão o triste espetáculo da ferocidade em meio da civilização. Retornando para o meio dos canibais, isso não será um retrocesso, pois não farão mais do que retomar o seu lugar, e talvez ainda com proveito.

273.Um homem pertencente a uma raça civilizada poderia, por expiação,

reencarnar-se numa raça selvagem?

— Sim, mas isso depende do gênero da expiação. Um senhor que tenha sido duro para os seus escravos poderá tornar-se escravo e sofrer os maus tratos que infligiu a outros. Aquele que mandou numa época, pode, em outra existência, obedecer aos que se curvaram ante a sua vontade. É uma expiação, se ele abusou do poder e Deus pode determiná-la. Um bom Espírito pode, para os fazer avançar, escolher uma vida de influência entre esses povos. Então se trata de uma missão.

VI — Relações de Além-Túmulo

274.As diferentes ordens de Espíritos estabelecem entre elas uma hierarquia de poderes; e há entre eles subordinação e autoridade?

— Sim, muito grande. Os Espíritos têm, uns sobre os outros, a autoridade relativa à sua superioridade. E a exercem por meio de uma ascendência moral irresistível.

274-a. Os Espíritos inferiores podem subtrair-se à autoridade dos superiores?

— Eu disse: irresistível.

275.O poder e a consideração de que um homem goza na Terra dão-lhealguma supremacia no mundo dos Espíritos?

Não; pois os pequenos serão elevados e os grandes rebaixados. Lede os salmos.

275-a. Como devemos entender essa elevação e esse rebaixamento? — Não sabes que os Espíritos são de diferentes ordens, segundo os seus méritos? Pois bem: o maior na Terra pode estar na última classe entre os Espíritos; enquanto o seu servidor estará na primeira. Compreendes isso? Jesus não disse: Quem se humilhar será exaltado, e quem se exaltar será humilhado?

276. Aquele que foi grande na Terra e se encontra inferior entre os Espíritos, sente humilhação?

Quase sempre muito grande, sobretudo se era orgulhoso e invejoso.

277.O soldado que, após a batalha, encontra o seu general no mundo dos Espíritos, reconhece-o ainda como seu superior?

— O título não é nada; a superioridade real é tudo.

278.Os Espíritos de diferentes ordens estão misturados?

— Sim e não; quer dizer, eles se vêem, mas se distinguem uns dos outros.Afastam-se ou se aproximam segundo a semelhança ou divergência de seus sentimentos como acontece entre vós. É todo um mundo, do qual o vosso é o reflexo obscuro. Os da mesma ordem se reúnem por uma espécie de afinidade, e formam grupos ou famílias de Espíritos unidos pela simpatia e pelos propósitos; os bons, pelo desejo. de fazer o bem; os maus, pelo desejo de fazer

o mal, pela soma de suas faltas e pela necessidade de se encontrarem entre os seres semelhantes a eles.

Igual a uma grande cidade, onde os homens de todas as classes e de todas as condições se vêem e se encontram, sem se confundirem, onde as sociedades se formam pela similitude de gostos, onde o vício e a virtude se acotovelam, sem se falarem.

279. Todos os Espíritos têm acesso, reciprocamente, uns junto aos outros?

Os bons vão por toda p arte e é necessário que assim seja, para que possam exercer a sua influência sobre os maus. Mas as regiões habitadas pelos bons são interditadas aos imperfeitos, a fim de que não levem a elas o distúrbio das más paixões.

280. Qual é a natureza das relações entre os bons e os maus Espíritos?

Os bons procuram combater as más tendências dos outros, a fim de os ajudar a subir; é uma missão.

281. Por que os Espíritos inferiores se comprazem em nos levar ao mal?

Pelo despeito de não terem merecido estar entre os bons. Seu desejo é o de impedir, tanto quanto puderem, que os Espíritos ainda inexperientes atinjam o bem supremo. Querem fazer os outros provarem aquilo que eles provam. Não vedes o mesmo entre vós?

282. Como os Espíritos se comunicam entre si?

Eles se vêem e se compreendem; a palavra é material: é o reflexo da faculdade espiritual. O fluido universal estabelece entre eles uma comunicação constante; é o veículo de transmissão do pensamento, como o ar é para vós o veículo do som. Uma espécie de telégrafo universal que liga todos os mundos, permitindo aos Espíritos corresponderem-se de um mundo a outro.

283. Os Espíritos podem dissimular reciprocamente os seus pensamentos; podem esconder-se uns dos outros?

Não; para eles, tudo permanece descoberto, principalmente quando são perfeitos. Podem distanciar-se uns dos outros, mas sempre se vêem. Esta não é uma regra absoluta, porque certos Espíritos podem muito bem tornar-seinvisíveis para outros, se julgam útil fazê-lo.

284. Como podem os Espíritos que não têm mais corpo, constatar a própria individualidade e distinguir-se dos outros que os odeiam?

Constatam a sua individualidade pelo perispírito, que os torna seres distintos uns para os outros, como os corpos entre os homens.

285. Os Espíritos se reconhecem por terem convivido na Terra? O filho reconhece o pai, o amigo o seu amigo?

Sim, e assim de geração em geração.

285-a. Como se reconhecem no mundo dos Espíritos os homens que se

conheceram na Terra?

Vemos a nossa vida passada e a lemos como um livro. Vendo o passado de nossos amigos e de nossos inimigos, vemos a sua passagem da vida para a morte.

286. A alma, ao deixar o despojos mortais, vê imediatamente os parentes e amigos que a precederam no mundo dos Espíritos?

Imediatamente, nem sempre; pois, como já dissemos, é-lhe necessário algum tempo para reconhecer o seu estado e sacudir o véu material.

287. Como a alma é recebida, na sua volta ao mundo dos Espíritos?

A do justo, como um irmão bem-amado e longamente esperado; a do mau, como um ser que se despreza.

288. Que sentimento experimentam os Espíritos impuros, à vista de outro mau Espírito que chega?

Os maus ficam satisfeitos de verem os seres à sua imagem e como eles privados da felicidade infinita; como acontece na Terra a um ladrão entre os seus iguais.

289. Nossos parentes e nossos amigos vêm, às vezes, ao nosso encontro, quando deixamos a Terra?

Sim, vêm ao encontro da alma que estimam, felicitam-na como no regresso de uma viagem, se ela escapou aos perigos do caminho e a ajudam a se desprender dos liames corporais. É um favor concedido aos bons Espíritos,

quando os que os amam vêm ao seu encontro, enquanto os que estão manchados ficam no isolamento ou cercados somente de Espíritos semelhantes a eles: é uma punição.

290. Os parentes e os amigos reúnem-se sempre após a morte?

Isso depende de sua elevação e do caminho que seguem para o seu adiantamento. Se um deles está mais adiantado e marcha mais rápido que o outro, não poderão ficar juntos; poderão ver-se algumas vezes mas não estarão sempre reunidos, a não ser quando possam marchar ombro a ombro, ou quando tiverem atingido a igualdade na perfeição. Além disso, a privação de ver os parentes e amigos é às vezes uma punição.

VII — Relações Simpáticas e Antipáticas. Metades Eternas

291. Além da simpatia geral, determinada pelas semelhanças, há afeições particulares entre os Espíritos?

Sim, como entre os homens. Mas o liame que une os Espíritos é mais forte na ausência do corpo, porque não está mais exposto às vicissitudes das paixões.

292. Há aversões entre os Espíritos?

Não há aversões senão entre os Espíritos impuros, e são estes que excitam entre vós as inimizades e as dissensões.

293. Dois seres que foram inimigos na Terra conservarão os seus

ressentimentos no mundo dos Espíritos?

Não; compreenderão que sua dimensão era estúpida, e o motivo, pueril. Apenas os Espíritos imperfeitos conservam uma espécie de animosidade, até que se purifiquem. Se não foi senão um interesse material o que os separou, não pensarão mais nele, por pouco desmaterializados que estejam. Se não houver antipatia entre eles, o motivo da dissensão não mais existindo, podemrever-se com prazer.

Da mesma maneira que dois escolares, chegando à idade da razão reconhecem a puerilidade de suas brigas infantis e deixam de se malquerer.

294. A lembrança das más ações que dois homens cometeram, um contra o outro, é obstáculo à sua simpatia?

Sim, ela os leva a se distanciarem.

295.Que sentimento experimentam, após a morte, aqueles a quem fizemos mal neste mundo?

— Se são bons, perdoam, de acordo com o vosso arrependimento. Se são maus, podem conservar o ressentimento, e por vezes vos perseguir até numa outra existência. Deus pode permiti-lo, como um castigo.

296.As afeições individuais dos Espíritos são suscetíveis de alteração?

— Não, porque eles não podem enganar-se, não usam mais a máscara sob a qual se ocultam os hipócritas e é por isso que as suas afeições são inalteráveis,

quando eles são puros. O amor que os une é para eles a fonte de uma suprema

felicidade.

297.A afeição que dois seres mantiveram na Terra prossegue sempre, no mundo dos Espíritos?

— Sim, sem dúvida, se ela se baseia numa verdadeira simpatia; mas se as causas de ordem física tiveram maior influência que a simpatia, ela cessa com as causas. As afeições entre os Espíritos são mais sólidas e mais duráveis que na Terra, porque não estão subordinadas ao capricho dos interesses materiais e do amor-próprio.

298.As almas que devem unir-se estão predestinadas a essa união, desde a sua origem, e cada um de nós tem em alguma parte do Universo, a sua metade,

àqual um dia se unirá fatalmente?

Não; não existe união particular e fatal entre duas almas. A união existe entre todos os Espíritos, mas em graus diferentes, segundo a ordem que ocupam, a perfeição que adquiriram: quanto mais perfeitos, tanto mais unidos. Da discórdia nascem todos os males humanos; da concórdia resulta a felicidade completa.

299. Em que sentido se deve entender a palavra metade, de que certos Espíritos se servem para designar os Espíritos simpáticos?

A expressão é inexata; se um Espírito fosse a metade de outro, uma vez

separado estaria incompleto.

300.Dois Espíritos perfeitamente simpáticos, quando reunidos, ficarão assim pela eternidade, ou podem separar-se e unir-se a outros Espíritos?

— Todos os Espíritos são unidos entre si. Falo dos que já atingiram a perfeição. Nas esferas inferiores, quando um Espírito se eleva, já não tem a mesma simpatia pelos que deixou.

301.Dois Espíritos simpáticos são complemento um do outro, ou essa simpatia é o resultado de uma afinidade perfeita?

— A simpatia que atrai um Espírito para outro é o resultado da perfeita concordância de suas tendências, de seus instintos; se um devesse completar o outro, perderia a sua individualidade.

302.A afinidade necessária para a simpatia perfeita consiste apenas na semelhança dos pensamentos e sentimentos, ou também na uniformidade dos conhecimentos adquiridos?

— Na igualdade dos graus de elevação.

303.Os Espíritos que hoje não são simpáticos, podem sê-lo mais tarde?

— Sim, todos o serão. Assim, o Espírito que está hoje numa determinada

esfera inferior, quando se aperfeiçoar, chegará à esfera em que se encontra outro. Seu encontro se realizará mais prontamente, se o Espírito mais elevado, suportando mal as provas a que se submetera, tiver permanecido no mesmo

estado.

303-a. Dois Espíritos simpáticos podem deixar de sê-lo?

— Certamente, se um deles é preguiçoso.

A teoria das metades eternas é uma imagem que representa a união de dois Espíritos simpáticos. É uma expressão usada até mesmo na linguagem vulgar, e que não deve ser tomada ao pé da letra. Os Espíritos que dela se servem não pertencem à ordem mais elevada. A esfera de suas idéias é necessariamente limitada, e exprimem o seu pensamento pelos termos de que se teriam servido na vida corpórea. E necessário rejeitar esta idéia de que dois Espíritos, criados um para o outro, devem um dia fatalmente reunir-sena eternidade, após terem permanecido separados durante um lapso de tempo mais ou menos longo.

VIII — Lembrança da Existência Corpórea

304. O Espírito se lembra da sua existência corpórea?

Sim, tendo vivido muitas vezes como homem, recorda-se do que foi. E te asseguro que, por vezes, ri-se de piedade de si mesmo.

Como o homem que, atingido a idade da razão, ri das suas loucuras da juventude, ou das suas puerilidades da sua infância.

305. A lembrança da existência corpórea se apresenta ao Espírito de maneira completa e inopinada, após a morte?

Não: mas pouco a pouco, como alguma coisa que sai do nevoeiro, e à

medida que nela vai fixando a sua atenção.

306.O Espírito se lembra detalhadamente de todos os acontecimentos de sua vida; abrangendo o conjunto, num golpe de vista retrospectivo?

— Lembra-se das coisas na razão das conseqüências que acarretam para a sua situação de Espírito. Mas compreendes que há circunstâncias às quais ele não aribui nenhuma importância, e que nem mesmo procura recordar.

306-a. Poderia lembrá-las, se o quisesse?

— Pode lembrar-se dos detalhes e dos incidentes mais minuciosos, seja de acontecimentos, seja mesmo de seus pensamentos. Mas quando isso não tem utilidade ele não o faz.

306-b. Entrevê a finalidade da vida terrestre, com relação à vida futura?

— Seguramente que a vê e compreende, muito melhor do que quando vivia no corpo. Compreende a necessidade de purificação para chegar ao infinito, e sabe que a cada existência se livra de algumas impurezas.

307.De que maneira a vida passada se desenrola na memória do Espírito? Por um esforço da sua imaginação, ou como um quadro que ele tenha ante os olhos?

— De uma e outra forma. Todos os atos que tenham interesse para a sua lembrança são para ele como se estivessem presentes: os outros ficam mais ou menos no fundo da memória, ou completamente esquecidos. Quanto mais

desmaterializado estiver, menos importância atribui às coisas materiais. Fazes muitas vezes a evocação de um Espírito errante, que acabou de deixar a Terra e não se lembra dos nomes das pessoas que amava, nem dos detalhes que para ti parecem importantes; é que pouco lhe interessam, e caem no esquecimento. Aquilo de que ele se lembra muito bem são os fatos principais, que o ajudam a progredir.

308.O Espírito se lembra de todas as existências que precederam a que acabou de deixar?

— Todo o seu passado se desenrola diante dele, como as etapas de um caminho que o viajante percorreu. Mas, como já dissemos, ele não se lembra de maneira absoluta, de todos os atos, recordando-os apenas na razão da influência que tenham sobre o seu estado presente. Quanto às primeiras existências, as que se podem considerar como a infância do Espírito, perdem- se no vazio e desaparecem na noite do esquecimento.

309.Como o Espírito considera o corpo que acabou de deixar?

Como uma veste imprópria, que o incomodava, e da qual se sente feliz por se ter desembaraçado.

309-a. Que sentimento experimenta à vista do seu corpo em decomposição?

Quase sempre o de indiferença, como por uma coisa a que não dá mais importância.

310.Ao fim de um certo lapso de tempo, o Espírito reconhece os ossos ou outras coisas que lhe tenham pertencido?

— Algumas vezes. Isso depende da maneira mais ou menos elevada pela qual considere as coisas terrestres.

311.O respeito que se tem pelas coisas materiais que os Espíritos deixaram atrai a sua atenção para esses objetos, e eles consideram esse respeito com prazer?

— O Espírito se sente sempre feliz de ser lembrado. As coisas que dele conservamos avivam em nós a sua lembrança, mas é o pensamento o que o atrai para vós, e não os objetos.

312.Os Espíritos conservam a lembrança dos sofrimentos que suportaram durante sua última existência corpórea?

— Freqüentemente a conservam, e essa lembrança os faz melhor avaliar a felicidade que podem desfrutar como Espíritos.

313.O homem que foi feliz neste mundo lastima os gozos que perdeu, ao deixar a Terra?

— Somente os Espíritos inferiores podem lastimar os gozos que correspondem à impureza de sua natureza, e que eles expiam pelo sofrimento. Para os Espíritos elevados, a felicidade eterna é mil vezes preferível aos prazeres efêmeros da Terra.

Como o adulto que desprezou o que constituía as delícias da sua infância.

314.Aquele que iniciou grandes trabalhos com uma finalidade útil e que os vê interrompidos pela morte, lamenta tê-los deixado por acabar?

— Não, porque vê que outros estão destinados a concluí-los. Ao contrário, trata de influenciar outros Espíritos humanos a continuá-los. Seu objetivo na Terra era o bem da humanidade; esse objetivo é o mesmo, no mundo dos Espíritos.

315.Aquele que deixou trabalhos de arte ou de literatura, conserva pelas suas obras o amor que tinha durante a vida?

— Segundo sua elevação, julga-as de outra maneira e freqüentemente reprova o que mais admirava.

316.O Espírito se interessa ainda pelos trabalhos que se fazem na Terra, pelo progresso das artes e das ciências?

— Isso depende de sua elevação ou da missão que possa ter a cumprir. Aquilo que vos parece magnífico é freqüentemente bem pouca coisa para certos Espíritos, que o admiram como o sábio admira a obra de um escolar. Eles examinam o que pode provar a elevação dos Espíritos encarnados e seus progressos.

317.Os Espíritos conservam, depois da morte, o amor da pátria?

— E sempre o mesmo princípio: para os Espíritos elevados, a pátria é o

Universo; na Terra, é aquela em que possuem maior número de pessoas simpáticas.

A situação dos Espíritos e sua maneira de ver as coisas variam ao infinito, na razão do grau de seu desenvolvimento moral e intelectual. Os Espíritos de uma ordem elevada geralmente só fazem na Terra estações de curta duração. Tudo quanto aqui se faz é tão mesquinho, em comparação com as grandezas do infinito; as coisas a que os homens atribuem a maior importância são tão pueris aos seus olhos, que eles encontram poucos atrativos neste mundo, a menos que tenham sido chamados a fim de concorrer para o progresso da humanidade. Os Espíritos de uma ordem intermédia passam mais freqüentemente por aqui, embora considerem as coisas de maneira mais elevada do que durante a encarnação. Os Espíritos vulgares são de alguma maneira os que aqui permanecem constituindo a massa da população ambiente do mundo invisível. Conservam, com pouca diferença as mesmas idéias, os mesmos gostos e as mesmas tendências que tinham no seu envoltório corporal. Intrometem-se nas nossas reuniões, nos nossos negócios, nas nossas diversões tomando parte mais ou menos ativa, segundo o seu caráter. Não podendo satisfazer as suas paixões. Gozam com os que a elas se entreguem, e as excitam nessas pessoas. Encontramos entre eles alguns mais sérios, que vêem e observam para se instruir e aperfeiçoar.

318. As idéias dos Espíritos se modificam na vida de Espírito?

Muito; sofrem modificações muito grandes, à medida que o Espírito se desmaterializa. Ele pode, às vezes, permanecer muito tempo com as mesmas idéias, mas pouco a pouco a influência da matéria diminui e ele vê as coisas mais claramente. E então que procura os meios de se melhorar.

319. Desde que o Espírito já viveu a vida espírita, antes da sua encarnação, de onde vem o seu espanto ao reentrar no mundo dos Espíritos?

Esse é apenas o efeito do primeiro momento e da perturbação que se segue ao despertar. Mais tarde, ele reconhece perfeitamente o seu estado, à medida que lhe volta a lembrança do passado e que se desfaz a impressão da vida terrestre. (Ver o item 163 e seguintes).

IX — Comemoração dos Mortos – Funerais

320. Os Espíritos são sensíveis à saudade dos que os amavam na Terra?

Muito mais do que podeis julgar. Essa lembrança aumenta-lhes a felicidade, se são felizes, e se são infelizes, serve-lhes de alívio.

321. O dia de comemoração dos mortos tem alguma coisa de mais solene para os Espíritos? Preparam-se eles para visitar os que vão orar sobre os túmulos?

Os Espíritos atendem ao chamado do pensamento, nesse dia como nos

outros.

321-a. Esse é para eles um dia de reunião junto às sepulturas?

Reúnem-se em maior número nesse dia, porque maior é o número de pessoas que os chamam. Mas cada um só comparece em atenção aos seus amigos, e não pela multidão dos indiferentes.

321-b. Sob que forma comparecem, e como seriam vistos, se pudessemtornar-se visíveis?

Sob a que tinham em vida.

322.Os Espíritos esquecidos, cujas tumbas não são visitadas por ninguém, comparecem apesar disso e sentem algum desgosto por não verem nenhum amigo se lembrar deles?

— Que lhes importa a Terra? Somente pelo coração se prendem a ela. Se não mais o amam, nada mais há que faça o Espírito voltar à Terra. Ele tem todo o Universo pela frente.

323.A visita ao túmulo proporciona mais satisfação ao Espírito do que uma prece feita em sua intenção?

— A visita ao túmulo é uma maneira de manifestar que se pensa no Espírito ausente: é a exteriorização desse fato. Eu já vos disse que é a prece que santifica o ato de lembrar; pouco importa o lugar se a lembrança é ditada pelo coração.

324.Os Espíritos das pessoas homenageadas com estátuas ou monumentos assistem às inaugurações e as vêem com prazer?

— Muitos as assistem, quando podem, mas são menos sensíveis às honras que lhes tributam do que às lembranças.

325.De onde pode vir, para certas pessoas, o desejo de serem enterradas antes num lugar do que noutro? Voltam a ele com mais satisfação, após a morte? E essa importância dada a uma coisa material é sinal de inferioridade do Espírito?

— Afeição do Espírito por certos lugares: inferioridade moral. O que representa um pedaço de terra, mais do que outro, para o Espírito elevado? Não sabe ele que a sua alma se reunirá aos que ama, mesmo que os seus ossos estejam separados?

325-a. A reunião dos despojos mortais de todos os membros de uma família deve ser considerada como futilidade?

— Não. É um costume piedoso e um testemunho de simpatia pelos entes amados. Se essa reunião pouco representa para os Espíritos, é útil para os homens: suas recordações se concentram melhor.

326.A alma que volta à vida espiritual é sensível às honras que tributam aos seus despojos mortais?

— Quando o Espírito já chegou a um certo grau de perfeição não tem mais a

vaidade terrestre e compreende a futilidade de todas as coisas. Sabei, porém, que freqüentemente há Espíritos que, no primeiro momento da morte, gozam de grande satisfação com as honras que lhes tributam, ou se desgostam com o abandono a que lançam o seu envoltório, pois conservam ainda alguns preconceitos deste mundo.

327. O Espírito assiste ao seu enterro?

Muito freqüentemente o assiste. Mas algumas vezes não percebe o que se passa, se ainda estiver perturbado.

327-a. Fica lisonjeado com a concorrência ao seu enterro?

Mais ou menos, segundo o sentimento que provoca essa concorrência. 328. O Espírito daquele que acaba de morrer assiste às reuniões de seus

herdeiros?

Quase sempre. Deus o quer, para sua própria instrução e para castigo dos culpados. E nessa ocasião que vê quanto valiam os protestos que lhe faziam. Todos os sentimentos se tornam patentes, e a decepção que experimenta vendo a rapacidade dos que dividem o seu espólio, o esclarece quanto aos propósitos. Mas a vez deles também chegará.

329. O respeito instintivo do homem pelos mortos em todos os tempos e entre todos os povos é um efeito da intuição da existência futura?

É a sua conseqüência natural. Sem ela, esse respeito não teria sentido.

Capítulo VII

Retorno à Vida Corporal

I — Prelúdio do Retorno

330. Os Espíritos conhecem a época em que terão de se reencarnar?

Eles a pressentem, como o cego sente o fogo de que se aproxima. Sabem que devem retomar um corpo, como sabeis que deveis morrer um dia, mas ignoram quando isso acontecerá. (Ver item 166).

330-a. A reencarnação é, portanto, uma necessidade da vida espírita, como a morte é uma necessidade da vida corpórea?

Seguramente, assim é.

331. Todos os Espíritos se preocupam com a sua reencarnação?

Há os que absolutamente não pensam nela, que nem mesmo a compreendem; isso depende de sua natureza mais ou menos avançada. Para alguns, a incerteza quanto ao futuro é uma punição.

332. O Espírito pode abreviar ou retardar o momento da reencarnação?

Pode abreviá-lo, solicitando-o por suas preces e pode tambémretardá-lo, se recuar ante a prova. Porque entre os Espíritos há também indiferentes e poltrões; mas não o faz impunemente, pois sofre com isso, como aquele que recusa o remédio que o pode curar.

333.Se um Espírito se sentisse bastante feliz numa condição mediana entre os Espíritos errantes, e não tivesse a ambição de se elevar, poderia prolongar indefinidamente esse estado?

— Não indefinidamente; cedo ou tarde, o Espírito sente a necessidade de avançar; todos devem elevar-se, pois esse é o destino de todos.

334.A união da alma com este ou aquele corpo está predestinada, ou no último momento é que se faz a escolha?

— O Espírito é sempre designado com antecedência. Escolhendo a prova que deseja sofrer, o Espírito pede para se encarnar; Deus, que tudo sabe e tudo vê, sabe e vê com antecedência que tal alma se unirá a tal corpo.

335.O Espírito tem o direito de escolher o corpo ou somente o gênero de vida que lhe deve servir de prova?

— Ele pode escolher também o corpo, porque as imperfeições do corpo são provas que o ajudam no seu adiantamento, se ele vencer os obstáculos encontrados; mas a escolha nem sempre depende dele, que pode pedi-la.

335-a. Pode o Espírito, no último momento, recusar o corpo escolhido?

— Se o recusasse, sofreria muito mais do que aquele que não tivesse tentado nenhuma prova.

336.Poderia acontecer que um corpo que deve nascer não encontrasse Espírito para encarnar-se nele?

Deus proveria a isso. A criança, quando deve nascer para viver, tem sempre uma alma predestinada; nada é criado sem um desígnio.

337. A união do Espírito com determinado corpo pode ser imposta por Deus?

Pode ser imposta, da mesma maneira que as diferentes provas, sobretudo quando o Espírito ainda não está apto a fazer uma escolha com conhecimento de causa. Como expiação, o Espírito pode ser constrangido a se unir ao corpo de uma criança que, por seu nascimento e pela posição que terá no mundo, poderá tornar-se para ele um meio de castigo.

338. Se acontecesse que muitos Espíritos se apresentassem para ocupar um mesmo corpo que vai nascer, o que decidiria entre eles?

Muitos podem pedi-lo, mas é Deus quem julga, em casos assim, qual é o mais capaz de preencher a missão a que a criança se destina. Mas, como já disse, o Espírito é designado antes do instante em que deve unir-se ao corpo.

339. O momento da encarnação é seguido de perturbação semelhante ao que se verifica na desencarnação?

Muito maior, e sobretudo mais longa. Na morte, o Espírito sai da escravidão; no nascimento, entra nela.

340. O instante em que o Espírito deve encarnar-se é para ele um instante solene? Cumpre ele esse ato como coisa grave e importante?

É como um viajante que embarca para uma travessia perigosa e não sabe se vai encontrar a morte nas vagas que afronta.

O viajante que embarca sabe a que perigos se expõe, mas não sabe se naufragará. Assim se dá com o Espírito: ele conhece o gênero de provas a que se submete, mas não sabe se sucumbirá.

Da mesma maneira que a morte do corpo é um renascimento para o Espírito, a reencarnação é para ele uma espécie de morte, ou antes, de exílio e de clausura. Ele deixa o mundo dos Espíritos pelo mundo corpóreo, como o homem deixa o mundo corpóreo pelo mundo dos Espíritos. O Espírito sabe que se reencarnará, como o homem sabe que morre; mas, como este, não tem consciência do fato senão no último momento, quando chega o tempo desejado. Então, nesse momento supremo, a perturbação o envolve, como no homem em agonia, e essa perturbação persiste até que a nova existência esteja nitidamente firmada. O início da reencarnação é uma espécie de agonia para o Espírito.

341.A incerteza do Espírito quanto à eventualidade do sucesso das provas que vai sofrer na vida é para ele uma causa de aflição, antes da encarnação?

Uma grande aflição, pois as provas da sua existência o retardarão ou farão avançar, segundo as tiver bem ou mal suportado.

342. No momento de sua reencarnação o Espírito é acompanhado por outros

Espíritos, seus amigos, que assistem à sua partida do mundo espírita, como o

vão receber na sua volta?

Isso depende da esfera que o Espírito habita. Se está nas esferas em que reina a afeição, os Espíritos que o amam o acompanham até o derradeiro momento, o encorajam, e freqüentemente mesmo, o seguem durante a vida.

343. Os Espíritos amigos, que nos seguem durante a vida são, por vezes, os que vemos em sonho, que nos testemunham a sua afeição e que se nos apresentam com feições desconhecidas?

Muito freqüentemente o são; eles vêm visitar-vos, como ides ver um prisioneiro nas grades.

II — União da Alma com o Corpo

344. Em que momento a alma se une ao corpo?

— A união começa na concepção, mas não se completa senão no instante do nascimento. Desde o momento da concepção, o Espírito designado para tomar determinado corpo a ele se liga por um laço fluídico que se vai encurtando cada vez mais, até o instante em que a criança vem à luz; o grito que então se escapa de seus lábios anuncia que a criança entrou para o número dos vivos e dos servos de Deus.

345. A união entre o Espírito e o corpo é definitiva desde o momento da concepção? Durante esse primeiro período o Espírito poderia renunciar a

tomar o corpo que lhe foi designado?

A união é definitiva, no sentido em que outro Espírito não poderia substituir o que foi designado para o corpo, mas, como os laços que o prendem são mais frágeis, fáceis de romper, podem ser rompidos pela vontade do Espírito que recua ante a prova escolhida. Nesse caso, a criança não vinga.

346. Que acontece ao Espírito, se o corpo que ele escolheu morre antes de nascer?

Escolhe outro.

346-a. Qual pode ser a utilidade dessas mortes prematuras?

As imperfeições da matéria, na maioria das vezes, são a causa dessas mortes.

347. Que utilidade pode ter para um espírito a sua encarnação num corpo que morre poucos dias depois de nascer?

O ser ainda não tem consciência bastante desenvolvida da sua existência; a importância da morte é quase nula; freqüentemente, como já dissemos, trata- se de uma prova para os pais.

348. O Espírito sabe, com antecedência, que o corpo por ele escolhido não tem possibilidade de viver?

Sabe, algumas vezes; mas, se o escolheu por esse motivo, é que recua ante a prova.

349.Quando falha uma encarnação para o Espírito, por uma causa qualquer,

éela suprida imediatamente por outra existência?

Nem sempre imediatamente; o Espírito necessita de tempo para escolher de novo, a menos que a reencarnação instantânea decorra de uma determinação anterior.

350. O Espírito, uma vez unido ao corpo da criança, e não podendo mais retroceder, lamenta algumas vezes a escolha feita?

Queres perguntar se, como homem, ele se queixa da vida que tem? Se desejaria outra? Sim. Se lamenta a escolha feita? Não, porque não sabe que a escolheu. O Espírito, uma vez encarnado, não pode lamentar uma escolha de que não tem consciência, mas pode achar muito pesada a carga. E, se a considera acima de suas forças, é então que recorre ao suicídio.

351. No intervalo da concepção ao nascimento, o Espírito goza de todas as suas faculdades?

Mais ou menos, segundo a fase, porque não está ainda encarnado, mas ligado ao corpo. Desde o instante da concepção, a perturbação começa a envolver o Espírito, advertindo-o assim de que chegou o momento de tomar uma nova existência; essa perturbação vai crescendo até o nascimento. Nesse intervalo, seu estado é mais ou menos o de um Espírito encarnado, durante o sono do corpo. À medida que o momento do nascimento se aproxima, suas

idéias se apagam, assim como a lembrança do passado se apaga desde que entrou na vida. Mas essa lembrança lhe volta pouco a pouco à memória. no seu estado de Espírito.

352.No instante do nascimento o Espírito recobra imediatamente a plenitude de suas faculdades?

— Não: elas se desenvolvem gradualmente, com os órgãos. Ele se encontra numa nova existência; é preciso que aprenda a se servir dos seus instrumentos: as idéias lhe voltam pouco a pouco, como um homem que acorda e se encontra numa posição diferente da que ocupava antes de dormir.

353.A união do Espírito com o corpo não estando completa e definitivamente consumada, senão depois do nascimento, pode considerar-seo feto como tendo uma alma?

— O Espírito que o deve animar existe, de qualquer maneira, fora dele. Propriamente falando, ele não, tem uma alma, pois a encarnação está apenas em vias de se realizar, mas está ligado à alma que deve possuir.

354.Como se explica a vida intra-uterina?

— É a da planta que vegeta. A criança vive a vida animal. O homem possui em si a vida animal e a vida vegetal, que completa, ao nascer, com a vida espiritual.

355. Há, como o indica a Ciência, crianças que desde o ventre da mãe não

têm possibilidades de viver? E com que fim acontece isso?

Isto acontece freqüentemente, e Deus o permite como prova, seja para os pais, seja para o Espírito destinado a encarnar.

356. Há crianças natimortas que não foram destinadas à encarnação de um Espírito?

Sim, há as que jamais tiveram um Espírito destinado aos seus corpos: nada devia cumprir-se nelas. É somente pelos pais que essa criança nasce.

356-a. Um ser dessa natureza pode chegar ao tempo normal de nascimento?

Sim, algumas vezes, mas então não vive.

356-b. Toda criança que sobrevive tem, necessariamente, um Espírito

encarnado?

Que seria ela, sem o Espírito? Não seria um ser humano. 357. Quais são, para o Espírito, as conseqüências do aborto?

Uma existência nula e a recomeçar.

358. O aborto provocado é um crime, qualquer que seja a época da concepção?

— Há sempre crime, quando se transgride a lei de Deus. A mãe, ou qualquer pessoa, cometerá sempre um crime ao tirar a vida à criança antes do seu nascimento, porque isso é impedir a alma de passar pelas provas de que o corpo devia ser o instrumento.

359.No caso em que a vida da mãe estivesse em perigo pelo nascimento da criança, haveria crime em sacrificar a criança para salvar a mãe?

— É preferível sacrificar o ser que não existe a sacrificar o que existe.

360.É racional ter pelos fetos o mesmo respeito que se tem pelo corpo de uma criança que tivesse vivido?

— Em tudo isto vede a vontade de Deus e a sua obra, e não trateis levianamente as coisas que deveis respeitar. Por que não respeitar as obras da Criação, que às vezes são incompletas pela vontade do Criador? Isso pertence aos seus desígnios, que ninguém é chamado a julgar.

III— Faculdades Morais e Intelectuais

361.De onde vêm para o homem as suas qualidades morais, boas ou más?

— São as do Espírito que está nele encarnado; quanto mais puro é esse

Espírito, mais o homem é propenso ao bem.

361-a. Parece resultar daí que o homem de bem é a encarnação de um bom Espírito e o homem vicioso a de um mau Espírito?

Sim, mas dize antes que é um Espírito imperfeito, pois de outra forma se poderia crer nos Espíritos sempre maus, a que chamais demônios.

362. Qual o caráter dos indivíduos em que se encarnam os Espíritos brejeiros e levianos?

São estouvados, espertos, e algumas vezes, malfazejos.

363.Os Espíritos têm paixões estranhas à humanidade?

— Não; se assim fosse, vós também as teríeis.

364.É o mesmo Espírito que dá ao homem as qualidades morais e as da inteligência?

— Seguramente que é o mesmo, e na razão do grau a que tenha chegado. O homem não tem em si dois Espíritos.

365.Por que os homens mais inteligentes, que revelam um Espírito superior neles encarnado, são, às vezes, ao mesmo tempo, profundamente viciosos?

— É que o Espírito encarnado não é bastante puro, e o homem cede à influência de outros Espíritos ainda piores. O Espírito progride numa marcha ascendente insensível, mas o progresso não se realiza simultaneamente em todos os sentidos; num período, ele pode avançar em ciência, num outro, em moralidade.

366.Que pensar da opinião segundo a qual as diferentes faculdades intelectuais e morais do homem seriam o produto de outros tantos Espíritos diversos, nele encarnados, tendo cada qual uma aptidão especial?

— Refletindo-se a respeito, reconhece-se que é absurda. O Espírito deve ter todas as aptidões. Para poder progredir, necessita de uma vontade única. Se o homem fosse um amálgama de Espíritos, essa vontade não existiria e ele não teria individualidade, pois na sua morte todos esses Espíritos seriam como um

bando de pássaros escapos da gaiola. O homem se queixa muitas vezes de não compreender algumas coisas, mas é curioso ver-se como ele multiplica as dificuldades, quando tem em mãos uma explicação muito simples e natural. Isso é ainda tomar o efeito pela causa: fazer com o homem o que os pagãos faziam com Deus. Eles criam em tantos deuses quantos os fenômenos do Universo. Mas, mesmo entre eles, as pessoas sensatas não viam nesses fenômenos mais do que efeitos, tendo por causa um Deus único.

O mundo físico e o mundo moral nos oferecem, a respeito, numerosos pontos de comparação. Acreditou-se na multiplicidade da matéria, enquanto o exame se detinha na aparência dos fenômenos; hoje, compreende-se que esses fenômenos tão variados podem não ser mais do que modificações de uma matéria elementar única. As diversas faculdades são manifestações de uma mesma causa que é a alma, ou do Espírito encarnado, e não de muitas almas, como os diferentes sons do órgão são produtos de uma mesma espécie de ar, e não de tantas espécies de ar quantos forem os sons. Desse sistema resultaria que, quando um homem perde ou adquire certas aptidões, certas tendências, isso significaria que outros tantos Espíritos o possuíram ou deixaram, o que o tornaria um ser múltiplo, sem individualidade, e conseqüentemente sem responsabilidade. Isto, além do mais, é contraditado pelos tão numerosos exemplos de manifestações em que os Espíritos provam sua personalidade e

sua identidade.

IV — Influência do Organismo

367. O Espírito, ao unir-se ao corpo, identifica-se com a matéria?

A matéria não é mais que o envoltório do Espírito, como a roupa é o envoltório do corpo. O Espírito, ao unir-se ao corpo, conserva os atributos da natureza espiritual.

368. As faculdades do Espírito se exercem com toda a liberdade, após a sua união com o corpo?

O exercício das faculdades depende dos órgãos que lhes servem de instrumentos; elas são enfraquecidas pela grosseria da matéria.

368-a. De acordo com isso, o envoltório material seria um obstáculo à livre manifestação das faculdades do Espírito, como um vidro opaco se opõe à livre emissão da luz?

Sim, e bastante opaco.

Pode-se ainda comparar a ação da matéria grosseira do corpo sobre o Espírito à de uma água lodosa, que tira a liberdade de movimentos do corpo nela mergulhado.

369. O livre exercício das faculdades da alma está subordinado ao desenvolvimento dos órgãos?

— Os órgãos são os instrumentos da manifestação das faculdades da alma. Essa manifestação está subordinada ao desenvolvimento e ao grau de perfeição dos respectivos órgãos, como a excelência de um trabalho à excelência da ferramenta.

370. Pode-se induzir, da influência dos órgãos, uma relação entre o desenvolvimento dos órgãos cerebrais e o das faculdades morais e intelectuais?

Não confundais o efeito com a causa. O Espírito tem sempre as faculdades que lhe são próprias. Assim, não são os órgãos que lhe dão as faculdades, mas as faculdades que impulsionam o desenvolvimento dos órgãos.

370-a. De acordo com isso, a diversidade das aptidões entre os homens decorre unicamente do estado do Espírito?

Unicamente não é o termo exato. As qualidades do Espírito que pode ser mais ou menos adiantado, constituem o princípio, mas é necessário ter em conta a influência da matéria, que entrava mais ou menos o exercício dessas faculdades.

O Espírito, ao encarnar-se, traz certas predisposições, e se admitirmos, para cada uma delas, um órgão correspondente no cérebro, o desenvolvimento desses órgãos será um efeito e não uma causa. Se as faculdades tivessem os

seus príncípios nos órgãos, o homem seria uma máquina, sem livre arbítrio e sem a responsabilidade dos seus atos. Teríamos de admitir que os maiores gênios, sábios, poetas, artistas, não são gênios senão porque o acaso lhes deu órgãos especiais. De onde se segue que, sem esses órgãos, eles não seriam gênios, e que o último dos imbecis poderia ter sido um Newton, um Virgílio ou um Rafael, se houvesse sido provido de certos órgãos. Suposição que se torna ainda mais absurda quando aplicada às qualidades morais. Assim, segundo esse sistema, São Vicente de Paulo, dotado pela Natureza de tal ou tal órgão, poderia ter sido um celerado, e não faltaria ao maior celerado mais do que um órgão para ser um São Vicente de Paulo. Admiti, ao contrário, que os órgãos especiais, se é que existem, são conseqüentes e se desenvolvem pelo exercício das faculdades, como os músculos pelo movimento e nada tereis de irracional. Tomemos uma comparação trivial, por bem se aplicar ao caso. Através de certos sinais fisionômicos reconhecereis o homem dado à bebida; são esses sinais que o fazem bêbado, ou é o vício da embriaguez que produz os sinais? Pode-se dizer que os órgãos recebem a marca das faculdades.

V — Idiotismo e Loucura

371. A opinião de que os cretinos e os idiotas teriam uma alma de natureza inferior tem fundamento?

— Não. Eles têm uma alma humana, freqüentemente mais inteligente do que

pensais, e que sofre com a insuficiência dos meios de que dispõe para se comunicar, como o mudo sofre por não poder falar.

372. Qual é o objetivo da Providência, ao criar seres desgraçados como os cretinos e os idiotas?

São os Espíritos em punição que vivem em corpos de idiotas. Esses Espíritos sofrem com o constrangimento a que estão sujeitos e pela impossibilidade de manifestar-se através de órgãos não desenvolvidos ou defeituosos.

372-a. Então não é exato dizer que os órgãos não exercem influência sobre as faculdades?

Jamais dissemos que os órgãos não exercem influência. Eles a exercem, e muito grande, sobre a manifestação das faculdades, mas não produzem as faculdades. Esta a diferença. Um bom músico, com um mau instrumento, não fará boa música, o que não o impede de ser um bom músico.

É necessário distinguir o estado normal do estado patológico. No estado normal, o moral supera o obstáculo material. Mas há casos em que a matéria oferece uma tal resistência que as manifestações são entravadas ou desnaturadas, como na idiotia e na loucura. Esses são casos patológicos, e em tal estado a alma não goza de toda a sua liberdade. A própria lei humana a isenta da responsabilidade dos seus atos.

373. Qual o mérito da existência para seres que, como os idiotas e os

cretinos, não podendo fazer o bem nem o mal, não podem progredir?

É uma expiação, imposta ao abuso que tenham feito de certas faculdades;

éum tempo de suspensão.

373-a. Um corpo de idiota pode então encerrar um Espírito que tivesse animado um homem de gênio numa existência procedente?

— Sim, o gênio torna-se às vezes uma desgraça, quando dele se abusa.

A superioridade moral não está sempre na razão da superioridade intelectual, e os maiores gênios podem ter muito a expiar; daí resulta freqüentemente para eles uma existência inferior às que já tenham vivido, que é uma causa de sofrimento. Os entraves que o Espírito prova em suas manifestações são para ele como as cadeias que constrangem os movimentos de um homem vigoroso. Pode-se dizer que os cretinos e os idiotas são estropiados do cérebro, como o coxo o é das pernas e o cego dos olhos.

374. O idiota, no estado de Espírito, tem consciência do seu estado mental?

Sim, muito freqüentemente. Compreende-se que as cadeias que embaraçam o seu desenvolvimento são uma prova e uma expiação.

375. Qual é a situação do Espírito na loucura?

O Espírito, quando em liberdade, recebe diretamente suas impressões e exerce diretamente a sua ação sobre a matéria; mas encarnado, encontra-seem

condições totalmente diferentes e na contingência de não o fazer senão com a ajuda de órgãos especiais. Que uma parte ou conjunto desses órgãos sejam alterados, e a sua ação ou suas impressões, no que respeita a esses órgãos, ficam interrompidas. Se ele perde os olhos, fica cego; sem os ouvidos, fica surdo, etc. Imagina agora se o órgão que preside aos efeitos da inteligência e da vontade for parcial ou inteiramente atacado ou modificado, e fácil te será compreender que o Espírito, só tendo então a seu serviço órgãos incompletos ou alterados, deve entrar numa perturbação de que, por si mesmo e no seu foro íntimo, tem perfeita consciência, mas cujo curso já não pode deter.

375-a. É então sempre o corpo e não o Espírito o desorganizado?

Sim; mas é necessário não perder de vista que, da mesma maneira que o Espírito age sobre a matéria, esta reage sobre ele numa certa medida, e que o Espírito pode encontrar-se momentaneamente impressionado pela alteração dos órgãos através dos quais se manifesta e recebe as suas impressões. Pode acontecer que, com o tempo, quando a loucura durou bastante, a repetição dos mesmos atos acabe por exercer sobre o Espírito uma influência da qual ele não se livrará senão depois da sua completa separação de toda impressão material.

376. Qual a razão por que a loucura leva algumas vezes ao suicídio?

O Espírito sofre pelo constrangimento a que está submetido e pela impotência de manifestar-se livremente. Por isso, busca libertar-se por

intermédio da morte.

377. Após a morte, o Espírito se ressente da perturbação de suas faculdades?

Ele pode ressentir-se durante algum tempo, até que esteja completamente desligado da matéria, como o homem que, ao acordar, se ressente por algum tempo da perturbação em que o sono o mergulhara.

378. Como a alteração do cérebro pode reagir sobre o Espírito após a morte?

É uma lembrança. Um peso oprime o Espírito, e como ele não teve consciência de tudo o que se passou durante a sua loucura, é necessário um certo tempo para que se ponha ao corrente. É por isso que, quanto mais tenha durado a loucura, durante a vida, mais longamente durará a tortura, o constrangimento após a morte. O Espírito desligado do corpo se ressente por algum tempo da impressão dos seus ligamentos.

VI — Da Infância

379. O Espírito que anima o corpo de uma criança é tão desenvolvido quanto o de um adulto?

Pode mesmo ser mais, se ele mais progrediu, pois são apenas os órgãos imperfeitos que o impedem de se manifestar. Age de acordo com o instrumento de que se serve.

380. Numa criança de tenra idade, o Espírito, fora do obstáculo que a imperfeição dos órgãos opõe à sua livre manifestação, pensa como uma

criança ou como um adulto?

Enquanto criança, é natural que os órgãos da inteligência, não estando desenvolvidos, não possam dar-lhe toda a intuição de um adulto; sua inteligência, com efeito, é bastante limitada, até que a idade lhe amadureça a razão. A perturbação que acompanha a encarnação não cessa de súbito com o nascimento e só se dissipa com o desenvolvimento dos órgãos.

Uma observação vem em apoio desta resposta: é que os sonhos de uma criança não têm o caráter dos sonhos de um adulto; seu objeto é quase sempre pueril, o que é um indício da natureza das preocupações do Espírito.

381. Com a morte da criança o Espírito retoma imediatamente o seu vigor primitivo?

Assim deve ser, pois que está desembaraçado do seu envoltório carnal; entretanto, ele não retoma a sua lucidez primitiva enquanto a separação não estiver completa, ou seja, enquanto não desaparecer toda a ligação entre o Espírito e o corpo.

382. O Espírito encarnado sofre, durante a infância, com o constrangimento imposto pela imperfeição dos seus órgãos?

Não; esse estado é uma necessidade; é natural e corresponde aos desígnios da Providência. É um tempo de repouso para o Espírito.

383. Qual é, para o Espírito, a utilidade de passar pela infância?

Encarnando-se com o fim de se aperfeiçoar, o Espírito é mais acessível, durante esse tempo, às impressões que recebe e que podem ajudar o seu adiantamento, para o qual devem contribuir os que estão encarregados da sua educação.

384. Por que os primeiros gritos da criança são de choro?

Para excitar o interesse da mãe e provocar os cuidados necessários. Não compreendes que, se ela só tivesse gritos de alegria, quando ainda não sabe falar, pouco se inquietariam com as suas necessidades? Admirai, pois, em tudo, a sabedoria da Providência.

385. Qual o motivo da mudança que se opera no seu caráter a uma certa idade, e particularmente ao sair da adolescência? É o Espírito que se modifica?

É o Espírito que retoma a sua natureza e se mostra tal qual era.

Não conheceis o mistério que as crianças ocultam em sua inocência; não sabeis o que elas são, nem o que foram, nem o que serão; e no entanto as amais e acariciais como se fossem uma parte de vós mesmos, de tal maneira que o amor de uma mãe por seus filhos é reputado como o maior amor que um ser possa ter por outros seres. De onde vêm essa doce afeição, essa terna complacência que até mesmo os estranhos experimentam por uma criança? Vós sabeis? Não; e é isso que vou explicar.

As crianças são os seres que Deus envia a novas existências, e para que não possam acusá-lo de demasiada severidade, dá-lhes todas as aparências de inocência. Mesmo numa criança de natureza má, suas faltas são cobertas pelanão-consciência dos atos. Esta inocência não é uma superioridade real, em relação ao que elas eram antes; não, é apenas a imagem do que elas deveriam ser, e se não o são, é sobre elas somente que recai a culpa.

Mas não é somente por elas que Deus lhes dá esse aspecto, é também e sobretudo por seus pais, cujo amor é necessário àfragilidade infantil. E esse amor seria extraordinariamente enfraquecido pela presença de um caráter impertinente e acerbo, enquanto que, supondo os filhos bons e ternos,dão-lhes toda a afeição e os envolvem nos mais delicados cuidados.

Mas, quando as crianças não mais necessitam dessa proteção, dessa assistência que lhes foi dispensada durante quinze a vinte anos, seu caráter real e individual reaparece em toda a sua nudez: permanecem boas, se eram fundamentalmente boas, mas se irizam sempre de matizes que estavam ocultos na primeira infância.

Vedes que os caminhos de Deus são sempre os melhores, e que, quando se tem o coração puro, é fácil conceber-se a explicação a respeito.

Com efeito, ponderai que o Espírito da criança que nasce entre vós pode vir de um mundo em que tenha adquirido hábitos inteiramente diferentes; como

quereríeis que permanecesse no vosso meio esse novo ser, que traz paixões tão diversas das que possuís, inclinações e gostos inteiramente opostos aos vossos; como quereríeis que se incorporasse no vosso ambiente, senão como Deus quis, ou seja, depois de haver passado pela preparação da infância? Nesta vêm confundir-se todos os pensamentos, todos os caracteres, todas as variedades de seres engendrados por essa multidão de mundos em que se desenvolvem as criaturas. E vós mesmos, ao morrer, estareis numa espécie de infância, no meio de novos irmãos, e na vossa nova existência não terrena ignorareis os hábitos, os costumes, as formas de relação desse mundo, novo para vós, manejareis com dificuldade uma língua que não estais habituados a falar, língua mais vivaz do que o é atualmente o vosso pensamento. (Ver o item 319).

A infância tem ainda outra utilidade: os Espíritos não ingressam na vida corpórea senão para se aperfeiçoarem, para se melhorarem; a debilidade dos primeiros anos os torna flexíveis, acessíveis aos conselhos da experiência e daqueles que devem fazê-los progredir. É então que se pode reformar o seu caráter e reprimir as suas más tendências. Esse é o dever que Deus confiou aos pais, missão sagrada pela qual terão de responder.

É assim que a infância não é somente útil, necessária, indispensável, mas

ainda a conseqüência natural das leis que Deus estabeleceu e que regem o

Universo.

VII — Simpatias e Antipatias Terrenas

386.Dois seres que se conheceram e se amaram, podem encontrar-senoutra existência corpórea e se reconhecerem?

— Reconhecerem-se, não, mas serem atraídos um pelo outro, sim; e freqüentemente as ligações íntimas, fundadas numa afeição sincera, não provêm de outra causa. Dois seres se aproximam um ao outro por circunstâncias aparentemente fortuitas, mas que são o resultado da atração de dois Espíritos que se buscam através da multidão.

386-a. Não seria mais agradável para eles se reconhecerem?

— Nem sempre. A recordação das existências passadas teria inconvenientes maiores do que pensais. Após a morte eles se reconhecerão e saberão em que tempo estiveram juntos. (Ver item 392).

387.A simpatia tem sempre por motivo um conhecimento anterior?

Não; dois espíritos que tenham afinidades se procuram naturalmente, sem que se hajam conhecido como encarnados.

388. Os encontros que se dão algumas vezes entre certas pessoas, e que se atribuem ao acaso, não seriam o efeito de uma espécie de relações simpáticas?

Há, entre os seres pensantes, ligações que ainda não conheceis. O

magnetismo é a bússola dessa ciência, que mais tarde compreendereis melhor.

389.De onde vem a repulsa instintiva que se experimenta por certas pessoas, à primeira vista?

— Espíritos antipáticos, que se percebem e se reconhecem, sem se falarem.

390.A antipatia instintiva é sempre um sinal de natureza má?

Dois Espíritos não são necessariamente maus, pelo fato de não serem simpáticos. A antipatia pode originar-se de uma falta de similitude do modo de pensar. Mas, à medida que eles se elevam, os matizes se apagam e a antipatia desaparece.

391. A antipatia entre duas pessoas nasce em primeiro lugar naquela cujo Espírito é o pior ou o melhor?

Numa e noutra, mas as causas e os efeitos são diferentes. Um Espírito mau sente antipatia por quem quer que o possa julgar e desmascarar; vendo uma pessoa pela primeira vez, percebe que ela vai desaprová-lo; seu afastamento se transforma então em ódio, inveja, e lhe inspira o desejo de fazer o mal. O bom Espírito sente repulsa pelo mau porque sabe que não será compreendido por ele e que ambos não participam dos mesmos sentimentos; mas, seguro de sua superioridade, não sente contra o outro nem ódio, nem inveja; contenta-se em evitá-lo e lastimá-lo.

VIII — Esquecimento do Passado

392. Por que o Espírito encarnado perde a lembrança do passado?

O homem nem pode nem deve saber tudo; Deus assim o quer, na sua sabedoria. Sem o véu que lhe encobre certas coisas, o homem ficaria ofuscado, como aquele que passa sem transição da obscuridade para a luz. Pelo esquecimento do passado ele é mais ele mesmo.

393. Como pode o homem ser responsável por atos e resgatar faltas dos quais não se recorda? Como pode aproveitar-se da experiência adquirida em existências que caíram no esquecimento? Seria concebível que as tribulações da vida fossem para ele uma lição, se pudesse lembrar-se daquilo que as atraiu, mas desde que não se recorda, cada existência é para ele como se fosse a primeira, e é assim que ele está sempre a recomeçar. Como conciliar isto com a justiça de Deus?

A cada nova existência o homem tem mais inteligência e pode melhor distinguir o bem e o mal. Onde estaria o seu mérito, se ele se recordasse de todo o passado? Quando o Espírito entra na sua vida de origem (a vida espírita), toda a sua vida passada se desenrola diante dele; vê as faltas cometidas e que são causa do seu sofrimento, bem como aquilo que poderiatê-lo impedido de cometê-las; compreende a justiça da posição que lhe é dada e procura então a existência necessária a reparar a que acaba deescoar-se.

Procura provas semelhantes àquelas por que passou, ou as lutas que acredita apropriadas ao seu adiantamento, e pede a Espíritos que lhe são superiores para o ajudarem na nova tarefa a empreender porque sabe que o Espírito que lhe será dado por guia nessa nova existência procurará fazê-lo reparar suas faltas, dando-lhe uma espécie de intuição das que ele cometeu. Essa mesma intuição é o pensamento, o desejo criminoso que freqüentemente vos assalta e ao qual resistis instintivamente, atribuindo a vossa resistência, na maioria das vezes, aos princípios que recebestes de vossos pais, enquanto é a voz da consciência que vos fala, e essa voz é a recordação do passado, voz que vos adverte para não caírdes nas faltas anteriormente cometidas. Nessa nova existência, se o Espírito sofrer as suas provas com coragem e souber resistir,eleva-se a si próprio e ascenderá na hierarquia dos Espíritos, quando voltar para o meio deles.

Se não temos, durante a vida corpórea, uma lembrança precisa daquilo que fomos, e do que fizemos de bem ou de mal em nossas existências anteriores, temos, entretanto, a sua intuição. E as nossas tendências instintivas são uma reminiscência do nosso passado, às quais a nossa consciência, — que representa o desejo por nós concebido de não mais cometer as mesmas faltas,

adverte que devemos resistir.

394.Nos mundos mais adiantados que o nosso, onde não existem todas as

nossas necessidades físicas e as nossas enfermidades, os homens compreendem que são mais felizes do que nós? A felicidade, em geral, é relativa; sentimo-la por comparação com um estado menos feliz. Como, em suma, alguns desses mundos, embora melhores que o nosso, não chegaram ao estado de perfeição, os homens que os habitam devem ter motivos de aborrecimento a seu modo. Entre nós, o rico, ainda que não sofra a angústia das necessidades materiais como o pobre, não está menos sujeito a tribulações que lhe amarguram a vida. Ora, pergunto se, na sua posição, os habitantes desses mundos não se sentem tão infelizes quanto nós e não lastimam a própria sorte, já que não têm a lembrança de uma existência inferior para comparação?

— A isto é preciso dar duas respostas diferentes.

Há mundos, entre aqueles de que falas, em que os habitantes, situados, como dizes, em melhores condições que vós, nem por isso estão menos sujeitos a grandes desgostos e mesmo a infelicidades. Estes não apreciam a sua felicidade pelo fato mesmo de não se lembrarem de um estado ainda mais ínfeliz. Se, entretanto, não a apreciam como homens, o fazem como Espíritos.

Não há, no esquecimento dessas existências passadas, sobretudo quando foram penosas, alguma coisa de providencial, onde se revela a sabedoria divina? É nos mundos superiores, quando a lembrança das existências

infelizes não passa de um sonho mau, que elas se apresentam à memória. Nos mundos inferiores, as infelicidades presentes não seriam agravadas pela recordação de tudo aquilo que se tivesse suportado? Concluamos, portanto, que tudo quanto Deus faz é bem feito, e que não nos cabe criticar as suas obras e dizer como Ele deveria ter regulado o Universo.

A lembrança de nossas individualidades anteriores teria gravíssimos inconvenientes.

Poderia, em certos casos, humilhar-nos extraordinariamente; em outros, exaltar o nosso orgulho, e por isso mesmo entravar o nosso livre arbítrio. Deus nos deu, para nos melhorarmos, justamente o que nos é necessário e suficiente: a voz da consciência e nossas tendências instintivas, tirando-nos aquilo que nos poderia prejudicar. Acrescentemos ainda que, se tivéssemos a lembrança de nossos atos pessoais anteriores, teríamos a dos atos alheios, e esse conhecimento poderia ter os mais desagradáveis efeitos sobre as relações sociais. Não havendo sempre motivo para nos orgulharmos do nosso passado é quase sempre uma felicidade que um véu seja lançado sobre ele. Isso concorda perfeitamente com a doutrina dos Espíritos sobre os mundos superiores ao nosso. Nesses mundos, onde não reina senão o bem, a lembrança do passado nada tem de penosa; é por isso que neles se recorda com freqüência a existência precedente, como nos lembramos do que fizemos na véspera.

Quanto à passagem que se possa ter tido por mundos inferiores, a sua lembrança nada mais é, como dissemos, do que um sonho mau.

395. Podemos ter algumas revelações sobre as nossas existências anteriores?

— Nem sempre. Muitos sabem, entretanto, o que foram e o que fizeram; se lhes fosse permitido dizê-lo abertamente, fariam singulares revelações sobre o passado.

396.Algumas pessoas crêem ter a vaga lembrança de um passado desconhecido, vislumbrado como a imagem fugitiva de um sonho que em vão se procura deter. Essa idéia não seria uma ilusão?

— Algumas vezes é real; mas quase sempre é também uma ilusão, contra a qual se deve precaver, pois pode ser o efeito de uma imaginação superexcitada.

397.Nas existências corpóreas de natureza mais elevada que a nossa, a lembrança das existências anteriores é mais precisa?

— Sim, à medida que o corpo é menos material, recorda-se melhor. A lembrança do passado é mais clara para aqueles que habitam os mundos de uma ordem superior.

398.As tendências instintivas do homem, sendo reminiscências de seu passado, pelo estudo dessas tendências ele poderá reconhecer as faltas que cometeu?

Sem dúvida, até certo ponto; mas é necessário ter em conta a melhora que se possa ter operado no Espírito e as resoluções que ele tomou no seu estado errante. A existência atual pode ser muito melhor que a precedente.

398-a. Pode ela ser pior? Por outras palavras, pode o homem cometer numa existência faltas não cometidas na precedente?

Isso depende do seu adiantamento. Se ele não souber resistir às provas, pode ser arrastado a novas faltas que serão a conseqüência da posição por ele mesmo escolhida. Mas em geral essas faltas denunciam antes um estado estacionário do que retrógrado, porque o Espírito pode avançar ou se deter, mas não recuar.

399. Sendo as vicissitudes da vida corpórea ao mesmo tempo uma expiação das faltas passadas e provas para o futuro, segue-se que, da natureza dessas vicissitudes, possa induzir-se o gênero da existência anterior?

Muito freqüentemente, pois cada um é punido naquilo em que pecou. Entretanto, não se deve tirar daí uma regra absoluta; as tendências instintivas são um índice mais seguro, porque as provas que um Espírito sofre, tanto se referem ao futuro quanto ao passado.

Chegado ao termo que a Providência marcou para a sua vida errante, o Espírito escolhe por si mesmo as provas às quais deseja submeter-se, para apressar o seu adiantamento, ou seja, o gênero de existência que acredita mais

apropriado a lhe fornecer os meios, e essas provas estão sempre em relação com as faltas que deve expiar. Se nelas triunfa, ele se eleva; se sucumbe, tem de recomeçar.

O Espírito goza sempre do seu livre arbítrio. É em virtude dessa liberdade que, no estado de Espírito, escolhe as provas da vida corpórea, e no estado de encarnado delibera o que fará ou não fará, escolhendo entre o bem e o mal. Negar ao homem o livre arbítrio seria reduzi-lo à condição de máquina.

Integrado na vida corpórea, o Espírito perde momentaneamente a lembrança de suas existências anteriores, como se um véu as ocultasse. Não obstante, tem às vezes uma vaga consciência, e elas podem mesmo lhe ser reveladas em certas circunstâncias. Mas isto não acontece senão pela vontade dos Espíritos superiores, que o fazem espontaneamente, com um fim útil, e jamais para satisfazer uma curiosidade vã.

As existências futuras não podem ser reveladas em caso algum, por dependerem da maneira por que se cumpre a existência presente e da escolha ulterior do Espírito.

O esquecimento das faltas cometidas não é obstáculo à melhoria do Espírito, porque, se ele não tem uma lembrança precisa, o conhecimento que delas teve no estado errante e o desejo que concebeu de as reparar, guiam-nopela intuição e lhe dão o pensamento de resistir ao mal. Este pensamento é a voz da

consciência, secundada pelos Espíritos que o assistem, se ele atende às boas inspirações que estes lhe sugerem.

Se o homem não conhece os próprios atos que cometeu em suas existências anteriores, pode sempre saber qual o gênero de faltas de que se tornou culpado, e qual era o seu caráter dominante. Basta que se estude a si mesmo, e poderá julgar o que foi, não pelo que é, mas pelas suas tendências.

As vicissitudes da vida corpórea são, ao mesmo tempo, uma expiação das faltas passadas e provas para o futuro. Elas nos depuram e nos elevam, se as sofremos com resignação e sem murmúrios.

A natureza das vicissitudes e das provas que sofremos pode tambémesclarecer-nos sobre o que fomos e o que fizemos, como neste mundo julgamos os atos de um criminoso pelo castigo que a lei lhe inflige. Assim, este será castigado no seu orgulho pela humilhação de uma existência subalterna; o mau rico e avarento, pela miséria; aquele que foi duro para os outros, pelo tratamento duro sofrerá; o tirano, pela escravidão; o mau filho, pela ingratidão dos seus filhos; o preguiçoso, por um trabalho forçado, etc.

Capítulo VIII

Emancipação da Alma

I — O Sono e os Sonhos

400.O Espírito encarnado permanece voluntariamente no envoltório corporal?

— É como perguntar se o prisioneiro está satisfeito sob as chaves. O Espírito encarnado aspira incessantemente à libertação, e quanto mais grosseiro é o envoltório, mais deseja ver-se desembaraçado.

401.Durante o sono, a alma repousa como o corpo?

Não, o Espírito jamais fica inativo. Durante o sono, os liames que o unem ao corpo se afrouxam e o corpo não necessita do Espírito. Então ele percorre o espaço e entra em relação mais direta com os outros Espíritos.

402. Como podemos avaliar a liberdade do Espírito durante o sono?

Pelos sonhos. Sabeis que, quando o corpo repousa, o Espírito dispõe de mais faculdades que no estado de vigília. Tem a lembrança do passado e às vezes a previsão do futuro; adquire mais poder e pode entrar em comunicação com os outros Espíritos, seja deste mundo, seja de outro. Freqüentemente dizes: “Tive um sonho bizarro, um sonho horrível, mas que não tem nenhuma verossimilhança". Enganas-te. É quase sempre uma lembrança de lugares e de coisas que viste ou que verás numa outra existência ou em outra ocasião. O corpo estando adormecido, o Espírito trata de quebrar as suas cadeias para investigar no passado ou no futuro.

Pobres homens, que conheceis tão pouco dos mais ordinários fenômenos da

vida! Acreditais ser muito sábios, e as coisas mais vulgares vos embaraçam. A esta pergunta de todas as crianças: “O que é que fazemos quando dormimos; o que são os sonhos?" ficais sem resposta.

O sono liberta parcialmente a alma do corpo. Quando o homem dorme, momentaneamente se encontra no estado em que estará de maneira permanente após a morte. Os Espíritos que logo se desprendem da matéria, ao morrerem, tiveram sonhos inteligentes. Esses Espíritos, quando dormem, procuram a sociedade dos que lhes são superiores: viajam, conversam e se instruem com eles; trabalham mesmo em obras que encontram concluídas, ao morrer. Destes fatos deveis aprender, uma vez mais, a não ter medo da morte, pois morreis todos os dias, segundo a expressão de um santo.

Isto, para os Espíritos elevados; pois a massa dos homens que, com a morte, devem permanecer longas horas nessa perturbação, nessa incerteza de que vos têm falado, vão, seja a mundos inferiores à Terra, onde antigas afeições os chamam, seja à procura de prazeres talvez ainda mais baixos do que possuíam aqui; vão beber doutrinas ainda mais vis, mais ignóbeis, mais nocivas do que as que professavam entre vós. E o que engendra a simpatia na Terra não é outra coisa senão o fato de nos sentirmos, ao acordar, ligados pelo coração àqueles com quem acabamos de passar oito ou nove horas de felicidade ou de prazer. O que explica também as antipatias invencíveis é que sentimos, no

fundo do coração, que essas pessoas têm uma consciência diversa da nossa, porque as conhecemos sem jamais as ter visto. É ainda o que explica a indiferença, pois não procuramos fazer novos amigos quando sabemos ter os que nos amam e nos querem. Numa palavra: o sono influi mais do que pensais, sobre a vossa vida.

Por efeito do sono, os Espíritos encarnados estão sempre em relação com o mundo dos Espíritos, e é isso o que faz que os Espíritos superiores consintam, sem muita repulsa, em encarnar-se entre vós. Deus quis que, durante o seu contato com o vício, pudessem eles retemperar-se na fonte do bem, para não falirem, eles que vinham instruir os outros. O sono é a porta que Deus lhes abriu para o contato com os seus amigos do céu; é o recreio após o trabalho, enquanto esperam o grande livramento, a libertação final, que deve restituí-los ao seu verdadeiro meio.

O sonho é a lembrança do que o vosso Espírito viu durante o sono; mas observai que nem sempre sonhais, porque nem sempre vos lembrais daquilo que vistes, ou de tudo o que vistes. Isso porque não tendes a vossa alma em todo o seu desenvolvimento; freqüentemente não vos resta mais do que a lembrança da perturbação que acompanha a vossa partida e a vossa volta, a que se junta a lembrança do que fizestes ou do que vos preocupa no estado de vigília. Sem isto, como explicaríeis esses sonhos absurdos, a que estão sujeitos

tanto os mais sábios quanto os mais simples? Os maus Espíritos também se servem dos sonhos para atormentar as almas fracas e pusilânimes.

De resto, vereis dentro em pouco desenvolver-se uma outra espécie de sonhos; uma espécie tão antiga como a que conheceis, mas que ignorais. O sonho de Joana, o sonho de Jacó, o sonho dos profetas judeus e de alguns adivinhos indianos: esse sonho é a lembrança da alma inteiramente liberta do corpo, a recordação dessa segunda vida de que há pouco eu vos falava.

Procurai distinguir bem essas duas espécies de sonhos, entre aqueles de que vos lembrardes; sem isso, cairíeis em contradições e em erros que seriam funestos para a vossa fé.

Os sonhos são o produto da emancipação da alma, que se torna mais independente pela suspensão da vida ativa e de relação. Daí uma espécie de clarividência indefinida, que se estende aos lugares, os mais distantes ou que jamais se viu, e algumas vezes mesmo a outros mundos. Daí também a lembrança que retraça na memória os acontecimentos verificados na existência presente ou nas existências anteriores. A extravagância das imagens referentes ao que se passa ou se passou em mundos desconhecidos, entremeades de coisas do mundo atual, formam esses conjuntos bizarros e confusos que parecem não ter nem senso, nem nexo.

A incoerência dos sonhos ainda se explica pelas lacunas decorrentes da

lembrança incompleta do que nos apareceu no sonho. Tal como um relato ao qual se tivessem truncado frases ou partes de frases ao acaso: os fragmentos restantes, sendo reunidos, perderiam toda significação racional.

403. Por que não nos recordamos sempre dos sonhos?

Nisso que chamas sono só tens o repouso do corpo, porque o Espírito está sempre em movimento. No sono, ele recobra um pouco de sua liberdade e se comunica com os que lhe são caros, seja neste ou em outros mundos. Mas, como o corpo é de matéria pesada e grosseira, dificilmente conserva as impressões recebidas pelo Espírito, mesmo porque o Espírito não as percebeu pelos órgãos do corpo.

404. Que pensar da significação atribuída aos sonhos?

Os sonhos não são verdadeiros, como entendem os ledores da sorte, pelo que é absurdo admitir que sonhar com uma coisa anuncia outra. Eles são verdadeiros no sentido de apresentarem imagens reais para o Espírito mas que, freqüentemente, não têm relação com o que se passa na vida corpórea. Muitas vezes ainda, como já dissemos, são uma recordação. Podem ser, enfim, algumas vezes, um pressentimento do futuro, se Deus o permite, ou a visão do que se passa no momento em outro lugar, a que a alma se transporta. Não tendes numerosos exemplos de pessoas que aparecem em sonhos para advertir parentes e amigos do que lhes está acontecendo? O que são essas aparições,

senão a alma ou o Espírito dessas pessoas que se comunicam com a vossa? Quando adquiris a certeza de que aquilo que vistes realmente aconteceu, não é isso uma prova de que a imaginação nada tem com o fato, sobretudo se o ocorrido absolutamente não estava no vosso pensamento durante a vigília?

405.Freqüentemente se vêem em sonhos coisas que parecem pressentimentos e que não se cumprem; de onde vêm elas?

— Podem cumprir-se para o Espírito, se não se cumprem para o corpo. Quer dizer que o Espírito vê aquilo que deseja, porque vai procurá-lo. Não se deve esquecer que, durante o sono, a alma está sempre mais ou menos sob a influência da matéria, e por conseguinte não se afasta jamais completamente das idéias. Disso resulta que as preocupações da vigília podem dar, àquilo que se vê, a aparência do que se deseja ou do que se teme. A isso é que realmente se pode chamar um efeito da imaginação. Quando se está fortemente preocupado com uma idéia, liga-se a ela tudo o que se vê.

406.Quando vemos em sonho pessoas vivas, que conhecemos perfeitamente, praticarem atos em que absolutamente não pensam, não é isso um efeito de pura imaginação?

— Em que absolutamente não pensam? Como o sabes? Seus Espíritos podem visitar o teu, como o teu pode visitar os deles, e nem sempre sabes o que pensam. Além disso, freqüentemente aplicais, a pessoas que conheceis, e

segundo os vossos desejos, aquilo que se passou ou se passa em outras

existências.

407. É necessário o sono completo, para a emancipação do Espírito?

Não. O Espírito recobra a sua liberdade quando os sentidos se entorpecem; ele aproveita, para se emancipar, todos os instantes de descanso que o corpo lhe oferece. Desde que haja prostração das forças vitais, o Espírito se desprende, e quanto mais fraco estiver o corpo, mais o Espírito estará livre.

É assim que o cochilar, ou um simples entorpecimento dos sentidos, apresenta muitas vezes as mesmas imagens do sonho.

408. Parece-nos, às vezes, ouvir em nosso íntimo palavras pronunciadas distintamente, e que não têm nenhuma relação com o que nos preocupa. De onde vêm elas?

Sim, e até mesmo frases inteiras, sobretudo quando os sentidos começam a se entorpecer. É, às vezes, o fraco eco de um Espírito que deseja comunicar- se contigo.

409. Muitas vezes, num estado que ainda não é o cochilo, quando temos os olhos fechados, vemos imagens distintas, figuras das quais apanhamos os pormenores mais minuciosos. É um efeito de visão ou de imaginação?

Entorpecido o corpo, o Espírito trata de quebrar a sua cadeia: ele se transporta e vê, e se o sono fosse completo, isso seria um sonho.

410.Têm-se às vezes, durante o sono ou o cochilo, idéias que parecem muito boas, e que, apesar dos esforços que se fazem para recordá-las, se apagam da memória. De onde vêm essas idéias?

— São o resultado da liberdade do Espírito, que se emancipa e goza, nesse momento, de mais amplas faculdades. Freqüentemente, também, são conselhos dados por outros Espíritos.

410-a. De que servem essas idéias ou esses conselhos, se a sua recordação se perde e não se pode aproveitá-los?

— Essas idéias pertencem, algumas vezes, mais ao mundo dos Espíritos que ao mundo corpóreo, mas o mais freqüente é que se o corpo as esquece, o Espírito as lembra, e a idéia volta no momento necessário, como uma inspiração do momento.

411.O Espírito encarnado, nos momentos em que se desprende da matéria e age como Espírito, conhece a época de sua morte?

— Muitas vezes a pressente; e às vezes tem dela uma consciência bastante clara, o que lhe dá, no estado de vigília, a sua intuição. É por isso que algumas pessoas prevêem às vezes a própria morte com grande exatidão.

412.A atividade do Espírito, durante o repouso ou o sono do corpo, pode fatigar a este?

— Sim, porque o Espírito está ligado ao corpo, como o balão cativo ao

poste. Ora, da mesma maneira que as sacudidelas do balão abalam o poste, a atividade do Espírito reage sobre o corpo, e pode produzir-lhe fadiga.

II— Visitas Espíritas entre Vivos

413.Do princípio de emancipação da alma durante o sono parece resultar que temos, simultaneamente, duas existências: a do corpo, que nos dá a vida de relação exterior, e a da alma, que nos dá a vida de relação oculta. É isso exato?

— No estado de emancipação, a vida do corpo cede lugar à da alma, mas não existem, propriamente falando, duas existências; são antes duas fases da mesma existência, porque o homem não vive de maneira dupla.

414.Duas pessoas que se conhecem podem visitar-se durante o sono?

Sim, e muitas outras, que pensam não se conhecerem, se encontram e conversam. Podes ter, sem que o suspeites, amigos em outro país. O fato de visitardes durante o sono, amigos, parentes, conhecidos, pessoas que vos podem ser úteis, é tão freqüente que o realizais quase todas essas noites.

415. Qual pode ser a utilidade dessas visitas noturnas, se não as recordamos?

Ordinariamente, ao despertar, resta uma intuição que é quase sempre a origem de certas idéias que surgem espontaneamente, sem que se possaexplicá-las, e não são mais que as idéias hauridas naqueles colóquios.

416.O homem pode provocar voluntariamente as visitas espíritas? Pode, por exemplo, dizer ao adormecer: Esta noite quero encontrar-me em espírito com tal pessoa: falar-lhe e dizer-lhe tal coisa?

— Eis o que se passa: o homem dorme, seu Espírito desperta e o que o homem havia resolvido o Espírito está muitas vezes bem longe de o seguir, porque a vida do homem interessa pouco ao Espírito, quando ele se liberta da matéria. Isto para os homens já bastante elevados, pois os outros passam de maneira inteiramente diversa a sua existência espiritual: entregam-se às suas paixões ou permanecem em inatividade. Pode acontecer, portanto, que segundo o motivo assim proposto o Espírito vá visitar as pessoas que deseja: mas o fato de o haver desejado quando em vigília não é razão para que o faça.

417.Certo número de Espíritos encarnados podem então se reunir e formar uma assembléia?

— Sem nenhuma dúvida. Os laços de amizade, antigos ou novos, reúnem assim, freqüentemente, diversos Espíritos, que se sentem felizes em se encontrar.

Pela palavra "antigos" é necessário entender os laços de amizade contraídos em existências anteriores. Trazemos ao acordar uma intuição das idéias que haurimos nesses colóquios ocultos, mas ignoramos a fonte.

418.Uma pessoa que julgasse morto um de seus amigos, que na realidade

não o estivesse, poderia encontrar-se com ele em espírito e saber assim que continuava vivo? Poderia, nesse caso, ter uma intuição ao acordar?

— Como Espírito, pode certamente vê-lo e saber como está. Se não lhe foi imposto como prova acreditar na morte do amigo, terá um pressentimento de que ele vive, como poderá ter o de sua morte.

III— Transmissão Oculta do Pensamento

419.Qual a razão por que a idéia de uma descoberta, por exemplo, surge ao mesmo tempo em muitos pontos?

— Já dissemos que, durante o sono, os Espíritos se comunicam entre si. Pois bem, quando o corpo desperta, o Espírito se recorda do que aprendeu, e o homem julga ter inventado. Assim, muitos podem encontrar a mesma coisa ao mesmo tempo. Quando dizeis que uma idéia está no ar, fazeis uma figura mais exata do que pensais; cada um contribui, sem o suspeitar, parapropagá-la.

Nosso Espírito revela assim, muitas vezes, a outros Espíritos, e à nossa revelia, aquilo que constitui o objeto das nossas preocupações de vigília.

420.Os Espíritos podem comunicar-se, se o corpo estiver completamente acordado?

— O Espírito não está encerrado no corpo como numa caixa: ele irradia em todo o seu redor; eis porque poderá comunicar-se com outros Espíritos,

mesmo no estado de vigília, embora o faça mais dificilmente.

421. Por que duas pessoas, perfeitamente despertas, têm muitas vezes, instantaneamente, o mesmo pensamento?

— São dois Espíritos simpáticos que se comunicam e vêem reciprocamente os seus pensamentos, mesmo quando não dormem.

Há entre os Espíritos afins uma comunicação de pensamentos permitindo que duas pessoas se vejam e se compreendam sem a necessidade dos signos exteriores da linguagem. Poderia dizer-se que elas falam a linguagem dos Espíritos.

IV — Letargia, Catalepsia, Morte Aparente

422. Os letárgicos e os catalépticos vêem e ouvem geralmente o que se passa em torno deles, mas não podem manifestá-lo; é pelos olhos e os ouvidos do corpo que o fazem?

Não; é pelo Espírito; o Espírito está consciente, mas não pode comunicar-

se.

422-a. Por que não pode comunicar-se?

O estado do corpo se opõe a isso. Esse estado particular dos órgãos vos dá a prova de que existe no homem alguma coisa além do corpo, pois este não está funcionando e o Espírito continua a agir.

423.Na letargia o Espírito pode separar-se inteiramente do corpo, de maneira a dar a este todas as aparências da morte, e voltar a ele em seguida?

— Na letargia o corpo não está morto, pois há funções que continuam arealizar-se; a vitalidade se encontra em estado latente, como na crisálida, mas não se extingue. Ora, o Espírito está ligado ao corpo enquanto eIe vive; uma vez rompidos os laços pela morte real e pela desagregação dos órgãos, a separação é completa e o Espírito não volta mais. Quando um homem aparentemente morto volta à vida, é que a morte não estava consumada.

424.Pode-se, através de cuidados dispensados a tempo, renovar os laços a se romperem e devolver à vida um ser que, sem esses recursos, morreria realmente?

— Sim, sem dúvida, e disso tendes provas todos os dias. O magnetismo é, nesses casos, muitas vezes, um meio poderoso, porque dá ao corpo o fluido vital que lhe falta e que era insuficiente para entreter o funcionamento dos órgãos.

A letargia e a catalepsia têm o mesmo princípio, que é a perda momentânea da sensibilidade e do movimento, por uma causa fisiológica ainda inexplicada. Elas diferem entre si em que, na letargia, a suspensão das forças vitais é geral, dando ao corpo todas as aparências da morte, e na catalepsia é localizada e pode afetar uma parte mais ou menos extensa do corpo, de maneira a deixar a

inteligência livre para se manifestar, o que não permite confundi-la com a morte. A letargia é sempre natural; a catalepsia é às vezes espontânea, mas pode ser provocada e desfeita artificialmente pela ação magnética.

V — O Sonambulismo

425. O sonambulismo natural tem relação com os sonhos? Como explicá-lo?

— É um estado de independência da alma, mais completo que no sonho; então as faculdades adquirem maior desenvolvimento. A alma tem percepções que não atinge no sonho, que é um estado de sonambulismo imperfeito.

No sonambulismo, o Espírito está na posse total de si mesmo; os órgãos materiais, estando de qualquer forma em catalepsia, não recebem mais as impressões exteriores. Esse estado se manifesta sobretudo durante o sono; é o momento em que o Espírito pode deixar provisoriamente o corpo, que se acha entregue ao repouso indispensável à matéria. Quando se produzem os fatos do sonambulismo, é que o Espírito, preocupado com uma coisa ou outra, se entrega a alguma ação que exige o uso do seu corpo, do qual se serve como se empregasse uma mesa ou qualquer outro objeto material, nos fenômenos de manifestações físicas, ou mesmo a vossa mão nas comunicações escritas. Nos sonhos de que se tem consciência, os órgãos, inclusive os da memória, começam a despertar e recebem imperfeitamente as impressões produzidas

pelos objetos ou as causas exteriores, e as comunicam ao Espírito que, também se encontrando em repouso, só percebe sensações confusas e freqüentemente fragmentárias, sem nenhuma razão de ser aparente, misturadas que estão de vagas recordações, seja desta existência, seja de existências anteriores. É portanto fácil compreender porque os sonâmbulos não se lembram de nada e porque os sonhos de que conservam a lembrança, na maioria das vezes não têm sentido. Digo na maioria das vezes, porque acontece também serem eles a conseqüência de uma recordação precisa de acontecimentos de uma vida anterior, e, algumas vezes, até mesmo uma espécie de intuição do futuro.

426.O chamado sonambulismo magnético tem relação com o sonambulismo natural?

— É a mesma coisa, com a diferença de ser provocado.

427.Qual é a natureza do agente chamado fluido magnético?

Fluido vital, eletricidade animalizada, que são modificações do fluido universal.

428. Qual é a causa da clarividência sonâmbula?

Já o dissemos: é a alma que vê.

429. Como o sonâmbulo pode ver através dos corpos opacos?

— Não há corpos opacos, senão para os vossos órgãos grosseiros. Já

dissemos que, para o Espírito, a matéria não oferece obstáculos, pois ele a atravessa livremente. Com freqüência ele vos diz que vê pela testa, pelo joelho, etc., porque vós, inteiramente imersos na matéria, não compreendeis que ele possa ver sem o auxílio dos órgãos, e ele mesmo, pela vossa insistência, julga necessitar desses órgãos. Mas, se o deixásseis livre, compreenderíeis que vê por todas as partes do corpo, ou, para melhor dizer, é fora do corpo que ele vê.

430.Pois se a clarividência do sonâmbulo é a da sua alma ou do seu Espírito, por que ele não vê tudo e por que se engana tantas vezes?

— Primeiro, não é dado aos Espíritos imperfeitos tudo ver e tudo conhecer; sabes muito bem que eles ainda participam dos vossos erros e dos vossos prejuízos; e, depois, quando estão ligados à matéria não gozam de todas as suas faculdades de Espíritos. Deus deu ao homem esta faculdade com um fim útil e sério, e não para que ele aprenda o que não deve saber; eis porque os sonâmbulos não podem dizer tudo.

431.Qual é a fonte das idéias inatas do sonâmbulo, e como pode ele falar com exatidão de coisas que ignora no estado de vigília, e que estão mesmo acima de sua capacidade intelectual?

— Acontece que o sonâmbulo possui mais conhecimentos do que lhe reconheceis, somente que eles se encontram adormecidos, porque o seu

invólucro é bastante imperfeito para que ele possa recordá-los. Mas, em última análise, o que é o sonâmbulo? Um Espírito encarnado, como vós, para cumprir a sua missão, e o estado em que ele entra o desperta dessa letargia. Nós já te dissemos repetidamente que revivemos muitas vezes; e essa mudança é que lhe faz perder materialmente o que conseguiu aprender na existência precedente. Entrando no estado a que chamas crise, ele se lembra, mas sempre de maneira incompleta; ele sabe, mas não poderia dizer de onde lhe vem o conhecimento, nem como o possui. Passada a crise, toda a lembrança se apaga e ele volta à obscuridade.

A experiência mostra que os sonâmbulos recebem também comunicações de outros Espíritos, que lhes transmitem o que eles devem dizer e suprem a sua insuficiência. Isto se vê, sobretudo, nas prescrições médicas: O Espírito do sonâmbulo vê o mal, o outro lhe indica o remédio. Esta dupla ação é algumas vezes patente, e se revela outras vezes pelas suas expressões bastante freqüentes: dizem-me que diga; ou, proíbem-me dizer tal coisa. Neste último caso é sempre perigoso insistir em obter a revelação recusada, porque então se dá lugar aos Espíritos levianos, que falam de tudo sem escrúpulos e sem se interessarem pela verdade.

432. Como explicar a visão à distância, em alguns sonâmbulos?

— A alma não se transporta, durante o sono? O mesmo se verifica no

sonambulismo.

433.O desenvolvimento maior ou menor da clarividência sonambúlica depende da organização física ou da natureza do Espírito encarnado?

— De uma e de outra; há disposições físicas que permitem ao Espíritolibertar-se mais ou menos facilmente da matéria.

434.As faculdades de que o sonâmbulo desfruta são as mesmas do Espírito após a morte?

— Até certo ponto, pois é necessário ter em conta a influência da matéria, a que ele ainda se acha ligado.

435.O sonâmbulo pode ver os outros Espíritos?

— A maioria os vê muito bem; isso depende do grau e da natureza da lucidez de cada um; mas às vezes ele não compreende, de início, e os toma por seres corporais. Isso acontece, sobretudo, com os que não têm nenhum conhecimento do Espiritismo; eles ainda não compreendem a natureza dos Espíritos, o fato os espanta, e é por isso que julgam estar vendo pessoas vivas.

O mesmo efeito se produz ao momento da morte, entre os que ainda se julgam vivos. Nada ao seu redor lhes parece modificado, os Espíritos lhes aparecem como tendo corpos semelhantes aos nossos, e eles tomam a aparência de seus próprios corpos como corpos reais.

436. O sonâmbulo que vê à distância, vê do lugar em que está o seu corpo,

ou daquele em que está a sua alma?

— Por que esta pergunta, pois se é a alma que vê, e não o corpo?

437.Sendo a alma que se transporta, como pode o sonâmbulo experimentar no corpo as sensações de calor ou de frio do lugar em que se encontra a sua alma, às vezes bem longe do corpo?

— A alma não deixou inteiramente o corpo; permanece sempre ligada a ele pelo laço que os une, e é esse laço o condutor das sensações. Quando duas pessoas se correspondem entre uma cidade e outra, por meio da eletricidade, é esta o laço entre os seus pensamentos; é graças a esta que elas se comunicam, como se estivessem uma ao lado da outra.

438.O uso que um sonâmbulo faz da sua faculdade influi no estado do seu Espírito, após a morte?

— Muito, como o uso bom ou mau de todas as faculdades que Deus concedeu ao homem.

VI — Êxtase

439. Qual a diferença entre o êxtase e o sonambulismo?

— O êxtase é um sonambulismo mais apurado; a alma do extático é ainda mais independente.

440. O Espírito do extático penetra realmente nos mundos superiores?

— Sim, ele os vê e compreende a felicidade dos que os habitam: é por isso que desejaria permanecer neles. Mas há mundos inacessíveis aos Espíritos que não estão bastante depurados.

441.Quando o extático exprime o desejo de deixar a Terra, fala sinceramente e não o retém o instinto de conservação?

— Isso depende do grau de depuração do Espírito; se ele vê a sua posição futura melhor que a vida presente, faz esforços para romper os laços que o prendem à Terra.

442.Se abandonarmos o extático a si mesmo, sua alma poderia abandonar definitivamente o corpo — Sim, ele pode morrer, e por isso é necessáriochamá-lo, por meio de tudo o que pode prendê-lo a este mundo, e sobretudofazendo-lhe entrever que, se quebrasse a cadeia que o retém aqui, seria esse o verdadeiro meio de não ficar lá, onde vê que seria feliz.

443.Há coisas que o extático pretende ver e que são evidentemente o produto de uma imaginação excitada pelas crenças e preconceitos terrenos. Tudo o que ele vê não é então real?

— O que ele vê é real para ele; mas, como o seu Espírito está sempre sob a influência das idéias terrenas, ele pode ver à sua maneira, ou, melhor dito,exprimir-se numa linguagem de acordo com os seus preconceitos e com as idéias em que foi criado, ou com as vossas, a fim de melhor se fazer

compreender. É sobretudo nesse sentido que ele pode errar.

444.Qual o grau de confiança que se pode depositar nas revelações dos extáticos?

— O extático pode enganar-se muito freqüentemente, sobretudo quando ele quer penetrar aquilo que deve permanecer um mistério para o homem, porque então se abandona às suas próprias idéias ou se torna joguete de Espíritos enganadores, que se aproveitam do seu entusiasmo para o fascinar.

445.Que conseqüências se podem tirar dos fenômenos do sonambulismo e do êxtase? Não seriam uma espécie de iniciação à vida futura?

— Ou, melhor dito, é a vida passada e a vida futura que o homem entrevê. Que ele estude esses fenômenos, e neles encontrará a solução de muitos mistérios que a sua razão procura inutilmente penetrar.

446.Os fenômenos do sonambulismo e do êxtase poderiam acomodar-seao materialismo?

— Aquele que os estuda de boa-fé e sem prevenções não pode ser materialista nem ateu.

VII — Dupla Vista

447. O fenômeno designado pelo nome de dupla vista tem relação com o

sonho e o sonambulismo?

Tudo isso não é mais do que uma mesma coisa. Isso a que chamas dupla vista é ainda o Espírito em maior liberdade, embora o corpo não esteja adormecido. A dupla vista é a vista da alma.

448. A dupla vista é permanente?

A faculdade, sim; o seu exercício, não. Nos mundos menos materiais que o vosso, os Espíritos se desprendem mais facilmente e se põem em comunicação apenas pelo pensamento, sem excluir, entretanto, a linguagem articulada; também a dupla vista é para a maioria uma faculdade permanente; seu estado normal pode ser comparado ao dos vossos sonâmbulos lúcidos, e essa é também a razão por que eles se manifestam a vós mais facilmente do que os encarnados de corpos mais grosseiros.

449. A dupla vista se desenvolve espontaneamente ou pela vontade de quem a possui?

Na maioria das vezes ela é espontânea, mas a vontade também muitas vezes desempenha um grande papel. Assim, podes tomar por exemplo certas pessoas chamadas leitoras da sorte, algumas das quais possuem essa faculdade, e verás que a vontade as ajuda a entrar no estado de dupla vista e nisso a que chamas visão.

450. A dupla vista é suscetível de se desenvolver pelo exercício?

Sim, o trabalho sempre conduz ao progresso, e o véu que encobre as

coisas se torna transparente.

450-a. Esta faculdade se liga à organização física?

Por certo, a organização desempenha o seu papel; há organizações que se mostram refratárias.

451. De onde vem que a dupla vista pareça hereditária em certas famílias?

Similitude de organizações, que se transmite, como as outras qualidades físicas; e depois, desenvolvimento da faculdade, por uma espécie de educação, que também se transmite de um para outro.

452. É verdade que certas circunstâncias desenvolvem a dupla vista?

A doença, a proximidade de um perigo, uma grande comoção, podemdesenvolvê-la. O corpo se encontra às vezes num estado particular, que permite ao Espírito ver o que não podeis ver com os olhos do corpo.

Os tempos de crise e de calamidades, as grandes emoções, todas as causas, enfim, de superexcitação moral provocam às vezes o desenvolvimento da dupla vista. Parece que a Providência nos dá, em presença do perigo, o meio de o conjurar. Todas as seitas e todos os partidos perseguidos oferecem numerosos exemplos a respeito.

453. As pessoas dotadas de dupla vista sempre têm consciência disso?

Nem sempre; para elas, é coisa inteiramente natural, e muitas dessas pessoas acreditam que, se todos se observassem nesse sentido, perceberiam ser

como elas.

454. Poder-se-ia atribuir a uma espécie de dupla vista a perspicácia de certas pessoas que, sem nada terem de extraordinário, julgam as coisas com mais precisão do que as outras?

É sempre a alma que irradia mais livremente e julga melhor do que sob o véu da matéria.

454-a. Esta faculdade pode, em certos casos, dar a presciência das coisas?

Sim; ela dá também os pressentimentos, porque há muitos graus desta faculdade, e o mesmo indivíduo pode ter todos os graus ou não ter mais do que alguns.

VIII — Resumo Teórico do Sonambulismo, do Êxtase e da Dupla Vista

455. Os fenômenos do sonambulismo natural se produzem espontaneamente e independem de qualquer causa exterior conhecida; mas, entre algumas pessoas, dotadas de organização especial, podem ser provocados artificialmente, pela ação do agente magnético.

O estado designado pelo nome de sonambulismo magnético não difere do sonambulismo natural, senão pelo fato de ser provocado, enquanto o outro é espontâneo.

O sonambulismo natural é um fato notório, que ninguém pensa pôr em

dúvida, apesar do aspecto maravilhoso dos seus fenômenos. Que haveria pois, de mais extraordinário ou de mais irracional no sonambulismo magnético, por ser ele produzido artificialmente, como tantas outras coisas? Dizem que os charlatães o têm explorado; mais uma razão para que não seja deixado nas suas mãos. Quando a Ciência se tiver apropriado dele, o charlatanismo terá muito menos crédito entre as massas. Mas, enquanto se espera, como o sonambulismo natural ou artificial são um fato, e contra fatos não há argumentos, ele se firma, apesar da má vontade de alguns, e isso no próprio seio da Ciência, onde penetra por uma infinidade de portas laterais, em vez de passar pela central. E, quando lá estiver plenamente firmado, será necessário lhe conceder o direito da cidadania.

Para o Espiritismo, o sonambulismo é mais do que um fenômeno fisiológico, é uma luz projetada sobre a Psicologia. É nele que se pode estudar a alma, porque é nele que ela se mostra a descoberto. Ora, um dos fenômenos pelos quais ela se caracteriza é o da clarividência, independente dos órgãos comuns da visão. Os que contestam o fato se fundam em que o sonâmbulo não vê sempre, e à vontade dos experimentadores, como através dos olhos. Seria de admirar que os meios sendo diferentes, os efeitos não sejam os mesmos? Seria racional buscar efeitos semelhantes, quando não existe o instrumento? A alma tem as suas propriedades, como os olhos têm a deles; é preciso julgá-los em si

mesmos, e não por analogia.

A causa da clarividência do sonambulismo magnético e do sonambulismo natural são a mesma: um atributo da alma, uma faculdade inerente a todas as partes do ser incorpóreo que existe em nós, e que não tem limites além dos que são assinalados à própria alma. O sonâmbulo vê em toda parte a que sua alma possa transportar-se, qualquer que seja a distância.

No caso da visão à distância, o sonâmbulo não vê as coisas do lugar em que se encontra o seu corpo, à semelhança de um efeito telescópio. Ele as vê presentes, como se estivesse no lugar em que elas existem, porque a sua alma lá se encontra realmente; eis porque o seu corpo fica como aniquilado e privado de sensações, até o momento em que a alma se repousar dele. Essa separação parcial da alma e do corpo é um estado anormal, que pode ter uma duração mais ou menos longa, mas não indefinida. Essa é a causa da fadiga que o corpo experimenta, após um certo tempo, sobretudo quando a alma se entrega a um trabalho ativo.

A vista da alma ou do Espírito não sendo circunscrita e não tendo sede determinada, isso explica porque os sonâmbulos não podem assinalar para ela um órgão especial; eles vêem porque vêem, sem saber por que nem como, pois a vista não tem, para eles, como Espíritos, lugar próprio. Se eles se reportam ao corpo, esse lugar parece estar nos centros em que a atividade vital

é maior, principalmente no cérebro, ou na região epigástrica, ou no órgão que, para eles, é o ponto de ligação mais intenso entre o Espírito e o corpo.

O poder de lucidez sonambúlica não é indefinido. O Espírito, mesmo quando completamente livre, é limitado em suas faculdades e em seus conhecimentos, segundo o grau de perfeição que tenha atingido; e é mais ainda, quando ligado à matéria, da qual sofre a influência. Essa a causa por que a clarividência sonambúlica não é universal nem infalível. E tanto menos se pode contar com a sua infalibilidade, quanto mais a desviem do fim proposto pela natureza e a transformem em objeto de curiosidade e de experimentação.

No estado de desprendimento em que se encontra o Espírito do sonâmbulo, entra ele em comunicação mais fácil com os outros Espíritos, encarnados ou não. Essa comunicação se estabelece pelo contato dos fluidos que compõem o perispírito e servem de transmissão ao pensamento, como o fio à eletricidade. O sonâmbulo não tem, pois, necessidade de que o pensamento seja articulado através da palavra: ele o sente e adivinha; é isso que o torna eminentemente impressionável e acessível às influências da atmosfera moral em que se encontra. É também por isso que uma influência numerosa de espectadores, e sobretudo de curiosos mais ou menos malévolos, prejudica essencialmente o desenvolvimento de suas faculdades, que, por assim dizer, se fecham sobre si

mesmas e não se desdobram com toda a liberdade, como na intimidade e num meio simpático. A presença de pessoas malévolas ou antipáticas produz sobre ele o efeito do contato da mão sobre a sensitiva.

O sonâmbulo vê, ao mesmo tempo, o seu próprio Espírito e o seu corpo; eles são, por assim dizer, dois seres que lhe representam a dupla existência espiritual e corporal, confundidos, entretanto, pelos laços que os unem. Nem sempre o sonâmbulo se dá conta dessa situação, e essa dualidade faz que freqüentemente ele fale de si mesmo como se falasse de uma pessoa estranha.

Éque num momento, o ser corporal fala ao espiritual, e noutro é o ser espiritual que fala ao ser corporal.

O Espírito adquire um acréscimo de conhecimentos e de experiências em cada uma de suas existências corpóreas. Esquece-os, em parte, durante a sua encarnação numa matéria demasiado grosseira, mas recorda-os como Espírito.

Éassim que certos sonâmbulos revelam conhecimentos superiores ao seu grau de instrução, e mesmo à sua capacidade intelectual aparente. A inferioridade intelectual e científica do sonâmbulo, em seu estado de vigília, não permite, portanto, prejulgar-se nada sobre os conhecimentos que ele pode revelar no estado lúcido. Segundo as circunstâncias e o objetivo que se tenha em vista, ele pode hauri-los na sua própria experiência, na clarividência das coisas presentes, ou nos conselhos que recebe de outros Espíritos; mas, como o seu

próprio Espírito pode ser mais ou menos adiantado, ele pode dizer coisas mais ou menos justas.

Pelos fenômenos do sonambulismo, seja natural, seja magnético, a Providência nos dá a prova irrecusável da existência e da independência da alma, e nos faz assistir ao espetáculo sublime da sua emancipação; por esses fenômenos, ela nos abre o livro do nosso destino. Quando o sonâmbulo descreve o que se passa à distância, é evidente que ele o vê, mas não pelos olhos do corpo: vê-se a si mesmo no local, e para lá se sente transportado; lá existe, portanto qualquer coisa dele, e essa qualquer coisa, não sendo o seu corpo, só pode ser a sua alma ou seu Espírito. Enquanto o homem se extravia nas sutilezas de uma metafísica abstrata e ininteligível, na busca das causas de nossa existência moral, Deus põe diariamente sob os seus olhos e sob as suas mãos os meios mais simples e mais patentes para o estudo da psicologia experimental.

O êxtase é o estado pelo qual a independência entre a alma e o corpo se manifesta da maneira mais sensível, e se torna, de certa forma, palpável.

No sonho e no sonambulismo a alma erra pelos mundos terrestres; no êxtase, ela penetra um mundo desconhecido, o dos Espíritos etéreos com os quais entra em comunicação, sem entretanto poder ultrapassar certos limites, que ela não poderia transpor sem romper inteiramente os laços que a ligam ao corpo.

Um fulgor resplandecente e inteiramente novo a envolve, harmonias desconhecidas na Terra a empolgam, um bem-estar indefinível a penetra: ela goza, por antecipação, da beatitude celeste, e pode-se dizer que pousa um pé no limiar da eternidade.

No estado de êxtase o aniquilamento do corpo é quase completo; ele só conserva, por assim dizer, a vida orgânica. Sente-se que a alma não se liga a ele mais que por um fio, que um esforço a mais poderia romper seu remédio.

Nesse estado, todos os pensamentos terrenos desaparecem, para darem lugar ao sentimento puro que é a própria essência do nosso ser imaterial. Todo entregue a essa contemplação sublime, o extático não encara a vida senão como uma parada momentânea; para ele, os bens e os males, as alegrias grosseiras e as misérias deste mundo não são mais que fúteis incidentes de uma viagem da qual se sente feliz ao ver o termo.

Acontece com os extáticos o mesmo que com os sonâmbulos: sua lucidez pode ser mais ou menos perfeita, e seu próprio Espírito, conforme for mais ou menos elevado, é também mais ou menos apto a conhecer e a compreender as coisas. Verifica-se nele, às vezes, mais exaltação do que verdadeira lucidez, ou, melhor dito, sua exaltação prejudica a lucidez; é por isso que suas revelações são freqüentemente uma mistura de verdades e erros, de coisas sublimes e de coisas absurdas, ou mesmo ridículas. Espíritos inferiores

aproveitam-se muitas vezes dessa exaltação, que é sempre uma causa de fraqueza, quando não se sabe vencê-la, para dominar o extático, e para tanto se revestem aos seus olhos de aparências que o mantêm nas suas idéias preconceitos do estado de vigília. Este é um escolho, mas nem todos são assim; cabe-nos julgar friamente e pesar as suas revelações na balança da razão.

A emancipação da alma se manifesta às vezes no estado de vigília, e produz o fenômeno designado pelo nome de dupla vista, que dá aos que o possuem a faculdade de ver, ouvir e sentir além dos limites dos nossos sentidos. Eles percebem as coisas ausentes, por toda parte, até onde a alma possa estender a sua ação; vêem, por assim dizer, através da vista ordinária, como por uma espécie de miragem.

No momento em que se produz o fenômeno da dupla vista, o estado físico é sensivelmente modificado: os olhos têm qualquer coisa de vago, olhando sem ver, e toda a fisionomia reflete uma espécie de exaltação. Constata-seque os órgãos da visão são alheios ao fenômeno, ao verificar-se que a visão persiste, mesmo com os olhos fechados.

Esta faculdade se afigura, aos que a possuem, tão natural como a de ver:consideram-na um atributo normal, que não lhes parece constituir exceção. O esquecimento se segue, em geral, a essa lucidez passageira, cuja lembrança se

torna cada vez mais vaga, e acaba por desaparecer, como a de um sonho.

O poder da dupla vista varia desde a sensação confusa até à percepção clara e nítida das coisas presentes ou ausentes. No estado rudimentar, ela dá a algumas pessoas o tacto, a perspicácia, uma espécie de segurança nos seus atos, a que se pode chamar a justeza do golpe de vista moral. Mais desenvolvida, desperta os pressentimentos, e ainda mais desenvolvida, mostra acontecimentos já realizados ou em vias de realização.

O sonambulismo natural e artificial, o êxtase e a dupla vista, não são mais do que variedades ou modificações de uma mesma causa. Esses fenômenos da mesma maneira que os sonhos, pertencem à ordem natural. Eis por que existiram desde todos os tempos: a História nos mostra que eles foram conhecidos, e até mesmo explorados, desde a mais alta antigüidade, e neles se encontra a explicação de uma infinidade de fatos que os preconceitos fizeram passar como sobrenaturais.

Capítulo IX

Intervenção dos Espíritos no Mundo Corpóreo

I — Penetração do Nosso Pensamento Pelos Espíritos 456. Os Espíritos vêem tudo o que fazemos?

— Podem vê-lo, pois estais incessantemente rodeados por eles. Mas cada

um só vê aquelas coisas a que dirige a sua atenção, porque eles não se ocupam

das que não lhes interessam.

457. Os Espíritos podem conhecer os nossos pensamentos mais secretos?

Conhecem, muitas vezes, aquilo que desejaríeis ocultar a vós mesmos; nem atos, nem pensamentos podem ser dissimulados para eles.

457-a. Assim sendo, pareceria mais fácil ocultar-se uma coisa a uma pessoa viva, pois não o podemos fazer a essa mesma pessoa depois de morta?

Certamente, pois quando vos julgais bem escondidos, tendes muitas vezes ao vosso lado uma multidão de Espíritos que vos vêem.

458. Que pensam de nós os Espíritos que estão ao nosso redor e nos observam?

Isso depende. Os Espíritos levianos riem das pequenas traquinices que vos fazem, e zombam das vossas impaciências. Os Espíritos sérios lamentam as vossas trapalhadas e tratam de vos ajudar.

II — Influência Oculta dos Espíritos Sobre os Nossos Pensamentos e as Nossas Ações.

459. Os Espíritos influem sobre os nossos pensamentos e as nossas ações?

Nesse sentido a sua influência é maior do que supondes, por-que muito freqüentemente são eles que vos dirigem.

460. Temos pensamentos próprios e outros que nos são sugeridos?

Vossa alma é um Espírito que pensa; não ignorais que muitos pensamentos vos ocorrem, a um só tempo, sobre o mesmo assunto e freqüentemente bastante contraditórios. Pois bem: nesse conjunto há sempre os vossos e os nossos, e é isso o que vos deixa na incerteza, porque tendes em vós duas idéias que se combatem.

461. Como distinguir os nossos próprios pensamentos dos que nos são sugeridos?

Quando um pensamento vos é sugerido, é como uma voz que vos fala. Os pensamentos próprios são, em geral, os que vos ocorrem no primeiro impulso. De resto, não há grande interesse para vós nessa distinção, e é freqüentemente útil não o saberdes: o homem age mais livremente; se decidir pelo bem, o fará de melhor vontade; se tomar o mau caminho, sua responsabilidade será maior.

462.Os homens de inteligência e de gênio tiram sempre suas idéias de si mesmos?

Algumas vezes as idéias surgem de seu próprio Espírito, mas freqüentemente lhes são sugeridas por outros Espíritos, que os julgam capazes de as compreender e dignos de as transmitir. Quando eles não as encontram em si mesmos, apelam para a inspiração; é uma evocação que fazem, sem o suspeitar.

Se fosse útil que pudéssemos distinguir claramente os nossos próprios

pensamentos daqueles que nos são sugeridos, Deus nos teria dado o meio defazê-lo, como nos deu o de distinguir o dia e a noite. Quando uma coisa permanece vaga é que assim deve ser para o nosso bem.

463.Diz-se algumas vezes que o primeiro impulso é sempre bom; isto é

exato?

— Pode ser bom ou mau, segundo a natureza do Espírito encarnado. É sempre bom para aquele que ouve as boas inspirações.

464.Como distinguir se um pensamento sugerido vem de um bom ou de um mau Espírito?

— Examinai-o: os bons Espíritos não aconselham senão o bem: cabe a vós distinguir.

465.Com que fim os Espíritos imperfeitos nos induzem ao mal?

Para vos fazer sofrer como eles.465-a. Isso lhes diminui os sofrimentos?

Não, mas eles o fazem por inveja dos seres mais felizes.465-b. Que espécie de sofrimentos querem fazer-nosprovar?

Os que decorrem de pertencer a uma ordem inferior e estar diante de Deus.

466. Por que permite Deus que os Espíritos nos incitem ao mal?

Os espíritos imperfeitos são os instrumentos destinados a experimentar a

fé e a constância dos homens no bem. Tu, sendo Espírito, deves progredir na ciência do infinito, e é por isso que passas pelas provas do mal até chegar ao bem. Nossa missão é a de te pôr no bom caminho, e quando más influências agem sobre ti, és tu que as chamas, pelo desejo do mal, porque os Espíritos inferiores vêm em teu auxílio no mal, quando tens a vontade de o cometer eles não podem ajudar-te no mal, senão quando tu desejas o mal. Se és inclinado ao assassínio, pois bem! terás uma nuvem de Espíritos que entreterão esse pensamento em ti; mas também terás outros, que tratarão de influenciar para o bem, o que faz que se reequilibre a balança e te deixe senhor de ti.

É assim que Deus deixa à nossa consciência a escolha da rota que devemos seguir, e a liberdade de ceder a uma ou a outra das influências contrárias que se exercem sobre nós.

467.Pode o homem se afastar da influência dos Espíritos que o incitam ao

mal?

— Sim, porque eles só se ligam aos que os solicitam por seus desejos ou os atraem por seus pensamentos.

468.Os Espíritos cuja influência é repelida pela vontade do homem renunciam às suas tentativas?

— Que queres que eles façam? Quando nada têm a fazer, abandonam o campo. Não obstante, espreitam o momento favorável, como o gato espreita o

rato.

469. Por que meio se pode neutralizar a influência dos maus Espíritos?

Fazendo o bem e colocando toda a vossa confiança em Deus, repelis a influência dos Espíritos inferiores e destruís o império que desejam ter sobre vós. Guardai-vos de escutar as sugestões dos Espíritos que suscitam em vós os maus pensamentos, que insuflam a discórdia e excitam em vós todas as más paixões. Desconfiai sobretudo dos que exaltam o vosso orgulho, porque eles atacam na vossa fraqueza. Eis porque Jesus voz faz dizer na oração dominical: "Senhor, não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal!"

470. Os Espíritos que procuram induzir-nos ao mal, e que assim põem à prova a nossa firmeza no bem, receberam a missão de o fazer, e se é uma missão que eles cumprem, terão responsabilidade nisso?

Nenhum Espírito recebe a missão de fazer o mal; quando ele o faz, é pela sua própria vontade e conseqüentemente terá de sofrer as conseqüências. Deus pode deixá-lo fazer para vos provar, mas jamais o ordena, e cabe a vós repeli- lo.

471. Quando experimentamos um sentimento de angústia, de ansiedade indefinível, ou de satisfação interior sem causa conhecida, isso decorre unicamente de uma disposição física?

É quase sempre um efeito das comunicações que, sem o saber, tivestes

com os Espíritos, ou das relações que tivestes com eles durante o sono.

472.Os Espíritos que desejam incitar-nos ao mal limitam-se a aproveitar as circunstâncias?

— Eles aproveitam a circunstância, mas freqüentemente a provocam,empurrando-vos sem o perceberdes para o objeto da vossa ambição. Assim, por exemplo, um homem encontra no seu caminho uma certa quantia: não acrediteis que foram os Espíritos que puseram o dinheiro ali, mas eles podem dar ao homem o pensamento de se dirigir naquela direção, e então lhe sugerem apoderar-se dele, enquanto outros lhe sugerem devolver o dinheiro ao dono. Acontece o mesmo em todas as outras tentações.

III — Possessos

473.Pode um Espírito, momentaneamente, revestir-se do invólucro de uma pessoa viva, quer dizer, introduzir-se num corpo animado e agir em substituição ao Espírito que nele se encontra encarnado?

— O Espírito não entra num corpo como entras numa casa; ele se assimila a um Espírito encarnado que tem os seus mesmos defeitos e as suas mesmas qualidades, para agir conjuntamente; mas é sempre o Espírito encarnado que age como quer sobre a matéria de que está revestido. Um Espírito não podesubstituir-se ao que se acha encarnado, porque o Espírito e o corpo estão ligados até o tempo marcado para o termo da existência material.

474.Se não há possessão propriamente dita, quer dizer, coabitação de dois Espíritos no mesmo corpo, a alma pode encontrar-se na dependência de um outro Espírito, de maneira a se ver por ele subjugada ou obsedada, ao ponto de ser a sua vontade, de alguma forma, paralisada?

— Sim, e são esses os verdadeiros possessos; mas fica sabendo que essa dominação não se efetua jamais sem a participação daquele que sofre, seja por fraqueza, seja pelo seu desejo. Freqüentemente se têm tomado por possessos criaturas epilépticas ou loucas, que mais necessitavam de médico do que de exorcismo.

A palavra possesso, na sua acepção vulgar, supõe a existência de demônios, ou seja, de uma categoria de seres de natureza má, e a coabitação de um desses seres com a alma, no corpo de um indivíduo. Mas, como não há demônios nesse sentido, e como dois Espíritos não podem habitar simultaneamente o mesmo corpo, também não há possessos, segundo as idéias ligadas a essa palavra. Pela expressão possesso não se deve entender senão a dependência absoluta da alma em relação a Espíritos imperfeitos que a subjuguem.

475.Pode uma pessoa, por si mesma, afastar os maus Espíritos e se libertar do seu domínio?

— Sempre se pode sacudir um jugo, quando se tem uma vontade firme.

476.Não pode acontecer que a fascinação exercida por um mau Espírito seja tal, que a pessoa subjugada não a perceba? Então, uma terceira pessoa pode fazer cessar a sujeição, e, nesse caso, que condição deve ela preencher?

— Se for um homem de bem, sua vontade pode ajudar, apelando para o concurso dos bons Espíritos, porque quanto mais se é um homem de bem, mais poder se tem sobre os Espíritos imperfeitos, para os afastar, e sobre os bons, para os atrair. Não obstante, essa terceira pessoa seria impotente se aquele que está subjugado não se prestasse a isso, pois há pessoas que se comprazem numa dependência que satisfaz os seus gostos e os seus desejos. Em todos os casos, aquele que não tem o coração puro não pode ter nenhuma influência; os bons Espíritos o desprezam e os maus não o temem.

477.As fórmulas de exorcismo têm qualquer eficácia contra os maus Espíritos?

—- Não; quando esses Espíritos vêem alguém tomá-las a sério, riem e se obstinam.

478.Há pessoas animadas de boas intenções e nem por isso menos obsedadas; qual o melhor meio de se livrarem dos Espíritos obsessores?

— Cansar-lhes a paciência, não dar nenhuma atenção às suas sugestões,mostrar-lhes que perdem tempo; então, quando eles vêem que nada têm a fazer, se retiram.

479. A prece é um meio eficaz para curar a obsessão?

A prece é um poderoso socorro para todos os casos, mas sabei que não é suficiente murmurar algumas palavras para obter o que se deseja. Deus assiste aos que agem, e não aos que se limitam a pedir. Cumpre, portanto, que o obsedado faça, de seu lado, o que for necessário para destruir em si mesmo a causa que atrai os maus Espíritos.

480. Que se deve pensar da expulsão dos demônios, de que se fala no Evangelho?

Isso depende da interpretação. Se chamais demômio a um mau Espírito que subjuga um indivíduo, quando a sua influência for destruída ele será verdadeiramente expulso. Se atribuís uma doença ao demônio, quando a tiverdes curado direis também que expulsastes o demônio. Uma coisa pode ser verdadeira ou falsa, segundo o sentido que se der às palavras. As maiores verdades podem parecer absurdas, quando não se olha senão para a forma e quando se toma a alegoria pela realidade. Compreendei bem isto e procurairetê-lo, que é de aplicação geral.

IV — Convulsionários

481. Os Espíritos desempenham algum papel nos fenômenos que se

produzem entre os indivíduos chamados convulsionários?

Sim, e muito grande, como também o magnetismo, que é a sua primeira fonte. Mas o charlatanismo tem freqüentemente explorado e exagerado os seus efeitos, o que os pôs em ridículo.

481-a. De que natureza são, em geral, os Espíritos que concorrem para essa espécie de fenômenos?

Pouco elevados; acreditais que Espíritos superiores perdessem tempo com tais coisas?

482. Como o estado normal dos convulsionários e dos nervosos podeestender-se subitamente a toda uma população?

Efeito simpático. As disposições morais se comunicam mais facilmente em certos casos; não sois tão alheios aos efeitos magnéticos para não compreender esse fato e a parte que alguns Espíritos devem nele tomar, por simpatia pelos que os provocam.

Entre as faculdades estranhas que se notam nos convulsionários, reconhecemos facilmente algumas de que o sonambulismo e o magnetismo oferecem numerosos exemplos: tais são, entre outras, a in-sensibilidadefísica, a leitura do pensamento, a transmissão simpática de dores, etc. Não se pode duvidar que esses indivíduos em crise estejam numa espécie de estado sonambúlico desperto, provocado pela influência que exercem uns sobre os outros. Eles são, ao mesmo tempo, magnetizadores e magnetizados, sem o

saber.

483. Qual a causa da insensibilidade física que se verifica, seja entre certos convulsionários, seja entre outros indivíduos submetidos às torturas mais atrozes?

— Entre alguns é um efeito exclusivamente magnético, que age sobre o sistema nervoso da mesma maneira que certas substâncias. Entre outros, a exaltação do pensamento embota a sensibilidade, pelo que a vida parecehaver-se retirado do corpo e se transportado ao Espírito. Não sabeis que, quando o Espírito está fortemente preocupado com uma coisa, o corpo não sente, não ouve e não vê?

A exaltação fanática e o entusiasmo oferecem muitas vezes, nos casos de suplício, o exemplo de uma calma e de um sangue frio que não poderiam triunfar de uma dor aguda, se não se admitisse que a sensibilidade foi neutralizada por uma espécie de efeito anestésico. Sabe-se que, no calor do combate, freqüentemente não se percebe um ferimento grave, enquanto nas circunstâncias ordinárias uma arranha-dura provoca tremores.

Desde que esses fenômenos dependem de uma causa física e da ação de certos Espíritos, pode-se perguntar como, em alguns casos, a autoridade os pode fazer cessar. A razão é simples. A ação dos Espíritos é secundária, eles nada mais fazem do que aproveitar uma disposição natural. A autoridade não

pode suprimir essa disposição, mas a causa que a entretinha e exaltava; de ativa, ela a torna latente, e com razão para agir assim, porque o fato resultava em abuso e escândalo. Sabe-se, aliás, que essa intervenção é impotente, que essa intervenção é impotente, quando a ação dos Espíritos é direta e espontânea.

V — Afeição dos Espíritos por Certas Pessoas

484. Os Espíritos se afeiçoam de preferência a certas pessoas?

Os bons Espíritos simpatizam com os homens de bem ou suscetíveis de progredir; os Espíritos inferiores, com os homens viciosos ou que podemviciar-se; daí o seu apego, resultante da semelhança de sensações.

485. A afeição dos Espíritos por certas pessoas é exclusivamente moral?

A afeição verdadeira nada tem de carnal; mas quando um Espírito se apega a uma pessoa, nem sempre o faz por afeição, podendo existir no caso uma lembrança de paixões humanas.

486. 0s Espíritos se interessam pelos nossos infortúnios e pela nossa prosperidade? Os que nos querem bem se afligem pelos males que experimentamos na vida?

Os bons Espíritos fazem todo o bem que podem e se sentem felizes com as vossas alegrias. Eles se afligem com os vossos males, quando não os

suportais com resignação, porque então esses males não vos dão resultados, pois procedeis como o doente que rejeita o remédio amargo destinado a curá- lo.

487.Qual a espécie de mal que mais faz os Espíritos se afligirem por nós: o mal físico ou o moral?

— Vosso egoísmo e vossa dureza de coração: daí é que tudo deriva. Eles riem de todos esses males imaginários que nascem do orgulho e da ambição, e se rejubilam com os que têm por fim abreviar o vosso tempo de prova.

Os Espíritos, sabendo que a vida corporal é apenas transitória, e que as atribuições que a acompanham são meios de conduzir a um estado melhor,afligem-se mais pelas causas morais que podem distanciar-nos desse estado, do que pelos males físícos, que são apenas passageiros.

O Espírito que vê nas aflições da vida um meio de adianta-mento para nós,considera-as como a crise momentânea que deve salvar o doente.Compadece-se dos nossos sofrimentos como nos com-padecemos dos sofrimentos de um amigo, mas vendo as coisas de um ponto de vista mais justo, aprecia-os de maneira diversa, e en-quanto os bons reerguem a nossa coragem, no interesse do nosso futuro, os outros, tentando comprometê-lo,nos incitam ao desespero.

488.Nossos parentes e nossos amigos, que nos precederam na outra vida,

têm mais simpatia por nós do que os Espíritos que nos são estranhos?

Sem dúvida, e freqüentemente vos protegem como Espíritos, de acordo com o seu poder.

488-a. São eles sensíveis à afeição que lhes conservamos?

Muito sensíveis, mas esquecem aqueles que os esquecem.

VI — Anjos da Guarda, Espíritos Protetores Familiares ou Simpáticos

489.Há Espíritos que se ligam a um indivíduo, em particular, para o proteger?

— Sim, o irmão espiritual; é o que chamais o bom Espírito ou o bom gênio.

490.Que se deve entender por anjo da guarda?

O Espírito protetor de uma ordem elevada. 491. Qual a missão do Espírito protetor?

A de um pai para com os filhos: conduzir o seu protegido pelo bom caminho, ajudá-lo com os seus conselhos, consolá-lo nas suas aflições, sustentar sua coragem nas provas da vida.

492. O Espírito protetor é ligado ao indivíduo desde o seu nascimento?

Desde o nascimento até à morte, e freqüentemente o segue depois da morte, na vida espírita, e mesmo através de numerosas existências corpóreas, porque essas existências não são mais do que fases bem curtas da vida do

Espírito.

493. A missão do Espírito protetor é voluntária ou obriga-tória?

O Espírito é obrigado a velar por vós porque aceitou essa tarefa, mas pode escolher os seres que lhes são simpáticos. Para uns, isso é um prazer; para outros, uma missão ou um dever.

493-a. Ligando-se a uma pessoa, o Espírito renuncia a proteger outros indivíduos?

Não, mas o faz de maneira mais geral.

494. 0 Espírito protetor está fatalmente ligado ao ser confiado à sua guarda?

Acontece freqüentemente que certos Espíritos deixam sua posição para cumprir diversas missões, mas nesse caso são substituídos.

495. O Espírito protetor abandona às vezes o protegido, quando este se mostra rebelde às suas advertências?

Afasta-se, quando vê que os seus conselhos são inúteis e que é mais forte a vontade do protegido em submeter-se à influência dos Espíritos inferiores, mas não o abandona completamente e sempre se faz ouvir. É o homem quem lhe fecha os ouvidos. Ele volta, logo que chamado.

Há uma doutrina que deveria converter os mais incrédulos, por seu encanto e por sua doçura: a dos anjos da guarda. Pensar que tendes sempre ao vosso lado seres que vos são superiores, que estão sempre ali para vos

aconselhar, vos sustentar, vos ajudar a escalar a montanha escarpada do bem, que são amigos mais firmes e mais devotados que as mais íntimas ligações que se possam contrair na Terra, não é essa uma idéia bastante consoladora? Esses seres ali estão por ordem de Deus, que os colocou ao vosso lado; ali estão por seu amor, e cumprem junto a vós todos uma bela mas penosa missão. Sim, onde quer que estiverdes, vosso anjo estará convosco: nos cárceres, nos hospitais, nos antros do vício, na solidão, nada vos separa desse amigo que não podeis ver, mas do qual vossa alma recebe os mais doces impulsos e ouve os mais sábios conselhos.

Ah, por que não conheceis melhor esta verdade? Quantas vezes ela vos ajudaria nos momentos de crise; quantas vezes ela vos sal-varia dos maus Espíritos! Mas, no dia decisivo, este anjo de bondade terá muitas vezes de vos dizer: "Não te avisei disso? E não o fizeste! Não te mostrei o abismo? E nele te precipitaste! Não fiz soar na tua consciência a voz da verdade, e não seguiste os conselhos da mentira?" Ah, interpelai vossos anjos da guarda, estabelecei entre vós e eles essa terna intimidade que reina entre os melhores amigos! Não penseis em lhes ocultar nada, pois eles são os olhos de Deus e não os podeis enganar! Considerai o futuro; procurai avançar nesta vida, e vossas provas serão mais curtas, vossas existências mais felizes. Vamos, homens, coragem! Afastai para longe de vós, de uma vez por todas,

preconceitos e segundas intenções! Entrai na nova vida que se abre diante de vós, marchai, marchai! Tendes guias, segui-os: a meta não vos pode faltar porque essa meta é o próprio Deus.

Aos que pensassem ser impossível a Espíritos verdadeiramente elevados se restringirem a uma tarefa tão laboriosa, e de todos os instantes, diremos que influenciamos as vossas almas embora estando a milhões de léguas de distância: para nós, o espaço não existe, e mesmo vivendo em outro mundo, nossos Espíritos conservam sua ligação convosco. Gozamos de faculdades que não podeis compreender, mas estai certos de que Deus não nos impôs uma tarefa acima de nossas forças, nem vos abandonou sozinhos sobre a Terra, sem amigos e sem amparo. Cada anjo da guarda tem o seu protegido e vela por ele, como um pai vela pelo filho. Sente-se feliz quando o vê no bom caminho, chora quando os seus conselhos são desprezados.

Não temais fatigar-nos com as vossas perguntas; permanecei, pelo contrário, sempre em contato conosco: sereis então mais fortes e mais felizes. São essas comunicações de cada homem com o seu Espírito familiar que fazem médiuns a todos os homens, médiuns hoje ignorados, mas que mais tarde se manifestarão, derramando-se como um oceano sem bordas, para fazer refluir a incredulidade e a ignorância. Homens instruídos, instrui; homens de talento, educai os vossos ir-mãos. Não sabeis que obra assim realizais: é a do Cristo, a

que Deus vos impõe. Por que Deus vos concedeu a inteligência e a ciência, se não para as repartirdes com vossos irmãos, para os adiantar na senda da aventura e da eterna bem-aventurança? — São Luís, Santo Agostinho.

A doutrina dos anjos da guarda velando pelos protegidos, apesar da distância que separa os mundos, nada tem que deva surpreender; pelo contrário, é grande e sublime. Não vemos sobre a Terra um pai velar pelo filho, ainda que esteja distante, e ajudá-lo com seus conselhos através da correspondência? Que haveria de admirar em que os Espíritos possam guiar, de um mundo ao outro, os que toma-ram sob a sua proteção, pois se, para eles, a distância que separa os mundos é menor que a que divide os continentes, na Terra? Não dispõem eles do fluido universal, que liga todos os mundos e os torna solidários, veículo imenso da transmissão do pensamento, como o ar é para nós o veículo da transmissão do som?

496.O Espírito que abandona o seu protegido, não mais lhe fazendo o bem, pode fazer-lhe mal?

— Os bons Espíritos jamais fazem o mal; deixam que o façam os que lhes tomam o lugar, e então acusais a sorte pelas desgraças que vos oprimem enquanto a falta é vossa.

497.O Espírito protetor pode deixar o seu protegido à mercê de um Espírito que lhe quisesse mal?

Existe a união dos maus Espíritos para neutralizar a ação dos bons, mas, se o protegido quisesse, daria toda força ao seu bom Espírito. Esse talvez encontre, em algum lugar, uma boa vontade a ser ajudada, e a aproveita, esperando o momento de voltar junto ao seu protegido.

498. Quando o Espírito protetor deixa o seu protegido se extraviar na vida, é por impotência para enfrentar os Espíritos maléficos?

Não é por impotência, mas porque ele não o quer: seu protegido sai das provas mais perfeito e instruído, e ele o assiste com os seus conselhos, pelos bons pensamentos que lhe sugere, mas que infelizmente nem sempre são ouvidos. Não é senão a fraqueza, o desleíxo ou o orgulho do homem que dão força aos maus Espíritos. Seu poder sobre vós só provém do fato de não lhes opordes resistência.

499. O Espírito protetor está constantemente com o protegido? Não existe alguma circunstância em que, sem o abandonar, o perca de vista?

Há circunstâncias em que a presença do Espírito protetor não é necessária junto ao protegido.

500. Chega um momento em que o Espírito não tem mais necessidade do anjo da guarda?

Sim, quando se torna capaz de guiar-se por si mesmo, como chega um

momento em que o estudante não mais precisa de mestre. Mas isso não

acontece na Terra.

501.Por que a ação dos Espíritos em nossa vida é oculta, e por que, quando eles nos protegem, não o fazem de maneira ostensiva?

— Se contásseis com o seu apoio, não agiríeis por vós mesmos e o vosso Espírito não progrediria. Para que ele possa adiantar-se, necessita de experiência, e em geral é preciso que a adquira à sua custa; é necessário que exercite as suas forças, sem o que seria como uma criança a quem não deixam andar sozinha. A ação dos Espíritos que vos querem bem é sempre regulada de maneira a vos deixar o livre arbítrio, porque se não tivésseis responsabilidade não vos adiantaríeis na senda que vos deve conduzir a Deus. Não vendo quem o ampare, o homem se entrega às suas próprias forças, não obstante, o seu guia vela por ele e de quando em quando o adverte do perigo.

502.O Espírito protetor que consegue conduzir o seu protegido pelo bom caminho experimenta com isso algum bem para si mesmo?

— É um mérito que lhe é levado em conta, seja para o seu próprio andamento, seja para sua felicidade. Ele se sente feliz quando vê os seus cuidados coroados de sucesso; é para ele um triunfo, como um preceptor triunfa com os sucessos do seu discípulo.

502-a. É ele responsável, quando não o consegue?

— Não, pois fez o que dele dependia.

503.0 Espírito protetor que vê o seu protegido seguir um mau caminho, apesar dos seus avisos, não sofre com isso e não vê assim perturbada a sua felicidade?

— Sofre com os seus erros, e os lamenta, mas essa aflição nada tem das angústias da paternidade terrena, porque ele sabe que há remédio para o mal e que o que hoje não se fez, amanhã se fará.

504.Podemos sempre saber o nome do nosso Espírito protetor ou anjo da guarda?

— Como quereis saber nomes que não existem para vós? Acre-ditaisentão, que só existem os Espíritos que conheceis?

504-a. Como então o invocar, se não o conhecemos?

— Dai-lhe o nome que quiserdes, o de um Espírito superior pelo qual tendes simpatia e veneração; vosso Espírito protetor atenderá a esse apelo, porque todos os bons Espíritos são irmãos e se assistem mutuamente.

505.Os Espíritos protetores que tomam nomes comuns são sempre os de pessoas que tiveram esses nomes?

— Não, mas Espíritos que lhes são simpáticos e que muitas vezes vêm por sua ordem. Necessitais de um nome: então, eles tomam um que vos inspire confiança. Quando não podeis cumprir pessoalmente uma missão, enviais

alguém de vossa confiança, que age em vosso nome.

506.Quando estivermos na vida espírita reconheceremos nosso Espírito protetor?

— Sim, pois freqüentemente o conhecestes antes da vossa encarnação.

507.Os Espíritos protetores pertencem todos à classe dos Espíritos superiores? Podem ser encontrados entre os da classe média? Um pai, por exemplo, pode tornar-se Espírito protetor de seu filho?

— Pode, mas a proteção supõe um certo grau de elevação, e um poder e uma virtude a mais, concedidos por Deus. O pai que protege o filho pode ser assistido por um Espírito mais elevado.

508.0s Espíritos que deixaram a Terra em boas condições podem sempre proteger os que amaram e lhe sobreviveram?

— Seu poder é mais ou menos restrito; a posição em que se encontram nem sempre lhes permite inteira liberdade de ação.

509.Os homens no estado selvagem ou de inferioridade moral têm igualmente seus Espíritos protetores, e nesse caso esses Espíritos são de uma ordem tão elevada como os dos homens adiantados?

— Cada homem tem um Espírito que vela por ele, mas as missões são relativas ao seu objeto. Não dareis a uma criança que aprende a ler um professor de Filosofia. O progresso do Espírito familiar segue o do Espírito

protegido. Tendo um Espírito superior que vela por vós, podeis também vos tornar o protetor de um Espírito que vos seja inferior, e o progresso que o ajudardes a fazer contribuirá para o vosso adiantamento. Deus não pede ao Espírito mais do que aquilo que comporte a sua natureza e o grau a que tenha atingido.

510.Quando o pai que vela pelo filho se reencarna, continua ainda a velar por ele?

— Isso é mais difícil, mas ele pede, num momento de desprendimento, que um Espírito simpático o assista nessa missão. Aliás, os Espíritos só aceitam missões que podem cumprir até o fim. O Espírito encarnado, sobretudo nos mundos de existência material, está demasiado sujeito ao corpo para poderdevotar-se inteiramente a outro, ou seja, assisti-lo pessoalmente. Eis porque os não suficientemente elevados estão sob a assistência de Espíritos que lhes são superiores, de tal maneira que, se um faltar, por um motivo qualquer, será substituído por outro.

511.Além do Espírito protetor, um mau Espírito é ligado a cada indivíduo, com o fim de impulsioná-lo ao mal e de lhe propiciar uma ocasião de lutar entre o bem e o mal?

— Ligado, não é bem o termo. É bem verdade que os maus Espíritos procuram desviar o homem do bom caminho, quando encontram ocasião, mas

quando um deles se liga a um indivíduo o faz por si mesmo, porque espera ser escutado; então, haverá luta entre o bom e o mau e vencerá aquele a cujo domínio o homem se entregar.

5l2. Podemos ter muitos Espíritos protetores?

Cada homem tem sempre Espíritos simpáticos, mais ou menos elevados, que lhe dedicam afeição e se interessam por ele, como há também os que o assistem no mal.

513. Agem os Espíritos simpáticos em virtude de uma missão?

Às vezes podem ter uma missão temporária, mas em geral são apenas solicitados pela similitude de pensamentos e de sentimentos, no bem como no mal.

513-a. Parece resultar daí que os Espíritos simpáticos podem ser bons ou maus?

Sim, o homem encontra sempre Espíritos que simpatizam com ele, qualquer que seja o seu caráter.

514. 0s Espíritos familiares são a mesma coisa que os Espíritos simpáticos ou os Espíritos protetores?

Há muitas gradações na proteção e na simpatia. Dai-lhes os nomes que quiserdes. O Espírito familiar é antes de tudo o amigo da casa.

Das explicações acima e das observações feitas sobre a natureza dos

Espíritos que se ligam ao homem, pode deduzir-se o seguinte:

O Espírito protetor, anjo da guarda ou bom gênio é aquele que tem por missão seguir o homem na vida e o ajudar a progredir. É sempre de uma natureza superior à do protegido.

Os Espíritos familiares se ligam a certas pessoas por meio de laços mais ou menos duráveis, com o fim de ajudá-las na medida do seu poder, freqüentemente bastante limitado. São bons, mas às vezes pouco adiantados e mesmo levianos; ocupam-se voluntariamente de pormenores da vida íntima e só agem por ordem ou com a permissão dos Espíritos protetores.

Os Espíritos simpáticos são os que atraímos a nós por afeições particulares e uma certa semelhança de gostos e de sentimentos, tanto no bem como no mal. A duração de suas relações é quase sempre subordinada as circunstâncias.

O mau gênio é um Espírito imperfeito ou perverso que se liga ao homem com o fim de o desviar do bem, mas age pelo seu próprio impulso e não em virtude de uma missão. Sua tenacidade está na razão do acesso mais fácil ou mais difícil que encontre. O homem é sempre livre de ouvir a sua voz ou de a repelir.

515. Que se deve pensar dessas pessoas que parecem ligar-se a certos indivíduos para levá-los fatalmente à perdição ou para guiá-los no bom caminho?

Algumas pessoas exercem um efeito sobre outras, uma espécie de fascinação que parece irresistível. Quando isso acontece para o mal, são maus Espíritos, de que se servem outros maus Espíritos para melhor subjugarem as suas vítimas. Deus pode permiti-lo para vos experimentar.

5l6. Nosso bom e nosso mau gênio poderiam encarnar-se, para nos acompanharem na vida de maneira mais direta?

Isso acontece algumas vezes, mas freqüentemente, também, eles encarregam dessa missão outros Espíritos encarnados, que lhes são simpáticos.

5l7. Há Espíritos que se ligam a toda uma família para protegê-la?

Alguns Espíritos se ligam aos membros de uma mesma família, que vivem juntos e são unidos por afeição, mas não acrediteis em espíritos protetores do orgulho das raças.

518. Sendo os Espíritos atraídos aos indivíduos por simpatia, serão igualmente a reuniões de indivíduos, por motivos particulares?

— Os Espíritos vão de preferência aonde estão os seus semelhantes, pois nesses lugares podem estar à vontade e mais seguros de ser ouvidos. O homem atrai os Espíritos em razão de suas tendências, quer esteja só ou constitua um todo coletivo, como uma sociedade, uma cidade ou um povo. Há, pois, sociedades, cidades e povos que são assistidos por Espíritos mais ou menos

elevados, segundo o seu caráter e as paixões que os dominam. Os Espíritos imperfeitos se afastam dos que os repelem, e disso resulta que o aperfeiçoamento moral de um todo coletivo, como o dos indivíduos, tende a afastar os maus Espíritos e a atrair os bons, que despertam e mantêm o sentimento do bem nas massas, da mesma maneira por que outros podeminsuflar-lhes as más paixões.

519.As aglomerações de indivíduos, como as sociedades, as cidades, as nações, têm os seus Espíritos protetores especiais?

— Sim, porque essas reuniões são de individualidades coletivas que marcham para um objetivo comum e têm necessidade de uma direção superior.

520.Os Espíritos protetores das massas são de natureza mais elevada que a dos que se ligam aos indivíduos?

— Tudo é relativo ao grau de adiantamento, das massas como dos indivíduos.

521.Alguns Espíritos podem ajudar o progresso das artes, protegendo os que delas se ocupam?

— Há Espíritos protetores especiais e que assistem aos que os invocam, quando os julgam dignos; mas que quereis que eles façam com os que crêem ser o que não são? Eles não podem fazer os cegos verem nem os surdos

ouvirem.

Os antigos haviam feito desses Espíritos divindades especiais. As Musas eram personificação alegórica dos Espíritos protetores das ciências e das artes, como designavam pelos nomes de lares e penates os Espíritos protetores da família. Entre os modernos, as artes, as diferentes indústrias, as cidades, os países têm também seus patronos ou protetores, que são os Espíritos superiores, mas sob outros nomes.

Cada homem tendo os seus Espíritos simpáticos, disso resulta que em todas as coletividades a generalidade dos Espíritos simpáticos está em relação com a generalidade dos indivíduos; que os Espíritos estranhos são para elas atraídos pela identidade de gostos e de pensa-mentos; em uma palavra, que essas aglomerações, tão bem como os indivíduos, são mais ou menos bem envolvidas, assistidas e influenciadas, segundo a natureza dos pensamentos da multidão.

Entre os povos, as causas de atração dos Espíritos são os costumes, os hábitos, o caráter dominante, as leis, sobretudo, porque o caráter da nação se reflete nas suas leis. Os homens que fazem reinar a justiça entre eles combatem a influência dos maus Espíritos. Por toda parte onde a lei consagra medidas injustas, contrárias à humanidade, os bons Espíritos estão em minoria e a massa dos maus, que para ali afluem, entretêm a nação nas suas idéias e

paralisam as boas influências parciais, que ficam perdidas na multidão, como espigas isoladas em meio de espinhadeiros. Estudando-se os costumes dos povos, ou de qualquer reunião de homens, é fácil, portanto, fazer idéia da população oculta que se imiscui nos seus pensamentos e nas suas ações.

VII — Pressentimentos

522. O pressentimento é sempre uma advertência do Espírito protetor?

O pressentimento é o conselho íntimo e oculto de um Espírito que vos deseja o bem. É também a intuição da escolha anterior: é a voz do instinto. O Espírito, antes de se encarnar, tem conhecimento das fases principais da sua existência, ou seja, do gênero de provas a que irá ligar-se. Quando estas têm um caráter marcante, ele conserva uma espécie de impressão em seu foro íntimo, e essa impressão, que é a voz do instinto, desperta quando chega o momento, tornando-se pressentimento.

523. 0s pressentimentos e a voz do instinto têm sempre qual-quer coisa de vago; na incerteza, o que devemos fazer?

Quando estás em dúvida, invoca o teu bom Espírito, ou ora a Deus, nosso soberano Senhor, para que te envie um de seus mensageiros, um de nós.

524. As advertências de nossos Espíritos protetores têm por único objeto a conduta moral, ou também a conduta que devemos ter em relação às coisas da

vida privada?

— Tudo; eles procuram fazer-vos viver da melhor maneira possível; mas freqüentemente fechais os ouvidos às boas advertências e vos tornais infelizes por vossa culpa.

Os Espíritos protetores nos ajudam com os seus conselhos, através da voz da consciência, que fazem falar em nosso íntimo; mas como nem sempre lhes damos a necessária importância, oferecem-nos outros mais diretos, servindo- se das pessoas que nos cercam. Que cada um examine as diversas circunstâncias, felizes ou infelizes, de sua vida, e verá que em muitas ocasiões recebeu conselhos que nem sempre aproveitou, e que lhe teriam poupado muitos dissabores se os houvesse escutado.

VIII — Influência dos Espíritos sobre os Acontecimentos da Vida

525. Os Espíritos exercem influência sobre os acontecimentos da vida?

— Seguramente, pois que te aconselham.

525-a. Exercem essa influência de outra maneira, além dos pensamentos que sugerem, ou seja, têm uma ação direta sobre a realização das coisas?

— Sim, mas não agem nunca fora das leis naturais.

Pensamos erradamente que a ação dos Espíritos só deve manifestar-se por fenômenos extraordinários; desejaríamos que viessem em nosso auxílio

através de milagres e sempre os representamos armados de uma varinha mágica. Mas assim não é, e eis porque a sua intervenção nos parece oculta, e o que se faz pelo seu concurso nos parece inteiramente natural. Assim, por exemplo, eles provocarão o encontro de duas pessoas, o que parece dar-sepor acaso; inspirarão a -alguém o pensamento de passar por tal lugar; chamarão sua atenção para determinado ponto, se isso pode conduzir ao resultado que desejam; de tal maneira que o homem, não julgando seguir senão os seus próprios impulsos, conserva sempre o seu livre arbítrio.

526. Tendo os Espíritos ação sobre a matéria, podem provocar certos efeitos com o fim de produzir um acontecimento? Por exemplo, um homem deve perecer: sobe então a uma escada, esta se quebra e ele morre. Foram os Espíritos que fizeram quebrar a escada, para que se cumpra o destino desse homem?

— É bem verdade que os Espíritos têm influência sobre a matéria, mas para o cumprimento das leis da Natureza e não para as derrogar, fazendo surgir em determinado ponto um acontecimento inesperado e contrário a essas leis. No exemplo que citas, a escada se quebra porque está carunchada ou não era bastante forte para suportar o peso do homem; se estivesse no destino desse homem morrer dessa maneira, eles lhe inspirariam o pensamento de subir na escada que deveria quebrar-se com o seu peso, e sua morte se daria por um

motivo natural, sem necessidade de um milagre para isso.

527.Tomemos outro exemplo, no qual não intervenha o estado natural da matéria. Um homem deve morrer de raio: esconde-se em-baixo de uma árvore, o raio estala e ele morre. Os Espíritos poderiam ter provocado o raio,dirigindo-o sobre ele?

— É ainda a mesma coisa. O raio explodiu sobre aquela árvore, e naquele momento, porque o fato estava nas leis da Natureza. Não foi dirigido para a árvore porque o homem lá se encontrava, mas ao homem foi dada a inspiração de se refugiar numa árvore, sobre a qual ele deveria explodir. A árvore não seria menos atingida, se o homem estivesse ou não sob ela.

528.Um homem mal intencionado dispara um tiro contra outro, mas o projétil passa apenas de raspão, sem o atingir. Um Espírito benfazejo pode ter desviado o tiro?

— Se o indivíduo não deve ser atingido, o Espírito benfazejo lhe inspirará o pensamento de se desviar, ou ainda poderá ofuscar o seu inimigo, de maneira a lhe perturbar a pontaria; porque o projétil, uma vez lançado, segue a linha de sua trajetória.

529.Que se deve pensar das balas encantadas, a que se referem algumas lendas e que atingem fatalmente o alvo?

— Pura imaginação: o homem gosta do maravilhoso e não se contenta com

as maravilhas da Natureza.

529-a. Os Espíritos que dirigem os acontecimentos da vida podem ser contrariados por Espíritos que tenham desejos em contrário?

— O que Deus quer deve acontecer; se há retardamento ou empecilho, é por sua vontade.

530. Os Espíritos levianos e brincalhões não podem provocar esses pequenos embaraços que se antepõem aos nossos projetos e transtornar as nossas previsões; em uma palavra, são eles os autores do que vulgarmente chamamos os pequenos transtornos da vida?

Eles se comprazem nessas traquinices, que são provas para vós, destinadas a exercitar a vossa paciência; mas se cansam, quando vêem que nada conseguem. Entretanto, não seria justo nem exato responsabilizá-lospor todas as vossas frustrações, das quais vós sois os principais autores, pelo vosso estouvamento. Convence-te, pois, de que se a tua baixela se quebra, é antes em virtude do teu descuido do que por culpa dos Espíritos.

530-a. Os Espíritos que provocam discórdias agem em conseqüência de animosidades pessoais, ou atacam ao primeiro que encontram, sem motivo determinado, por simples malícia?

Por uma e outra coisa; às vezes trata-se de inimigos que fizestes nesta vida ou em existência anterior, e que vos perseguem; de outras vezes, não há

nenhum motivo.

531.O rancor dos seres que nos fizeram mal na Terra extingue-se com a sua vida corpórea?

— Muitas vezes reconhecem sua injustiça e o mal que fizeram, mas muitas vezes também vos perseguem com o seu ódio, se Deus o permite, para continuar a vos experimentar.

531-a. Pode-se pôr termo a isso, e por que meio?

— Sim, pode-se orar por eles, e ao se lhes retribuir o mal com o bem acabarão por compreender os seus erros. De resto, se souberdes colocar-vosacima de suas maquinações, cessarão de fazê-las ao verem que nada lucram.

A experiência prova que certos Espíritos prosseguem na sua vingança de uma existência a outra, e que assim expiaremos, cedo ou tarde, os males que pudermos ter acarretado a alguém.

532.Os Espíritos têm o poder de desviar os males de certas pessoas, atraindo para elas a prosperidade?

— Não o podem fazer inteiramente, porque há males que per-tencem aos desígnios da Providência; mas minoram as vossas dores, dando-vospaciência e resignação.

— Sabei, também, que depende freqüentemente de vós desviar esses males ou pelo menos atenuá-los. Deus vos deu a inteligência para a usardes, e é

sobretudo por meio dela que os Espíritos vos socorrem, sugerindo-vospensamentos favoráveis. Mas eles não assistem senão aos que sabem assistir- se a si mesmos. É esse o significado das palavras: "Buscai e achareis, batei eabrir-se-vos-á".

Sabei ainda que aquilo que vos parece um mal, nem sempre o é. Freqüentemente um bem deve resultar dele, que será maior que o mal, e é isso o que não compreendeis, porque não pensais senão no momento presente ou na vossa pessoa.

533. Podem os Espíritos fazer que se obtenham os dons da fortuna, desde que solicitados nesse sentido?

Às vezes, como prova, mas freqüentemente se recusam, como se recusa a uma criança um pedido inconsiderado.

533-a. São os bons ou os maus Espíritos que concedem esses favores?

Uns e outros. Isso depende da intenção. Mas, em geral, são os Espíritos que querem arrastar-vos ao mal e que encontram um meio fácil de o fazer, nos prazeres que a fortuna proporciona.

534 Quando os obstáculos parecem vir fatalmente contra aos nossos projetos, seria por isso influência de algum Espírito?

Algumas vezes são os Espíritos: outras vezes, e o mais freqüentemente, é que vos colocaste mal. A posição e o caráter influem muito. Se vos obstinais

numa senda que não é a vossa, os Espíritos nada têm com isso; sois vós

mesmos que vos tornais o vosso mau gênio.

535.Quando nos acontece alguma coisa feliz, é ao nosso Espírito protetor que a devemos agradecer?

— Agradecei sobretudo a Deus, sem cuja permissão nada se faz, e depois aos bons Espíritos, que foram os seus agentes.

535-a. Que aconteceria se esquecêssemos de agradecer?

— O que acontece aos ingratos.

535-b. Há entretanto muita gente que não ora nem agradece, e para quem tudo sai bem.

— Sim, mas é necessário ver o fim; pagarão bem caro essa felicidade passageira que não merecem, porque, quanto mais tenham recebido, mais terão de restituir.

IX — Ação dos Espíritos Sobre os Fenômenos da Natureza

536.Os grandes fenômenos da Natureza, esses que se consideram como perturbações dos elementos, são devidos a causas fortuitas ou têm, pelo contrário, um fim providencial?

— Tudo tem uma razão de ser e nada acontece sem a permissão de Deus. 536-a. Esses fenômenos sempre visam ao homem?

— Algumas vezes têm uma razão de ser diretamente relacionada ao homem,

mas freqüentemente não têm outro objetivo que o restabelecimento do equilíbrio e da harmonia das forças físicas da Natureza.

536-b. Concebemos perfeitamente que a vontade de Deus seja a causa primária, nisso como em todas as coisas; mas como sabemos que os Espíritos podem agir sobre a matéria e que eles são os agentes da vontade de Deus, perguntamos se alguns dentre eles não exerce-riam uma influência sobre os elementos para os agitar, acalmar ou dirigir.

Mas é evidente; isso não pode ser de outra maneira. Deus não se entrega a uma ação direta sobre a Natureza, mas tem os seus agentes dedicados, em todos os graus da escala dos mundos.

537. A Mitologia dos antigos é inteiramente fundada sobre as idéias espíritas, com a diferença de que consideravam os Espíritos como divindades. Ora, eles nos representam esses deuses ou esses Espíritos com atribuições especiais. Assim, uns eram encarregados dos ventos, outros do raio, outros de presidir à vegetação, etc. Essa crença é destituída de fundamento?

Tão pouco destituída de fundamento, que está ainda muito aquém da verdade.

537-a. Pela mesma razão, poderia, então haver Espíritos habitando o interior da Terra e presidindo aos fenômenos geológicos?

Esses Espíritos não habitam precisamente a Terra, mas presidem e

dirigem os fenômenos, segundo as suas atribuições. Um dia tereis a explicação de todos esses fenômenos e os compreendereis melhor.

538. Os Espíritos que presidem aos fenômenos da Natureza for-mam uma categoria especial no mundo espírita, são seres à parte ou Espíritos que foram encarnados, como nós?

— Que o serão, ou que o foram.

538-a. Esses Espíritos pertencem às ordens superiores ou inferiores da hierarquia espírita?

Segundo o seu papel mais ou menos material ou inteligente: uns mandam, outros executam; os que executam as ações materiais são sempre de uma ordem inferior, entre os Espíritos como entre os homens.

539.Na produção de certos fenômenos, das tempestades, por exemplo,

ésomente um Espírito que age ou se reúnem em massa?

— Em massas inumeráveis.

540. Os Espíritos que agem sobre os fenômenos da Natureza agem com conhecimento de causa, em virtude de seu livre arbítrio, ou por um impulso instintivo e irrefletido?

— Uns, sim; outros, não. Faço uma comparação: figurai essas miríades de animais que pouco a pouco fazem surgir do mar as ilhas e os arquipélagos; acreditais que não há nisso um objetivo providencial, e

que essa transformação da face do globo não seja necessária para a harmonia geral? São, entretanto, animais do último grau os que realizam essas coisas, enquanto vão provendo às suas necessidades e sem se perceberem que são instrumentos de Deus. Pois bem: da mesma maneira, os Espíritos mais atrasados são úteis ao conjunto; enquanto eles ensaiam para a vida, e antes de terem plena consciência de seus atos e de seu livre arbítrio, agem sobre certos fenômenos de que são agentes sem o saberem. Primeiro, executam; mais tarde, quando sua inteligência estiver mais desenvolvida, comandarão e dirigirão as coisas do mundo material; mais tarde ainda, poderão dirigir as coisas do mundo moral. É assim que tudo serve, tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até o arcanjo, pois ele mesmo começou pelo átomo. Admirável lei de harmonia, de que o vosso Espírito limitado ainda não pode abranger o conjunto!

— X — Os Espíritos Durante os Combates

54l. Numa batalha há Espíritos que a assistem e que amparam cada uma das forças em luta?

— Sim, e que estimulam a sua coragem.

Assim, os antigos nos representavam os deuses tomando partido por

este ou aquele povo. Esses deuses nada mais eram que os Espíritos

representados por figuras alegóricas.

542.Numa guerra, a justiça está sempre de um lado; como os Espíritos tomam partido a favor do errado?

— Sabeis perfeitamente que há Espíritos que só buscam a discórdia e a destruição. Para eles a guerra é a guerra: a justiça da causa pouco lhes importa.

543.Certos Espíritos podem influenciar o general na concepção dos seus planos de campanha?

— Sem nenhuma dúvida. Os Espíritos podem influenciá-lo nesse sentido, como em todas as concepções.

544.Os maus Espíritos poderiam suscitar-lhe planos errados, com vistas à derrota?

— Sim, mas não tem ele o seu livre arbítrio? Se o seu raciocínio não lhe permite distinguir uma idéia certa de uma falsa, terá de sofrer as conseqüências e faria melhor em obedecer do que em co-mandar.

545.O general pode, algumas vezes, ser guiado por uma espécie de dupla vista, uma visão intuitiva que lhe mostre por antecipação o resultado dos seus planos?

É freqüentemente o que acontece com o homem de gênio. É o que ele chama inspiração e lhe permite agir como uma espécie de certeza. Essa inspiração lhe vem dos Espíritos que o dirigem e se servem das faculdades de que ele é dotado.

546. No tumulto do combate, o que acontece aos espíritos dos que sucumbem? Ainda se interessam pela luta, após a morte?

Alguns continuam a se interessar, outros se afastam.

Nos combates acontece o mesmo que se verifica em todos os casos de morte violenta: no primeiro momento, o Espírito fica surpreso e como aturdido, não acreditando que está morto; parece-lhe ainda tomar parte na ação. Não é senão pouco a pouco que compreende a realidade.

547. Os Espíritos que se combatiam quando vivos, apos a morte se reconhecem como inimigos e continuam ainda excitados uns contra os outros?

Nesses momentos, o Espírito jamais se mostra calmo. No primeiro instante ele ainda pode odiar ao seu inimigo, e mesmo o perseguir. Mas quando as idéias se lhe acalmarem, verá que a sua animosidade não tem razão de ser. Não obstante, poderá ainda conservar resquícios maiores ou menores, de acordo com o seu caráter.

547-a. Ouve ainda o fragor da batalha?

Sim, perfeitamente.

548. O Espírito que assiste friamente a um combate, como espectador, testemunha a separação entre a alma e o corpo? E como esse fenômeno se apresenta a ele?

— Há poucas mortes instantâneas. Na maioria das vezes, o Espírito cujo corpo foi mortalmente ferido não tem consciência disso no mesmo instante. Quando começa a retomar consciência é que se pode distinguir o Espírito amover-se ao lado do cadáver. Isso parece tão natural que a vista do corpo morto não produz nenhum efeito desagradável. Toda a vida tendo sido transportada para o Espírito, somente ele chama a atenção e é com ele que o espectador conversa ou a quem dá ordens.

XI — Dos Pactos

549. Há alguma coisa de verdadeiro nos pactos com os maus Espíritos?

— Não, não há pactos, mas uma natureza má simpatiza com Espíritos maus. Por exemplo: queres atormentar o teu vizinho e não sabes comofazê-lo; chamas então os Espíritos inferiores que, como tu, só querem o mal, e para te ajudar querem que também os sirvas nos seus maus desígnios. Mas disto não se segue que o teu vizinho não possa se livrar deles, por uma conjuração contrária ou pela sua própria vontade. Aquele que deseja cometer uma ação má, pelo simples fato de o querer chama em seu auxílio os maus Espíritos,

ficando obrigado a servi-los como eles o auxiliam, pois eles também necessitam dele para o mal que desejam fazer. É somente nisso que consiste o pacto.

A dependência em que o homem se encontra, algumas vezes, dos Espíritos inferiores, provém da sua entrega aos maus pensamentos que eles lhe sugerem, e não de qualquer espécie de estipulações feitas entre eles. O pacto, no sentido comum atribuído a essa palavra, é uma alegoria que figura uma natureza má simpatizando com Espíritos malfazejos.

550. Qual o sentido das lendas fantásticas, segundo as quais certos indivíduos teriam vendido sua alma a Satanás em troca de favores?

— Todas as fábulas encerram um ensinamento e um sentido moral, e o vosso erro é tomá-las ao pé da letra. Essa é uma alegoria que se pode explicar assim: aquele que chama em seu auxílio os Espíritos, para deles obter os dons da fortuna ou qualquer outro favor, rebela-se contra a Providência, renuncia à missão que recebeu e às provas que deve sofrer neste mundo e sofrerá as conseqüências disso na vida futura. Isso não quer dizer que sua alma esteja para sempre condenada ao sofrimento. Mas, porque em vez de se desligar da matéria ele se afunda cada vez mais, o gozo que preferiu na Terra não o terá no mundo dos Espíritos, até que resgate a sua falta através de novas provas, talvez maiores e mais penosas. Por seu amor aos gozos materiais coloca-se na

dependência dos Espíritos impuros: estabelece-se entre eles um pacto tácito, que o conduz à perdição, mas que sempre lhe será fácil romper com a assistência dos bons Espíritos, desde que o queira com firmeza.

XII — Poder Oculto, Talismãs, Feiticeiros

551.Um homem mau, com o auxílio de um mau Espírito que lhe for devotado, pode fazer o mal ao seu próximo?

— Não, Deus não o permitiria.

552.Que pensar da crença do poder de enfeitiçar, que certas pessoas teriam?

— Algumas pessoas têm um poder magnético muito grande, do qual podem

fazer mau uso, se o seu próprio Espírito for mau. Nesse caso poderão ser secundadas por maus Espíritos. Mas não acrediteis nesse pretenso poder mágico que só existe na imaginação das pessoas supersticiosas, ignorantes das verdadeiras leis da Natureza. Os fatos que citam são fatos naturais mal observados e sobretudo mal compreendidos.

553. Qual pode ser o efeito de fórmulas e práticas com as quais certas pessoas pretendem dispor da vontade dos Espíritos?

— O de as tornar ridículas, se são de boa-fé; no caso contrário, são tratantes que merecem castigo. Todas as fórmulas são charlatanice; não há nenhuma palavra sacramental, nenhum signo cabalístico, nenhum talismã que tenha

qualquer ação sobre os Espíritos, porque eles são atraídos pelo pensamento e

não pelas coisas materiais.

553-a. Certos Espíritos não ditaram, algumas vezes, fórmulas cabalísticas?

Sim, tendes Espíritos que vos indicam signos, palavras bizarras, ou que vos prescrevem certos atos, com a ajuda dos quais fazeis aquilo que chamais conjuração. Mas ficai bem seguros de que são Espíritos que zombam de vós e abusam da vossa credulidade.

554. Aquele que, com ou sem razão, confia naquilo a que chama virtude de um talismã, não pode, por essa mesma confiança, atrair um Espírito? Porque então é o pensamento que age: o talismã é um signo que ajuda a dirigir o pensamento.

Isso é verdade; mas a natureza do Espírito atraído depende da pureza da intenção e da elevação dos sentimentos. Ora, é difícil que aquele que é tão simplório para crer na virtude de um talismã não tenha um objetivo mais material do que moral. Qualquer que seja o caso, isso indica estreiteza e fraqueza de idéias, que dão azo aos Espíritos imperfeitos e zombadores.

555. Que sentido se deve dar ao qualificativo de feiticeiro?

Esses a que chamais feiticeiros são pessoas, quando de boa-fé, que possuem certas faculdades como o poder magnético ou a dupla vista. Como fazem coisas que não compreendeis, as julgais dotadas de poder sobrenatural.

Vossos sábios não passaram muitas vezes por feiticeiros aos olhos de ignorantes?

O Espiritismo e o magnetismo nos dão a chave de uma infinidade de fenômenos sobre os quais a ignorância teceu muitas fábulas, em que os fatos são exagerados pela imaginação. 0 conhecimento esclarecido dessas duas ciências, que se resumem numa só, mostrando a realidade das coisas e sua verdadeira causa, é o melhor preservativo contra as idéias supersticiosas, porque revela o que é impossível, o que está nas leis da Natureza e o que não passa de crença ridícula.

556. Certas pessoas têm realmente o dom de curar por simples contato?

— O poder magnético pode chegar até isso, quando é secundado pela pureza de sentimentos e um ardente desejo de fazer o bem, por-que então os bons Espíritos auxiliam. Mas é necessário desconfiar da maneira por que as coisas são contadas, por pessoas muito crédulas ou muito entusiastas, sempre dispostas a ver o maravilhoso nas coisas mais simples e mais naturais. É necessário também desconfiar dos relatos interesseiros, por parte de pessoas que exploram a credulidade em proveito próprio.

XIII — Bênção e Maldição

557. A bênção e a maldição podem atrair o bem e o mal para aqueles a que

são lançadas?

— Deus não ouve uma maldição injusta e aquele que a pronuncia é culpável aos seus olhos. Como temos as tendências opostas do bem e do mal, pode nesses casos haver uma influência momentânea, mesmo sobre a matéria; mas essa influência nunca se verifica sem a permissão de Deus, como acréscimo de prova para aquele que a sofre. De resto, mais freqüentemente se maldizem os maus e bendizem os bons. A bênção e a maldição não podem jamais desviar a Providência da senda da justiça: esta não fere o amaldiçoado se ele não for mau, e sua proteção não cobre aquele que não a mereça.

Capítulo X

Ocupações e Missões dos Espíritos

558.0s Espíritos cuidam de outra coisa, além do seu melhora-mentopessoal?

— Concorrem para a harmonia do Universo, executando a vontade de Deus, do qual são os ministros. A vida espírita é uma ocupação contínua, mas nada tem de penosa como a da Terra, pois não está sujeita à fadiga corpórea nem às angústias da necessidade.

559.Os Espíritos inferiores e imperfeitos desempenham também um papel útil no Universo?

Todos têm deveres a cumprir. O último dos pedreiros não concorre tão bem para a construção do edifício como o arquiteto? (Ver o n.° 540).

560. Os Espíritos têm, individualmente, atributos especiais?

Quer dizer: todos nós teremos de viver em toda parte e adquirir o conhecimento de todas as coisas, presidindo sucessivamente às funções concernentes a todos os planos do Universo. Mas, como se diz no Eclesiastes, há um tempo para cada coisa. Assim, este cumpre hoje o seu destino neste mundo, aquele o cumprirá ou já o cumpriu em outro tempo, sobre a terra, na água, no ar, etc.

561. As funções que os Espíritos desempenham na ordem das coisas são permanentes para cada um e pertencem às atribuições exclusivas de certas classes?

Todos devem percorrer os diferentes graus da escala para se aperfeiçoarem. Deus, que é justo, não poderia ter dado a uns a ciência sem trabalho, enquanto outros só a adquirem de maneira penosa.

Da mesma maneira, entre os homens, ninguém chega ao supremo grau de habilidade numa arte qualquer sem ter adquirido os conhecimentos necessários na prática das funções mais ínfimas dessa arte-.

562. Os Espíritos da ordem mais elevada, nada mais tendo a adquirir,entregam-se a um repouso absoluto ou têm ainda ocupações?

Que querias que eles fizessem por toda a eternidade? A eter-naociosidade seria um suplício eterno.

562-a. Qual é a natureza de suas ocupações?

Receber diretamente as ordens de Deus, transmiti-las por todo o Universo e velar pela sua execução.

563. As ocupações dos Espíritos são incessantes?

Incessantes, sim, se entendermos que o seu pensamento está sempre em atividade, pois eles vivem pelo pensamento. Mas é necessário não equiparar as ocupações dos Espíritos com as ocupações materiais dos homens. Sua própria atividade é um gozo pela consciência que eles têm de ser úteis.

563-a. Concebe-se isso para os bons Espíritos; mas acontece o mesmo com os Espíritos inferiores?

Os Espíritos inferiores têm ocupações apropriadas à sua natureza. Confiais ao trabalhador braçal e ao ignorante os trabalhos do homem culto?

564. Entre os Espíritos, há os que são ociosos ou que não se ocupem de alguma coisa útil?

Sim, mas esse estado é temporário e subordinado ao desenvolvimento de sua inteligência. Certamente que os há, como entre os homens, vivendo apenas para si mesmos; mas essa ociosidade lhes pesa e cedo ou tarde o desejo de progredir lhes faz sentir a necessidade de atividade, e são então felizes de

poderem tornar-se úteis. Falamos de Espíritos que atingiram o ponto necessário para terem consciência de si mesmos e de seu livre arbítrio. Porque, em sua origem, eles são como crianças recém-nascidas que agem mais por instinto do que por uma vontade determinada,

565.Os Espíritos examinam os nossos trabalhos de arte e se interessam por

eles?

— Examinam o que pode provar a elevação dos Espíritos e seu progresso.

566.Um Espírito que teve uma especialidade na Terra: um pintor, um arquiteto, por exemplo, se interessa de preferência pelos trabalhos que constituíram o objeto de sua predileção durante a vida?

— Tudo se confunde num objetivo geral. Se for bom, se interessará na proporção em que eles lhe permitirem ajudar a elevação das almas a Deus. Esqueceis, aliás, que um Espírito dedicado a de-terminada arte na existência em que o conhecestes pode ter praticado outra em anterior existência, porque é necessário que tudo saiba para tornar-se perfeito. Assim, segundo o seu grau de adiantamento, pode ser que nenhuma delas constitua uma especialidade para ele. É isso o que eu entendo quando digo que tudo se confunde num objetivo geral. Notai ainda isto: o que é sublime para vós, no vosso mundo atrasado, não passa de infantilidade, comparado com o que há nos mundos mais avançados. Como quereis que os Espíritos que habitam esses mundos

onde existem artes desconhecidas para vós, admirem o que, para eles, não é mais que um trabalho escolar? Já o disse: eles examinam aquilo que pode provar progresso.

566-a. Concebemos que assim deve ser para os Espíritos bastante adiantados. Mas falamos dos Espíritos mais vulgares, que não se elevaram ainda acima das idéias terrenas.

Para esses é diferente. Seu ponto de vista é mais limitado e podem admirar aquilo mesmo que admirais.

567. Os Espíritos se imiscuem algumas vezes em nossas ocupações e em nossos prazeres?

Os Espíritos vulgares, como disseste, sim; estão incessantemente ao vosso redor e tomam parte às vezes bastante ativa naquilo que fazeis, segundo a sua natureza. E é bom que o façam, para impulsionar os homens nos diferentes caminhos da vida, excitar ou moderar as suas paixões.

Os Espíritos se ocupam das coisas deste mundo na razão da sua elevação ou da sua inferioridade. Os Espíritos superiores têm, sem dúvida, a faculdade de as considerar nos seus mínimos detalhes, mas não o fazem senão na medida em que isso seja útil ao progresso. Os Espíritos somente ligam a essas coisas uma importância relativa às lembranças que ainda estão presentes em sua memória, e às idéias materiais que ainda não foram extintas.

568.Os Espíritos que têm missões a cumprir, cumprem-nas em estado errante ou encarnado?

— Podem fazê-lo num e noutro estado. Para certos Espíritos errantes, essa é uma grande ocupação.

569.Em que consistem as missões de que podem ser encarregados os Espíritos errantes?

— São tão variadas que seria impossível descrevê-las; existem, aliás, as que não poderíeis compreender. Os Espíritos executam a vontade de Deus e não podeis penetrar todos os seus desígnios.

As missões dos Espíritos têm sempre o bem por objeto. Seja como Espíritos seja como homens, são encarregados de ajudar o progresso da humanidade, dos povos ou dos indivíduos num círculo de idéias mais ou menos amplo, mais ou menos especial, de preparar as vias para alguns acontecimentos, de velar pela realização de certas coisas. Alguns têm missões mais restritas e de certa maneira pessoais ou inteiramente locais, como de assistir os doentes, os agonizantes, os aflitos, de velar pelos que estão sob a sua proteção de guias, de dirigi-los pelos seus conselhos ou pelos bons pensamentos que lhes sugerem. Pode-se dizer que há tantos gêneros de missões quantas as espécies de interesses a resguardar, seja no mundo físico ou no mundo moral. O Espírito se adianta segundo a maneira por que desempenha a sua tarefa.

570.Os Espíritos compreendem sempre os desígnios que estão encarregados de executar?

— Não; há os que são instrumentos cegos, mas outros sabem muito bem com que objetivo agem.

571.Só há Espíritos elevados no cumprimento de missões?

A importância das missões está em relação com a capacidade e a elevação do Espírito. O estafeta que leva um despacho cumpre também uma missão, que não é a do general.

572. A missão de um Espírito lhe é imposta ou depende de sua vontade?

Ele a pede e alegra-se de a obter.

572-a. A mesma missão pode ser pedida por muitos Espíritos?

Sim, há sempre muitos candidatos, mas nem todos são aceitos. 573. Em que consiste a missão dos Espíritos encarnados?

Instruir os homens, ajudá-los a avançar, melhorar as suas instituições por meios diretos e materiais. Mas as missões são mais ou menos gerais e importantes. Aquele que cultiva a terra cumpre uma missão, como aquele que governa ou aquele que instrui. Tudo se encadeia na Natureza; ao mesmo tempo que o Espírito se depura pela encarnação, também concorre por essa forma para o cumprimento dos desígnios da Providência. Cada um tem a sua missão neste mundo, porque cada um pode ser útil em algum sentido.

574. Qual pode ser a missão de pessoas voluntariamente inúteis na Terra?

Há efetivamente pessoas que só vivem para si mesmas e não sabemtornar-se úteis para nada. São pobres seres que devemos lamentar, porque expiarão cruelmente sua inutilidade voluntária. Seu castigo começa freqüentemente desde este mundo, pelo tédio e o desgosto da vida.

574-a. Mas, se tinham o direito de escolha, por que preferiram uma vida que em nada lhes seria proveitosa?

Entre os Espíritos há também os preguiçosos, que recuam diante de uma vida de trabalho. Deus o permite, pois compreenderão mais tarde e à sua própria custa os inconvenientes dessa inutilidade e serão os primeiros a pedir para reparar o tempo perdido. Pode ser ainda que tenham escolhido uma vida mais útil, mas uma vez em ação a recusaram, deixando-se arrastar pelas sugestões dos Espíritos que os incitavam àociosidade.

575. As ocupações comuns nos parecem antes deveres do que missões propriamente ditas. A missão, segundo a idéia ligada a essa palavra, tem um sentido muito menos exclusivo e sobretudo menos pessoal. Desse ponto de vista, como se pode reconhecer que um homem tem uma missão real na Terra?

Pelas grandes coisas que ele realiza, pelo progresso que faz os seus semelhantes realizarem.

576. Os homens incumbidos de missão importante são predestinados a ela,

antes do nascimento, e têm conhecimento disso?

Às vezes, sim, mas na maioria das vezes o ignoram. Só têm um vago objetivo ao vir para a Terra; sua missão se desenvolve após o nascimento e segundo as circunstâncias. Deus os impulsiona pela via em que devem cumprir os seus desígnios.

577. Quando um homem faz uma coisa útil, é sempre em virtude de uma missão anterior e predestinada ou pode ter recebido uma missão não prevista?

Tudo o que um homem faz não é conseqüência de uma missão predestinada; ele é freqüentemente o instrumento de que um Espírito se serve para fazer executar alguma coisa que considera útil. Por exemplo, um Espírito julga que seria bom escrever um livro, que ele escreveria se estivesse encarnado; procura o escritor mais apto a compreender o seu pensamento e a executá-lo: dá-lhe então a idéia e o dirige na execução. Assim, este homem não veio à Terra com a missão de fazer essa obra. Acontece o mesmo com alguns trabalhos de arte e com as descobertas. Acrescentemos ainda que, durante o sono do corpo, o Espírito encarnadocomunica-se diretamente com o Espírito errante, e que se entendem sobre a execução.

578. O Espírito pode falir na sua missão, por sua culpa?

Sim, se não for um Espírito superior.

578-a. Quais são para ele as conseqüências?

Terá de reiniciar a tarefa; está nisso a punição; depois, sofrerá as conseqüências do mal que tenha causado.

579. Desde que o Espírito recebe a sua missão de Deus, como Deus pode confiar uma missão importante e de interesse geral a um Espírito que poderia falir?

Deus não sabe se o seu general será vitorioso ou vencido? Ele o sabe, ficai certos, e seus planos, quando importantes, não de-pendem desses que devem abandonar a obra em meio do trabalho. Toda a questão está, para vós, no conhecimento do futuro, que Deus possui mas que não vos é dado.

580. O Espírito que se encarna para cumprir uma missão tem o mesmo receio daquele que o faz como prova?

Não; ele tem experiência.

581. Os homens que são os faróis do gênero humano, que o esclarecem pelo gênio, têm certamente uma missão. Mas, no seu número, há os que se enganam, e que, ao lado de grandes verdades difundem grandes erros. Como devemos considerar a sua missão?

— Como falseada por eles. Estão abaixo da tarefa que empreenderam. É necessário porém considerar as circunstâncias: os homens de gênio devem falar de acordo com o tempo, e um ensino que parece errôneo ou pueril para uma época avançada poderia ser suficiente para o seu século.

582. Pode-se considerar a paternidade como uma missão?

É, sem contradita, uma missão. E ao mesmo tempo um dever muito grande, que implica, mais do que o homem pensa, sua responsabilidade para o futuro. Deus põe a criança sob a tutela dos pais para que estes a dirijam no caminho do bem, e lhes facilitou a tarefa, dando à criança uma organização débil e delicada, que a torna acessível a todas as impressões. Mas há os que mais se ocupam de endireitar as árvores do pomar e fazê-las carregar de bons frutos, do que de endireitar o caráter do filho. Se este sucumbir por sua culpa, terão de sofrer a pena, e os sofrimentos da criança na vida futura recairão sobre eles, porque não fizeram o que lhes competia para o seu adiantamento nas vias do bem.

583. Se uma criança se transviar, apesar dos cuidados dos pais, estes são responsáveis?

Não, mas quanto piores as disposições da criança mais a tarefa é pesada e maior será o mérito se conseguirem desviá-la do mau caminho.

583-a. Se uma criança se torna um bom adulto, apesar da negligência ou dos maus exemplos dos pais, estes se beneficiam com isso?

Deus é justo.

584. Qual pode ser a natureza da missão do conquistador, que só tem em vista satisfazer a sua ambição e para atingir o alvo não recua diante de

nenhuma calamidade?

Ele não é, na maioria das vezes, mais do que um instrumento de que Deus se serve para o cumprimento dos seus desígnios. Essas calamidades são muitas vezes o meio de fazer avançar mais rapidamente um povo.

584-a. Aquele que é instrumento dessas calamidades passageiras nada tem com o bem que delas resulta, pois só se propõe um alvo pessoal; não obstante, aproveitará desse bem?

Cada um é recompensado segundo as suas obras, o bem que desejou fazer e a orientação de suas intuições.

Os Espíritos encarnados têm ocupações inerentes à sua existência corporal. No estado errante ou de desmaterialização, suas ocupações são proporcionadas ao seu grau de adiantamento.

Uns percorrem os mundos, instruindo-se e preparando-se para uma nova encarnação.

Outros, mais avançados, ocupam-se do progresso dirigindo os acontecimentos e sugerindo pensamentos favoráveis; assistem aos homens de gênio que concorrem para o adiantamento da humanidade.

Outros se encarnam com uma missão de progresso.

Outros tomam sob a sua tutela indivíduos, famílias, aglomerações humanas, cidades e povos dos quais se tornam anjos da guarda, gênios protetores e

Espíritos familiares.

Outros, enfim, presidem aos fenômenos da Natureza, dos quais são os agentes diretos.

Os Espíritos comuns se imiscuem nas ocupações e divertimentos dos homens.

Os Espíritos impuros ou imperfeitos esperam, em sofrimentos e angústias, o momento em que praza a Deus conceder-lhes os meios de se adiantarem. Se fazem o mal, é pelo despeito de ainda não poderem gozar do bem.

Capítulo XI

Os Três Reinos

I — Os Minerais e as Plantas

585. Que pensais da divisão da Natureza em três reinos, ou ainda em duas classes: os seres orgânicos e os seres inorgânicos? Alguns fazem da espécie humana um quarto reino. Qual dessas divisões é a preferível?

— Todas são boas; isso depende do ponto de vista. Encarados sob o aspecto material, não há senão seres orgânicos e seres inorgânicos; do ponto de vista moral, há, evidentemente, quatro graus.

Esses quatro graus têm, com efeito, caracteres bem definidos, embora pareçam confundir-se os seus limites. A matéria inerte, que constitui o reino

mineral, não possui mais do que uma força mecânica: as plantas, compostas de matéria inerte, são dotadas de vitalidade; os animais, constituídos de matéria inerte e dotados de vitalidade, têm ainda uma espécie de inteligência instintiva, limitada, com a consciência de sua existência e de sua individualidade; o homem, tendo tudo o que existe nas plantas e nos animais, domina todas as outras classes por uma inteligência especial, ilimitada, que lhe dá a consciência do seu futuro, a percepção das coisas extramateriais e o conhecimento de Deus.

586. As plantas têm consciência de sua existência?

Não. Elas não pensam, não têm mais do que a vida orgânica. 587. As plantas têm sensações; sofrem, quando mutiladas?

As plantas são fisicamente afetadas por ações sobre a matéria, mas não têm percepções; por conseguinte, não têm a sensação de dor.

588. A força que atrai as plantas, umas para as outras, é independente da sua vontade?

—- Sim, pois elas não pensam. É uma força mecânica da matéria que age na matéria: elas não poderiam opor-se.

589. Certas plantas, como a sensitiva e a dionéia, por exemplo, têm movimentos que acusam uma grande sensibilidade, e em alguns casos uma espécie de vontade, como a última, cujos lóbulos apanham a mosca que vem

pousar sobre ela para sugar-lhe o suco, e à qual ela parece haver preparado uma armadilha para a matar. Essas plantas são dotadas da faculdade de pensar? Têm uma vontade e formam uma classe intermediária entre a natureza vegetal e a animal? Constituem uma transição de uma para a outra?

Tudo é transição na Natureza, pelo fato mesmo de que nada é semelhante e no entanto tudo se liga. As plantas não pensam, e por conseguinte não têm vontade. A ostra que se abre e todos os zoófitos não têm pensamento: nada mais possuem que um instinto natural e cego.

O organismo humano nos fornece exemplos de movimentos análogos, sem a participação da vontade, como as funções digestivas e circulatórias. O piloro se fecha ao contato de certos corpos, para negar-lhes passagem. O mesmo deve acontecer com a sensitiva, na qual os movimentos não implicam absolutamente a necessidade de uma percepção, e menos ainda de uma vontade.

590. Não há nas plantas, como nos animais, um instinto de conservação que as leva a procurar aquilo que lhes pode ser útil e a fugir do que lhes pode prejudicar?

Há, se o quiserdes, uma espécie de instinto: isso depende da extensão que se atribua a essa palavra; mas é puramente mecânico. Quando, nas reações químicas, vedes dois corpos se unirem, é que eles se afinam, quer dizer, que

há afinidade entre eles; mas não chamais a isso de instinto.

59l. Nos mundos superiores as plantas são, como os outros se-res, de natureza mais perfeita?

— Tudo é mais perfeito: mas as plantas são sempre plantas, como os animais são sempre animais e os homens sempre homens.

II— Os Animais e o Homem

592.Se comparamos o homem e os animais, em relação à inteligência, parece difícil estabelecer a linha de demarcação, porque certos animais têm, nesse terreno, notória superioridade sobre certos homens. Essa linha de demarcação pode ser estabelecida de maneira precisa?

— Sobre esse assunto os vossos filósofos não estão muito de acordo. Uns querem que o homem seja um animal, e outros que o animal seja um homem. Estão todos errados. O homem é um ser à parte, que desce às vezes muito abaixo ou que pode elevar-se muito alto. No físico, o homem é como os animais e menos bem provido que muitos dentre eles; a Natureza lhes deu tudo aquilo que o homem é obrigado a inventar com a sua inteligência, para prover às suas necessidades e à sua conservação. Seu corpo se destrói como o dos animais, isto é certo, mas o seu Espírito tem um destino que só ele pode compreender, porque só ele é completamente livre. Pobres homens, que vos

rebaixais mais do que os brutos! Não sabeis distinguir-vos deles? Reconhecei o homem pelo pensamento de Deus.

593. Podemos dizer que os animais só agem por instinto?

— Ainda nisso há um sistema. É bem verdade que o instinto domina na maioria dos animais: mas não vês que há os que agem por uma vontade determinada? É que têm inteligência, porém ela é limitada.

Além do instinto, não se poderia negar a certos animais a prática de atos combinados, que denotam a vontade de agir num sentido determinado e de acordo com as circunstâncias. Há neles, portanto, uma espécie de inteligência, mas cujo exercício é mais precisamente concentrado sobre os meios de satisfazer as suas necessidades físicas e prover à conservação. Não há entre eles nenhuma criação, nenhum melhoramento; qualquer que seja a arte que admiremos em seus trabalhos, aquilo que faziam antigamente é o mesmo que fazem hoje, nem melhor nem pior, segundo formas e proporções constantes e in-variáveis. Os filhotes separados de sua espécie não deixam de construir o seu ninho de acordo com o mesmo modelo, sem terem sido ensinados. Se alguns são suscetíveis de uma certa educação, esse desenvolvimento intelectual, sempre fechado em estreitos limites, é devido à ação do homem sobre uma natureza flexível, pois não fazem nenhum progresso por si mesmos, e esse progresso é efêmero, puramente individual, porque o animal,

abandonado a si próprio, não tarda a voltar aos limites traçados pela Natureza.

594. Os animais têm linguagem?

Se pensais numa linguagem formada de palavras e de sílabas, não; mas num meio de se comunicarem entre si, então, sim. Eles se dizem muito mais coisas do que supondes, mas a sua linguagem é limitada, como as próprias idéias, às suas necessidades.

594-a. Há animais que não possuem voz; esses não parecem destituídos de linguagem?

Compreendem-se por outros meios. Vós, homens, não tendes mais do que a palavra para vos comunicardes? E dos mudos, que dizeis? Os animais, sendo dotados da vida de relação, têm meios de se prevenir e de exprimir ss sensações que experimentam. Pensas que os peixes não se entendem? O homem não tem o privilégio da linguagem, mas a dos animais é instintiva e limitada pelo círculo exclusivo das suas necessidades e das suas idéias, enquanto a do homem é perfectível e se presta a todas as concepções da sua inteligência.

Realmente, os peixes que emigram em massa, bem como as andorinhas, que obedecem ao guia, devem ter meios de se advertir, de se entender e de se combinar. Talvez o façam entre si, ou talvez a água seja um veículo que lhes transmita certas vibrações. Seja o que for, é incontestável que eles dispõem de

meios para se entenderem, da mesma maneira que todos os animais privados de voz, que realizam trabalhos em comum. Deve-se admirar, diante disso, que os Espíritos possam comunicar-se entre eles sem o recurso da palavra articulada? (Ver item 282).

595. Os animais têm livre-arbítrio?

Não são simples máquinas, como supondes, mas sua liberdade de ação é limitada pelas suas necessidades, e não pode ser com-parada à do homem. Sendo muito inferiores a este, não têm os mesmos deveres. Sua liberdade é restrita aos atos da vida material.

596. De onde vem a aptidão de certos animais para imitar a linguagem do homem, e por que essa aptidão se encontra mais entre as aves do que entre os símios, por exemplo, cuja conformação tem mais analogia com a daquele?

Conformação particular dos órgãos vocais, secundada pelo instinto da imitação. O símio imita os gestos; certos pássaros imitam a voz

597. Pois se os animais têm uma inteligência que lhes dá uma certa liberdade de ação, há neles um princípio independente da matéria?

Sim, e que sobrevive ao corpo.

597-a. Esse princípio é uma alma semelhante à do homem?

— É também uma alma, se o quiserdes; isso depende do sentido em que se tome a palavra; mas é inferior à do homem. Há, entre a alma dos animais e a

do homem tanta distância quanto entre a alma do homem e Deus.

598.A alma dos animais conserva após a morte sua individualidade e a consciência de si mesma?

— Sua individualidade, sim, mas não a consciência de si mesma. A vida inteligente permanece em estado latente.

599.A alma dos animais pode escolher a espécie em que pre-fira encarnar-

se?

— Não; ela não tem o livre arbítrio.

600.A alma do animal, sobrevivendo ao corpo, fica num estado errante, como a do homem após a morte?

— Fica numa espécie de erraticidade, pois não está unida a um corpo. Mas não é um Espírito errante. O Espírito errante é um ser que pensa e age por sua livre vontade; o dos animais não tem a mesma faculdade. É a consciência de si mesmo que constitui o atributo principal do Espírito. O Espírito do animal é classificado após a morte, pelos Espíritos incumbidos disso, e utilizado quase imediatamente: não dispõe de tempo para se pôr em relação com outras criaturas.

601.0s animais seguem uma lei progressiva, como os homens?

— Sim, e é por isso que nos mundos superiores, onde os homens são mais

adiantados, os animais também o são, dispondo de meios de comunicação

mais desenvolvidos. São, porém, sempre inferiores e submetidos aos homens, sendo para estes servidores inteligentes.

Nada há nisso de extraordinário. Suponhamos os nossos animais de maior inteligência como o cão, o elefante, o cavalo, dotados de uma conformação apropriada aos trabalhos manuais, o que não poderiam fazer sob a direção do homem?

602.Os animais progridem como o homem, por sua própria vontade, ou pela força das coisas?

— Pela força das coisas; e é por isso que, para eles, não existe expiação.

603.Nos mundos superiores, os animais conhecem a Deus?

Não. O homem é um deus para eles, como antigamente os Espíritos foram deuses para os homens.

604. Os animais, mesmo aperfeiçoados nos mundos superiores, sendo sempre inferiores aos homens, disso resultaria que Deus tivesse criado seres intelectuais perpetuamente votados à inferioridade, o que parece em desacordo com a unidade de vistas e de progresso que se assinalam em todas as suas obras?

Tudo se encadeia na Natureza, por liames que não podeis ainda perceber, e as coisas aparentemente mais disparatadas têm pontos de contato que o homem jamais chegará a compreender, no seu estado atual. Podeentrevê-los,

por um esforço de sua inteligência, mas somente quando essa inteligência tiver atingido todo o seu desenvolvimento e se libertado dos preconceitos do orgulho e da ignorância poderá ver claramente na obra de Deus. Até lá, suas idéias limitadas lhe farão ver as coisas de um ponto de vista mesquinho e acanhado. Sabei que Deus nunca se contradiz e que tudo, na Natureza, se harmoniza através de leis gerais, que jamais se afastam da sublime sabedoria do Criador.

604-a. A inteligência é assim uma propriedade comum, um ponto de encontro entre a alma dos animais e a do homem?

Sim, mas os animais não têm senão a inteligência da vida material; nos homens, a inteligência produz a vida moral.

605. Se considerarmos todos os pontos de contato existentes entre o homem e os animais, não poderíamos pensar que o homem possui duas almas: a alma animal e a alma espírita; e que, se ele não tivesse esta última, poderia viver, mas como os animais? Dizendo de outra maneira: o animal é um ser semelhante ao homem, menos a alma espírita? Disso resultaria que os bons e os maus instintos do homem seriam o efeito da predominância de uma ou de outra dessas duas almas?

Não, o homem não tem duas almas, mas o corpo tem os seus instintos, que resultam da sensação dos órgãos. Não há no homem senão uma dupla

natureza: a natureza animal e a espiritual. Pelo seu corpo, ele participa da natureza dos animais e dos seus instintos; pela sua alma, participa da natureza dos Espíritos.

605-a. Assim, além das suas próprias imperfeições, de que o Espírito devedespojar-se, deve ele lutar contra a influência da matéria?

— Sim, quanto mais inferior é ele, mais apertados são os laços entre o Espírito e a matéria. Não o vedes?

Não, o homem não tem duas almas; a alma é sempre única, um ser único. A alma do animal e a do homem são distintas entre si, de tal maneira que a de um não pode animar o corpo criado para o outro. Mas se o homem não possui uma alma animal, que por suas paixões o coloque no nível dos animais, tem o seu corpo, que o rebaixa freqüentemente a esse nível porque o seu corpo é um ser dotado de vitalidade, que tem instintos, mas ininteligentes e limitados ao interesse de sua conservação.

O Espírito, encarnando-se no corpo do homem, transmite-lhe o princípio intelectual e moral, que o torna superior aos animais. As duas naturezas existentes no homem oferecem às suas paixões duas fontes diversas: umas provêm dos instintos da natureza animal, outras das impurezas do Espírito encarnado, que simpatiza em maior ou menor proporção com a grosseria dos apetites animais. O Espírito, ao purificar-se, liberta-se pouco a pouco da

influência da matéria. Sob essa influência, ele se aproxima dos brutos; liberto

dessa influência eleva-se ao seu verdadeiro destino.

606.De onde tiram os animais o princípio inteligente que constitui a espécie particular de alma de que são dotados?

— Do elemento inteligente universal.

606-a. A inteligência do homem e a dos animais emanam, por-tanto, de um princípio único?

— Sem nenhuma dúvida; mas no homem ela passou por uma elaboração que a eleva sobre a dos brutos.

607.Ficou dito que a alma do homem, em sua origem, assemelha-se ao estado de infância da vida corpórea, que a sua inteligência apenas desponta e que ela ensaia para a vida. (Ver item 190). Onde cumpre o Espírito essa primeira fase?

— Numa série de existências que precedem o período que chamais de Humanidade.

607-a. Parece, assim, que a alma teria sido o princípio inteligente dos seres inferiores da criação?

— Não dissemos que tudo se encadeia na Natureza e tende à unidade? É nesses seres, que estais longe de conhecer inteiramente, que o princípio inteligente se elabora, se individualiza pouco a pouco, e ensaia para a vida,

como dissemos. É, de certa maneira, um trabalho preparatório, como o da germinação, em seguida ao qual o princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito. É então que começa para ele o período de humanidade, e com este a consciência do seu futuro, a distinção do bem e do mal e a responsabilidade dos seus atos. Como depois do período da infância vem o da adolescência, depois a juventude, e por fim a idade madura. Nada há, de resto, nessa origem, que deva humilhar o homem. Os grandes gêniossentem-se humilhados por terem sido fetos informes no ventre ma-terno? Se alguma coisa deve humilhá-los, é a sua inferioridade perante Deus e sua impotência para sondar a profundeza de seus desígnios e a sabedoria das leis que regulam a harmonia do Universo. Reconhecei a grandeza de Deus nessa admirável harmonia que faz a solidariedade de todas as coisas na Natureza. Crer que Deus pudesse ter feito qualquer coisa sem objetivo e criar seres inteligentes sem futuro, seria blasfemar contra a sua bondade, que se estende sobre todas as suas criaturas.

607-b. Esse período de humanidade começa na Terra?

— A Terra não é o ponto de partida da primeira encarnação humana. O período de humanidade começa, em geral, nos mundos ainda mais inferiores. Essa, entretanto, não é uma regra absoluta e poderia acontecer que um Espírito, desde o seu início humano, esteja apto a viver na Terra. Esse caso

não é freqüente, e seria antes uma exceção.

608.O Espírito do homem, após a morte, tem consciência das existências que precederam, para ele, o período de humanidade?

— Não, porque não é senão desse período que começa para ele a vida de Espírito, e é mesmo difícil que se lembre de suas primeiras existências como homem, exatamente como o homem não se lembra mais dos primeiros tempos de sua infância, e ainda menos do tempo que passou no ventre materno. Eis porque os Espíritos vos dizem que não sabem como começaram. (Ver item 78).

609.O Espírito, tendo entrado no período de humanidade, conserva os traços do que havia sido precedentemente, ou seja, do estado em que se encontrava no período que se poderia chamar anti-humano?

Isso depende da distância que separa os dois períodos e do progresso realizado. Durante algumas gerações ele pode conservar um reflexo mais ou menos pronunciado do estado primitivo, porque nada na Natureza se faz por transição brusca; há sempre anéis que ligam as extremidades da cadeia dos seres e dos acontecimentos. Mas esses traços desaparecem com o desenvolvimento do livre arbítrio. Os primeiros progressos se realizam lentamente, porque não são ainda secundados pela vontade, mas seguem uma progressão mais rápida, à medida que o Espírito adquire consciência mais

perfeita de si mesmo.

6l0. Os Espíritos que disseram que o homem é um ser à parte na ordem da Criação enganaram-se, então?

— Não, mas a questão não havia sido desenvolvida, e há coisas que não podem vir senão a seu tempo. O homem é, de fato, um ser à parte, porque tem faculdades que o distinguem de todos os outros e tem outro destino. A espécie humana é a que Deus escolheu para a encarnação dos seres que podem conhecer.

III— Metempsicose

611.A comunhão de origem dos seres vivos no princípio inteligente não é a consagração da doutrina da metempsicose?

— Duas coisas podem ter a mesma origem e não se assemelharem em nada mais tarde. Quem reconheceria a árvore, suas folhas, suas flores e seus frutos no germe informe que se contém na semente de onde saíram? No momento em que o princípio inteligente atinge o grau necessário para ser Espírito e entra no período de humanidade, não tem mais relação com o seu estado primitivo e não é mais a alma dos animais, como a árvore não é a semente. No homem, somente existe do animal o corpo, as paixões que nascem da influência do corpo e o instinto de conservação inerente à matéria. Não se

pode dizer, portanto, que tal homem é a encarnação do Espírito de tal animal, e por conseguinte a metempsicose, tal como a entendem, não é exata.

6l2. O Espírito que animou o corpo de um homem poderia encarnar-senum animal?

Isto seria retrogradar, e o Espírito não retrograda. O rio não remonta a nascente. (Ver item 118).

613. Por mais errônea que seja a idéia ligada à metempsicose, não seria ela o resultado do sentimento intuitivo das diferentes existências do homem?

Encontramos esse sentimento intuitivo nessa crença como em muitas outras; mas, como a maior parte dessas idéias intuitivas, o homem a desnaturou.

A metempsicose seria verdadeira se por ela se entendesse a progressão da alma de um estado inferior para um superior, realizando os desenvolvimentos que transformariam a sua natureza, mas é falsa no sentido de tramsmigração direta do animal para o homem e vice-versa, o que implicaria a idéia de uma retrogradação ou de fusão. Ora, não podendorealizar-se essa fusão entre seres corporais de duas espécies, temos nisso um indício de que se encontram em graus não assimiláveis e que o mesmo deve acontecer com os espíritos que os animam. Se o mesmo Espírito pudesseanimá-los alternativamente, disso resultaria uma identidade de natureza que se traduziria na possibilidade de

reprodução material. A reencarnação ensinada pelos Espíritos se funda, pelo contrário, sobre a marcha ascendente da Natureza e sobre a progressão do homem na sua própria espécie, o que não diminui em nada a sua dignidade. O que o rebaixa é o mau uso que faz das faculdades que Deus lhe deu para o seu adiantamento. Como quer que seja, a antiguidade e a universalidade da doutrina da metempsicose, e o número de homens eminentes que a professaram, provam que o princípio da reencarnação tem suas raízes na própria Natureza; esses são, portanto, argumentos antes a seu favor do que contrários.

O ponto de partida do Espírito é uma dessas questões que se ligam ao princípio das coisas e estão nos segredos de Deus. Não é dado ao homemconhecê-las de maneira absoluta, e ele só pode fazer, a seu respeito, meras suposições, construir sistemas mais ou menos prováveis. Os próprios Espíritos estão longe de tudo conhecer, e sobre o que não conhecem podem ter também opiniões pessoais mais ou menos sensatas.

É assim que nem todos pensam da mesma maneira a respeito das relações existentes entre o homem e os animais. Segundo alguns, o Espírito não chega ao período humano senão depois de ter sido elaborado e individualizado nos diferentes graus dos seres inferiores da Criação. Segundo outros, o Espírito do homem teria sempre pertencido à raça humana, sem passar pela fieira animal.

O primeiro desses sistemas tem a vantagem de dar uma finalidade ao futuro dos animais, que constituiriam assim os primeiros anéis da cadeia dos seres pensantes; o segundo é mais conforme à dignidade do homem e pode resumir- se da maneira seguinte:

As diferentes espécies de animais não procedem intelectualmente umas das outras, por via de progressão; assim, o Espírito da ostra não se torna sucessivamente do peixe, da ave, do quadrúpede e do quadrúmano; cada espécie é um tipo absoluto, física e moralmente, e cada um dos seus indivíduos tira da fonte universal a quantidade de princípio inteligente que lhe é necessária, segundo a perfeição dos seus órgãos e a tarefa que deve desempenhar nos fenômenos da Natureza, devolvendo-a à massa após a morte. Aqueles dos mundos mais adiantados que o nosso (Ver item 188) são igualmente constituídos de raças distintas, apropriadas às necessidades desses mundos e ao grau de adiantamento dos homens de que são auxiliares, mas não procedem absolutamente dos terrenos, espiritualmente falando. Com o homem, já não se dá o mesmo.

Do ponto de vista físico, o homem constitui evidentemente um anel da cadeia dos seres vivos; mas, do ponto de vista moral, há solução de continuidade entre o homem e o animal. O homem possui, como sua particularidade, a alma ou Espírito, centelha divina que lhe dá o senso moral e

um alcance intelectual que os animais não possuem; é o ser principal,

preexistente e sobrevivente ao corpo, conservando a sua individualidade. Qual

éa origem do Espírito? Onde está o seu ponto de partida? Forma-se ele do princípio inteligente individualizado? Isso é um mistério que seria inútil procurar penetrar e sobre o qual, como dissemos, só podemos construir sistemas.

O que é constante e ressalta ao mesmo tempo do raciocínio e da experiência

éa sobrevivência do Espírito, a conservação de sua individualidade após à morte, sua faculdade de progredir, seu estado feliz ou infeliz, proporcional ao seu adiantamento na senda do bem, e todas as verdades morais que são a conseqüência desse princípio. Quanto às relações misteriosas existentes entre o homem e os animais, isso, repetimos, está nos segredos de Deus, como muitas outras coisas cujo conhecimento atual nada importa para o o nosso adiantamento, e sobre as quais seria inútil nos determos.

LIVRO TERCEIRO

As Leis Morais

Capítulo I

A Lei Divina ou Natural

I — Caracteres da Lei Natural

614. O que se deve entender por lei natural?

A lei natural é a lei de Deus; é a única necessária à felicidade do homem; ela lhe indica o que ele deve fazer ou não fazer, e ele só se torna infeliz porque dela se afasta.

615. A lei de Deus é eterna?

É eterna e imutável como o próprio Deus.

616.Deus teria prescrito aos homens, numa época, aquilo que lhes proibiria em outra?

— Deus não se engana; os homens é que são obrigados a modificar as suas leis, que são imperfeitas, mas as leis de Deus são perfeitas. A harmonia que regula o universo material e o universo moral se funda nas leis que Deus estabeleceu por toda a eternidade.

617.O que as leis divinas abrangem? Referem-se a mais do que à conduta

moral?

— Todas as leis da Natureza são leis divinas, pois Deus é o autor de todas as coisas. O sábio estuda as leis da matéria, o homem de bem, as da alma, e as segue.

617-a. É dado ao homem aprofundar umas e outras?

— Sim, mas uma só existência não lhe é suficiente para isso.

Que são, de fato, alguns anos para se adquirir tudo o que constitui o ser

perfeito, embora não consideremos mais do que a distância que separa o selvagem do homem civilizado? A mais longa existência possível é insuficiente e com mais forte razão quando ela é abreviada, como acontece com um grande número.

Entre as leis divinas, umas regulam o movimento e as relações da matéria bruta: são as leis físicas; seu estudo pertence ao domínio da Ciência. As outras concernem especialmente ao homem e às suas relações com Deus e com os seus semelhantes. Compreendem as regras da vida do corpo e as da vida da alma: são as leis morais.

618. As leis divinas são as mesmas para todos os mundos?

— A razão nos diz que elas devem ser apropriadas à natureza de cada mundo e proporcionais ao grau de adiantamento dos seres que os habitam.

II— Conhecimento da Lei Natural

619.Deus proporcionou a todos os homens os meios de conhecerem a sua

lei?

— Todos podem conhece-la; mas nem todos a compreendem; os que melhor a compreendem são os homens de bem e os que desejam pesquisá-la.Não obstante, todos um dia a compreenderão, porque é necessário que o progresso se realize.

A justiça da multiplicidade de encarnações do homem decorre deste princípio, pois a cada nova existência sua inteligência se torna mais desenvolvida e ele compreende melhor o que é o bem e o que é o mal. Se tudo tivesse de se realizar numa só existência, qual seria a sorte de tantos milhões de seres que morrem diariamente no embrutecimento da selvageria ou nas trevas da ignorância, sem que deles dependa o próprio esclarecimento? (Ver os itens 171 a 222).

620.A alma, antes de sua união com o corpo, compreende melhor a lei de Deus do que após a encarnação?

— Ela a compreende segundo o grau de perfeição a que tenha chegado e conserva a sua lembrança intuitiva após a união com o corpo; mas os maus instintos do homem freqüentemente fazem que ela a esqueça.

621.Onde está escrita a lei de Deus?

— Na consciência.

621-a. Desde que o homem traz na consciência a lei de Deus, que

necessidade tem de que lha revelem?

Ele a havia esquecido e desprezado: Deus quis que ela lhe fosse lembrada.

622. Deus deu a alguns homens a missão de revelar a sua lei?

Sim, certamente; em todos os tempos houve homens que receberam essa

missão. São Espíritos superiores, encarnados com o fim de fazer progredir a

Humanidade.

623.Esses que pretenderam instruir os homens na lei de Deus não se enganaram algumas vezes, e não os fizeram transviar-se muitas vezes, através de falsos princípios?

— Os que não eram inspirados por Deus e que se atribuíram a si mesmos, por ambição, uma missão que não tinham, certamente os fizeram extraviar; não obstante, como eram homens de gênio, em meio aos próprios erros ensinaram freqüentemente grandes verdades.

624.Qual é o caráter do verdadeiro profeta?

O verdadeiro profeta é um homem de bem, inspirado por Deus. Podemos reconhecê-lo por suas palavras e por suas ações. Deus não se serve da boca da mentiroso para ensinar a verdade.

625. Qual o tipo mais perfeito que Deus ofereceu ao homem, para lhe servir de guia e modelo?

Vede Jesus.

Jesus é para o homem o tipo de perfeição moral a que pode aspirar a Humanidade na Terra. Deus no-lo oferece como o mais perfeito modelo e a doutrina que ele ensinou é a mais pura expressão de sua lei, porque ele estava animado do Espírito divino e foi o ser mais puro que já apareceu na Terra.

Se alguns dos que pretenderam instruir os homens na lei de Deus algumas vezes os desviavam para falsos princípios, foi por se deixarem dominar por sentimentos demasiado terrenos e por terem confundido as leis que regem as condições da vida da alma com as que regem a vida do corpo. Muitos deles apresentaram como leis divinas o que era apenas leis humanas, instituídas para servir às paixões e dominar os homens.

626.As leis divinas e naturais só foram reveladas aos homens por Jesus e antes dele só foram conhecidas por intuição?

— Não dissemos que elas estão escritas por toda parte? Todos os homens que meditaram sobre a sabedoria puderam compreendê-las e ensiná-las desde os séculos mais distantes. Por seus ensinamentos, mesmo incompletos, eles prepararam o terreno para receber a semente. Estando as leis divinas escritas no livro da Natureza, o homem pôde conhecê-las sempre que desejou procurá- las. Eis porque os seus princípios foram proclamados em todos os tempos pelos homens de bem, e também porque encontramos os seus elementos na doutrina moral de todos os povos saídos da barbárie, mas incompletos ou alterados pela ignorância e a superstição.

627.Desde que Jesus ensinou as verdadeiras leis de Deus, qual é a utilidade do ensinamento dado pelos Espíritos? Têm eles mais alguma coisa para nos ensinar?

O ensino de Jesus era freqüentemente alegórico e em forma de parábolas, porque ele falava de acordo com a época e os lugares. Faz-se hoje necessário que a verdade seja inteligível para todos. É preciso, pois, explicar e desenvolver essas leis, tão poucos são os que as compreendem e ainda menos os que as praticam. Nossa missão é a de despertar os olhos e os ouvidos, para confundir os orgulhosos e desmascarar os hipócritas: os que afetam exteriormente a virtude e a religião para ocultar as suas torpezas. O ensinamento dos Espíritos deve ser claro e sem equívocos, a fim de que ninguém possa pretextar ignorância e cada um possa julgá-lo e apreciá-locom a sua própria razão. Estamos encarregados de preparar o Reino de Deus anunciado por Jesus, e por isso é necessário que ninguém venha a interpretar a lei de Deus ao sabor das suas paixões, nem falsear o sentido de uma lei que é toda amor e caridade.

628. Por que a verdade não esteve sempre ao alcance de todos?

É necessário que cada coisa venha a seu tempo. A verdade é como a luz:

épreciso que nos habituemos a ela pouco a pouco, pois de outra maneira nos ofuscaria.

Jamais houve um tempo em que Deus permitisse ao homem receber comunicações tão completas e tão instrutivas como as que hoje lhe são dadas. Havia na Antigüidade, como sabeis, alguns indivíduos que estavam de posse

daquilo que consideravam uma ciência sagrada, e da qual faziam mistério para os que consideravam profanos. Deveis compreender, com o que conheceis das leis que regem esses fenômenos, que eles recebiam apenas verdades esparsas no meio de um conjunto equívoco e na maioria das vezes alegórico. Não há, entretanto, para o homem de estudo, nenhum antigo sistema filosófico, nenhuma tradição, nenhuma religião a negligenciar, porque todos encerram os germens de grandes verdades, que embora pareçam contraditórias entre si, espalhadas que se acham entre acessórios sem fundamento, são hoje muito fáceis de coordenar, graças à chave que vos dá o Espiritismo de uma infinidade de coisas que até aqui vos pareciam sem razão, e cuja realidade vos é agora demonstrada de maneira irrecusável. Não deixeis de tirar temas de estudo desses materiais. São eles muito ricos e podem contribuir poderosamente para a vossa instrução.

III— O Bem e o Mal

629.Que definição se pode dar à moral?

— A moral é a regra da boa conduta e portanto da distinção entre o bem e o mal. Funda-se na observação da lei de Deus. O homem se conduz bem quando faz tudo tendo em vista o bem e para o bem de todos, porque então observa a lei de Deus.

630. Como se pode distinguir o bem do mal?

O bem é tudo o que está de acordo com a lei de Deus e o mal é tudo o que dela se afasta. Assim, fazer o bem é se conformar à lei de Deus; fazer o mal é infringir essa lei.

631. 0 homem tem meios para distinguir por si mesmo o bem e o mal?

Sim, quando ele crê em Deus e quando o quer saber. Deus lhe deu a inteligência para discernir um e outro.

632. 0 homem, que é sujeito a errar, não pode enganar-se na apreciação do bem e do mal e crer que faz o bem quando em realidade está fazendo o mal?

Jesus vos disse: vede o que quereríeis que vos fizessem ou não: tudo se resume nisso. Assim não vos enganareis.

633. A regra do bem e do mal, que se poderia chamar de reciprocidade ou de solidariedade, não pode ser aplicada à conduta pessoal do homem para consigo mesmo. Encontra ele, na lei natural, a regra desta conduta e um guia seguro?

Quando comeis demais, isso vos faz mal. Pois bem: é Deus que vos dá a medida do que vos falta. Quando a ultrapassais, sois punidos. O mesmo se dá com tudo o mais. A lei natural traça para o homem o limite das suas necessidades; quando ele o ultrapassa, é punido pelo sofrimento. Se o homem escutasse, em todas as coisas, essa voz que diz: Chega! evitaria a maior parte dos males de que acusa a Natureza.

634.Por que o mal se encontra na natureza das coisas? Falo do mal moral. Deus não poderia criar a Humanidade em melhores condições?

— Já te dissemos: os Espíritos foram criados simples e ignorantes. (Ver o item 115). Deus deixa ao homem a escolha do caminho: tanto pior para ele, se seguir o mau: sua peregrinação será mais longa. Se não existissem montanhas, não poderia o homem compreender que se pode subir e descer, e se não existissem rochas, não compreenderia que há corpos duros. É necessário que o Espírito adquira a experiência, e para isso é necessário que ele conheça o bem e o mal; eis porque existe a união do Espírito e do corpo. (Ver item 119).

635.As diferentes posições sociais criam necessidades novas que não são as mesmas para todos os homens. A lei natural pareceria, assim, não ser uma regra uniforme.

— Essas diferentes posições existem na Natureza e estão de acordo com a lei do progresso. Isso não impede a unidade da lei natural, que se aplica a tudo.

As condições de existência do homem mudam segundo as épocas e os lugares, e disso resultam para ele necessidades diferentes e posições sociais correspondentes a essas necessidades. Desde que essa diversidade está na ordem das coisas é conforme à lei de Deus, e essa lei, por isso, não é menos una em seu princípio. Cabe à razão distinguir as necessidades reais das

necessidades fictícias ou convencionais.

636. O bem e o mal são absolutos para todos os homens?

A lei de Deus é a mesma para todos; mas o mal depende, sobretudo, da vontade que se tenha de fazê-lo. O bem é sempre bem e o mal sempre mal, qualquer que seja a posição do homem; a diferença está no grau de responsabilidade.

637. O selvagem que cede ao seu instinto, comendo carne humana, é culpado?

Eu disse que o mal depende da vontade. Pois bem: o homem é tanto mais culpado, quanto melhor sabe o que faz.

As circunstâncias dão ao bem e ao mal uma gravidade relativa. O homem comete, frequentemente, faltas que, sendo embora decorrentes da posição em que a sociedade o colocou, não são menos repreensíveis; mas a responsabilidade está na razão dos meios que ele tiver para compreender o bem e o mal. É assim que o homem esclarecido que comete uma simples injustiça é maìs culpável, aos olhos de Deus, que o selvagem que se entrega aos instintos.

638. O mal parece, algumas vezes, conseqüente das circunstâncias. Tal é, por exemplo, em certos casos, a necessidade de destruição, até mesmo do nosso semelhante. Pode-se dizer, então, que há infração à lei de Deus?

O mal não é menos mal por ser necessário; mas essa necessidade desaparece à medida que a alma se depura, passando de uma a outra existência; então o homem se torna mais culpável quando o comete, porque melhor o compreende.

639. O mal que se comete não resulta freqüentemente da posição em que os outros nos colocaram, e nesse caso quais são os mais culpáveis?

O mal recai sobre aquele que o causou. Assim, o homem que é levado ao mal pela posição em que os outros o colocaram é menos culpável que aqueles que o causaram; pois cada um sofrerá a pena não somente do mal que tenha feito, mas também do que houver provocado.

640. Aquele que não faz o mal, mas aproveita o mal praticado por outro é culpável no mesmo grau?

É como se o cometesse; ao aproveitá-lo, torna-se participante dele. Talvez tivesse recuado diante da ação; mas, se ao encontrá-la realizada, dela se serve, é porque a aprova e a teria praticado, se pudesse ou se tivesse ousado.

641. O desejo do mal é tão repreensível quanto o mal?

Conforme: há virtude em resistir voluntariamente ao mal que se sente desejo de praticar, sobretudo quando se tem a possibilidade de satisfazer esse desejo; mas se o que faltou foi apenas a ocasião, o homem é culpável.

642.Será suficiente não se fazer o mal, para ser agradável a Deus e assegurar uma situação futura?

— Não: é preciso fazer o bem, no limite das próprias forças, pois cada um responderá por todo o mal que tiver ocorrido por causa do bem que deixou de fazer.

643.Há pessoas que, por sua posição, não tenham possibilidade de fazer o

bem?

— Não há ninguém que não possa fazer o bem: somente o egoísta não encontra jamais a ocasião de praticá-lo. É suficiente estar em relação com outros homens para se poder fazer o bem, e cada dia da vida oferece essa possibilidade a quem não estiver cego pelo egoísmo; porque fazer o bem não é apenas ser caridoso, mas ser útil na medida do possível, sempre que o auxílio se faça necessário.

644.0 meio em que certos homens vivem não é para eles o motivo principal de muitos vícios e crimes?

— Sim, mas ainda nisso há uma prova escolhida pelo Espírito no estado de liberdade; ele quis se expor à tentação para ter o mérito da resistência.

645.Quando o homem está mergulhado na atmosfera do vício, o mal não se torna para ele um arrastamento quase irresistível?

— Arrastamento, sim; irresistível, não; porque no meio dessa atmosfera de

vícios podes encontrar grandes virtudes. São Espíritos que tiveram a força de resistir, e que tiveram, ao mesmo tempo, a missão de exercer uma boa influência sobre os seus semelhantes.

646. O mérito do bem que se faz está subordinado a certas condições, ou seja, há diferentes graus no mérito do bem?

— O mérito do bem está na dificuldade; não há nenhum em fazê-lo sem penas e quando nada custa. Deus leva mais em conta o pobre que reparte o seu único pedaço de pão, que o rico que só dá do seu supérfluo. Jesus já o disse, a propósito do óbolo da viúva.

IV — Divisão da Lei Natural

647.Toda a lei de Deus está encerrada na máxima do amor do próximo, ensinada por Jesus?

— Certamente essa máxima encerra todos os deveres dos homens entre si; mas é necessário mostrar-lhes a aplicação, pois do contrário podemnegligenciá-la, como já o fazem hoje. Aliás, a lei natural compreende todas as circunstâncias da vida e essa máxima se refere apenas a um dos seus aspectos. Os homens necessitam de regras precisas. Os preceitos gerais e muito vagos deixam muitas portas abertas à interpretação.

648.Que pensais da divisão da lei natural em dez partes, compreendendo as

leis sobre a adoração, o trabalho, a reprodução, a conservação, a destruição, a sociedade, o progresso, a igualdade, a liberdade, e, por fim a da justiça, amor e caridade?

— Essa divisão da lei de Deus em dez partes é a de Moisés e pode abranger todas as circunstâncias da vida, o que é essencial. Podes segui-la,sem que ela tenha entretanto nada de absoluto, como não o têm os demais sistemas de classificação, que dependem sempre do ponto de vista sob o qual se considera um assunto. A última lei é a mais importante; é por ela que o homem pode avançar mais na vida espiritual, porque ela resume todas as outras.

Capítulo II

I — Lei de Adoração

I — Finalidade da Adoração

649. Em que consiste a adoração?

É a elevação do pensamento a Deus. Pela adoração o homem aproxima dEle a sua alma.

650. A adoração é o resultado de um sentimento inato ou o produto de um ensinamento?

Sentimento inato, como o da Divindade. A consciência de sua fraqueza leva o homem a se curvar diante daquele que o pode proteger.

651. Houve povos desprovidos de todo sentimento de adoração?

— Não, porque jamais houve povos ateus. Todos compreendem que há, acima deles, um Ser supremo.

652.Pode-se considerar a adoração como tendo sua fonte na lei natural?

Ela faz parte da lei natural, porque é o resultado de um sentimento inato no homem; por isso a encontramos entre todos os povos, embora sob formas diferentes.

II — Adoração Exterior

653.A adoração necessita de manifestações exteriores?

A verdadeira adoração é a do coração. Em todas as vossas ações, pensai sempre que o Senhor vos observa.

653-a. A adoração exterior é útil?

Sim, se não for um fingimento. É sempre útil dar um bom exemplo; mas os que o fazem só por afetação e amor próprio, e cuja conduta desmente a sua aparente piedade, dão um exemplo antes mau do que bom, e fazem maior mal do que supõem.

654. Deus tem preferência pelos que o adoram desta ou daquela maneira?

Deus prefere os que o adoram do fundo do coração, com sinceridade, fazendo o bem e evitando o mal, aos que pensam honrá-Lo através de cerimônias que não os tornam melhores para os seus semelhantes.

Todos os homens são irmãos e filhos do mesmo Deus, que chama para Ele todos os que seguem as suas leis, qualquer que seja a forma pela qual se exprimam.

Aquele que só tem a aparência da piedade é um hipócrita; aquele para quem a adoração é apenas um fingimento e está em contradição com a própria conduta, dá um mau exemplo.

Aquele que se vangloria de adorar o Cristo mas que é orgulhoso, invejoso e ciumento, que é duro e implacável para com os outros ou ambicioso de bens mundanos, eu vos declaro que só tem a religião nos lábios e não no coração. Deus, que tudo vê, dirá: aquele que conhece a verdade é cem vezes mais culpável do mal que faz do que o selvagem ignorante e será tratado de maneira conseqüente, no dia do juízo. Se um cego vos derruba ao passar, vós o desculpais, mas se é um homem que enxerga bem, vós o censurais e com razão.

Não pergunteis, pois, se há uma forma de adoração mais conveniente, porque isso seria perguntar se é mais agradável a Deus ser adorado numa língua do que em outra. Digo-vos ainda uma vez: os cânticos não chegam a Ele senão pela porta do coração.

655. É reprovável praticar uma religião na qual não se acredita de coração, quando se faz isso por respeito humano e para não escandalizar os que pensam

de outra maneira?

A intenção, nisso como em tantas outras coisas, é a regra. Aquele que não tem em vista senão respeitar as crenças alheias, não faz mal: faz melhor do que aquele que as ridicularizasse, porque esse faltaria com a caridade. Mas quem as praticar por interesse ou por ambição é desprezível aos olhos de Deus e dos homens. Deus não pode agradar-Se daqueles que só demonstram humildade perante Ele para provocar a aprovação dos homens.

656. A adoração em comum é preferível à adoração individual?

Os homens reunidos por uma comunhão de pensamentos e sentimentos têm mais força para atrair os bons Espíritos. Acontece o mesmo quando se reúnem para adorar a Deus. Mas não penseis, por isso, que a adoração em particular seja menos boa; pois cada um pode adorar a Deus, pensando nEle.

III — Vida Contemplativa

657. Os homens que se entregam à vida contemplativa, não fazendo nenhum mal e só pensando em Deus, têm algum mérito aos seus olhos?

— Não, pois se não fazem o mal, também não fazem o bem e são inúteis. Aliás, não fazer o bem já é um mal. Deus quer que se pense nEle, mas não que se pense apenas nEle, pois deu ao homem deveres a serem cumpridos na Terra. Aquele que se consome na meditação e na contemplação nada faz de meritório aos olhos de Deus, porque sua vida é toda pessoal e inútil para a

Humanidade. Deus lhe pedirá contas do bem que não tenha feito. (Ver item

640).

IV — Da Prece

658. A prece é agradável a Deus?

A prece é sempre agradável a Deus, quando ditada pelo coração, porque a intenção é tudo para Ele. A prece do coração é preferível à que podes ler, por mais bela que seja, se a leres mais com os lábios do que com o pensamento. A prece é agradável a Deus quando é proferida com fé, com fervor e sinceridade. Não creias, pois, que Deus seja tocado pelo homem vão, orgulhoso e egoísta, a menos que a sua prece represente um ato de sincero arrependimento e de verdadeira humildade.

659. Qual o caráter geral da prece?

A prece é um ato de adoração. Fazer preces a Deus é pensar nEle,aproximar-se dEle, pôr-se em comunicação com Ele. Pela prece podemos fazer três coisas: louvar, pedir e agradecer.

660. A prece torna o homem melhor?

Sim, porque aquele que faz preces com fervor e confiança se torna mais forte contra as tentações do mal, e Deus lhe envia bons Espíritos para o assistir. É um socorro jamais recusado, quando o pedimos com sinceridade.

660-a. Como se explica que certas pessoas que oram muito sejam, apesar

disso, de muito mau caráter, ciumentas, invejosas, implicantes, faltas de

benevolência e de indulgência: que sejam até mesmo viciosas?

O essencial não é orar muito, mas orar bem. Essas pessoas julgam que todo o mérito está na extensão da prece e fecham os olhos para os seus próprios defeitos. A prece é para elas uma ocupação, um emprego do tempo, mas não um estudo de si mesmas. Não é o remédio que é ineficaz, neste caso, mas a maneira de aplicá-lo.

661. Pode-se pedir eficazmente a Deus o perdão das faltas?

Deus sabe discernir o bem e o mal: a prece não oculta as faltas. Aquele que pede a Deus o perdão de suas faltas não o obtém se não mudar de conduta. As boas ações são a melhor prece, porque os atos valem mais do que as palavras.

662. Pode-se orar utilmente pelos outros?

O Espírito daquele que ora está agindo pela vontade de fazer o bem. Pela prece, atrai a ele os bons Espíritos que se associam ao bem que deseja fazer.

Possuímos em nós mesmos, pelo pensamento e a vontade, um poder de ação que se estende muito além dos limites de nossa esfera corpórea. A prece por outros é um ato dessa vontade. Se for ardente e sincera, pode chamar os bons Espíritos em auxílio daquele por quem pedimos, a fim de lhe sugerirem bons pensamentos e lhe darem a força necessária para o corpo e a alma. Mas ainda

nesse caso a prece do coração é tudo e a dos lábios não é nada.

663.As preces que fazemos por nós mesmos podem modificar a natureza das nossas provas e desviar-lhes o curso?

— Vossas provas estão nas mãos de Deus e há as que devem ser suportadas até o fim, mas Deus leva sempre em conta a resignação. A prece atrai a vós os bons Espíritos, que vos dão a força de as suportar com coragem. Então elas vos parecem menos duras. Já o dissemos: a prece nunca é inútil, quando bem feita, porque dá força, o que já é um grande resultado.Ajuda-te a ti mesmo e o céu te ajudará; tu sabes disso. Aliás, Deus, não pode mudar a ordem da Natureza ao sabor de cada um, porque aquilo que é um grande mal, do vosso ponto de vista mesquinho, para a vossa vida efêmera, muitas vezes é um grande bem na ordem geral do Universo. Além disso, de quantos males o homem é o próprio autor, por sua imprevidência ou por suas faltas! Ele é punido pelo que pecou. Não obstante, os vossos justos pedidos são em geral mais escutados do que julgais. Pensais que Deus não vos ouviu, porque não fez um milagre em vosso favor, quando entretanto vos assiste por meios tão naturais que vos parecem o efeito do acaso ou da força das coisas. Freqüentemente, ou o mais freqüentemente, ele vos suscita o pensamento necessário para sairdes por vós mesmos do embaraço.

664.É inútil orar pelos mortos e pelos Espíritos sofredores, e nesse caso

como podem as nossas preces lhes proporcionar consolo e abreviar os

sofrimentos? Têm elas o poder de fazer dobrar-se a justiça de Deus?

A prece não pode ter o efeito de mudar os desígnios de Deus, mas a alma pela qual se ora experimenta alívio, porque é um testemunho de interesse que se lhe dá e porque o infeliz é sempre consolado, quando encontra almas caridosas que compartilham as suas dores. De outro lado, pela prece provoca- se o arrependimento, desperta-se o desejo de fazer o necessário para se tornar feliz. É nesse sentido que se pode abreviar a sua pena, se do seu lado ele contribui com a sua boa vontade. Esse desejo de melhora, excitado pela prece, atrai para o Espírito sofredor os Espíritos melhores que vêm esclarecê-lo, consolá-lo e dar-Ihe esperanças. Jesus orava pelas ovelhas transviadas. Com isso vos mostrava que sereis culpados se nada fizerdes pelos que mais necessitam.

665. Que pensar da opinião que rejeita a prece pelos mortos, por não estar prescrita nos Evangelhos?

O Cristo disse aos homens: amai-vos uns aos outros. Essa recomendação implica também a de empregar todos os meios possíveis de testemunhar afeição aos outros, sem entrar, entretanto, em nenhum detalhe sobre a maneira de atingir o objetivo. Se é verdade que nada pode desviar o Criador de aplicar a justiça, que é inerente a Ele mesmo, a todas as ações do Espírito, não é

menos verdade que a prece que lhe dirigis, em favor daquele que vos inspira afeição, é para este um testemunho de recordação que não pode deixar de contribuir para aliviar os seus sofrimentos e o consolar. Desde que ele revele o mais leve arrependimento, e somente então, será socorrido: mas isso não o deixará jamais esquecer que uma alma simpática se ocupou dele e lhe dará a doce crença de que essa intercessão lhe foi útil. Disso resulta necessariamente, de sua parte, um sentimento de afeição por aquele que lhe deu essa prova de interesse e de piedade. Dessa maneira, o amor recomendado aos homens pelo Cristo desenvolveu-se e aumentou entre eles, e ambos obedeceram à lei de amor e de união de todos os seres, lei divina que deve conduzir à unidade, objetivo e fim do Espírito.

666. Podemos orar aos Espíritos?

— Podemos orar aos bons Espíritos, como sendo os mensageiros de Deus e os executores de seus desígnios, mas o seu poder está na razão da sua superioridade e decorre sempre do Senhor de todas as coisas, sem cuja permissão nada se faz; eis porque as preces que lhes dirigimos só são eficazes se forem agradáveis a Deus.

V — Politeísmo

667. Por que o Politeísmo é uma das crenças mais antigas e mais espalhadas,

se é falsa?

A idéia de um Deus único só podia aparecer como o resultado do desenvolvimento mental do homem. Incapaz, na sua ignorância, de conceber um ser natural, sem forma determinada, agindo sobre a matéria, ele lhe havia dado os atributos da natureza corpórea, ou seja, uma forma e uma figura, e desde então tudo o que lhe parecia ultrapassar as proporções da inteligência comum tornava-se para ele uma divindade. Tudo quanto não compreendia devia ser obra de um poder sobrenatural, e disso a acreditar em tantas potências distintas quantos efeitos pudesse ver, não ia mais do que um passo. Mas em todos os tempos houve homens esclarecidos, que compreenderam a impossibilidade dessa multidão de poderes para governar o mundo sem uma direção superior, e que se elevaram ao pensamento de um Deus único.

668. Os fenômenos espíritas, sendo produzidos desde todos os tempos e conhecidos desde as primeiras eras do mundo, não podem ter contribuído para a crença na pluralidade dos deuses?

Sem dúvida, porque aos homens, que chamavam deus a tudo o que erasobre-humano, os Espíritos pareciam deuses. E também por isso, quando um homem se distinguia entre os demais pelas suas ações, pelo seu gênio ou por um poder oculto que o vulgo não podia compreender, faziam dele um deus e lhe rendiam culto após a morte. (Ver item 603).

A palavra Deus tinha entre os antigos uma acepção muito extensa; não era, como em nossos dias, uma designação do Senhor da Natureza, mas uma qualificação genérica de todos os seres não pertencentes às condições humanas. Ora, tendo as manifestações espíritas lhes revelado a existência de seres incorpóreos que agem como forças da Natureza, eles os chamaram deuses, como nós os chamamos Espíritos. Uma simples questão de palavras. Com a diferença de que, em sua ignorância, entretida deliberadamente pelos que tinham interesse em mantê-la, elevaram templos e altares lucrativos a esses seres, enquanto para nós eles não passam de criaturas nossas semelhantes, mais ou menos perfeitas, despojadas de seu envoltório terreno. Se estudarmos com atenção os diversos atributos das divindades pagãs, reconheceremos sem dificuldade todos os que caracterizam os nossos Espíritos, em todos os graus da escala espírita: seu estado físico nos mundos superiores, todas as propriedades do perispírito e o papel que exercem no tocante às coisas terrenas.

O Cristianismo, vindo aclarar o mundo com a sua luz divina, não podia destruir uma coisa que está na própria Natureza, mas fez que a adoração se voltasse para Aquele a que realmente pertence. Quanto aos Espíritos, sua lembrança se perpetuou sob diversos nomes, segundo os povos, e suas manifestações, que jamais cessaram, foram diversamente interpretadas e

freqüentemente exploradas sob o domínio do mistério. Enquanto a religião as considerava como fenômenos miraculosos, os incrédulos as tomaram por charlatanice. Hoje, graças a estudos mais sérios, feitos a plena luz, o Espiritismo, liberto das idéias supersticiosas que o obscureceram através dos séculos, nos revela um dos maiores e mais sublimes princípios da Natureza.

VI — Sacrifícios

669. A prática dos sacrifícios humanos remonta à mais alta Antiguidade. Como foi o homem levado a crer que semelhantes coisas pudessem agradar a Deus?

— Primeiro, porque não compreendia Deus como sendo a fonte da bondade. Entre os povos primitivos, a matéria sobrepõe-se ao espírito; eles se entregam aos instintos animais e por isso são geralmente cruéis, pois o senso moral ainda não se encontra desenvolvido. Depois, os homens primitivos deviam crer naturalmente que uma criatura animada teria muito mais valor aos olhos de Deus do que um corpo material. Foi isso que os levou a imolar primeiramente animais e mais tarde criaturas humanas, pois, segundo sua falsa crença, pensavam que o valor do sacrifício estava em relação com a importância da vítima. Na vida material, como geralmente a levais, se ofereceis um perante a alguém, escolheis sempre o de um valor tanto maior,

quanto mais amizade e consideração quereis testemunhar à pessoa. O mesmo deviam fazer os homens ignorantes, com relação a Deus.

669-a. Assim, os sacrifícios de animais teriam precedido os humanos?

— Não há dúvida quanto a isso.

669-b. Segundo esta explicação, os sacrifícios humanos não se originaram de um sentimento de crueldade?

Não, mas de uma falsa concepção do que seria agradável a Deus. Vede Abraão. Com o tempo, os homens passaram a cometer abusos, imolando os inimigos, até mesmo os inimigos pessoais. De resto, Deus jamais exigiu sacrifícios, nem de animais, nem de homens. Ele não pode ser honrado com a destruição inútil de sua própria criatura.

670. Poderiam os sacrifícios humanos, realizados com intenção piedosa, ter algumas vezes agradado a Deus?

Não, jamais; mas Deus julga a intenção. Os homens, sendo ignorantes, podiam crer que praticavam ato louvável ao imolar um de seus semelhantes. Nesse caso, Deus atentaria para o pensamento e não para o fato. Os homens, ao progredirem, deviam reconhecer o erro e reprovar esses sacrifícios, que não mais seriam admissíveis para espíritos esclarecidos; e digo esclarecidos, porque os Espíritos estavam então envolvidos pelo véu material. Mas, pelo livre arbítrio, poderiam ter uma percepção de sua origem e sua finalidade.

Muitos já compreendiam por intuição o mal que faziam, e só o praticavam para satisfazer suas paixões.

671. Que devemos pensar das chamadas guerras santas? O sentimento que leva os povos fanáticos a exterminar o mais possível os que não partilham de suas crenças, com o fim de agradar a Deus, não teria a mesma origem dos que antigamente provocaram os sacrifícios humanos?

— Esses povos são impulsionados pelos maus Espíritos. Fazendo a guerra aos seus semelhantes, vão contra Deus, que manda o homem amar o próximo como a si mesmo. Todas as religiões, ou antes, todos os povos adoram um mesmo Deus, quer sob este ou aquele nome. Como promover uma guerra de extermínio, porque a religião de um é diferente ou não atingiu ainda o progresso religioso dos povos esclarecidos? Os povos são escusáveis por não crerem na palavra daquele que estava animado pelo Espírito de Deus e fora enviado por Ele, sobretudo quando não o viram e não testemunharam os seus atos: e como quereis que eles creiam nessa palavra de paz, quando os procurais de espada em punho? Eles devem esclarecer-se, e devemos procurar fazê-los conhecer a sua doutrina pela persuasão e a doçura, e não pela força e o sangue. A maioria de vós não acredita nas nossas comunicações com certos mortais; por que quereis então que os estranhos acreditem nas vossas palavras, quando os vossos atos desmentem a doutrina que pregais?

672.A oferenda dos frutos da terra teria mais mérito aos olhos de Deus que o sacrifício dos animais?

— Já vos respondi ao dizer que Deus julgaria a intenção, e que o fato em si teria pouca importância para Ele. Seria evidentemente mais agradável a Deus a oferenda de frutos da terra que a do sangue das vítimas. Como vos dissemos e repetimos sempre, a prece dita do fundo do coração é cem vezes mais agradável a Deus que todas as oferendas que lhe pudésseis fazer. Repito que a intenção é tudo, e o fato, nada.

673.Não haveria um meio de tornar essas oferendas mais agradáveis a Deus, consagrando-as ao amparo dos que não têm sequer o necessário? E, nesse caso, o sacrifício dos animais, realizado com uma finalidade útil, não seria mais meritório que o sacrifício abusivo que não servia para nada ou não aproveitaria senão aos que de nada precisavam? Não haveria algo de realmente piedoso em se consagrar aos pobres as primícias dos bens da terra que Deus nos concede?

— Deus abençoa sempre os que praticam o bem; amparar os pobres e os aflitos é o melhor meio de homenageá-Lo. Já vos disse, por isso mesmo, que Deus desaprova as cerimônias que fazeis para as vossas preces, pois há muito dinheiro que poderia ser empregado mais utilmente. O homem que se prende à

exterioridade e não ao coração é um espírito de vista estreita; julgai se Deus deve importar-se mais com a forma do que com o fundo.

Capítulo III

II — Lei do Trabalho

I — Necessidade do Trabalho

674. A necessidade do trabalho é uma lei da Natureza?

O trabalho é uma lei da Natureza e por isso mesmo é uma necessidade. A civilização obriga o homem a trabalhar mais, porque aumenta as suas necessidades e os seus prazeres.

675. Só devemos entender por trabalho as ocupações materiais?

Não; o Espírito também trabalha, como o corpo. Toda ocupacão útil é trabalho.

676. Por que o trabalho é imposto ao homem?

É uma conseqüência da sua natureza corpórea. É uma expiação, e ao mesmo tempo um meio de aperfeiçoar a sua inteligência. Sem o trabalho, o homem permaneceria na infância intelectual; eis porque ele deve a sua alimentação, a sua segurança e o seu bem-estar ao seu trabalho e à sua atividade. Ao de físico franzino, Deus concedeu a inteligência para o compensar; mas há sempre trabalho.

677.Por que a Natureza provê, por si mesma, a todas as necessidades dos animais?

— Tudo trabalha na Natureza. Os animais trabalham, como tu, mas o seu trabalho, como a sua inteligência, é limitado aos cuidados da conservação. Eis porque, entre eles, o trabalho não conduz ao progresso, enquanto entre os homens tem um duplo objetivo: a conservação do corpo e o desenvolvimento do pensamento, que é também uma necessidade e que o eleva acima de si mesmo. Quando digo que o trabalho dos animais é limitado aos cuidados de sua conservação, refiro-me ao fim a que eles se propõem, trabalhando. Mas, enquanto, sem o saberem, eles se entregam inteiramente a prover as suas necessidades materiais, são os agentes que colaboram nos desígnios do Criador. Seu trabalho não concorre menos para o objetivo final da Natureza, embora muitas vezes não possais ver o seu resultado imediato.

678.Nos mundos mais aperfeiçoados o homem é submetido à mesma necessidade de trabalho?

— A natureza do trabalho é relativa à natureza das necessidades; quanto menos necessidades materiais, menos material é o trabalho. Mas não julgueis, por isso, que o homem permanece inativo e inútil: a ociosidade seria um suplício, ao invés de ser um benefício.

679.O homem que possui bens suficientes para assegurar sua subsistência

está liberto da lei do trabalho?

Do trabalho material, talvez, mas não da obrigação de se tornar útil na proporção dos seus meios, de aperfeiçoar a sua inteligência ou a dos outros, o que é também um trabalho. Se o homem a quem Deus concedeu bens suficientes para assegurar sua subsistência não está obrigado a comer o pão com o suor da fronte, a obrigação de ser útil a seus semelhantes é tanto maior para ele, quanto a parte que lhe coube por adiantamento lhe der maior lazer para fazer o bem.

680. Não há homens que estão impossibilitados de trabalhar, seja no que for, e cuja existência é inútil?

Deus é justo e só condena aquele cuja existência for voluntariamente inútil, porque esse vive na dependência do trabalho alheio. Ele quer que cada um se torne útil na proporção de suas faculdades. (Ver item 643).

681. A lei da Natureza impõe aos filhos a obrigação de trabalhar para os pais?

Certamente, como os pais devem trabalhar para os filhos. Eis porque Deus fez do amor filial e do amor paterno um sentimento natural, a fim de que, por essa afeição recíproca, os membros de uma mesma família sejam levados a se auxiliarem mutuamente. É o que, com muita freqüência, não se reconhece em vossa atual sociedade (Ver item 205).

II— Limite do Trabalho. Repouso.

682.Sendo o repouso uma necessidade após o trabalho, não é uma lei da Natureza?

— Sem dúvida, o repouso serve para reparar as forças do corpo. É também necessário para deixar um pouco mais de liberdade à inteligência que deveelevar-se acima da matéria.

683.Qual é o limite do trabalho?

— O limite das forças; não obstante, Deus dá liberdade ao homem.

684.Que pensar dos que abusam da autoridade para impor aos seus inferiores um excesso de trabalho?

— É uma das piores ações. Todo homem que tem o poder de dirigir é responsável pelo excesso de trabalho que impõe aos seus inferiores, porque transgride a lei de Deus. (Ver item 273).

685.O homem tem direito ao repouso na sua velhice?

Sim, pois não está obrigado a nada, senão na proporção de suas forças.685-a. Mas o que fará o velho que precisa trabalhar para viver e não pode?

O forte deve trabalhar para o fraco; na falta da família, a sociedade deve ampará-lo: é a lei da caridade.

Não basta dizer ao homem que ele deve trabalhar, é necessário também que o que vive do seu trabalho encontre ocupação, e isso nem sempre acontece.

Quando a falta de trabalho se generaliza, toma as proporções de um flagelo, como a escassez. A ciência econômica procura o remédio no equilíbrio entre a produção e o consumo, mas esse equilíbrio, supondo-se que seja possível, sofrerá sempre intermitências e durante essas fases o trabalhador tem necessidade de viver. Há um elemento que não se ponderou bastante, e sem o qual a ciência econômica não passa de teoria: a educação. Não a educação intelectual, mas a moral, e nem ainda a educação moral pelos livros, mas a que consiste na arte de formar os caracteres, aquela que cria os hábitos, porque educação é conjunto de hábitos adquiridos.

Quando se pensa na massa de indivíduos diariamente lançados na corrente da população, sem princípios, sem freios, entregues aos próprios instintos,deve-se admirar das conseqüências desastrosas desse fato? Quando essa arte for conhecida, compreendida e praticada, o homem seguirá no mundo os hábitos de ordem e previdência para si mesmo e para os seus, de respeito pelo que é respeitável, hábitos que lhe permitirão atravessar de maneira menos penosa os maus dias inevitáveis. A desordem e a imprevidência são duas chagas que somente uma educação bem compreendida pode curar. Nisso está o ponto de partida, o elemento real do bem-estar, a garantia da segurança de todos.

Capítulo IV

III — Lei de Reprodução

I — População do Globo

686. A reprodução dos seres vivos é uma lei natural?

— Isso é evidente; sem a reprodução, o mundo corpóreo pereceria.

687.Se a população seguir sempre a progressão constante que vemos, chegará um momento em que se tornará excessiva na Terra?

— Não. Deus a isso provê, mantendo sempre o equilíbrio. Ele nada faz de inútil. O homem, que só vê um ângulo do quadro da Natureza, não pode julgar da harmonia do conjunto.

Sucessão e Aperfeiçoamento das Raças

688.Há neste momento raças humanas que diminuem evidentemente; chegará um momento em que terão desaparecido da Terra?

— Isso é verdade; mas é que outras lhes tomaram o lugar, como outras tomarão o vosso, um dia.

689.Os homens de hoje são uma nova criação ou os descendentes aperfeiçoados dos seres primitivos?

— São os mesmos Espíritos que voltaram para se aperfeiçoar em novos corpos, mas que ainda estão longe da perfeição. Assim a raça humana atual, que por seu crescimento, tende a invadir toda a Terra e substituir as raças que

se extinguiram, terá também o seu período de decrescimento e extinção. Outras raças mais perfeitas a substituirão, descendendo da raça atual, como os homens civilizados de hoje descendem dos seres brutos e selvagens dos tempos primitivos.

690.Do ponto de vista puramente físico, os corpos da raça atual são uma criação especial ou procedem dos corpos primitivos, por via de reprodução?

— A origem das raças se perde na noite dos tempos, mas, como todas pertencem à grande família humana, qualquer que seja o tronco primitivo de cada uma, puderam mesclar-se e produzir novos tipos.

691.Qual é, do ponta de vista físico, o caráter distintivo e dominante das raças primitivas?

— Desenvolvimento da força bruta, em detrimento da intelectual. Atualmente dá-se o contrário: o homem faz mais pela inteligência do que pela força física, e no entanto faz cem vezes mais, porque colocou a seu serviço as forças da Natureza, o que não fazem os animais.

692.O aperfeiçoamento das raças animais e vegetais pela Ciência é contrário à lei natural? Seria mais conforme a essa lei deixar as coisas seguirem o seu curso normal?

— Tudo se deve fazer para chegar à perfeição. O próprio homem é um instrumento de que Deus se serve para atingir os seus fins. Sendo a perfeição o

alvo para que tende a Natureza, favorecer a sua conquista é corresponder àqueles fins.

692-a. Mas o homem é geralmente movido, nos seus esforços para o melhoramento das raças, apenas por um interesse pessoal, que não tem outro objetivo senão o aumento de seu bem-estar; isso diminui o seu mérito?

— Que importa que o seu mérito seja nulo, contanto que se faça o progresso? Compete a ele tornar meritório o seu trabalho, através da intenção. Demais, por meio desse trabalho ele exercita e desenvolve sua inteligência e é sob esse aspecto que tira maior proveito.

III— Obstáculos à Reprodução

693.As leis e os costumes humanos que objetivam ou têm por efeito criar obstáculos à reprodução são contrários à lei natural?

— Tudo o que entrava a marcha da Natureza é contrário à lei geral.

693-a. Não obstante, há espécies de seres vivos, animais e plantas, cuja reprodução indefinida seria prejudicial às outras espécies e das quais, em breve, o próprio homem seria vítima. Seria repreensível deter essa reprodução?

— Deus deu ao homem, sobre todos os seres vivos, um poder que ele deve usar para o bem, mas não abusar. Ele pode regular a reprodução segundo as necessidades, mas não deve entravá-la sem necessidade. A ação inteligente do

homem é um contrapeso posto por Deus entre as forças da Natureza pararestabelecer-lhes o equilíbrio, e isso também o distingue dos animais, pois ele o faz com conhecimento de causa. Os animais concorrem, por sua vez, para esse equilíbrio, pois o instinto de conservação que lhes foi dado faz que, ao proverem à própria conservação, detenham o desenvolvimento excessivo e talvez perigoso das espécies animais e vegetais de que se nutrem.

694.Que pensar dos usos que têm por fim deter a reprodução, com vistas à satisfação da sensualidade?

— Isso prova a predominância do corpo sobre a alma e o quanto o homem está imerso na matéria.

IV — Casamento e Celibato

695.O casamento, ou seja, a união permanente de dois seres é contrária à lei da Natureza?

— É um progresso na marcha da Humanidade.

696.Qual seria o efeito da abolição do casamento sobre a sociedade humana?

— O retorno à vida dos animais.

A união livre e fortuita dos sexos pertence ao estado de natureza. O casamento é um dos primeiros atos de progresso nas sociedades humanas porque estabelece a solidariedade fraterna e se encontra entre todos os povos,

embora nas mais diversas condições. A abolição do casamento seria, portanto, o retorno à infância da Humanidade e colocaria o homem abaixo mesmo de alguns animais, que lhe dão o exemplo das uniões constantes.

697.A indissolubilidade absoluta do casamento pertence à lei natural ou apenas à lei humana?

É uma lei humana, muito contrária à lei natural. Mas os homens podem modificar as suas leis: somente as naturais são imutáveis.

698.O celibato voluntário é um estado de perfeição, meritório aos olhos de

Deus?

— Não, e os que vivem assim, por egoísmo, desagradam a Deus e enganam a todos.

699.O celibato não é um sacrifício para algumas pessoas, que desejamdevotar-se mais inteiramente ao serviço da Humanidade?

— Isso é bem diferente. Eu disse: por egoísmo. Todo sacrifício pessoal é meritório, quando feito para o bem; quanto maior o sacrifício, maior o mérito.

Deus não se contradiz nem considera mau o que Ele mesmo fez. Não pode, pois, ver o mérito na violação da sua lei. Mas se o celibato, por si mesmo, não é um estado meritório, já não se dá o mesmo quando constitui, pela renúncia às alegrias da vida familiar, um sacrifício realizado a favor da Humanidade.

Todo sacrifício pessoal visando ao bem e sem segunda intenção egoísta eleva o homem acima da sua condição material.

V — Poligamia

700.A igualdade numérica aproximada entre os sexos é um indício da proporção em que eles se devem unir?

— Sim, pois tudo tem um fim na Natureza.

701.Qual das duas, a poligamia ou a monogamia, é a mais conforme à lei natural?

— A poligamia é uma lei humana, cuja abolição marca um progresso social. O casamento, segundo as vistas de Deus, deve fundar-se na afeição dos seres que se unem. Na poligamia não há verdadeira afeição: não há mais do que sensualidade.

Se a poligamia estivesse de acordo com a lei natural devia ser universal, o que, entretanto, seria materialmente impossível em virtude da igualdade numérica dos sexos.

A poligamia deve ser considerada como um uso ou uma legislação particular, apropriada a certos costumes e que o aperfeiçoamento social fará desaparecer pouco a pouco.

Capítulo V

IV — Lei de Conservação

I — Instinto de Conservação

702. O instinto de conservação é uma lei da Natureza?

Sem dúvida. Todos os seres vivos o possuem, qualquer que seja o seu grau de inteligência; nuns é puramente mecânico e noutros é racional.

703. Com que fim Deus concedeu a todos os seres vivos o instinto de conservação?

Porque todos devem colaborar nos desígnios da Providência. Foi por isso que Deus lhes deu a necessidade de viver. Depois, a vida é necessária ao aperfeiçoamento dos seres; eles o sentem instintivamente, sem disso se aperceberem.

II — Meios de Conservação

704.Deus, dando ao homem a necessidade de viver, sempre lhe forneceu os meios para isso?

— Sim, e se ele não os encontra, é por falta de compreensão. Deus não podia dar ao homem a necessidade de viver sem lhe dar também os meios. É por isso que faz a Terra produzir, de maneira a fornecer o necessário a todos os seus habitantes, pois só o necessário é útil: o supérfluo jamais o é.

705.Por que a Terra nem sempre produz bastante para fornecer o necessário

ao homem?

É que o homem a negligencia, é ingrato, e no entanto é ela uma excelente mãe. Freqüentemente ele ainda acusa a Natureza pelas conseqüências da sua imperícia ou da sua imprevidência. A Terra produziria sempre o necessário se o homem soubesse contentar-se. Se ela não supre a todas as necessidades é porque o homem emprega no supérfluo o que se destina ao necessário. Vede como o árabe no deserto encontra sempre do que viver, porque não cria necessidades fictícias. Mas quando metade dos produtos é desperdiçada na satisfação de fantasias, deve o homem se admirar de nada encontrar no dia seguinte e tem razão de se lastimar por se achar desprevenido quando chega o tempo de escassez? Na verdade eu vos digo que não é a Natureza a imprevidente, é o homem que não sabe regular-se.

706. Como bens da terra devemos entender apenas os produtos do solo?

O solo é a fonte primeira de que decorrem todos os outros recursos, porque esses recursos, em última instância, são apenas uma transformação dos produtos do solo. É por isso que devemos entender por bens da terra tudo quanto o homem pode gozar neste mundo.

707. Os meios de subsistência faltam freqüentemente a certos indivíduos, mesmo em meio da abundância que os cerca; a que se deve ligar esse fato?

Ao egoísmo dos homens, que nem sempre fazem o que devem; em

seguida, e o mais freqüentemente, a eles mesmos. Buscai e achareis: estas palavras não querem dizer que seja suficiente olhar para a terra a fim de se encontrar o que se deseja, mas que é necessário procurar com ardor e perseverança, e não com displicência, sem se deixar desanimar pelos obstáculos que muito freqüentemente não passam de meios de pôr à prova a vossa constância, a vossa paciência e a vossa firmeza. (Ver item 534).

Se a civilização multiplica as necessidades também multiplica as fontes de trabalho e os meios de vida; mas é preciso convir que nesse sentido ainda muito lhe resta a fazer. Quando ela tiver realizado a sua obra, ninguém poderá dizer que lhe falte o necessário, a menos que o falte por sua própria culpa. O mal, para muitos, é viver uma vida que não é a que a Natureza lhe traçou; é então que lhes falta a inteligência para vencerem. Há para todos um lugar ao Sol, mas com a condição de cada qual tomar o seu e não o dos outros. A Natureza não poderia ser responsável pelos vícios da organização social e pelas conseqüências da ambição e do amor próprio.

Seria preciso ser cego, entretanto, para não se reconhecer o progresso que nesse sentido têm realizado os povos mais adiantados.

Graças aos louváveis esforços que a filantropia e a Ciência, reunidas, não cessam de fazer para a melhoria da condição material dos homens, e malgrado o crescimento incessante das populações, a insuficiência da produção é

atenuada pelo menos em grande parte, e os anos mais calamitosos nada têm de comparável aos de há bem pouco tempo. A higiene pública, esse elemento tão essencial da energia e da saúde, desconhecido por nossos pais, é objeto de uma solicitude esclarecida; o infortúnio e o sofrimento encontram lugares de refúgio; por toda parte a Ciência é posta em ação, contribuindo para o acréscimo do bem-estar. Pode-se dizer que atingimos a perfeição? Oh, certamente que não. Mas o que já se fez dá-nos a medida do que pode ser feito com perseverança, se o homem for bastante sensato para procurar a sua felicidade nas coisas positivas e sérias e não nas utopias que o fazem recuar em vez de avançar.

708.Não há situações em que os meios de subsistência não dependem absolutamente da vontade do homem e a privação do necessário, até o mais imperioso, é uma conseqüência das circunstâncias?

— É uma prova freqüentemente cruel que o homem deve sofrer e à qual sabia que seria exposto; seu mérito está na submissão à vontade de Deus, se a sua inteligência não lhe fornecer algum meio de sair da dificuldade. Se a morte deve atingi-lo, ele deverá submeter-se sem murmurar, pensando que a hora da verdadeira liberdade chegou e que o desespero do momento final pode fazê-lo perder o fruto de sua resignação.

709.Aqueles que em situações críticas se viram obrigados a sacrificar os

semelhantes para matar a fome cometeram com isso um crime? Se houve crime, é ele atenuado pela necessidade de viver que o instinto de conservação lhes dá?

Já respondi, ao dizer que há mais mérito em sofrer todas as provas da vida com abnegação e coragem. Há homicídio e crime de lesa-natureza, que deve ser duplamente punido.

710. Nos mundos onde a organização é mais apurada os seres vivos têm necessidade de alimentação?

Sim, mas os seus alimentos estão em relação com a sua natureza. Esses alimentos não seriam tão substanciais para os vossos estômagos grosseiros; da mesma maneira, eles não poderiam digerir os vossos.

III — Gozo dos Bens da Terra

711. O uso dos bens da terra é um direito de todos os homens?

Esse direito é a conseqüência da necessidade de viver. Deus não pode impor um dever sem conceder os meios de ser cumprido.

712. Com que fim Deus fez atrativos os gozos dos bens materiais?

Para instigar o homem ao cumprimento da sua missão e também para o provar na tentação.

712-a. Qual o objetivo dessa tentação?

Desenvolver a razão, que deve preservá-lo dos excessos.

Se o homem não fosse instigado ao uso dos bens da terra senão em vista da sua utilidade, sua indiferença poderia ter comprometido a harmonia do Universo. Deus lhe deu o atrativo do prazer que o solicita à realização dos desígnios da Providência. Mas, por meio desse mesmo atrativo, Deus quisprová-lo também pela tentação que o arrasta ao abuso, do qual a sua razão deve livrá-lo.

713. Os gozos têm limites traçados pela Natureza?

Sim, para vos mostrar o termo do necessário; mas pelos vossos excessos chegais até o aborrecimento e com isso vos punis a vós mesmos.

714. Que pensar do homem que procura nos excessos de toda espécie um refinamento dos seus gozos?

Pobre criatura, que devemos lastimar e não invejar, porque está bem próxima da morte!

714-a. É da morte física ou da morte moral que ele se aproxima?

De uma e de outra.

O homem que procura, nos excessos de toda espécie, um refinamento dos gozos, coloca-se abaixo dos animais, porque estes sabem limitar-se à satisfação de suas necessidades. Ele abdica da razão que Deus lhe deu para guia e quanto maiores forem os seus excessos maior é o império que concede à sua natureza animal sobre a espiritual. As doenças, a decadência, a morte

mesmo, que são a conseqüência do abuso, são também a punição da transgressão da lei de Deus.

IV — Necessário e Supérfluo

715. Como pode o homem conhecer o limite do necessário?

O sensato o conhece por intuição e muitos o conhecem à custa de suas próprias experiências.

716. A Natureza não traçou o limite do necessário em nossa própria organização?

Sim, mas o homem é insaciável. A Natureza traçou o limite de suas necessidades na sua organização, mas os vícios alteraram a sua constituição e criaram para ele necessidades artificiais.

717. Que pensar dos que açambarcam os bens da terra para se proporcionarem o supérfluo, em prejuízo dos que não têm sequer o necessário?

— Desconhecem a lei de Deus e terão de responder pelas privações que ocasionaram.

O limite entre o necessário e o supérfluo nada tem de absoluto. A civilização criou necessidades que não existem no estado de selvageria, e os Espíritos que ditaram esses preceitos não querem que o homem civilizado viva como

selvagem. Tudo é relativo e cabe à razão colocar cada coisa em seu lugar. A civilização desenvolve o senso moral e ao mesmo tempo o sentimento de caridade que leva os homens a se apoiarem mutuamente. Os que vivem à custa das privações alheias exploram os benefícios da civilização em proveito próprio; não têm de civilizados mais do que o verniz, como há pessoas que não possuem da religião mais do que a aparência.

V — Privações Voluntárias. Mortificações

718.A lei de conservação obriga-nos a prover as necessidades do corpo?

— Sim, pois sem a energia e a saúde o trabalho é impossível.

719.O homem é censurável por procurar o bem-estar?

bem-estar é um desejo natural. Deus só proíbe o abuso, por ser contrário à conservação, e não considera um crime a procura do bem-estar,se este não for conquistado às expensas de alguém e se não enfraquecer as vossas forças morais nem as vossas forças físicas.

720. As privações voluntárias, com vistas a uma expiação igualmente voluntária, têm algum mérito aos olhos de Deus?

Fazei o bem aos outros e tereis maior mérito.

720-a. Há privações voluntárias que sejam meritórias?

— Sim: a privação dos prazeres inúteis, porque liberta o homem da matéria

e eleva sua alma. O meritório é resistir à tentação que vos convida aos excessos e ao gozo das coisas inúteis, é retirar do necessário para dar aos que o não têm. Se a privação nada mais for que um fingimento será apenas uma irrisão.

721.A vida de mortificações no ascetismo tem sido praticado desde toda a Antiguidade e nos diferentes povos; é ela meritória sob algum ponto de vista?

— Perguntai a quem ela aproveita e tereis a resposta. Se não serve senão ao que a pratica e o impede de fazer o bem, é egoísta, qualquer que seja o pretexto sob o qual se disfarce. Submeter-se a privacões no trabalho pelos outros é a verdadeira mortificação, de acordo com a caridade cristã.

722.A abstenção de certos alimentos, prescrita entre diversos povos, funda- se na razão?

— Tudo aquilo de que o homem se possa alimentar, sem prejuízo para a sua saúde, é permitido. Mas os legisladores puderam interditar alguns alimentos com uma finalidade útil. E para dar maior crédito às suas leis apresentaram- nas como provindas de Deus.

723.A alimentação animal, para o homem, é contrária à lei natural?

— Na vossa constituição física, a carne nutre a carne, pois do contrário o homem perece. A lei de conservação impõe ao homem o dever de conservar as suas energias e a sua saúde, para poder cumprir a lei do trabalho. Ele deve

alimentar-se, portanto, segundo o exige a sua organização.

724.A abstenção de alimentos animais ou outros, como expiação, é meritória?

— Sim, se o homem se priva em favor dos outros, pois Deus não pode ver mortificação quando não há privação séria e útil. Eis porque dizemos que os que só se privam em aparência são hipócritas. (Ver item 720).

725.Que pensar das mutilações praticadas no corpo do homem ou dos animais?

— A que vem semelhante pergunta? Perguntai sempre se uma coisa é útil. O que é inútil não pode ser agradável a Deus e o que é prejudicial lhe é sempre desagradável. Porque, ficai sabendo, Deus só é sensível aos sentimentos que elevam a alma para Ele, e é praticando as suas leis, em vez de violá-las, que podereis sacudir o jugo de vossa matéria terrena.

726.Se os sofrimentos deste mundo nos elevam, conforme os suportamos, poderemos elevar-nos pelo que criarmos voluntariamente?

— Os únicos sofrimentos que elevam são os naturais, porque vêm de Deus. Os sofrimentos voluntários não servem para nada, quando nada valem para o bem dos outros. Crês que os que abreviam a vida através de rigores sobre- humanos, como o fazem os bonzos, os faquires e alguns fanáticos de tantas seitas, avançam na sua senda? Por que não trabalham, antes, em favor dos seus

semelhantes? Que visitem o indigente, consolem o que chora, trabalhem pelo que está enfermo, sofram privações para o alívio dos infelizes e então sua vida será útil e agradável a Deus. Quando, nos sofrimentos voluntários a que se sujeita, o homem não tem em vista senão a si mesmo, trata-se de egoísmo; quando alguém sofre pelos outros, pratica a caridade: são esses os preceitos de Cristo.

727. Se não devemos criar para nós sofrimentos voluntários que não são de nenhuma utilidade para os outros, devemos no entanto preservar-nos dos que prevemos ou dos que nos ameaçam?

— O instinto de conservação foi dado a todos os seres contra os perigos e os sofrimentos. Fustigai o vosso Espírito e não o vosso corpo, mortificai vosso orgulho, sufocai o vosso egoísmo que se assemelha a uma serpente a vos devorar o coração, e fareis mais pelo vosso adiantamento do que por meio de rigores que não mais pertencem a este século.

Capítulo VI

V — Lei de Destruição

I — Destruição Necessária e Abusiva 728. A destruição é uma lei da Natureza?

— E necessário que tudo se destrua, para renascer e se regenerar; porque

isso a que chamais destruição não é mais que a transformação, cujo objetivo é a renovação e o melhoramento dos seres vivos.

728-a. O instinto de destruição teria sido dado aos seres vivos com fins providenciais?

As criaturas de Deus são os instrumentos de que Ele se serve para atingir os seus fins. Para se nutrirem, os seres vivos se destroem entre si, e isso com o duplo objetivo de manter o equilíbrio da reprodução, que poderiatornar-se excessiva, e de utilizar os restos do invólucro exterior. Mas é apenas o invólucro que é destruído, e esse invólucro não é mais do que acessório, não a parte essencial do ser pensante, pois este é o princípio inteligente, indestrutível, que se elabora através das diferentes metamorfoses por que passa.

729. Se a destruição é necessária para a regeneração dos seres, por que a Natureza os cerca de meios de preservação e conservação?

Para evitar a destruição antes do tempo necessário. Toda destruição antecipada entrava o desenvolvimento do principio inteligente. Foi por isso que Deus deu a cada ser a necessidade de viver e de se reproduzir.

730. Desde que a morte deve conduzir-nos a uma vida melhor, e que nos livra dos males deste mundo, sendo mais de se desejar do que de se temer, porque a homem tem por ela um horror instintivo que a torna motivo de

apreensão?

Já o dissemos. O homem deve procurar prolongar a sua vida para cumprir a sua tarefa. Foi por isso que Deus lhe deu o instinto de conservação e esse instinto o sustenta nas suas provas; sem isso, muito freqüentemente ele se entregaria ao desânimo. A voz secreta que o faz repelir a morte lhe diz que ainda pode fazer alguma coisa pelo seu adiantamento. Quando um perigo o ameaça ela o adverte de que deve aproveitar o tempo que Deus lhe concede, mas o ingrato rende geralmente graças à sua estrela; em lugar do Criador.

731. Por que, ao lado dos meios de conservação, a Natureza colocou ao mesmo tempo os agentes destruidores?

O remédio ao lado do mal; já o dissemos, para manter o equilibrio e servir de contrapeso.

732. A necessidade de destruição é a mesma em todas os mundos?

E proporcional ao estado mais ou menos material dos mundos e desaparece num estado físico e moral mais apurado. Nos mundos mais avançados que o vosso as condições de existência são muito diferentes.

733. A necessidade de destruição existirá sempre entre os homens na Terra?

A necessidade de destruição diminui entre os homens à medida em que o Espírito supera a matéria; é por isso que ao horror da destruição vedes seguir- se o desenvolvimento intelectual e moral.

734.No seu estado atual o homem tem direito ilimitado de destruição sobre os animais?

— Esse direito é regulado pela necessidade de prover à sua alimentação e à sua segurança; o abuso jamais foi um direito.

735.Que pensar da destruição que ultrapassa os limites das necessidades e da segurança; da caça, por exemplo, quando não tem por objetivo senão o prazer de destruir, sem utilidade?

— Predominância da bestialidade sobre a natureza espiritual. Toda destruição que ultrapassa os limites da necessidade é uma violação da lei de Deus. Os animais não destroem mais do que necessitam, mas o homem, que tem o livre arbítrio, destrói sem necessidade. Prestará contas do abuso da liberdade que lhe foi concedida, pois nesses casos ele cede aos maus instintos.

736.Os povos que levam ao excesso o escrúpulo no tocante à destruição dos animais têm mérito especial?

— É um excesso, num sentimento que em si mesmo é louvável, mas que se torna abusivo e cujo mérito acaba neutralizado por abusos de toda espécie. Eles têm mais temor supersticioso do que verdadeira bondade.

II— Flagelos Destruidores

737.Com que fim Deus castiga a Humanidade com flagelos destruidores?

— Para fazê-la avançar mais depressa. Não dissemos que a destruição é

necessária para a regeneração moral dos Espíritos, que adquirem em cada nova existência um novo grau de perfeição? É necessário ver o fim para apreciar os resultados. Só julgais essas coisas do vosso ponto de vista pessoal, e as chamais de flagelos por causa dos prejuízos que vos causam; mas esses transtornos são freqüentemente necessários para fazerem que as coisas cheguem mais prontamente a uma ordem melhor, realizando-se em alguns anos o que necessitaria de muitos séculos. (Ver item 744).

738. Deus não poderia empregar, para melhorar a Humanidade, outros meios que não os flagelos destruidores?

Sim, e diariamente os emprega, pois deu a cada um os meios de progredir pelo conhecimento do bem e do mal. É o homem quem não os aproveita; então, é necessário castigá-lo em seu orgulho e fazê-lo sentir a sua fraqueza.

738-a. Nesses flagelos, porém, o homem de bem sucumbe como os perversos; isso é justo?

Durante a vida o homem relaciona tudo ao seu corpo, mas após a morte pensa de outra maneira. Como já dissemos: a vida do corpo é um quase nada: um século do vosso mundo é um relâmpago na eternidade. Os sofrimentos que duram alguns dos vossos meses ou dias, nada são. Apenas um ensinamento que vos servirá no futuro. Os Espíritos que preexistem e sobrevivem a tudo formam o mundo real. (Ver item 85). São eles os filhos de Deus e o objetivo

de sua solicitude; os corpos não são mais que disfarces sob os quais aparecem no mundo. Nas grandes calamidades que dizimam os homens eles são como um exército que, durante a guerra, vê os seus uniformes estragados, rotos ou perdidos. O general tem mais cuidado com os soldados do que com as vestes.

738-b. Mas as vítimas desses flagelos, apesar disso não são vítimas?

Se considerássemos a vida no que ela é, e quanto é insignificante em relação ao infinito, menos importância lhe daríamos. Essas vítimas terão noutra existência uma larga compensação para os seus sofrimentos, se souberem suportá-los sem murmurar.

Quer a morte se verifique por um flagelo ou por uma causa ordinária, não se pode escapar a ela quando soa a hora da partida: a única diferença é que no primeiro caso parte um grande número ao mesmo tempo. Se pudéssemos nos elevar pelo pensamento de maneira a abranger toda a Humanidade numa visão única, esses flagelos tão terríveis não nos pareceriam mais do que tempestades passageiras no destino do mundo.

739. Esses flagelos destruidores têm. utilidade do ponto de vista físico; malgrado os males que ocasionam?

Sim, eles inodificam algumas vezes o estado de uma região; mas o bem que deles resulta só é geralmente sentido pelas gerações futuras.

740. Os flagelos não seriam igualmente provas morais para o homem,

pondo-o às voltas com necessidades mais duras?

Os flagelos são provas que proporcionam ao homem a ocasião de exercitar a inteligência, de mostrar a sua paciência e a sua resignação ante a vontade de Deus, ao mesmo tempo que lhe permitem desenvolver os sentimentos de abnegação, de desinteresse próprio e de amor ao próximo, se ele não for dominado pelo egoísmo.

741. E dado ao homem conjurar os flagelos que o afligem?

Sim, em parte, mas não como geralmente se pensa. Muitos flagelos são a conseqüência de sua própria imprevidência. A medida que ele adquire conhecimentos e experiências pode conjurá-los, quer dizer, preveni-los, se souber pesquisar-lhes as causas. Mas entre os males que afligem a Humanidade, há os que são de natureza geral e pertencem aos desígnios da Providência. Desses, cada indivíduo recebe; em menor ou maior proporção, a parte que lhe cabe, não lhe sendo possível opor nada mais que a resignação à vontade de Deus. Mas ainda esses males são geralmente agravados pela indolência do homem.

Entre os flagelos destruidores, naturais e independentes do homem, devem ser colocados em primeira linha a peste, a fome, as inundações, as intempéries fatais à produção da terra. Mas o homem não achou na Ciência, nos trabalhos de arte, no aperfeiçoamento da agricultura, nos afolhamentos e nas irrigações,

no estudo das condições higiênicas os meios de neutralizar ou pelo menos de atenuar tantos desastres? Algumas regiões antigamente devastadas por terríveis flagelos não estão hoje resguardadas? Que não fará o homem, portanto, pelo seu bem-estar material, quando souber aproveitar todos os recursos da sua inteligência e quando, ao cuidado da sua preservação pessoal souber aliar o sentimento de uma verdadeira caridade para com os semelhantes? (Ver item 707).

III— Guerras

742.Qual a causa que leva o homem à guerra?

Predominância da natureza animal sobre a espiritual e satisfação das paixões. No estado de barbárie os povos só conhecem o direito do mais forte, e é por isso que a guerra, para eles, é um estado normal. A medida que o homem progride ela se torna menos freqüente, porque ele evita as suas causas, e quando ela se faz necessária ele sabe adicionar-lhe humanidade.

743. A guerra desaparecerá um dia da face da Terra?

Sim, quando os homens compreenderem a justiça e praticarem a lei de Deus. Então, todos os povos serão irmãos.

744. Qual o objetivo da Providência ao tornar a guerra necessária?

A liberdade e o progresso.

744-a. Se a guerra deve ter como efeito conduzir à liberdade, como se

explica que ela tenha geralmente por fim e por resultado a escravização?

Escravização momentânea para sovar os povos, a fim de fazê-los andar mais depressa.

745. Que pensar daquele que suscita a guerra em seu proveito?

Esse é o verdadeiro culpado e necessitará de muitas existências para expiar todos os assassínios de que foi causa, porque responderá por cada homem cuja morte tenha causado para satisfazer a sua ambição.

IV — Assassínio

746. O assassínio é um crime aos olhos de Deus?

Sim, um grande crime, pois aquele que tira a vida a um semelhante interrompe uma vida de expiação ou de missão, e nisso está o mal.

747. Há sempre no assassínio o mesmo grau de culpabilidade?

Já o dissemos: Deus é justo e julga mais a intenção do que o fato.

748. Deus escusa o assassínio em caso de legítima defesa?

Só a necessidade o pode escusar; mas, se pudermos preservar a nossa vida sem atentar contra a do agressor, é o que devemos fazer.

749. O homem é culpável pelos assassínios que comete na guerra?

Não, quando é constrangido pela força; mas é responsável pelas crueldades que comete: Assim também o seu sentimento de humanidade será levado em conta.

750.Qual é o mais culpável aos olhos de Deus, o parricídio ou o infanticídio?

— Um e outro o são igualmente, porque todo crime é crime.

751.Por que entre certos povos, já adiantados do ponto de vista intelectual, o infanticídio é um costume e consagrado pela legislação?

— O desenvolvimento intelectual não acarreta a necessidade do bem; o Espírito de inteligência superior pode ser mau; é aquele que muito viveu sem se melhorar: ele o sabe.

V — Crueldade

752.Podemos ligar o sentimento de crueldade ao instinto de destruição?

— E o próprio instinto de destruição no que ele tem de pior, porque, se a

destruição é às vezes necessária, a crueldade jamais o é. Ela é sempre a conseqüência de uma natureza má.

753. Por que motivo a crueldade é o caráter dominante dos povos primitivos?

— Entre os povos primitivos, como os chamas, a matéria sobrepuja o espírito. Eles se entregam aos instintos animais e como não têm outras necessidades além das corpóreas cuidam apenas da sua conservação pessoal. É isso que geralmente os torna cruéis. Além disso, os povos de desenvolvimento imperfeito estão sob o domínio de Espíritos igualmente imperfeitos que lhes

são simpáticos, até que povos mais adiantados venham destruir ou arrefe,cer

essa influência.

754. A crueldade não decorre da falta de senso moral?

Dize que o senso moral não está desenvolvido, mas não que está ausente; porque ele existe, em princípio, em todos os homens; é esse senso moral que as transforma mais tarde em seres bons e humanos. Ele existe no selvagem como o princípio do aroma no botão de uma flor que ainda não se abriu.

Todas as faculdades existem no homem em estado rudimentar ou latente e se desenvolvem segundo as circunstâncias mais ou menos favoráveis. O desenvolvimento excessivo de umas impede ou neutraliza o de outras. A superexitação dos instintos materiais asfixia, por assim dizer, o senso moral, como o desenvolvimento deste arrefece pouco a pouco as faculdades puramente animais.

755. Como se explica que nas civilizações mais adiantadas existam criaturas às vezes tão cruéis como os selvagens?

Da mesma maneira que numa árvore carregada de bons frutos existem os temporãos. Elas são, se quiseres, selvagens que só têm da civilização a aparência, lobos extraviados em meio de cordeiros. Os Espíritos de uma ordem inferior, muito atrasados, podem encarnar-se entre homens adiantados com a esperança de também se adiantarem; mas, se a prova for muito pesada,

a natureza primitiva reage.

756. A sociedade dos homens de bem será um dia expurgada dos malfeitores?

— A Humanidade progride. Esses homens dominados pelo instinto do mal, que se encontram deslocados entre os homens de bem, desaparecerão pouco a pouco como o mau grão é separado do bom quando joeirado. Mas renascerão com outro invólucro. Então, com mais experiência, compreenderão melhor o bem e o mal. Tens um exemplo nas plantas e nos animais que o homem aprendeu como aperfeiçoar, desenvolvendo-lhes qualidades novas. Pois bem:

ésó depois de muitas gerações que o aperfeiçoamento se torna completo. Esta

éa imagem das diversas existências do homem.

VI — Duelo

757. O duelo pode ser considerado como um caso de legítima defesa?

Não; é um assassínio e um costume absurdo, digno dos bárbaros. Numa civilização mais avançada e mais moral o homem compreenderá que o duelo é tão ridículo quanto os combates antigamente encarados como "o juízo de Deus".

758. O duelo pode ser considerado como um assassínio por parte daquele que, conhecendo a sua própria fraqueza, está quase certo de sucumbir?

É um suicídio.

758-a. E quando as probabilidades são iguais, é um assassínio ou um suicídio?

— É um e outro.

Em todos os casos, mesmo naqueles em que as possibilidades são iguais, o duelista é culpável porque atenta friamente e com propósito deliberado contra a vida de seu semelhante. Em segundo lugar, porque expõe a sua própria vida inutilmente e sem proveito para ninguém.

759. Qual o valor do que se chama o ponto de honra em matéria de duelo?

— O do orgulho e da vaidade, duas chagas da Humanidade.

759-a. Mas não há casos em que a honra está verdadeiramente empenhada e a recusa seria uma covardia?

— Isso depende dos costumes e dos usos. Cada país e cada século tem a respeito uma maneira diferente de ver. Quando os homens forem melhores e moralmente mais adiantados, compreenderão que o verdadeiro ponto de honra está acima das paixões terrenas e que não é matando ou se fazendo matar que se repara uma falta.

Há mais grandeza e verdadeira honra em se reconhecer culpado, quando se erra; ou em perdoar, quando se tem razão; e em todos os casos, em não se dar importância aos insultos que não podem atingir-nos.

VII — Pena de Morte

760. A pena de morte desaparecerá um dia da legislação humana?

A pena de morte desaparecerá incontestavelmente e sua supressão assinalará um progresso da Humanidade. Quando os homens forem mais esclarecidos, a pena de morte será completamente abolida na Terra. Os homens não terão mais necessidade de ser julgados pelos homens. Falo de uma época que ainda está muito longe de vós.

O progresso social ainda deixa muito a desejar, mas seríamos injustos para com a sociedade moderna se não víssemos um progresso nas restrições impostas à pena de morte entre os povos mais adiantados, e à natureza dos crimes aos quais se limita a sua aplicação. Se compararmos as garantias de que a justiça se esforça para cercar hoje o acusado, a humanidade com que o trata, mesmo quando reconhecidamente culpado, com o que se praticava em tempos que não vão muito longe, não poderemos deixar de reconhecer a via progressiva pela qual a Humanidade avança.

761. A lei de conservação dá ao homem o direito de preservar a sua própria vida; não aplica ele esse direito, quando elimina da sociedade um membro perigoso?

Há outros meios de se preservar do perigo, sem matar. É necessário, aliás, abrir e não fechar ao criminoso a porta do arrependimento.

762. Se a pena de morte pode ser banida das sociedades civilizadas, não foi

entretanto uma necessidade em tempos menos adiantados?

Necessidade não é o termo. O homem sempre julga uma coisa necessária quando não encontra nada melhor. Mas, à medida que se esclarece, vai compreendendo melhor o que é justo ou injusto e repudia os excessos cometidos nos tempos de ignorância, em nome da justiça.

763. A restrição dos casos em que se aplica a pena de morte é um índice do progresso da civilização?

Podes duvidar disso? Não se revolta o teu Espírito lendo os relatos dos morticínios humanos que antigamente se faziam em nome da justiça e freqüentemente em honra à Divindade; das torturas a que se submetia o condenado e mesmo o acusado, para lhe arrancar, a peso de sofrimento, a confissão de um crime que ele muitas vezes não havia cometido? Pois bem; se tivesses vivido naqueles tempos acharias tudo natural, e talvez, tivesses feito o mesmo. É assim que o que parece justo numa época parece bárbaro em outra. Somente as leis divinas são eternas. As leis humanas modificam-secom o progresso. E se modificarão ainda, até que sejam colocadas em harmonia com as leis divinas.

764 . Jesus disse: "Quem matar pela espada perecerá pela espada". Essas palavras não representam a consagração da pena de talião? E a morte imposta ao assassino não é a aplicação dessa pena?

Tomai tento! Estais equivocados quanto a estas palavras, como sobre muitas outras. A pena de talião é a justiça de Deus; é ele quem a aplica. Todos vós sofreis a cada instante essa pena, porque sois punidos naquilo em que pecais, nesta vida ou noutra. Aquele que fez sofrer o seu semelhante estará numa situação em que sofrerá o mesmo. É este o sentido das palavras de Jesus. Pois não vos disse também: "Perdoai aos vossos inimigos"? E não vos ensinou a pedir a Deus que perdoe as vossas ofensas da maneira que perdoastes, ou seja, na mesma proporção em que houverdes perdoado? Compreendei bem isso.

765. Que pensar da pena de morte imposta em nome de Deus?

Isso equivale a tomar o lugar de Deus na prática da justiça. Os que agem assim revelam quanto estão longe de compreender a Deus e quanto têm ainda a expiar. É um crime aplicar a pena de morte em nome de Deus, e os que o fazem são responsáveis por esses assassinatos.

Capítulo VII

VI — Lei de Sociedade

I — Necessidade da Vida Social 766. A vida social é natural?

— Certamente. Deus fez o homem para viver em sociedade. Deus não deu

inutilmente ao homem a palavra e todas as outras faculdades necessárias à

vida de relação.

767. O isolamento absoluto é contrário à lei natural?

Sim, pois os homens buscam a sociedade por instinto e devem todos concorrer para o progresso, ajudando-se mutuamente.

768. O homem, ao buscar a sociedade, obedece apenas a um sentimento pessoal ou há também nesse sentimento uma finalidade providencial, de ordem geral?

O homem deve progredir, mas sozinho não o pode fazer porque não possui todas as faculdades: precisa do contato dos outros homens. No isolamento, ele se embrutece e se estiola.

Nenhum homem dispõe de faculdades completas e é pela união social que eles se completam uns aos outros, para assegurarem, seu próprio bem-estar e progredirem. Eis porque, tendo necessidade uns dos outros, são feitos para viver em sociedade e não isolados.

II — Vida de Isolamento. Voto de Silêncio

769. Concebe-se que, como princípio geral, a vida social esteja nas leis da Natureza. Mas como todos os gostos são também naturais, por que o do isolamento absoluto seria condenável, se o homem encontra nele satisfação?

— Satisfação egoísta. Há também homens que encontram satisfação na

embriaguez; aprovas isso? Deus não pode considerar agradável uma vida em

que o homem se condena a não ser útil a ninguém.

770.Que pensar dos homens que vivem em reclusão absoluta para fugirem ao contato pernicioso do mundo?

— Duplo egoísmo.

770-a. Mas se esse retraimento tem por fim uma expiação, com a imposição de penosa renúncia, não é meritório?

— Fazer maior bem do que o mal que se tenha feito, essa é a melhor expiação. Com esse retraimento, evitando um mal o homem cai em outro, pois esquece a lei de amor e caridade.

771.Que pensar dos que fogem do mundo para se devotarem ao amparo dos infelizes?

— Estes se elevam ao se rebaixarem. Têm o duplo mérito de se colocarem acima dos prazeres materiais e de fazerem o bem pelo cumprimento da lei do trabalho.

771-a. E os que procuram no retiro a tranqüilidade necessária a certos trabalhos?

— Esse não é o retiro absoluto do egoísta; eles não se isolam da sociedade, pois trabalham para ela.

772.Que pensar do voto de silêncio prescrito por algumas seitas, desde a

mais alta Antigüidade?

— Perguntais antes se a palavra é natural e porque Deus a deu. Deus condena o abuso e não o uso das faculdades por ele concedidas. Não obstante, o silêncio é útil porque no silêncio te recolhes. teu espírito se torna mais livre e pode então entrar em comunicação conosco. Mas o voto de silêncio é uma tolice. Sem dúvida, os que consideram essas privações voluntárias como atos de virtude têm boa intenção, mas se enganam por não compreenderem suficientemente as verdadeiras leis de Deus.

O voto de silêncio absoluto, da mesma maneira que o voto de isolamento priva o homem das relações sociais que lhe podem fornecer as ocasiões de fazer o bem e de cumprir a lei do progresso.

III— Laços de Família

773.Por que pais e filhos não se reconhecem entre os animais, quando os últimos não precisam mais de cuidados?

— Os animais vivem a vida material e não a moral. A ternura da mãe pelos filhos tem por princípio o instinto de conservação aplicado aos seres que deu à luz. Quando esses seres podem cuidar de si mesmos sua tarefa está cumprida e a Natureza nada mais lhe exige. É por isso que ela os abandona para se ocupar de outros que chegam.

774.Há pessoas que deduzem, do abandono das crias pelos animais, que os

laços de família entre os homens não são mais que o resultado de costumes

sociais e não uma lei natural. Que devemos pensar disso?

O homem tem outro destino que não o dos animais; por que, pois, querer sempre identificá-los? Para ele, há outra coisa além das necessidades físicas: há a necessidade de progresso. Os liames sociais são necessários ao progresso e os laços de família resumem os liames sociais: eis porque eles constituem uma lei natural. Deus quis que os homens, assim, aprendessem aamar-se como irmãos. (Ver item 205).

775. Qual seria para a sociedade o resultado do relaxamento dos laços de família?

Uma recrudescência do egoísmo.

Capítulo VIII

VII — Lei do Progresso

I — Estado Natural

776. O estado natural e a lei natural são a mesma coisa?

— Não; o estado natural é o estado primitivo. A civilização é incompatível com o estado natural, enquanto a lei natural contribui para o progresso da Humanidade.

O estado natural é a infância da Humanidade e o ponto de partida do seu desenvolvimento intelectual e moral. O homem, sendo perfectível e trazendo

em si o germe de seu melhoramento, não foi destinado a viver perpetuamente no estado natural, como não foi destinado a viver perpetuamente na infância. O estado natural é transitório e o homem o deixa pelo progresso e a civilização. A lei natural, pelo contrário, rege toda a condição humana e o homem progride na medida em que melhor compreende e melhor pratica essa lei.

777.No estado natural, tendo menos necessidades, o homem não sofre todas as tribulações que cria para si mesmo num estado mais adiantado. Que pensar da opinião dos que consideram esse estado como o da mais perfeita felicidade terrena?

— Que queres? É a felicidade do bruto. Há pessoas que não compreendem outra. É ser feliz à maneira dos animais. As crianças também são mais felizes que os adultos.

778.O homem pode retrogradar para o estado natural?

— Não, o homem deve progredir sem cessar e não pode voltar ao estado de infância. Se ele progride, é que Deus assim o quer; pensar que ele pode retrogradar para a sua condição primitiva seria negar a lei do progresso.

II— Marcha do Progresso

779.O homem tira de si mesmo a energia progressiva ou o progresso não é mais do que o resultado de um ensinamento?

O homem se desenvolve por si mesmo, naturalmente, mas nem todos progridem ao mesmo tempo e da mesma maneira; é então que os mais adiantados ajudam os outros a progredir, pelo contato social.

780. O progresso moral segue sempre o progresso intelectual?

É a sua conseqüência, mas não o segue sempre imediatamente. (Ver itens 192-365).

780-a. Como o progresso intelectual pode conduzir ao progresso moral?

Dando a compreensão do bem e do mal, pois então o homem pode escolher. O desenvolvimento do livre arbítrio segue-se ao desenvolvimento da inteligência e aumenta a responsabilidade do homem pelos seus atos.

780-b. Como se explica, então, que os povos mais esclarecidos sejam freqüentemente os mais pervertidos?

O progresso completo é o alvo a atingir, mas os povos, como os indivíduos, não chegam â ele senão passo a passo. Até que tenham desenvolvido o senso moral eles podem servir-se de inteligência para fazer o mal. A moral e a inteligência são duas forças que não se equilibram senão com o tempo. (Ver itens 365-751).

781. É permitido ao homem deter a marcha do progresso?

Não, mas pode entravá-la algumas vezes.

781-a. Que pensar dos homens que tentam deter a marcha do progresso e

fazer retrogradar a Humanidade?

Pobres seres que Deus castigará; serão arrastados pela torrente que pretende deter.

782. Não há homens que entravam o progresso de boa-fé, acreditandofavorecê-lo, porque o vêem segundo o seu ponto de vista e freqüentemente onde ele não existe?

Pequena pedra posta sob a roda de um grande carro sem impedi-lo de avançar.

783. O aperfeiçoamento da Humanidade segue sempre uma marcha progressiva e lenta?

— Há o progresso regular e lento que resulta da força das circunstâncias; mas quando um povo não avança bastante rápido, Deus lhe provoca, de tempos a tempos, um abalo físico ou moral que o transforma.

Sendo o progresso uma condição da natureza humana ninguém tem o poder de se opor a ele. É uma força viva que as más leis podem retardar, mas não asfixiar. Quando essas leis se tornam de todo incompatíveis com o progresso ele as derruba com todos os que a querem manter, e assim será até que o homem harmonize as suas leis com a justiça divina, que deseja o bem para todos e não as leis feitas para o forte em prejuízo do fraco.

O homem não pode permanecer perpetuamente na ignorância, porque deve

chegar ao fim determinado pela Providência: ele se esclarece pela própria força das circunstâncias. As revoluções morais, como as revoluções sociais se infiltram pouco a pouco nas idéias, germinam ao longo dos séculos e depois explodem subitamente, fazendo ruir o edifício carcomido do passado, que não se encontra mais de acordo com as necessidades novas e as novas aspirações.

O homem geralmente não percebe, nessas comoções, mais do que a desordem e a confusão momentâneas que o atingem nos seus interesses materiais, mas aquele que eleva o seu pensamento acima dos interesses pessoais admira os desígnios da Providência, que do mal fazem surgir o bem. São a tempestade e o furacão que saneiam a atmosfera, depois de a haverem revolvido.

784.A perversidade do homem é bastante intensa, e não parece que ele está recuando, em lugar de avançar, pelo menos do ponto de vista moral?

— Enganas-te. Observa bem o conjunto e verás que ele avança, pois vai compreendendo melhor o que é o mal, e dia a dia corrige as seus abusos. E preciso que haja excesso do mal, para fazer-lhe compreender a necessidade do bem e das reformas.

785.Qual o maior obstáculo ao progresso?

— São o orgulho e o egoísmo. Quero referir-me ao progresso moral, porque o intelectual avança sempre. Este parece, aliás, à primeira vista, duplicar a

intensidade daqueles vícios, desenvolvendo a ambição e o amor das riquezas, que por sua vez incitam o homem às pesquisas que lhe esclarecem o Espírito. É assim que tudo se relaciona no mundo moral como no físico e que do próprio mal pode sair o bem. Mas esse estado de coisas durará apenas algum tempo; modificar-se-á à medida que o homem compreender melhor que além do gozo dos bens terrenos existe uma felicidade infinitamente maior e infinitamente mais durável. (Vede Egoísmo, cap. XII).

Há duas espécies de progresso que mutuamente se apóiam e entretanto não marcham juntos: o progresso intelectual e o progresso moral. Entre os povos civilizados o primeiro recebe em nosso século todos os estímulos desejáveis, e por isso atingiu um grau até hoje desconhecido. Seria necessário que o segundo estivesse no mesmo nível. Não obstante, se compararmos os costumes sociais de alguns séculos atrás com os de hoje teremos de ser cegos para negar que houve progresso moral. Por que, pois, a marcha ascendente da moral deveria mostrar-se mais lenta que a da inteligência? Por que não haveria entre o século décimo nono e o vigésimo quarto tanta diferença nesse terreno como entre o décimo quarto e o décimo nono? Duvidar disso seria pretender que a Humanidade tivesse atingido o apogeu da perfeição, o que é absurdo, ou que ela não é moralmente perfectível, o que a experiência desmente.

III — Povos Degenerados

786.A História nos mostra uma multidão de povos que após terem sido convulsionados recaíram na barbárie. Onde está nesse caso o progresso?

— Quando tua casa ameaça cair, tu a derrubas para a reconstruir de maneira mais sólida e mais cômoda; mas até que ela esteja reconstruída haverá desarranjos e confusões na tua morada.

— Compreende isto também: és pobre e moras num casebre, mas ficas rico e o deixas para morar num palácio. Depois um pobre diabo, como o eras, vem tomar o teu lugar no casebre e se sente muito contente, pois antes não possuía um abrigo. Pois bem! Compreende então que os Espíritos encarnados nesse povo degenerado não são mais os que o constituíam nos tempos do seu esplendor. Aqueles, logo que se tornaram mais adiantados,mudaram-se para habitações mais perfeitas e progrediram, enquanto outros, menos avançados, tomaram o seu lugar, que por sua vez também deixarão.

787.Não há raças rebeldes ao progresso por sua própria natureza?

— Sim, mas dia a dia elas se aniquilam corporalmente.

787-a. Qual será o destino futuro das almas que animam essas raças?

— Chegarão à perfeição, como todas as outras, passando por várias existências. Deus não deserda a ninguém.

787-b. Então os homens mais civilizados podem ter sido selvagens e antropófagos?

— Tu mesmo o foste, mais de uma vez, antes de seres o que és.

788.Os povos são individualidades coletivas que passam pela infância, a idade madura e a decrepitude, como os indivíduos. Essa verdade constatada pela História não nos permite supor que os povos mais adiantados deste século terão o seu declínio e o seu fim, como os da Antigüidade?

— Os povos que só vivem materialmente, cuja grandeza se funda na força e na extensão territorial, crescem e morrem porque a força de um povo se esgota como a de um homem; aqueles cujas leis egoístas atentam contra o progresso das luzes e da caridade, morrem porque a luz aniquila as trevas e a caridade mata o egoísmo. Mas há para os povos, como para os indivíduos, a vida da alma, e aqueles, cujas leis se harmonizam com as leis eternas do Criador, viverão e serão o farol dos outros povos.

789.O progresso reunirá um dia todos os povos da Terra numa só nação?

— Não em uma só nação, o que é impossível, pois da diversidade dos climas

nascem costumes e necessidades diferentes, que constituem as nacionalidades. Assim serão sempre necessárias leis apropriadas a esses costumes e a essas necessidades. Mas a caridade não conhece latitudes e não faz distinção dos homens pela cor. Quando a lei de Deus constituir por toda parte a base da lei humana, os povos praticarão a caridade de um para outro, como os indivíduos de homem para homem, vivendo felizes e em paz, porque ninguém tentará

fazer mal ao vizinho ou viver às suas expensas.

A Humanidade progride através dos indivíduos que se melhoram pouco a pouco e se esclarecem; quando estes se tornam numerosos, tomam a dianteira e arrastam os outros. De tempos em tempos surgem os homens de gênio, que lhes dão um impulso; e depois; homens investidos de autoridade, instrumentos de Deus, que em alguns anos a fazem avançar de muitos séculos.

O progresso dos povos faz ainda ressaltar a justiça da reencarnação. Os homens de bem fazem louváveis esforços para ajudar uma nação a avançar moral e intelectualmente; a nação transformada será mais feliz neste mundo e no outro, compreende-se; mas, durante a sua marcha lenta através dos séculos, milhares de indivíduos morrem diariamente, e qual seria a sorte de todos esses que sucumbem durante o trajeto? Sua inferioridade relativa os priva da felicidade reservada aos que chegam por último? Ou também a sua felicidade é relativa? A justiça divina não poderia consagrar semelhante injustiça. Pela pluralidade das existências, o direito à felicidade é sempre o mesmo para todos, porque ninguém é deserdado pelo progresso. Os que viveram no tempo da barbárie, podendo voltar no tempo da civilização, no mesmo povo ou em outro, é claro que todos se beneficiam da marcha ascendente.

Mas o sistema da unicidade da existência apresenta neste caso outra dificuldade. Com esse sistema, a alma é criada no momento do nascimento, de

maneira que um homem é mais adiantado que outro porque Deus criou para ele uma alma mais adiantada. Por que esse favor? Que mérito tem ele, que não viveu mais do que o outro, e geralmente menos, para ser dotado de uma alma superior? Mas essa não é a principal dificuldade. Uma nação passa, em mil anos, da barbárie à civilização. Se os homens vivessem mil anos poderiaconceber-se que, nesse intervalo, tivessem tempo de progredir; mas diariamente morrem criaturas em todas as idades, renovando-se sem cessar, de maneira que dia a dia as vemos aparecerem e desaparecerem. No fim de um milênio não há mais traços dos antigos habitantes; a nação, de bárbara que era tornou-se civilizada: mas quem foi que progrediu? Os indivíduos outrora bárbaros? Esses já estão mortos há muito tempo. Os que chegaram por último? Mas se a sua alma foi criada no momento do nascimento, essas almas não existiriam no tempo da barbárie e é necessário admitir, então, que os esforços desenvolvidos para civilizar um povo têm o poder, não de melhorar as almas imperfeitas, mas de fazer Deus criar outras almas mais perfeitas.

Comparemos esta teoria do progresso com a que nos foi dada pelos Espíritos. As almas vindas no tempo da civilização tiveram a sua infância, como todas as outras mas já viveram e chegam adiantadas em conseqüência de um progresso anterior; elas vêm atraídas por um meio que lhes é simpático e que está em relação com o seu estado atual. Dessa maneira, os cuidados

dispensados à civilização de um povo não têm por efeito determinar a criação futura de almas mais perfeitas, mas atrair aquelas que já progrediram, seja as que já viveram nesse mesmo povo em tempos de barbárie, seja as que procedem de outra parte. Aí temos ainda a chave do progresso de toda a Humanidade. Quando todos os povos estiverem no mesmo nível quanto ao sentimento do bem, a Terra só abrigará bons Espíritos, que viverão em união fraterna. Os maus, tendo sido repelidos e deslocados irão procurar nos mundos inferiores o meio que lhes convém, até que se tornem dignos de voltar ao nosso meio, transformados. A teoria vulgar tem ainda esta conseqüência: os trabalhos de melhoramento social só aproveitam às gerações presentes e futuras; seu resultado é nulo para as gerações passadas, que cometeram o erro de chegar muito cedo e só avançaram na medida de suas forças, sob a carga dos seus atos de barbárie. Segundo a doutrina dos Espíritos, os progressos ulteriores aproveitam igualmente a essas gerações, que revivem nas condições melhores e podem aperfeiçoar-se no seio da civilização. (Ver item 222).

IV — Civilização

790. A civilização é um progresso, ou, segundo alguns filósofos, uma decadência da Humanidade?

— Progresso incompleto, pois o homem não passa subitamente da infância à maturidade.

790-a. É razoável condenar-se a civilização?

— Condenai antes os que abusam dela e não a obra de Deus.

791.A civilização se depurará um dia, fazendo desaparecer os males que tenha produzido?

— Sim, quando a moral estiver tão desenvolvida quanto a inteligência. O fruto não pode vir antes da flor.

792.Porque a civilização não realiza imediatamente todo o bem que ela poderia produzir?

— Porque os homens ainda não se encontram em condições, nem dispostos a obter esse bem.

792-a. Não seria ainda porque, criando necessidades novas, ela excita novas paixões?

— Sim, e porque todas as faculdades do Espírito não progridem ao mesmo tempo; é necessário tempo para tudo. Não podeis esperar frutos perfeitos de uma civilização incompleta. (751-780).

793.Por que sinais se pode reconhecer uma civilização completa?

— Vós a reconhecereis pelo desenvolvimento moral. Acreditais estar muito adiantados por terdes feito grandes descobertas e invenções maravilhosas; porque estais melhor instalados e melhor vestidos que os vossos selvagens; mas só tereis verdadeiramente o direito de vos dizer civilizado quando

houveres banido de vossa sociedade os vícios que a desonram e quando passardes a viver como irmãos, praticando a caridade cristã. Até esse momento não sereis mais do que povos esclarecidos, só tendo percorrido a primeira fase da civilização.

A civilização tem os seus graus, como todas as coisas. Uma civilização incompleta é um estado de transição que engendra males especiais, desconhecidos no estado primitivo, mas nem por isso deixa de constituir um progresso natural, necessário, que leva consigo mesmo o remédio para aqueles males. A medida que a civilização se aperfeiçoa, vai fazendo cessar alguns dos males que engendrou, e esses males desaparecerão com o progresso moral.

De dois povos que tenham chegado ao ápice da escala social, só poderádizer-se o mais civilizado, na verdadeira acepção do termo, aquele em que se encontre menos egoísmo, cupidez e orgulho; em que os costumes sejam mais intelectuais e morais do que materiais; em que a inteligência possadesenvolver-se com mais liberdade; em que exista mais bondade, boa-fé,benevolência e generosidade recíprocas; em que os preconceitos de casta e de nascimento sejam menos enraizados, porque esses pré-juízos são incompatíveis com o verdadeiro amor do próximo; em que as leis não consagrem nenhum privilégio e sejam as mesmas para o último como para o primeiro; em que a justiça se exerça com o mínimo de parcialidade; em que o

fraco sempre encontre apoio contra o forte; em que a vida do homem, suas crenças e suas opiniôes sejam melhor respeitadas; em que haja menos desgraçados; e, por fim, em que todos os homens de boa vontade estejam sempre seguros de não lhes faltar o necessário.

V — Progresso da Legislação Humana

794.A sociedade poderia ser regida somente pelas leis naturais, sem o recurso das leis humanas?

— Poderia, se os homens as compreendessem bem e quisessem praticá-las;então, seriam suficientes. Mas a sociedade tem as suas exigências e precisa de leis particulares.

795.Qual a causa da instabilidade das leis humanas?

— Nos tempos de barbárie são os mais fortes que fazem as leis, e as fazem em seu favor. Há necessidade de modificá-las à medida que os homens vão melhor compreendendo a justiça. As leis humanas são mais estáveis à medida que se aproximam da verdadeira justiça,quer dizer, à medida que são feitas para todos e se identificam com a lei natural.

A civilização criou novas necessidades para o homem e essas necessidades são relativas à posição social de cada um. Foi necessário regular os direitos e os deveres dessas posições através de leis humanas. Mas, sob a influência das suas paixões, o homem criou, muitas vezes, direitos e deveres imaginários,

condenados pela lei natural e que os povos apagam dos seus códigos à proporção que progridem. A lei natural é imutável e sempre a mesma para todos; a lei humana é variável e progressiva: somente ela pode consagrar, na infância da Humanidade, o direito do mais forte.

796.A severidade das leis penais não é uma necessidade, no estado atual da sociedade?

— Uma sociedade depravada tem certamente necessidade de leis mais severas. Infelizmente essas leis se destinam antes a punir o mal praticado do que a cortar a raiz do mal. Somente a educação pode reformar os homens, que assim não terão mais necessidades de leis tão rigorosas.

797.Como o homem poderia ser levado a reformar as suas leis?

Isso acontecerá naturalmente, pela força das circunstâncias e pela influência das pessoas de bem, que o conduzem na senda do progresso. Há muitas que já foram reformadas e muitas outras ainda o serão. Espera!

VI — Influência do Espiritismo no Progresso

798. O Espiritismo se tornará uma crença comum ou será apenas a de algumas pessoas?

Certamente ele se tornará uma crença comum e marcará uma nova era na História da Humanidade, porque pertence à Natureza e chegou o tempo em que deve tomar lugar nos conhecimentos humanos. Haverá, entretanto,

grandes lutas a sustentar, mais contra os interesses do que contra a convicção, porque não se pode dissimular que há pessoas interessadas emcombatê-lo, umas por amor-próprio e outras por motivos puramente materiais. Mas os seus contraditores, ficando cada vez mais isolados, serão afinal forçados a pensar como todos os outros, sob pena de se tornarem ridículos.

As idéias só se transformam com o tempo e não subitamente; elas se enfraquecem de geração em geração e acabam por desaparecer com os que as professavam e que são substituídos por outros indivíduos imbuídos de novos princípios, como se verifica com as idéias políticas. Vede o paganismo; não há ninguém, certamente, que professe hoje as idéias religiosas daquele tempo; não obstante, muitos séculos depois do advento do Cristianismo ainda havia deixado traços que somente a completa renovação das raças pode apagar. 0 mesmo acontecerá com o Espiritismo; ele faz muito progresso, mas haverá ainda, durante duas ou três gerações, um fenômeno de incredulidade que só o tempo fará desaparecer. Contudo, sua marcha será mais rápida que a do Cristianismo, porque é ó próprio Cristianismo que lhe abre as vias sobre as quais ele se desenvolverá. O Cristianismo tinha que destruir; o Espiritismo só tem que construir.

799. De que maneira o Espiritismo pode contribuir para o progresso?

— Destruindo o materialismo, que é uma das chagas da sociedade, ele faz os

homens compreenderem onde está o seu verdadeiro interesse. A vida futura, não estando mais velada pela dúvida, o homem compreenderá melhor que pode assegurar o seu futuro através do presente. Destruindo os preconceitos de seita, de casta e de cor ele ensina aos homens a grande solidariedade que os deve unir corno irmãos.

800.Não é de temer que o Espiritismo não consiga vencer a indiferença dos homens e o seu apego às coisas materiais?

— Seria conhecer bem pouco os homens, pensar que uma causa qualquer pudesse transformá-los como por encanto. As idéias se modificam pouco a pouco, com os indivíduos, e são necessárias gerações para que se apaguem completamente os traços dos velhos hábitos. A transformação, portanto, não pode operar-se a não ser com o tempo, gradualmente, pouco a pouco. Em cada geração uma parte do véu se dissipa. O Espiritismo vem rasgá-lo de uma vez, mas mesmo que só tivesse o efeito de corrigir um homem de um só dos seus defeitos, isso seria um passo que ele o faria dar, e por isso mesmo um grande bem, porque esse primeiro passo lhe tornaria os outros mais fáceis.

801.Por que os Espíritos não ensinaram desde todos os tempos o que ensinam hoje?

— Não ensinais às crianças o que ensinais aos adultos e não dais ao recém- nascido um alimento que ele não possa digerir. Cada coisa tem o seu tempo.

Eles ensinaram muitas coisas que os homens não compreenderam ou desfiguraram, mas que atualmente podem compreender. Pelo seu ensinamento, mesmo incompleto, prepararam o terreno para receber a semente que vai agora frutificar.

802. Desde que o Espiritismo deve marcar um progresso da Humanidade, por que os Espíritos não apressam esse progresso através de manifestações tão gerais e patentes que passam levar a convicção aos mais incrédulos?

— Desejaríeis milagres, mas Deus os semeia a mancheias nos vossos passos e tendes ainda os homens que os negam. O Cristo, ele próprio, convenceu os seus contemporâneos com os prodígios que realizou? Não vedes ainda hoje os homens negarem os fatos mais patentes que se passam aos seus olhos? Não tendes os que não acreditariam, mesmo quando vissem? Não, não é por meio de prodígios que Deus conduzirá os homens: Na sua bondade ele quer deixar- lhes o mérito de se convencerem através da razão.

Capitulo IX

VIII — Lei de Igualdade

I — Igualdade Natural

803. Todos os homens são iguais perante Deus?

— Sim, todos tendem para o mesmo fim e Deus fez as suas leis para todos.

Dizeis freqüentemente: "O sol brilha para todos", e com isso dizeis uma verdade maior e mais geral do que pensais.

Todos os homens são submetidos às mesmas leis naturais; todos nascem com a mesma fragilidade, estão sujeitos às mesmas dores e o corpo do rico se destrói como o do pobre. Deus não concedeu, portanto, superioridade natural a nenhum homem, nem pelo nascimento, nem pela morte: todos são iguais diante dEle.

II— Desigualdade de Aptidões

804.Por que Deus não deu as mesmas aptidões a todos os homens?

— Deus criou todos os Espíritos iguais, mas cada um deles viveu mais ou menos tempo e por conseguinte realizou mais ou menos aquisições; a diferença está no grau de experiência e na vontade, que é o livre arbítrio: daí decorre que uns se aperfeiçoam mais rapidamente, o que lhes dá aptidões diversas. A mistura de aptidões é necessária a fim de que cada um possa contribuir para os desígnios da Providência; nos limites do desenvolvimento de suas forças físicas e intelectuais: o que um não faz, o outro faz, e é assim que cada um tem a sua função útil. Além disso, todos os mundos sendo solidários entre si, é necessário que os habitantes dos mundos superiores, na sua maioria criados antes do vosso, venham habitar aqui para vos dar exemplo. (Ver item 361).

805.Passando de um mundo superior para um inferior o Espírito conserva integralmente as faculdades adquiridas?

— Sim, já o dissemos, o Espírito que progrediu não regride mais. Ele pode escolher, no estado de Espírito, um envoltório mais rude ou uma situação mais precária que a anterior, mas sempre para lhe servir de lição e ajudá-lo a progredir. (Ver item 180).

Assim, a diversidade das aptidões do homem não se relaciona com a natureza íntima de sua criação, mas com o grau de aperfeiçoamento a que ele tenha chegado como Espírito. Deus não criou, portanto, a desigualdade das faculdades, mas permitiu que os diferentes graus de desenvolvimento se mantivessem em contato a fim de que os mais adiantados pudessem ajudar os mais atrasados a progredir. E também a fim de que os homens, necessitando uns dos outros, compreendam a lei de caridade que os deve unir.

III — Desigualdades Sociais

806.A desigualdade das condições sociais é uma lei natural?

— Não; é obra do homem e não de Deus.806-a. Essa desigualdade desaparecerá um dia?

— Só as leis de Deus são eternas. Não a vês desaparecer pouco a pouco, todos os dias? Essa desigualdade desaparecerá juntamente com a

predominância do orgulho e do egoísmo, restando tão somente a desigualdade do mérito. Chegará um dia em que os membros da grande família dos filhos de Deus não mais se olharão como de sangue mais ou menos puro, pois somente o Espírito é mais puro ou menos puro, e isso não depende da posição social.

807.Que pensar dos que abusam da superioridade de sua posição social para oprimir o fraco em seu proveito?

— Esses merecem o anátema; infelizes que são! Serão oprimidos por sua vez e renascerão numa existência em que sofrerão tudo o que fizeram sofrer (Ver item 684).

IV — Desigualdade das Riquezas

808.A desigualdade das riquezas não tem sua origem na desigualdade das faculdades, que dão a uns mais meios de adquirir do que a outros?

— Sim e não. Que dizes da astúcia e do roubo.

808-a. A riqueza hereditária, entretanto, seria fruto das más paixões?

— Que sabes disso? Remonta à origem e verás se é sempre pura. Sabes se no princípio não foi o fruto de uma espoliação ou de uma injustiça? Mas, sem falar da origem, que pode ser má, crês que a cobiça de bens, mesmo os melhores adquiridos, e os desejos secretamente alimentados, de possuí-los o mais cedo possível, sejam sentimentos louváveis? Isto é o que Deus julga, e te

asseguro que o seu julgamento é mais severo que o dos homens.

809.Se uma fortuna foi mal adquirida, os herdeiros serão responsáveis por

isso?

— Sem dúvida eles não são responsáveis pelo mal que outros tenham feito, tanto mais que o podem ignorar, mas fica sabendo que muitas vezes uma fortuna se destina a um homem para lhe dar ocasião de reparar uma injustiça. Feliz dele se o compreender! E se o fizer em nome daquele que cometeu a injustiça a reparação será levada em conta para ambos, pois esse mesmo quase sempre é quem a provoca.

810.Sem fraudar a legalidade, podemos dispor dos nossos bens de maneira mais ou menos eqüitativa. Quem assim faz é responsável, depois da morte, pelas disposições testamentárias?

— Toda ação traz os seus frutos; os das boas ações são doces e os das outras são sempre amargos; sempre, entendei bem isso.

811.A igualdade absoluta das riquezas é possível e existiu alguma vez?

Não, não é possível. A diversidade das faculdades e dos caracteres se opõe a isso.

811-a. Há homens, entretanto, que crêem estar nisso o remédio para os males sociais; que pensais a respeito?

São sistemáticos ou ambiciosos e invejosos. Não compreendem que a

igualdade seria logo rompida pela própria força das circunstâncias. Combatei

o egoísmo, pois essa é a vossa chaga social, e não correi atrás de quimeras.

812.Se a igualdade das riquezas não é possível, acontece o mesmo com obem-estar?

— Não; mas o bem-estar é relativo e cada um poderia gozá-lo, se todos se entendessem bem... Porque o verdadeiro bem-estar consiste no emprego do tempo de acordo com a vontade e não em trabalhos pelos quais não se tem nenhum gosto. Como cada um tem aptidões diferentes, nenhum trabalho útil ficaria por fazer. O equilíbrio existe em tudo e é o homem quem o perturba.

812-a. E possível que todos se entendam?

— Os homens se entenderão quando praticarem a lei da justiça.

813.Há pessoas que caem nas privações e na miséria por sua própria culpa; a sociedade pode ser responsabilizada por isso?

— Sim, já o dissemos, ela é sempre a causa primeira dessas faltas; pois não lhe cabe velar pela educação moral dos seus membros? É freqüentemente a má educação que falseia o critério dessas pessoas, em lugar de asfixiar-lhesas tendências perniciosas. (Ver item 685).

V — Provas da Riqueza e da Miséria

814.Por que Deus concedeu a uns a riqueza e o poder e a outros a miséria?

— Para provar a cada um de uma maneira diferente. Aliás, vós o sabeis,

essas provas são escolhidas pelos próprios Espíritos, que muitas vezes

sucumbem ao realizá-las.

815.Qual dessas duas provas é a mais perigosa para o homem, a da desgraça ou a da riqueza?

— Tanto uma quanto a outra. A miséria provoca a lamentação contra a Providência, a riqueza leva a todos os excessos.

816.Se o rico sofre mais tentações, não dispõe também de mais meios para fazer o bem?

— É justamente o que nem sempre faz; torna-se egoísta, orgulhoso e insaciável; suas necessidades aumentam com a fortuna e julga não ter o bastante para si mesmo.

A posição elevada no mundo e a autoridade sobre os semelhantes são provas tão grandes e arriscadas quanto a miséria; porque, quanto mais o homem for rico e poderoso mais obrigações tem a cumprir, maiores são os meios de que dispõe para fazer o bem e o mal. Deus experimenta o pobre pela resignação e o rico pelo uso que faz de seus bens e do seu poder. A riqueza e o poder despertam todas as paixões que nos prendem à matéria e nos distanciam da perfeição espiritual. Foi por isso que Jesus disse: "Em verdade vos digo, é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar

no reino dos céus". (Ver item 266).

VI — Igualdade dos Direitos

do Homem e da Mulher

817.O homem e a mulher são iguais perante Deus e têm os mesmos direitos?

— Deus não deu a ambos a inteligência do bem e do mal e a faculdade de progredir?

818.De onde procede a inferioridade moral da mulher em certas regiões?

— Do domínio injusto e cruel que o homem exerceu sobre ela. Uma

conseqüência das instituições sociais e do abuso da força sobre a debilidade. Entre os homens pouco adiantados do ponto de vista moral a força é o direito.

819. Com que fim a mulher é fisicamente mais fraca do que o homem?

— Para lhe assinalar funções particulares. O homem se destina aos trabalhos rudes, por ser o mais forte; a mulher aos trabalhos suaves; e ambos a se ajudarem mutuamente nas provas de uma vida cheia de amarguras.

820. A debilidade física da mulher não a coloca naturalmente na dependência do homem?

— Deus deu a força a uns para proteger o fraco e não para o escravizar. Deus apropriou a organização de cada ser às funções que ele deve

desempenhar. Se deu menor força física à mulher, deu-lhe ao mesmo tempo

maior sensibilidade, em relação com a delicadeza das funções maternais e à

debilidade dos seres confiados aos seus cuidados.

821.As funções a que a mulher foi destinada pela Natureza têm tanta importância quanto as conferidas ao homem?

— Sim, e até maior; é ela quem lhe dá as primeiras noções da vida.

822.Os homens, sendo iguais perante a lei de Deus, devem sê-loigualmente perante a lei humana?

— Este é o primeiro princípio de justiça: "Não façais aos outros o que não quereis que os outros vos façam".

822-a , De acordo com isso, para uma legislação ser perfeitamente justa deve consagrar a igualdade de direitos entre a homem e a mulher?

— De direitos, sim; de funções, não. E necessário que cada um tenha um lugar determinado; que o homem se ocupe de fora e a mulher do lar, cada um segundo a sua aptidão. A lei humana, para ser justa, deve consagrar a igualdade de direitos entre o homem e a mulher; todo privilégio concedido a um ou a outro é contrário à justiça. A emancipação da mulher segue o processo da civilização, sua escravização marcha com a barbárie. Os sexos, aliás, só existem na organização física, pois os Espíritos podem tomar um e outro, não havendo diferenças entre eles a esse respeito. Por conseguinte, devem gozar dos mesmos direitos.

VII — Igualdade Perante o Túmulo

823.De onde vem o desejo de perpetuar a própria memória nos monumentos fúnebres?

— Derradeiro ato de orgulho.

823-a. Mas a suntuosidade dos monumentos fúnebres não é, na maioria das vezes, determinada pelos parentes que desejam honrar a memória do falecido, e não por este?

— Orgulho dos parentes, que querem honrar-se a si mesmos. Oh, sim, nem sempre é pelo morto que se fazem todas essas demonstrações, mas por amor- próprio, por consideração ao mundo e para exibição de riqueza. Crês que a lembrança de um ser querido seja menos durável no coração do pobre, porque ele só pode colocar uma flor sobre a sua tumba? Crês que o mármore salva do esquecimento aquele que foi inútil na Terra?

824.Reprovais de maneira absoluta as pompas fúnebres?

— Não. Quando homenageiam a memória de um homem de bem, são justas e de bom exemplo.

A tumba é o lugar de encontro de todos os homens e nela se findam impiedosamente todas as distinções humanas. É em vão que o rico tenta perpetuar a sua memória por meio de faustosos monumentos. O tempo os destruirá, como aos seus próprios corpos. Assim o quer a natureza. A

lembrança das suas boas e más ações será menos perecível que o seu túmulo. A pompa dos funerais não o lavará de suas torpezas e não o fará subir sequer um degrau na hierarquia espiritual. (Ver item 320 e seguintes).

Capítulo X

IX — Lei de Liberdade

I — Liberdade natural

825.Há posições no mundo em que o homem possa gabar-se de gozar de uma liberdade absoluta?

— Não, porque vós todos necessitais uns dos outros, os pequenos como os grandes.

826.Qual seria a condição em que o homem pudesse gozar de liberdade absoluta?

— A do eremita no deserto. Desde que haja dois homens juntos, há direitos a respeitar e não terão eles, portanto, liberdade absoluta.

827.A obrigação de respeitar os direitos alheios tira ao homem o direito de ser senhor de si?

— Absolutamente, pois esse é um direito que lhe vem da Natureza.

828.Como conciliar as opiniões liberais de certos homens com o seu freqüente despotismo no lar e com os seus subordinados?

— São os que possuem a compreensão da lei natural, mas contra-balançada

pelo orgulho e pelo egoísmo. Sabem o que devem fazer, quando não transformam os seus princípios numa comédia bem calculada, mas não o fazem.

828-a Os princípios que professaram nesta vida lhes serão levados em conta na outra?

— Quanto mais inteligência tenha o homem para compreender um princípio, menos escusável será de não o aplicar a si mesmo. Na verdade vos digo que o homem símples, mas sincero, está mais adiantado no caminho de Deus do que aquele que aparenta o que não é.

II— Escravidão

829.Há homens naturalmente destinados a ser propriedade de outros homens?

— Toda sujeição absoluta de um homem a outro é contrária à lei de Deus. A escravidão é um abuso da força e desaparecerá com o progresso, como pouco a pouco desaparecerão todos os abusos.

A lei humana que estabelece a escravidão é uma lei contra a Natureza, pois assemelha o homem ao bruto e o degrada moral e fisicamente.

830.Quando a escravidão pertence aos costumes de um povo, são repreensíveis os que a praticam nada mais fazendo do que seguir um uso que lhes parece natural?

O mal é sempre o mal. Todos os vossos sofismas não farão que uma ação má se torne boa. Mas a responsabilidade do mal é relativa aos meios de que se dispõem para o compreender. Aquele que se serve da lei da escravidão é sempre culpável de uma violação da lei natural; mas nisso, como em todas as coisas, a culpabilidade é relativa. Sendo a escravidão um costume entre certos povos, o homem pode praticá-la de boa-fé, como um coisa que Ihe parece natural. Mas desde que a sua razão, mais desenvolvida e sobretudo esclarecida pelas luzes do Cristianismo, lhe mostrou no escravo um seu igual perante Deus, ele não tem mais desculpas.

831.A desigualdade natural das aptidões não coloca certas raças humanas sob a dependência das raças inteligentes?

Sim, para as elevar, e não para as embrutecer ainda mais na escravidão. Os homens têm considerado, há muito, certas raças humanas como animais domesticáveis, munidos de braços e de mãos, e se julgaram no direito de vender os seus membros como bestas de carga. Consideram-se de sangue mais puro. Insensatos, que não enxergam além da matéria Não é o sangue que deve ser mais ou menos puro, mas o Espírito. (Ver itens 361-803).

832. Há homens que tratam os seus escravos com humanidade, que nada Ihes deixam faltar e pensam que a liberdade os exporia a mais privações. Que dizer disso?

— Digo que compreendem melhor os seus interesses. Eles têm também muito cuidado com os seus bois e os seus cavalos, a fim de tirarem mais proveito no mercado. Não são culpados como os que os maltratam, mas nem por isso deixam de usá-los como mercadorias, privando-os do direito de serem senhores de si mesmos.

III— Liberdade de Pensamento

833.Há no homem qualquer coisa que escape a todo constrangimento, e pela qual ele goze de uma liberdade absoluta?

— É pelo pensamento que o homem goza de uma liberdade sem limites, porque o pensamento não conhece entraves. Pode-se impedir a sua manifestação, mas não aniquilá-lo.

834.O homem é responsável pelo seu pensamento?

Ele é responsável perante Deus. Só Deus, podendo conhecê-lo,condena- o ou absolve-o, segundo a sua justiça.

IV — Liberdade de Consciência

835. A liberdade de consciência é uma conseqüência da liberdade de pensar?

A consciência é um pensamento íntimo, que pertence ao homem como todos os outros pensamentos.

836. O homem tem o direito de opor entraves à liberdade de consciência?

Não mais do que à liberdade de pensar, porque somente a Deus pertence

o direito de julgar a consciência. Se o homem regula pelas suas leis as relações de homem para homem, Deus, por suas leis naturais, regula as relações do homem com Deus.

837. Qual é o resultado dos entraves à liberdade de consciência?

Constranger os homens a agir de maneira diversa ao seu modo de pensar, o que os tornará hipócritas. A liberdade de consciência é uma das características da verdadeira civilização e do progresso.

838. Toda crença é respeitável, ainda mesmo quando notoriamente falsa?

Toda crença é respeitável quando é sincera e conduz à prática do bem. As crenças reprováveis são as que conduzem ao mal.

839. Somos repreensíveis por escandalizar em sua crença aquele que não pensa como nós?

Isso é faltar com a caridade e atentar contra a liberdade de pensamento. 840. Será atentar contra a liberdade de consciência opor entraves às crenças

que podem perturbar a sociedade?

— Podem reprimir-se os atos, mas a crença íntima é inacessível.

Reprimir os atos externos de uma crença, quando esses atos acarretam qualquer prejuízo aos outros, não é atentar contra a liberdade consciência, porque essa repressão deixa à crença sua inteira liberdade.

841. Devemos, por respeito à liberdade de consciência, deixar que se

propaguem as doutrinas perniciosas, ou podemos, sem atentar contra essa liberdade, procurar conduzir para o caminho da verdade os que se desviaram para falsos princípios?

Certamente se pode e mesmo se deve; mas ensinai, a exemplo de Jesus, pela doçura e a persuasão, e não pela força, o que seria pior que a crença daquele a quem desejásseis convencer. Se há alguma coisa que possa ser imposta é o bem e a fraternidade; mas não acreditamos que o meio de fazê-loseja a violência: a convicção não se impõe.

842. Como todas as doutrinas têm a pretensão de ser a única expressão da verdade, por que sinais podemos reconhecer a que tem o direito de se apresentar como tal?

Essa será a que produza mais homens de bem e menos hipócritas, quer dizer, que pratiquem a lei de amor e caridade na sua maior pureza e na sua aplicação mais ampla. Por esse sinal reconhecereis que uma doutrina é boa, pois toda doutrina que tiver por conseqüência semear a desunião e estabelecer divisões entre os filhos de Deus só pode ser falsa e perniciosa.

V — Livre Arbítrio

843. O homem tem livre arbítrio nos seus atos?

Pois se tem a liberdade de pensar, tem a de agir. Sem o livre arbítrio o homem seria uma máquina.

844. O homem goza do livre arbítrio desde o nascimento?

Ele tem a liberdade de agir, desde que tenha a vontade de o fazer. Nas primeiras fases da vida a liberdade é quase nula; ela se desenvolve e muda de objeto com as faculdades. Estando os pensamentos da criança em relação com as necessidades da sua idade, ela aplica o seu livre arbítrio às coisas que lhe são necessárias.

845. As predisposições instintivas que o homem traz ao nascer não são um obstáculo ao exercício do seu livre arbítrio?

As predisposições instintivas são as do Espírito antes da encarnação; conforme for ele mais ou menos adiantado, elas podem impeli-lo a atos repreensíveis, no que ele será secundado por Espíritos que simpatizem com essas disposições; mas não há arrastamento irresistível, quando se tem a vontade de resistir. Lembrai-vos de que querer é poder. (Ver item 361).

846. O organismo não influi nos atos da vida? E se influi, não o faz com prejuízo do livre arbítrio?

O Espírito é certamente influenciado pela matéria, que pode entravar as suas manifestações. Eis porque, nos mundos em que os corpos são menos materiais do que na Terra, as faculdades se desenvolvem com mais liberdade. Mas o instrumento não dá faculdades ao Espírito. De resto, é necessário distinguir neste caso as faculdades morais das faculdades intelectuais. Se um

homem tem o instinto do assassínio, é seguramente o seu próprio Espírito que o possui e que lho transmite, mas nunca os seus órgãos. Aquele que aniqüila o seu pensamento para se ocupar apenas da matéria faz-sesemelhante ao bruto, e ainda pior, porque não pensa mais em se premunir contra o mal. E nisso que ele se torna faltoso, pois assim age pela própria vontade. (Ver item 367 e seguintes, Influência do organismo).

847. A alteração das faculdades tira ao homem o livre arbítrio?

Aquele cuja inteligência está perturbada por uma causa qualquer perde o domínio do seu pensamento, e desde então não tem mais liberdade. Essa alteração é freqüentemente uma punição para o Espírito que, numa existência, pode ter sido vão e orgulhoso, fazendo mau uso de suas faculdades. Ele pode renascer no corpo de um idiota, como o déspota no corpo de um escravo e o mau rico no de um mendigo. Mas o Espírito sofre esse constrangimento, do qual tem perfeita consciência: é nisso que está a ação da matéria. (Ver item 371 e seguintes).

848. A alteração das faculdades intelectuais pela embriaguez desculpa os atos repreensíveis?

Não, pois o ébrio voluntariamente se priva da razão para satisfazer paixões brutais: em lugar de uma falta, comete duas.

849. Qual é, no homem em estado selvagem, a faculdade dominante: o

instinto ou o livre arbítrio?

O instinto, o que não o impede de agir com inteira liberdade em certas coisas. Mas, como a criança, ele aplica essa liberdade às suas necessidades e ela se desenvolve com a inteligência. Por conseguinte, tu, que és mais esclarecido que um selvagem, és também mais responsável que ele pelo que fazes.

850. A posição social não é às vezes um obstáculo à inteira liberdade de ação?

O mundo tem, sem dúvida, as suas exigências. Deus é justo e tudo leva em conta, mas vos deixa a responsabilidade dos poucos esforços que fazeis para superar os obstáculos.

VI — Fatalidade

851. Há uma fatalidade nos acontecimentos da vida, segundo o sentido ligado a essa palavra; quer dizer, todos os acontecimentos são predeterminados, e nesse caso em que se torna o livre arbítrio?

A fatalidade não existe senão para a escolha feita pelo Espírito, aoencarnar-se, de sofrer esta ou aquela rova; ao escolhê-la, ele traça para si mesmo uma espécie de destino, que é a própria conseqüência da posição em que se encontra. Falo das provas de natureza física, porque, no tocante às provas morais e às tentações, o Espírito, conservando o seu livre arbítrio sobre

o bem e o mal, é sempre senhor de ceder ou resistir. Um bom Espírito, ao vê- lo fraquejar, pode correr em seu auxílio mas não pode influir sobre ele a ponto de subjugar-lhe a vontade. Um Espírito mau, ou seja, inferior, ao lhe mostrar ou exagerar um perigo físico pode abalá-lo e assustá-lo, mas a vontade do Espírito encarnado não fica por isso menos livre de qualquer entrave.

852.Há pessoas que parecem perseguidas por uma fatalidade, independentemente de sua maneira de agir; a desgraça está no seu destino?

— São, talvez, provas que devem sofrer e que elas mesmas escolheram. Ainda uma vez levais à conta do destino o que é, quase sempre, a conseqüência de vossa própria falta. Em meio dos males que te afligem, cuida que a tua consciência esteja pura e te sentirás mais ou menos consolado.

As idéias justas ou falsas que fazemos das coisas nos levam a vencer ou fracassar, segundo o nosso caráter e a nossa posição social. Achamos mais simples e menos humilhante para o nosso amor-próprio atribuir os nossos fracassos à sorte ou ao destino, do que a nós mesmos. Se a influência dos Espíritos contribui algumas vezes para isso, podemos sempre nos subtrair a ela, repelindo as idéias más que nos forem sugeridas.

853.Certas pessoas escapam a um perigo mortal para cair em outro; parece que não podem escapar à morte. Não há nisso fatalidade?

— Fatal, no verdadeiro sentido da palavra, só o instante da morte. Chegado

esse momento, de uma forma ou de outra, a ele não podeis furtar-vos.

853-a. Assim, qualquer que seja o perigo que nos ameace, não morreremos se a nossa hora não chegou?

Não. não morrerás, e tens disso milhares de exemplos. Mas quando chegar a tua hora de partir, nada te livrará. Deus sabe com antecedência qual o gênero de morte por que partirás daqui, e freqüentemente teu Espírito também o sabe, pois isso lhe foi revelado quando fez a escolha desta ou daquela existência.

854. Da infalibilidade da hora da morte segue-se que as precauções que se tomam para evitá-la são inúteis?

Não, porque as precauções que tomais vos são sugeridas com o fim de evitar a morte que vos ameaça; são um dos meios para que ela não se verifique.

855. Qual o fito da Providência, ao fazer-nos correr perigos que não devem ter conseqüências?

Quando tua vida se encontra em perigo é essa uma advertência que tu mesmo desejaste, a fim de te desviar do mal e te tornar melhor. Quando escapas a esse perigo, ainda sob a influência do risco por que passaste, pensas com maior ou menor intensidade, sob a ação mais ou menos forte dos bons Espíritos, em te tornares melhor. O mau Espírito retornando (digo mau,

subentendendo o mal que ainda nele existe), pensas que escaparás da mesma maneira a outros perigos e deixas que as tuas paixões se desencadeiem de novo. Pelos perigos que correis, Deus vos recorda a vossa fraqueza e a fragilidade de vossa existência. Se examinarmos a causa e a natureza do perigo, veremos que, na maioria das vezes, as conseqüências foram a punição de uma falta cometida ou de um dever negligenciado. Deus vos adverte para refletirdes sobre vós mesmos e vos emendardes. (Ver os itens 526 a 532).

856.O Espírito sabe, por antecipação, qual o gênero de morte que deve

sofrer?

— Sabe que o gênero de vida por ele escolhido o expõe a morrer mais de uma maneira que de outra. Mas sabe também quais as lutas que terá de sustentar para o evitar, e que, se Deus o permitir, não sucumbirá.

857.Há homens que enfrentam os perigos dos combates com uma certa convicção de que a sua hora não chegou; há algum fundamento nessa confiança?

— Com muita freqüência o homem tem o pressentimento do seu fim, como o pode ter o de que ainda não morrerá. Esse pressentimento lhe é dado pelos seus Espíritos protetores, que desejam adverti-lo para que esteja pronto a partir ou reerguem a sua coragem nos momentos em que se faz mais necessário. Também lhe pode vir da intuição da existência por ele escolhida, ou da missão

que aceitou e sabe que deve cumprir. (Ver itens 411 a 522).

858.Os que pressentem a morte geralmente a temem menos do que os outros? Por quê?

— É o homem que teme a morte, não o Espírito. Aquele que a pressente pensa mais como Espírito do que como homem: compreende a sua libertação e a espera.

859.Se a morte não pode ser evitada quando chega a sua hora, acontece o mesmo com todos os acidentes no curso da nossa vida?

— São, em geral, coisas demasiado pequenas, das quais podemos prevenir- vos dirigindo o vosso pensamento no sentido de as evitardes, porque não gostamos do sofrimento material. Mas isso é de pouca importância para o curso da vida que escolhestes. A fatalidade só consiste nestas duas horas: aquelas em que deveis aparecer e desaparecer neste mundo.

859-a. Há fatos que devem ocorrer forçosamente e que a vontade dos Espíritos não pode conjurar?

— Sim, mas que tu, quando no estado de Espírito, viste e pressentiste, ao fazer a tua escolha. Não acredites, porém, que tudo o que acontece esteja escrito, como se diz. Um acontecimento é quase sempre a conseqüência de uma coisa que fizeste por um ato de tua livre vontade, de tal maneira que, se não tivesses praticado aquele ato, o acontecimento não se verificaria. Se

queimas o dedo, isso é apenas a conseqüência de tua imprudéncia e da condição da matéria. Somente as grandes dores, os acontecimentos importantes e capazes de influir na tua evolução moral são previstos por Deus, porque são úteis à tua purificação e à tua instrução.

860.Pode o homem, por sua vontade e pelos seus atos, evitar acontecimentos que deviam realizar-se e vice-versa?

— Pode, desde que esse desvio aparente possa caber na ordem geral da vida que ele escolheu. Além disso, para fazer o bem, como é do seu dever e único objetivo da vida, ele pode impedir o mal, sobretudo aquele que possa contribuir para um mal ainda maior.

861.O homem que comete um assassinato sabe, ao escolher a sua existência que se tornará assassino?

— Não. Sabe apenas que, ao escolher uma vida de lutas terá a probabilidade de matar um de seus semelhantes, mas ignora se o fará ou não, porque depende quase sempre dele tomar a deliberação de cometer o crime. Ora, aquele que delibera sobre uma coisa é sempre livre de a fazer ou não. Se o Espírito soubesse com antecedência que, como homem, devia cometer um assassínio, estaria predestinado a isso. Sabei, então, que não há ninguém predestinado ao crime e que todo crime, como todo e qualquer ato, é sempre o resultado da vontade e do livre arbítrio. De resto, sempre confundis duas

coisas bastante distintas: os acontecimentos materiais da existência e os atos da vida moral. Se há fatalidade, às vezes, é apenas no tocante aos acontecimentos materiais, cuja causa está fora de vós e que são independentes da vossa vontade. Quanto aos atos da vida moral, emanam sempre do próprio homem, que tem sempre, por conseguinte, a liberdade de escolha: para os seus atos não existe jamais a fatalidade.

862. Há pessoas que nunca conseguem êxito na vida e que um mau gênio parece perseguir em todos os seus empreendimentos. Não é isso o que podemos chamar fatalidade?

— Pode ser fatalidade, se assim o quiserdes, mas decorrente da escolha do gênero de existência, porque essas pessoas quiseram ser experimentadas por uma vida de decepções, a fim de exercitarem a sus paciência e a sua resignação. Não creias, entretanto, que seja isso o que fatalmente acontece; muitas vezes é apenas o resultado de haverem elas tomado um caminho errado, que não está de acordo com a sua inteligência e as suas aptidões. Aquele que quer atravessar um rio a nado, sem saber nadar, tem grande probabilidade de morrer afogado. Assim acontece na maioria das ocorrências da vida. Se o homem não empreendesse mais do que aquilo que está de acordo com as suas faculdades, triunfaria quase sempre; o que o perde é o seu amor próprio e a sua ambição, que o desviam do caminho para tomar por vocação o

simples desejo de satisfazer certas paixões. Então fracassa e a culpa é sua, mas em vez de reconhecer o erro prefere acusar a sua estrela. Há o que teria sido um bom operário, ganhando honradamente a vida, mas se fez mau poeta e morre de fome. Haveria lugar para todos, se cada um soubesse ocupar o seu lugar.

863. Os costumes sociais não obrigam muitas vezes o homem a seguir um caminho errado? E não está ele submetido à influência das opiniões na escolha de suas ocupações? Isso a que chamamos respeito humano não é um obstáculo ao exercício do livre arbítrio?

— São os homens que fazem os costumes sociais e não Deus; se a eles se submetem, é que lhes convém. Isso também é um ato de livre arbítrio, pois se quisessem poderiam rejeitá-los. Então, por que se lamentam? Não são os costumes sociais que eles devem acusar, mas o seu tolo amor-próprio, que os leva a preferir morrer de fome a infringi-los. Ninguém lhes toma conta desse sacrifício à opinião geral, enquanto Deus lhes pedirá conta do sacrifício feito à própria vaidade. Isso não quer dizer que se deva afrontar a opinião sem necessidade, como certas pessoas que têm mais de originalidade do que de verdadeira filosofia. Tanto é desarrazoado exibir-se como um animal curioso, quanto é sensato descer voluntariamente e sem reclamações, se não se pode permanecer no alto da escala.

864.Se há pessoas para as quais a sorte é contrária, outras parecem favorecidas por ela, pois tudo lhes sai bem; a que se deve isso?

— Em geral, porque sabem orientar-se melhor. Mas isso pode ser, também, um gênero de prova: o sucesso as embriaga, elas se fiam no seu destino e freqüentemente vão pagar mais tarde esse sucesso com revezes cruéis, que poderiam ter evitado com um pouco de prudência.

865.Como explicar a sorte que favorece certas pessoas em circunstâncias que não dependem da vontade nem da inteligência, como no jogo, por exemplo?

— Certos Espíritos escolheram antecipadamente determinadas espécies de prazer, e a sorte que os favorece é uma tentação. Aquele que ganha como homem, perde como Espírito: é uma prova para o seu orgulha e a sua cupidez.

866.Então, a fatalidade que parece presidir aos destinos do homem na vida material seria também resultado do nosso livre arbítrio?

— Tu mesmo escolheste a tua prova: quanto mais rude ela for, se melhor a suportas, mais te elevas. Os que passam a vida na abundância e no bem-estarsão Espíritos covardes, que permanecem estacionários. Assim, o número de infortunados ultrapassa de muito o dos felizes do mundo, visto que os Espíritos procuram, na sua maioria, as provas que lhes sejam mais frutuosas. Eles vêem muito bem a futilidade das vossas grandezas e dos vossos prazeres.

Aliás, a vida mais feliz é sempre agitada, sempre perturbada: não é somente a dor que produz contrariedades. (Ver itens 525 e seguintes).

867. De onde procede a expressão: Nascido sob uma boa estrela?

— Velha superstição, segundo a qual as estrelas estariam ligadas ao destino de cada homem; alegoria que certas pessoas fazem a tolice de tomar ao pé da letra.

Conhecimento do Futuro

868.O futuro pode ser revelado ao homem?

Em princípio, o futuro lhe é oculto e só em casos raros excepcionais Deus lhe permite a sua revelação.

869. Com que fim o futuro é oculto ao homem?

Se o homem conhecesse o futuro, negligenciaria o presente e não agiria com a mesma liberdade de agora, pois seria dominado pelo pensamento de que se uma coisa deve acontecer não adianta ocupar-se dela, ou então procuraria impedi-la. Deus não quis que assim fosse, a fim de que cada um pudesse concorrer para a realização das coisas, mesmo daquelas a que desejaria opor-se. Assim é que tu mesmo, sem o saber, quase sempre preparas os acontecimentos que sobrevirão no curso da tua vida.

870. Mas se é útil que o futuro permaneça oculto, por que Deus permite, às vezes, a sua revelação?

E quando esse conhecimento antecipado deve facilitar o cumprimento das coisas, em vez de embaraçá-lo, levando o homem a agir de maneira diferente do que o faria se não o tivesse. Além disso, muitas vezes é uma prova. A perspectiva de um acontecimento pode despertar pensamentos que sejam mais ou menos bons: se um homem souber, por exemplo, que obterá uma fortuna com a qual não contava, poderá ser tomado pelo sentimento de cupidez, pela alegria de aumentar os seus gozos terrenos, pelo desejo de a obter mais cedo, desejando a morte daqueles que lha deve deixar, ou então essa perspectiva despertará nele bons sentimentos e pensamentos generosos. Se a previsão não se realizar, será outra prova: a da maneira por que suportará a decepção. Mas não deixará por isso de ter o mérito ou o demérito dos pensamentos bons ou maus que a crença na previsão lhe provocou.

87l. Desde que Deus tudo sabe, também sabe se um homem deve ou não sucumbir numa prova. Nesse caso, qual a necessidade da prova, que nada pode revelar a Deus sobre aquele homem?

Tanto valeria perguntar por que Deus não fez o homem perfeito e realizado (item 119), por que o homem passa pela infância, antes de chegar à idade madura (item 379). A prova não tem por fim esclarecer a Deus sobre o mérito do homem, porque Deus sabe perfeitamente o que ele vale, mas deixar ao homem toda a responsabilidade da sua ação, uma vez que ele tem a

liberdade de fazer ou não fazer. Podendo o homem escolher entre o bem e o mal, a prova tem por fim colocá-lo ante a tentação do mal, deixando-lhe todo o mérito da resistência. Ora, não obstante Deus saiba muito bem, com antecedência, se ele vencerá ou fracassará, não pode puni-lo nem recompensá- lo, na sua justiça, por um ato que ele não tenha praticado. (Ver item 258).

É assim entre os homens. Por mais capaz que seja um aspirante, por mais certeza que se tenha do seu triunfo, não se lhe concede nenhum grau sem o exame, o que quer dizer sem prova. Da mesma maneira, um juiz não condena um acusado senão pela prova de um ato consumado e não pela previsão de que ele pode ou deve praticar esse ato.

Quanto mais se reflete sobre as conseqüências que teria para o homem o conhecimento do futuro, mais se vê como a Providência foi sábia aoocultá-lo. A certeza de um acontecimento feliz o atiraria na inação; a de um acontecimento desgraçado, no desânimo; e num caso como no outro suas forças seriam paralisadas. Eis por que o futuro não é mostrado ao homem senão como um alvo que ele deve atingir pelos seus esforços, mas sem conhecer as vicissitudes por que deve passar para atingi-lo. O conhecimento de todos os incidentes da rota lhe tiraria a iniciativa e o uso do livre arbitrio; ele se deixaria arrastar pelo declive fatal dos acontecimentos sem exercltar as suas faculdades. Quando o sucesso de uma coisa está assegurado, ninguém

mais se preocupa com ela.

VIII — Resumo Teórico do Móvel das Ações Humanas

872. A questão do livre arbítrio pode resumir-se assim: O homem não é fatalmente conduzido ao mal; os atos que pratica não "estavam escritos"; os crimes que comete não são o resultado de um decreto do destino. Ele pode, como prova e como expiação, escolher uma existência em que se sentirá arrastado para o crime, seja pelo meio em que estiver situado, seja pelas circunstâncias supervenientes. Mas será sempre livre de agir como quiser. Assim, o livre arbítrio existe no estado de Espírito, com a escolha da existência e das provas; e no estado corpóreo, com a faculdade de ceder ou resistir aos arrastamentos a que voluntariamente estamos submetidos. Cabe à educação combater as más tendências, e ela o fará de maneira eficiente quando se basear no estudo aprofundado da natureza moral do homem. Pelo conhecimento das leis que regem essa natureza moral chegar-se-á a modificá- la, como se modificam a inteligência pela instrução e as condições. físicas pela higiene.

O Espírito desligado da matéria, no estado errante, faz a escolha de suas futuras existências corpóreas segundo o grau de perfeição que tenha atingido. E nisso, como já dissemos, que consiste sobretudo o seu livre arbítrio. Essa liberdade não é anulada pela encarnação. Se ele cede à influência da matéria, é

então que sucumbe nas provas por ele mesmo escolhidas. E é para o ajudar asuperá-las que pode invocar a assistência de Deus e dos bons Espíritos. (Ver item 337).

Sem o livre arbítrio o homem não tem culpa no mal, nem mérito no bem; e isso é de tal modo reconhecido que no mundo se proporciona sempre a censura ou o elogio à intenção, o que quer dizer à vontade; ora, quem diz vontade, diz liberdade. O homem não poderia, portanto, procurar desculpas no seu organismo para as suas faltas sem com isso abdicar da razão e da própria condição humana, para se assemelhar aos animais. Se assim é para o mal, assim mesmo devia ser para o bem. Mas, quando o homem pratica o bem, tem grande cuidado em consignar o mérito a seu favor e não trata de o atribuir aos seus órgãos, prova de que instintivamente ele não renuncia, malgrado a opinião de alguns sistemáticos, ao mais belo privilégio da sua espécie: a liberdade de pensar.

A fatalidade, como vulgarmente é entendida, supõe a decisão prévia e irrevogável de todos os acontecimentos da vida, qualquer que seja a sua importância. Sé assim fosse, o homem seria uma máquina destituída de vontade. Para que lhe serviria a inteligência, se ele fosse invariavelmente dominado, em todos os seus atos, pelo poder do destino? Semelhante doutrina, se verdadeira, representaria a destruição de toda liberdade moral; não haveria

mais responsabilidade para o homem, nem mal, nem crime, nem virtude. Deus, soberanamente justo, não poderia castigar as suas criaturas por faltas que não dependiam delas, nem recompensá-las por virtudes de que não teriam o mérito. Semelhante lei seria ainda a negação da lei do progresso, porque o homem que tudo esperasse da sorte nada tentaria fazer para melhorar a sua posição, desde que não poderia torná-la melhor nem pior.

A fatalidade não é, entretanto, uma palavra vã; ela existe no tocante à posição do homem na Terra e às funções que nela desempenha, como conseqüência do gênero de existência que o seu Espírito escolheu, como prova, expiação ou missão. Sofre ele, de maneira fatal, todas as vicissitudes dessa existência e todas as tendências boas ou más que lhes são inerentes. Mas a isso se reduz a fatalidade, porque depende da sua vontade ceder ou não a essas tendências. Os detalhes dos acontecimentos estão na dependência das circunstâncias que ele mesmo provoque, com os seu atos, e sobre os quais podem influir os Espíritos, através dos pensamentos que lhe sugerem. (Ver item 459).

A fatalidade está, portanto, nos acontecimentos que se apresentam ao homem como conseqüência da escolha de existência feita pelo Espírito; mas pode não estar no resultado desses acontecimentos, pois pode depender do homem a modificação do curso das coisas, pela sua prudência; e jamais se

encontra nos atos da vida moral.

É na morte que o homem é submetido, de uma maneira absoluta, à inexorável lei da fatalidade, porque ele não pode fugir ao decreto que fixa o termo de sua existência, nem ao gênero de morte que deve interromper-lhe o curso.

Segundo a doutrina comum, o homem tiraria de si mesmo todos os seus instintos; estes procederiam seja da sua organização física, pela qual ele não seria responsável, seja da sua própria natureza, na qual pode procurar uma escusa para si mesmo, dizendo que não é sua a culpa de ter sido criado daquela forma.

O doutrina espírita é evidentemente mais moral: ela admite para o homem o livre arbítrio em toda a sua plenitude; e ao lhe dizer que, se pratica o mal, cede a uma sugestão má que lhe vem de fora, deixa-lhe toda a responsabilidade, pois lhe reconhece o poder de resistir, coisa evidentemente mais fácil do que se tivesse de lutar contra a sua própria natureza. Assim, segundo a doutrina espírita, não existem arrastamentos irresistíveis: o homem pode sempre fechar os ouvidos à voz oculta que o solicita para o mal no seu foro intimo, como o pode fechar à voz material de alguém que lhe fale; ele o pode pela sua vontade, pedindo a Deus a força necessária e reclamando para esse fim a assistência dos bons Espíritos. E isso que Jesus ensina na sublime forma da

oração dominical, quando nos manda dizer: "Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal".

Essa teoria da causa excitante dos nossos atos ressalta evidentemente de todos os ensinamentos dados pelos Espíritos. E não somente é sublime de moralidade, mas acrescentaremos que eleva o homem aos seus próprios olhos, mostrando-o capaz de sacudir um jugo obsessor, como é capaz de fechar sua porta aos importuno. Dessa maneira, ele não é mais uma máquina agindo por impulsão estranha a sua vontade, mas um ser dotado de razão, que ouve, julga e escolhe livremente entre dois conselhos. Acrescentemos que, malgrado isso, o homem não fica privado de iniciativa, não age menos pelo seu próprio impulso, pois em definitivo ele não passa de um Espírito encarnado que conserva, sob o invólucro corpóreo, as qualidades e os defeitos que tinha como Espírito.

As faltas que cometemos têm, portanto, sua origem primeira nas imperfeições do nosso próprio Espírito, que ainda não atingiu a superioridade moral a que se destina, mas nem por isso tem menos livre arbítrio. A vida corpórea lhe é dada para purgar-se de suas imperfeições, que o tornam mais fraco e mais acessível às sugestões de outros Espíritos imperfeitos, que se aproveitam do fato para fazê-lo sucumbir na luta que empreendeu: Se ele sai vitorioso dessa luta, se eleva; se fracassa, continua a ser o que era, nem pior,

nem melhor: é uma prova que terá de recomeçar e para o que ainda poderá demorar muito tempo na condição em que se encontra. Quanto mais ele se depura, mais diminuem as suas fraquezas e menos acessível se torna aos que o solicitam para o mal. Sua força moral cresce na razão da sua elevação, e os maus Espíritos se distanciam dele.

Todos os Espíritos mais ou menos bons, quando encarnados, constituem a espécie humana. E como a nossa Terra é um dos mundos menos adiantados, nela se encontram mais Espíritos maus do que bons; eis porque nela vemos tanta perversidade. Façamos, pois, todos os esforços para não regressar a este mundo após esta passagem e para merecermos repousar num mundo melhor, num desses mundos privilegiados onde o bem reina inteiramente e onde nos lembraremos de nossa permanência neste planeta como de um tempo de exílio.

Capítulo XI

X — Lei de Justiça, Amor e Caridade

I — Justiça e Direito Natural

873. O sentimento de justiça é natural ou resulta de idéias adquiridas?

— E de tal modo natural que vos revoltais ao pensamento de uma injustiça. O progresso moral desenvolve sem dúvida esse sentimento, mas não o dá:

Deus o pôs no coração do homem. Eis porque encontrais freqüentemente, entre os homens simples e primitivos, noções mais exatas de justiça do que entre pessoas de muito saber.

874.Se a justiça é uma lei natural, como se explica que os homens a entendam de maneiras tão diferentes, que um considere justo o que a outro parece injusto?

— É que em geral se misturam paixões ao julgamento, alterando esse sentimento, como acontece com a maioria dos outros sentimentos naturais, e fazendo ver as coisas sob um falso ponto de vista.

875.Como se pode definir a justiça?

A justiça consiste no respeito aos direitos de cada um. 875-a. O que determina esses direitos?

São determinados por duas coisas: a lei humana e a lei natural. Como os homens fizeram leis apropriadas aos seus costumes e ao seu caráter, essas leis estabeleceram direitos que podem variar com o progresso. Vede se as vossas leis de hoje, sem serem perfeitas, consagram os mesmos direitos que as da Idade Média. Esses direitos superados, que vos parecem monstruosos, pareciam justos e naturais naquela época. O direito dos homens, portanto, nem sempre é conforme à justiça. Só regula algumas relações sociais, enquanto na vida privada há uma infinidade de atos que são de competência exclusiva do

tribunal de consciência.

876.Fora do direito consagrado pela lei humana, qual a base da justiça fundada sobre a lei natural?

— O Cristo vos disse: "Querer para os outros o que quereis para vós mesmos". Deus pôs no coração do homem a regra de toda a verdadeira justiça, pelo desejo que tem cada um de ver os seus direitos respeitados. Na incerteza do que deve fazer para o semelhante, em dada circunstância, que o homem pergunte a si mesmo como desejaria que agissem com ele. Deus não lhe poderia dar um guia mais seguro que a sua própria consciência.

O critério da verdadeira justiça é de fato o de se querer para os outros aquilo que se quer para si mesmo, e não de querer para si o que se deseja para os outros, o que não é a mesma coisa. Como não é natural que se queira o proprio mal, se tomarmos o desejo pessoal por norma ou ponto de partida, podemos estar certos de jamais desejar para o próximo senão o bem. Desde todos os tempos e em todas as crenças o homem procurou sempre fazer prevalecer o seu direito pessoal. O sublime da religião cristã foi tomar o direito pessoal por base do direito do próximo.

877.A necessidade de viver em sociedade acarreta para o homem obrigações particulares?

— Sim, e a primeira de todas é a de respeitar os direitos dos semelhantes;

aquele que respeitar esses direitos será sempre justo. No vosso mundo, onde tantos homens não praticam a lei de justiça, cada um usa de represálias e vém daí a perturbação e a confusão da vossa sociedade. A vida social dá direitos e impõe deveres recíprocos.

878. Podendo o homem iludir-se quanto àextensão do seu direito, o que o deve levar a conhecer-lhe os limites?

Os limites do direito que reconhece para o seu semelhante em relação a ele, na mesma circunstância e de maneira recíproca.

878-a. Mas se cada um se atribui a si mesmo os direitos do semelhante, em que se transforma a subordinação aos superiores? Não será isso a anarquia de todos os poderes?

Os direitos naturais são os mesmos para todos os homens, desde o menor até o maior. Deus não fez uns de limo mais puro que outros e todos são iguais perante ele. Esses direitos são eternos; os estabelecidos pelos homens perecem com as suas instituições. De resto, cada qual sente bem a sua força ou a sua fraqueza, e saberá ter sempre uma certa deferência para aquele que o merecer por sua virtude e seu saber. E importante assinalar isto para que os que se julgam superiores conheçam os seus deveres e possam merecer essas deferências. A subordinação não estará comprometida quando a autoridade for conferida à sabedoria.

879.Qual seria o caráter do homem que praticasse a justiça em toda a sua pureza?

— O verdadeiro justo, a exemplo de Jesus; porque praticaria também o amor do próximo e a caridade, sem os quais não há verdadeira justiça.

II — Direito de Propriedade. Roubo

880.Qual é o primeiro de todos os direitos naturais do homem?

— O de viver. E por isso que ninguém tem o direito de atentar contra a vida do semelhante ou fazer qualquer coisa que possa comprometer a sua existência corpórea.

881.O direito de viver confere ao homem o direito de ajuntar o que necessita para viver e repousar, quando não mais puder trabalhar?

— Sim, mas deve fazê-lo em comum, como a abelha, através de um trabalho honesto, e não ajuntar como um egoísta. Alguns animais lhe dão o exemplo dessa prudência.

882.O homem tem o direito de defender aquilo que ajuntou pelo trabalho?

— Deus não disse: "Não roubarás"? E Jesus: "Dai a César o que é de

César"?

Aquilo que o homem ajunta por um trabalho honesto é uma propriedade legítima, que ele tem o direito de defender. Porque a propriedade que é fruto do trabalho constitui um direito natural, tão sagrada como o de trabalho e

viver.

883. O desejo de possuir é natural?

Sim, mas quando o homem só deseja para si e para sua satisfação pessoal, é egoísmo.

883-a. Entretanto não será legítimo o desejo de possuir, pois o que tem com o que viver não se torna carga para ninguém?

Há homens insaciáveis, que acumulam sem proveito para ninguém ou apenas para satisfazer as suas paixões. Acreditas que isso seja aprovado por Deus? Aquele que ajunta pelo seu trabalho, com a intenção de auxiliar o semelhante pratica a lei de amor e caridade e seu trabalho é abençoado por Deus.

884. Qual é o caráter da propriedade legítima?

Só há uma propriedade legítima, a que foi adquirida sem prejuízo para os outros. (Ver item 808).

A lei de amor e de justiça proíbe que se faça a outrem o que não queremos que nos seja feito, e condena, por esse mesmo princípio, todo meio de adquirir que o contrarie.

885. O direito de propriedade é sem limites?

Sem dúvida, tudo o que é legitimamente adquirido é uma propriedade, mas, como já dissemos, a legislação humana é imperfeita e consagra

freqüentemente direitos convencionais que a justiça natural reprova. E por isso que os homens reformam suas leis à medida que o progresso se realiza e que eles compreendem melhor a justiça, O que num século parece perfeito, no século seguinte se apresenta como bárbaro. (Ver item 795).

III— Caridade e Amor ao Próximo

886.Qual é o verdadeiro sentido da palavra caridade, como a entende Jesus?

— Benevolência para com todos, indulgência para com as imperfeições

alheias, perdão das ofensas.

O amor e a caridade são o complemento da lei de justiça, porque amar ao próximo é fazer-lhe todo o bem possível, que desejaríamos que nos fosse feito. Tal é o sentido das palavras de Jesus: "Amai vos uns aos outros, como irmãos".

A caridade, segundo Jesus, não se restringe à esmola, mas abrange todas as relações com os nossos semelhantes, quer se trate de nossos inferiores, iguais ou superiores. Ela nos manda ser indulgentes porque temos necessidade de indulgência, e nos proíbe humilhar o infortúnio, ao contrário do que comumente se pratica. Se um rico nos procura, atendemo-lo com excesso de consideração e atenção, mas se é um pobre, parece que não nos devemos incomodar com ele. Quanto mais, entretanto, sua posição é lastimável, mais devemos temer aumentar-lhe a desgraça pela humilhação. O homem

verdadeiramente bom procura elevar o inferior aos seus próprios olhos,

diminuindo a distância entre ambos.

887.Jesus ensinou ainda: "Amai aos vossos inimigos". Ora, o amor pelos nossos inimigos não é contrário às nossas tendências naturais, e a inimizade não provém de uma falta de simpatia entre os Espíritos?

— Sem dúvida não se pode ter, para com os inimigos, um amor terno e apaixonado. E não foi isso que ele quis dizer. Amar aos inimigos éperdoá-los e pagar-lhes o mal com o bem. E assim que nos tornamos superiores; pela vingança nos colocamos abaixo deles.

888.Que pensar da esmola?

O homem reduzido a pedir esmolas se degrada moral e fisicamente: se embrutece. Numa sociedade baseada na lei de Deus e na justiça deve-seprover à vida do fraco sem humilhação para ele. Deve-se assegurar a existência dos que não podem trabalhar, sem deixá-los à mercê do acaso e da boa vontade.

888-a. Então condenais a esmola?

Não, pois não é a esmola que é censurável, mas quase sempre a maneira por que ela é dada. O homem de bem, que compreende a caridade segundo Jesus, vai ao encontro do desgraçado sem esperar que ele lhe estenda a mão.

A verdadeira caridade é sempre boa e benevolente; tanto está no ato

quanto na maneira de fazê-la. Um serviço prestado com delicadeza tem duplo valor; se o for com altivez, a necessidade pode fazê-lo aceito mas o coração mal será tocado.

Lembrai-vos ainda de que a ostentação apaga aos olhos de Deus o mérito do benefício. Jesus disse: "Que a vossa mão esquerda ignore o que faz a direita". Com isso ele vos ensina a não manchar a caridade pelo orgulho.

E necessário distinguir a esmola propriamente dita da beneficência. O mais necessitado nem sempre é o que pede; o temor da humilhação retém o verdadeiro pobre, que quase sempre sofre sem se queixar. E a esse que o homem verdadeiramente humano sabe assistir sem ostentação.

Amai-vos uns aos outros, eis toda a lei, divina lei pela qual Deus governa os mundos. O amor é a lei de atração para os seres vivos e organizados, e a atração é a lei de amor para a matéria inorgânica.

Não olvideis jamais que o Espírito, qualquer que seja o seu grau de adiantamento, sua situação como reencarnado ou na erraticidade, está sempre colocado entre um superior que o guia e aperfeiçoa e um inferior perante o qual tem deveres iguais a cumprir. Sede portanto caridosos, não somente dessa caridade que vos leva a tirar do bolso o óbolo que friamente atirais ao que ousa pedir-vos, mas ide ao encontro das misérias ocultas. Sede indulgentes para com os erros dos vossos semelhantes. Em lugar de desprezar a ignorância

e o vício, instruí-os e moralizai-os. Sede afáveis e benevolentes para com todos os que vos são inferiores; sede-o mesmo para com os mais ínfimos seres da Criação, e tereis obedecido à lei de Deus.

São Vicente de Paulo.

889. Não há homens reduzidos à mendicidade por sua própria culpa?

Sem dúvida. Mas se uma boa educação moral lhes tivesse ensinado a praticar a lei de Deus, não teriam caído nos excessos que os levaram à perda. E é disso, sobretudo, que depende o melhoramento do vosso globo. (Ver item 707).

IV — Amor Maternal e Filial

890. O amor maternal é uma virtude ou um sentimento instintivo, comum aos homens e aos animais?

É uma coisa e outra. A Natureza deu à mãe o amor pelos filhos, no interesse de sua conservação; mas no animal esse amor é limitado às necessidades materiais: cessa quando os cuidados se tornam inúteis. No homem ele persiste por toda a vida e comporta um devotamento e uma abnegação que constituem virtudes; sobrevive mesmo à própria morte, acompanhando o filho além da tumba. Vedes que há nele alguma coisa mais do que no animal. (Ver item 205-385).

891. Se o amor materno é uma lei natural, porque existem mães que odeiam

os filhos e freqüentemente desde o nascimento?

E às vezes uma prova escolhida pelo Espírito do filho ou uma expiação, se ele tiver sido um mau pai, mãe ruim ou mau filho em outra existência. (Ver item 392). Em todos esses casos a mãe ruim não pode ser animada senão por um mau Espírito, que procura criar dificuldades ao do filho para que ele fracasse na prova desejada. Mas essa violação das leis naturais não ficará impune e o Espírito do filho será recompensado pelos obstáculos que tiver superado.

892. Quando os pais têm filhos que lhes causam desgostos, não são escusáveis de não terem por eles a ternura que teriam em caso contrário?

Não, porque se trata de um encargo que lhes foi confiado e sua missão é a de fazer todos os esforços para os conduzir ao bem. (Ver itens 582-583).Por outro lado, esses desgostos são quase sempre a conseqüência dos maus costumes que os pais deixaram os filhos seguir desde o berço. Colhem, portanto, o que semearam.

Capítulo XII

Perfeição Moral

I — As Virtudes e os Vícios

893. Qual a mais meritória de todas as virtudes?

Todas as virtudes têm o seu mérito, porque todas são indícios de progresso no caminho do bem. Há virtude sempre que há resistência voluntária ao arrastamento das tendências; mas a sublimidade da virtude consiste no sacrifício do interesse pessoal para o bem do próximo, sem segunda intenção. A mais meritória é aquele que se baseia na caridade mais desinteressada.

894. Há pessoas que fazem o bem por um impulso espontâneo, sem que tenham de lutar com nenhum sentimento contrário. Têm elas o mesmo mérito daquelas que têm de lutar contra a sua própria natureza e conseguem superá- la?

Os que não têm de lutar é porque já realizaram o progresso: lutaram anteriormente e venceram; é por isso que os bons sentimentos não lhes custam nenhum esforço e suas ações lhes parecem tão fáceis: o bemtornou-se para eles um hábito. Deve-se honrá-los como a velhos guerreiros que conquistaram suas posições. Como estais ainda longe da perfeição, esses exemplos vos espantam pelo contraste e os admirais tanto mais porque são raros. Mas sabei que nos mundos mais avançados que o vosso, isso que entre vós é exceção se torna regra. O sentimento do bem se encontra por toda parte e de maneira espontânea, porque são mundos habitados somente por bons Espíritos e uma única intenção má seria neles uma exceção monstruosa. Eis porque os homens

ali são felizes. E assim será também na Terra, quando a Humanidade se houver transformado e começar a praticar a caridade na sua verdadeira acepção.

895.A parte os defeitos e os vícios sobre os quais ninguém se enganaria, qual é o indício mais característico da imperfeição?

— O interesse pessoal. As qualidades morais são geralmente como a douração de um objeto de cobre, que não resiste à pedra de toque, Um homem pode possuir qualidades reais que o fazem para o mundo um homem de bem; mas essas qualidades, embora representem um progresso, não suportam em geral a certas provas e basta ferir a tecla do interesse pessoal para se descobrir o fundo. O verdadeiro desinteresse é de fato tão raro na Terra que se pode admirá-lo como a um fenômeno, quando ele se apresenta. O apego às coisas materiais é um indício notório de inferioridade, pois quanto mais o homem se apega aos bens deste mundo, menos compreende o seu destino. Pelo desinteresse, ao contrário, ele prova que vê o futuro de um ponto de vista mais elevado.

896.Há pessoas desinteressadas mas sem discernimento, que prodigalizam os seus haveres sem proveito real, por não saberem empregá-los de maneira razoável. Terão por isso algum mérito?

— Têm o mérito do desinteresse mas não o do bem que poderiam fazer. Se o

desinteresse é uma virtude, a prodigalidade irrefletida é sempre, pelo menos, uma falta de juízo. A fortuna não é dada a alguns para ser lançada ao vento, como não o é a outros para ser encerrada num cofre. É um depósito de que terão de prestar contas, porque terão de responder por todo o bem que poderiam ter feito e não o fizeram; por todas as lágrimas que poderiam ter enxugado com o dinheiro dado aos que na verdade não estavam necessitados.

897. Aquele que faz o bem sem visar a uma recompensa na Terra, mas na esperança de que lhe seja levado em conta na outra vida, e que nessa a sua posição seja melhor, é repreensível, e esse pensamento prejudica o seu adiantamento?

— É necessário fazer o bem por caridade, ou seja, com desinteresse.

897-a. Mas cada um tem o desejo muito natural de progredir para sair da situação penosa desta vida. Os Espíritos nos ensinam a praticar o bem com esse fim. Será, pois, um mal, pensar que pela prática do bem se pode esperar uma situação melhor?

— Não, por certo. Mas aquele que faz o bem sem segunda intenção, pelo prazer único de ser agradável a Deus e ao seu próximo sofredor, já se encontra num grau de adiantamento que lhe permitirá chegar mais rapidamente à felicidade do que o seu irmão que mais positivo, faz o bem por cálculo e não pelo impulso do ardor natural do coração. (Ver item 894).

897-b. Não há aqui uma distinção entre fazer o bem ao próximo e cuidar de se corrigir dos próprios defeitos? Concebemos que fazer o bem com o pensamento de que nos seja levado em conta na outra vida é pouco meritório; mas emendar-se, vencer as paixões, corrigir o caráter, visando a se aproximar dos bons Espíritos e progredir, será igualmente um sinal de inferioridade?

— Não, não; por fazer o bem queremos dizer ser caridoso. Aquele que calcula o que lhe pode render cada uma de suas boas ações, na outra vida ou mesmo na vida terrena, procede de maneira egoísta. Mas não há nenhum egoísmo em se melhorar com a intenção de se aproximar de Deus, pois esse é o objetivo que todos devem ter em vista.

898. Desde que a vida corpórea é apenas uma efêmera passagem por este mundo, e que o nosso futuro deve ser a nossa principal preocupação, é útilesforçar-nos por adquirir conhecimentos científicos que se referem somente às coisas e necessidades materiais?

— Sem dúvida. Primeiro, isso vos torna capazes de aliviar os vossos irmãos; depois, vosso Espírito se elevará mais depressa se houver progredido intelectualmente. No intervalo das encarnações aprendereis em uma hora aquilo que na Terra demandaria anos. Nenhum conhecimento é inútil; todos contribuem mais ou menos para o adiantamento, porque o Espírito perfeito deve saber tudo e devendo o progresso realizar-se em todos os sentidos, todas

as idéias adquiridas ajudam o desenvolvimento do Espírito.

899.De dois homens ricos, um nasceu na opulência e jamais conheceu a necessidade; o outro deve sua fortuna ao seu próprio trabalho; e todos os dois a empregam exclusivamente em sua satisfação pessoal. Qual deles o mais culpado?

— O que conheceu o sofrimento. Ele sabe o que é sofrer, conhece a dor que não alivia, mas como geralmente acontece, nem se lembra mais dela.

900.Aquele que acumula sem cessar e sem beneficiar a ninguém terá uma desculpa válida ao dizer que ajunta para deixar aos herdeiros?

— É um compromisso de má consciência.

901.De dois avarentos, o primeiro se priva do necessário e morre de necessidade sobre o seu tesouro; o segundo é avaro só para os demais e pródigo para consigo mesmo; enquanto recua diante do mais ligeiro sacrifício para prestar um serviço ou fazer uma coisa útil, nada lhe parece muito para satisfazer aos seus gostos e às suas paixões. Peçam-lhe um favor, e estará sempre de má vontade; ocorra-lhe, porém, uma fantasia, e estará sempre pronto a satisfazê-la. Qual deles é o mais culpável e qual terá o pior lugar no mundo dos Espíritos?

— Aquele que goza. É mais egoísta do que avarento. O outro já recebeu uma parte de sua punição.

902. É repreensível cobiçar a riqueza com o desejo de praticar o bem?

O sentimento é louvável, sem dúvida, quando puro. Mas esse desejo é sempre bastante desinteressado? Não trará oculta uma segunda intenção pessoal? A primeira pessoa a quem se deseja fazer o bem não será muitas vezes a nossa?

903. Há culpa em estudar os defeitos alheios?

Se é com o fito de criticar e divulgar, há muita culpa, porque isso é faltar com a caridade. Se é com intenção de proveito pessoal, evitando-seaqueles defeitos, pode ser útil. Mas não se deve esquecer que a indulgência para com os defeitos alheios é uma das virtudes compreendidas na caridade. Antes de censurar as imperfeições dos outros, vede se não podem fazer o mesmo a vosso respeito. Tratai, pois, de possuir as qualidades contrárias aos defeitos que criticais nos outros. Esse é um meio de vos tornardes superior. Se os censurais por serem avarentos, sede generosos; por serem orgulhosos, sede humildes e modestos; por serem duros, sede dóceis; por agirem com mesquinhez, sede grandes em todas as vossas ações. Em uma palavra, fazei de maneira que não vos possam aplicar aquelas palavras de Jesus: "Vedes um argueiro no olho do vizinho e não vedes uma trave no vosso"

904. É culpado o que sonda os males da sociedade e os desvenda?

Isso depende do sentimento que o leva a fazê-lo. Se o escritor só quer

fazer escândalo, é um prazer pessoal que se proporciona, apresentando quadros que são, em geral, antes um mau do que um bom exemplo. O Espírito faz uma apreciação, mas pode ser punido por essa espécie de prazer que sente em revelar o mal.

904-a. Como julgar, nesse caso, a pureza das intenções e a sinceridade do escritor?

Isso nem sempre é útil. Se ele escreve boas coisas, procuraaproveitá-las; se escreve más, é uma questão de consciência que a ele diz respeito. De resto, se ele quer provar a sua sinceridade, cabe-lhe reforçar os preceitos com o seu próprio exemplo.

905. Alguns autores publicaram obras muito belas e moralmente elevadas, que ajudam o progresso da Humanidade, mas das quais eles mesmo não tiraram proveito. Como Espíritos lhes será levado em conta o bem que fizeram através de suas obras?

A moral sem ações é como a semente sem o trabalho. De que vos serve a semente se não a fizerdes frutificar para vos alimentar? Esses homens são mais culpáveis porque tinham inteligência para compreender; não praticando as máximas que ofereciam aos outros, renunciaram a colher os seus frutos.

906. E repreensível aquele que, fazendo conscientemente o bem, reconhece que o faz?

— Desde que pode ter consciência do mal que fizer, deve tê-la igualmente do bem, a fim de saber se age bem ou mal. E pesando todas as suas ações na balança da lei de Deus, e sobretudo na da lei da justiça, do amor e da caridade, que ele poderá dizer a si mesmo se as suas açôes são boas ou más eaprová-las ou desaprová-las. Não pode, pois, ser responsabilizado por reconhecer que triunfou das más tendências e de estar satisfeito por isso, desde que não se envaideça, com o que cairia em outra falta. (Ver item 919).

II— Das Paixões

907.O princípio das paixões sendo natural, é mau em si mesmo?

Não. A paixão está na excesso provocado pela vontade, pois o princípio foi dado ao homem para o bem e as paixões podem conduzi-lo a grandes coisas. O abuso a que ele se entrega é que causa o mal.

908. Como definir o limite em que as paixões deixam de ser boas ou más?

As paixões são como um cavalo que é útil quando governado e perigoso quando governa. Reconhecei, pois, que uma paixão se torna perniciosa no momento em que a deixais de governar e quando resulta num prejuízo qualquer para vós ou para outro.

As paixões são alavancas que decuplicam as forças do homem e o ajudam a cumprir os desígnios da Providência. Mas, se em vez de as dirigir, o homem se deixa dirigir por elas, cai no excesso e a própria força que em suas mãos

poderia fazer o bem, recai sobre ele e o esmaga.

Todas as paixões têm seu princípio num sentimento ou uma necessidade da Natureza. O princípio das paixões não é portanto um mal, pois repousa sobre uma das condições providenciais da nossa existência. A paixão propriamente dita é o exagero de uma necessidade ou de um sentimento; está no excesso e não na causa; e esse excesso se torna mau quando tem por conseqüência algum mal.

Toda paixão que aproxima o homem da Natureza animal o afasta da Natureza espiritual.

Todo sentimento que eleva o homem acima da Natureza animal anuncia o predomínio do Espírito sobre a matéria e o aproxima da perfeição.

909.O homem poderia sempre vencer as suas más tendências pelos seus próprios esforços?

— Sim, e às vezes com pouco esforço; o que lhe falta é a vontade. Ah, como são poucos os que se esforçam!

910.O homem pode encontrar nos Espíritos uma ajuda eficaz para superar as paixões?

— Se orar a Deus e ao seu bom gênio com sinceridade os bons Espíritos virão certamente em seu auxilio, porque essa é a sua missão. (Ver item 459).

911.Não existem paixões de tal maneira vivas e irresistíveis que a vontade

seja impotente para as superar?

— Há muitas pessoas que dizem: "Eu quero!" mas a vontade está somente em seus lábios. Elas querem mas estão muito satisfeitas de que assim não seja. Quando o homem julga que não pode superar suas paixões é que o seu Espírito nelas se compraz, como conseqüência de sua própria inferioridade. Aquele que procura reprimi-las compreende a sua natureza espiritual; vencê- las é para ele um triunfo do Espírito sobre a matéria.

912. Qual o meio mais eficaz de se combater a predominância da natureza corpórea?

— Abnegar-se.

III — Do Egoísmo

913. Entre os vícios, qual o que podemos considerar radical?

— Já o dissemos muitas vezes: o egoísmo. Dele deriva todo o mal. Estudai todos os vícios e vereis que no fundo de todos existe egoísmo. Por mais que luteis contra eles não chegareis a extirpá-los enquanto não os atacardes pela raiz, enquanto não lhes houverdes destruído a causa. Que todos os vossos esforços tendam para esse fim, porque nele se encontra a verdadeira chaga da sociedade. Quem nesta vida quiser se aproximar da perfeição moral deve extirpar do seu coração todo sentimento de egoísmo, porque é incompatível com a justiça, o amor e a caridade: ele neutraliza todas as outras qualidades.

914.Estando o egoísmo fundado no interesse pessoal, parece difícil extirpá- lo inteiramente do coração do homem. Chegaremos a isso?

— A medida que os homens se esclarecem sobre as coisas espirituais, dão menos valor às materiais; em seguida, é necessário reformar as instituições humanas, que o entretêm e excitam. Isso depende da educação.

915.Sendo o egoísmo inerente à espécie humana, não será um obstáculo permanente ao reino do bem absoluto sobre a Terra?

— É certo que o egoísmo é o vosso mal maior, mas ele se liga à inferioridade dos Espíritos encarnados na Terra e não à Humanidade em si mesma. Ora, os Espíritos se purificam nas encarnações sucessivas, perdendo o egoísmo assim como perdem as outras impurezas. Não tendes na Terra algum homem destituído de egoísmo e praticante da caridade? Existem em maior número do que julgais, mas conheceis poucos porque a virtude não se procura fazer notar. E se há um, por que não haverá dez; se há dez, por que não haverá mil, e assim por diante?

916.O egoísmo, longe de diminuir, cresce com a civilização, que pareceexcitá-lo e entretê-lo. Como poderá a causa destruir o efeito?

— Quanto maior é o mal, mais horrível se torna. Era necessário que o egoísmo produzisse muito mal para fazer compreender a necessidade de sua extirpação. Quando os homens se tiverem despido do egoísmo que os domina

viverão como irmãos, não se fazendo o mal e se ajudarão reciprocamente pelo sentimento fraterno de solidariedade. Então o forte será o apoio e não o opressor do fraco e não mais se verá homens desprovidos do necessário, porque todos praticarão a lei da justiça. Esse é o reino do bem que os Espíritos estão encarregados de preparar. (Ver item 784).

917. Qual é o meio de se destruir o egoísmo?

— De todas as imperfeições humanas, a mais difícil de desenraizar é o egoísrno, porque se liga à influência da matéria, da qual o homem, ainda muito próximo da sua origem, não pode libertar-se. Tudo concorre para entreter essa influência; suas leis, sua organização social, sua educação. O egoísmo se enfraquecerá com a predominância da vida moral sobre a vida material, e sobretudo com a compreensão que o Espiritismo vos dá quanto ao vosso estado futuro real e não desfigurado pelas ficções alegóricas. O Espiritismo bem compreendido, quando estiver identificado com os costumes e as crenças, transformará os hábitos, as usanças e as relações sociais. O egoísmo se funda na importância da personalidade; ora, o Espiritismo bem compreendido, repito-o, faz ver as coisas de tão alto que o sentimento da personalidade desaparece de alguma forma perante a imensidade. Ao destruir essa importância, ou pelo menos ao fazer ver a personalidade naquilo que de fato ela é, ele combate necessariamente o egoísmo.

É o contato que o homem experimenta do egoísmo dos outros que o torna geralmente egoísta, porque sente a necessidade de se pôr na defensiva. Vendo que os outros pensam em si mesmos e não nele, é levado a ocupar-sede si mesmo mais que dos outros. Que o princípio da caridade e da fraternidade seja a base das instituições sociais, das relações legais de povo para povo e de homem para homem, e este pensará menos em si mesmo quando vir que os outros o fazem; sofrerá, assim, a influência moralizadora do exemplo e do contato. Em face do atual desdobramento do egoísmo é necessária uma verdadeira virtude para abdicar da própria personalidade em proveito dos outros, que em geral não o reconhecem. É a esses, sobretudo, que possuem essa virtude, que está aberto o reino dos céus; a eles sobretudo está reservada a felicidade dos eleitos, pois em verdade vos digo que no dia do juízo quem quer que não tenha pensado senão em si mesmo será posto de lado e sofrerá no abandono. (Ver item 785).

Fénelon

Louváveis esforços são feitos, sem dúvida, para ajudar a Humanidade a avançar; encorajam-se, estimulam-se, honram-se os bons sentimentos, hoje mais do que em qualquer outra época, e não obstante o verme devorador do egoísmo continua a ser a praga social. É um verdadeiro mal que se espalha por todo o mundo e do qual cada um é mais ou menos vítima. É necessário

combatê-lo, portanto, como se combate uma epidemia. Para isso, deve-seproceder à maneira dos médicos: remontar à causa. Que se pesquisem em toda a estrutura da organização social, desde a família até os povos, da choupana ao palácio, todas as causas, as influências patentes ou ocultas que excitam, entretêm e desenvolvem o sentimento do egoísmo. Uma vez conhecidas as causas, o remédio se apresentará por si mesmo; só restará então combatê-las, senão a todas ao mesmo tempo, pelo menos por parte, e pouco a pouco o veneno será extirpado. A cura poderá ser prolongada porque as causas são numerosas, mas não se chegará a esse ponto se não se atacar o mal pela raiz, ou seja, com a educação. Não essa educação que tende a fazer homens instruídos, mas a que tende a fazer homens de bem. A educação, se for bem compreendida, será a chave do progresso moral. Quando se conhecer a arte de manejar os caracteres como se conhece a de manejar as inteligências, poder- se-á endireitá-los, da mesma maneira como se endireitam as plantas novas. Essa arte, porém, requer muito tato, muita experiência e uma profunda observação. E um grave erro acreditar que basta ter a ciência para aplicá-la de maneira proveitosa. Quem quer que observe, desde o instante do seu nascimento, o filho do rico como o do pobre, notando todas as influências perniciosas que agem sobre ele em conseqüência da fraqueza, da incúria e da ignorância dos que o dirigem, e como em geral os meios empregados para

moralizar fracassam, não pode admirar-se de encontrar no mundo tanta confusão.

Que se faça pela moral tanto quanto se faz pela inteligência e ver-se-á que há naturezas refratárias, há também, em maior número do que se pensa, as que requerem apenas boa cultura para darem bons frutos. (Ver item 872).

O homem quer ser feliz e esse sentimento está na sua própria natureza; eis por que ele trabalha sem cessar para melhorar a sua situação na Terra e procura as causas de seus males para os remediar. Quando compreender bem que o egoísmo é uma dessas causas, aquela que engendra o orgulho, a ambição, a cupidez, a inveja, o ódio, o ciúme, dos quais a todo momento ele é vítima, que leva a perturbação a todas as relações sociais. provoca as dissensões, destrói a confiança, obrigando-o a se manter constantemente numa atitude de defesa em face ao seu vizinho, e que, enfim, do amigo faz um inimigo, então ele compreenderá também que esse vício é incompatível com a sua própria felicidade. Acrescentaremos que é incompatível com a sua própria segurança. Dessa maneira, quanto mais sofrer mais sentirá a necessidade de o combater, como combate a peste, os animais daninhos e todos os outros flagelos. A isso será solicitado pelo seu próprio interesse. (Ver item 784).

O egoísmo é a fonte de todos os vícios, como a caridade é a fonte de todas as virtudes. Destruir um e desenvolver a outra deve ser alvo de todos os

esforços do homem, se ele deseja assegurar a sua felicidade neste mundo, tanto quanto no futuro.

IV — Caracteres do Homem de Bem

918. Por que sinais se pode reconhecer no homem o progresso real que deve elevar o seu Espírito na hierarquia espírita?

— O Espírito prova a sua elevação quando todos os atos da sua vida corpórea constituem a prática da lei de Deus e quando compreende por antecipação a vida espiritual.

O verdadeiro homem de bem é aquele que pratica a lei de justiça, de amor e de caridade na sua mais completa pureza. Se interroga sua consciência sobre os atos praticados, perguntará se não violou essa lei, se não cometeu nenhum mal, se fez todo o bem que podia, se ninguém teve de se queixar dele, enfim, se fez para os outros tudo o que gostaria que os outros lhe fizessem.

O homem possuido pelo sentimento de caridade e de amor ao próximo faz o bem pelo bem, sem esperança de recompensa, e sacrifica o seu interesse pela justiça.

Ele é bom, humano e benevolente para com todos, porque vê irmãos em todos os homens, sem exceção de raças ou de crenças.

Se Deus lhe deu o poder e a riqueza, olha essas coisas como um depósito do

qual deve usar para o bem, e disso não se envaidece porque sabe que Deus, que lhos deu, também poderá retirá-los.

Se a ordem social colocou homens sob a sua dependência, trata-os com bondade e benevolência porque são iguais perante Deus; usa de sua autoridade para lhes erguer à moral e não para os esmagar com o seu orgulho.

É indulgente para com as fraquezas dos outros porque sabe que ele mesmo tem necessidade de indulgência e se recorda destas palavras do Cristo: "Que aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra".

Não é vingativo: a exemplo de Jesus, perdoa as ofensas para não se lembrar senão dos benefícios, porque sabe que lhe será perdoado assim como tiver perdoado.

Respeita, enfim, nos seus semelhantes, todos os direitos decorrentes da lei natural, como desejaria que respeitassem os seus.

V — Conhecimento de Si Mesmo

919. Qual o meio prático mais eficaz para se melhorar nesta vida e resistir ao arrastamento do mal?

— Um sábio da Antigüidade vos disse: "Conhece-te a ti mesmo".

919. Compreendemos toda a sabedoria dessa máxima, mas a dificuldade está precisamente em se conhecer a si próprio. Qual o meio de chegar a isso ?

— Fazei o que eu fazia quando vivi na Terra: no fim de cada dia interrogava

à minha consciência, passava em revista o que havia feito e me perguntava a mim mesmo se não tinha faltado ao cumprimento de algum dever, se ninguém teria tido motivo para se queixar de mim. Foi assim que cheguei a me conhecer e ver o que em mim necessitava de reforma. Aquele que todas as noites lembrasse todas as suas ações do dia, e, se perguntasse o que fez de bem ou de mal, pedindo a Deus e ao seu anjo guardião que o esclarecessem, adquiriria uma grande força para se aperfeiçoar, porque, acreditai-me, Deus o assistirá. Formulai, portanto, as vossas perguntas, indagai o que fizestes e com que fito agistes em determinada circunstância, se fizestes alguma coisa que censuraríeis nos outros, se praticastes uma ação que não ousaríeis confessar. Perguntai ainda isto: Se aprouvesse a Deus chamar-me neste momento, ao entrar no mundo dos Espíritos, onde nada é oculto, teria eu de temer o olhar de alguém? Examinai o que pudésseis ter feito contra Deus, depois contra o próximo e por fim contra vós mesmos. As respostas serão motivo de repouso para vossa consciência ou indicarão um mal que deve ser curado.

O conhecimento de si mesmo é portanto a chave do melhoramento individual. Mas, direis, como julgar a si mesmo? Não se terá a ilusão do amor- próprio, que atenua as faltas e as torna desculpáveis? O avaro se julga simplesmente econômico previdente, o orgulhoso se considera tão somente cheio de dignidade. Tudo isso é muito certo, mas tendes um meio de controle

que não vos pode enganar. Quando estais indecisos quanto ao valor de uma de vossas ações, perguntai como a qualificaríeis se tivesse sido praticada por outra pessoa. Se a censurardes em outros, ela não poderia ser mais legítima para vós, porque Deus não usa de duas medidas para a justiça. Procurai também saber o que pensam os outros e não negligencieis a opinião dos vossos inimigos, porque eles não têm nenhum interesse em disfarçar a verdade e geralmente Deus os colocou ao vosso lado como um espelho, para vos advertirem com mais franqueza do que o faria um amigo. Que aquele que tem a verdadeira vontade de se melhorar explore, portanto, a sua consciência, a fim de arrancar dali as más tendências como arranca as ervas daninhas do seu jardim; que faça o balanço da sua jornada moral como o negociante o faz dos seus lucros e perdas, e eu vos asseguro que o primeiro será mais proveitoso que o outro. Se ele puder dizer que a sua jornada foi boa, pode dormir em paz e esperar sem temor o despertar na outra vida.

Formulai, portanto, perguntas claras e precisas e não temais multiplicá-las:pode-se muito bem consagrar alguns minutos à conquista da felicidade eterna. Não trabalhais todos os dias para ajuntar o que vos dê repouso na velhice? Esse repouso não é o objeto de todos os vossos desejos, o alvo que vos permite sofrer as fadigas e as privações passageiras? Pois bem: o que é esse repouso de alguns dias, perturbado pelas enfermidades do corpo, ao lado

daquilo que aguarda o homem de bem? Isto não vale a pena de alguns esforços? Sei que muitos dizem que o presente é positivo e o futuro incerto. Ora, ai está, precisamente, o pensamento que fomos encarregados de destruir em vossas mentes, pois desejamos fazer-vos compreender esse futuro de maneira a que nenhuma dúvida possa restar em vossa alma. Foi por isso que chamamos primeiro a vossa atenção para os fenômenos da Natureza que vos tocam os sentidos e depois vos demos instruções que cada um de vós tem o dever de difundir. Foi com esse propósito que ditamos O Livro dos Espíritos. Santo Agostinho

Muitas faltas que cometemos nos passam despercebidas. Se, com efeito, seguindo o conselho de Santo Agostinho, interrogássemos mais freqüentemente a nossa consciência, veríamos quantas vezes falimos sem disso nos apercebermos, por não perscrutarmos a natureza e o móvel dos nossos atos. A forma interrogativa tem alguma coisa de mais preciso do que uma máxima que em geral não aplicamos a nós mesmos. Ela exige respostas categóricas, por um sim ou um não, que não deixam lugar a alternativas: respostas que são outros tantos argumentos pessoais, pela soma das quais podemos computar a soma do bem e do mal que existe em nós.

LIVRO QUARTO

ESPERANÇAS E CONSOLAÇÕES

Capítulo I

Penas e Gozos Terrenos

I — Felicidade e Infelicidade Relativas

920. O homem pode gozar na Terra uma felicidade completa?

Não, pois a vida lhe foi dada como prova ou expiação, mas dele depende abrandar os seus males e ser tão feliz quanto se pode ser na Terra.

921. Concebe-se que o homem seja feliz na Terra quando a Humanidade estiver transformada, mas enquanto isso não se verifica pode cada um gozar de uma felicidade relativa?

O homem é, na maioria das vezes, o artífice de sua própria infelicidade. Praticando a lei de Deus ele pode poupar-se a muitos males e gozar de uma felicidade tão grande quanto o comporta a sua existência num plano grosseiro.

O homem bem compenetrado do seu destino futuro não vê na existência corpórea mais do que uma rápida passagem. É como uma parada momentânea numa hospedaria precária. Ele se consola facilmente de alguns aborrecimentos passageiros, numa viagem que deve conduzi-lo a uma situação tanto melhor quanto mais atenciosamente tenha feito os seus preparativos para ela.

Somos punidos nesta vida pelas infrações que cometemos às leis da existência corpórea, pelos próprios males decorrentes dessas infrações e pelos nossos próprios excessos. Se remontarmos pouco a pouco à origem do que chamamos infelicidades terrenas, veremos a estas, na sua maioria, como a conseqüência de um primeiro desvio do caminho certo. Em virtude desse desvio inicial entramos num mau caminho, e, de conseqüência em conseqüência, caímos afinal na desgraça.

922.A felicidade terrena é relativa à posição de cada um: o que é suficiente para a felicidade de um faz a desgraça de outro. Há, entretanto, uma medida comum de felicidade para todos os homens?

— Para a vida material, a posse do necessário; para a vida moral, a consciência pura e a fé no futuro.

923.Aquilo que seria supérfluo para um não se torna o necessário para outro, e vice-versa, segundo a posição?

— Sim, de acordo com as vossas idéias materiais, os vossos preconceitos, a vossa ambição e todos os vossos caprichos ridículos, para os quais o futuro fará justiça quando tiverdes a compreensão da verdade. Sem dúvida, aquele que tivesse uma renda de cinqüenta mil libras e a visse reduzida a dez mil,considerar-se-ia muito infeliz por não poder continuar fazendo boa figura, mantendo o que chama a sua classe, ter bons cavalos e lacaios, satisfazer a

todas as paixões, etc. Julgaria faltar-lhe o necessário. Mas, francamente, podes considerá-lo digno de lástima, quando ao seu lado há os que morrem de fome e de frio, sem um lugar em que repousar a cabeça? O homem sensato, para ser feliz, olha para baixo e jamais para os que lhe estão acima, a não ser para elevar sua alma ao infinito. (Ver item 715).

924.Existem males que não dependem da maneira de agir e que ferem o homem mais justo. Não há algum meio de se preservar deles?

O atingido deve resignar-se e sofrer sem queixas, se deseja progredir. Entretanto, encontra sempre uma consolação na sua própria consciência, que lhe dá a esperança de um futuro melhor quando ele faz o necessário para obtê- lo.

925.Por que Deus beneficia com os bens da fortuna certos homens que não parecem merecê-los?

— Esse é um favor aos olhos daqueles que não enxergam além do presente; mas sabei-o, a fortuna é uma prova geralmente mais perigosa que a miséria. (Ver item 814 e seguintes).

926.A civilização, criando novas necessidades, não é a fonte de novas aflições?

— Os males deste mundo estão na razão das necessidades artificiais que criais para vós mesmos. Aquele que sabe limitar os seus desejos e ver sem

cobiça o que está fora das suas possibilidades, poupa-se a muitos

aborrecimentos nesta vida. O mais rico é aquele que tem menos necessidades.

Invejais os prazeres dos que vos parecem os felizes do mundo. Mas sabeis, por acaso, o que lhes está reservado? Se não gozam senão para si mesmos, são egoístas e terão de sofrer o reverso. Lamentai-os, antes de invejá- los. Deus às vezes permite que o mau prospere, mas essa felicidade não é para se invejar, porque a pagará com lágrimas amargas. Se o justo é infeliz é porque passa por uma prova que lhe será levada em conta, desde que a saiba suportar com coragem. Lembrai-vos das palavras de Jesus:"Bem-aventurados os que sofrem porque serão consolados".

927. O supérfluo não é, por certo, indispensável à felicidade, mas não se dá o mesmo com o necessário. Ora, a desgraça daqueles que serão privados do necessário não é real?

O homem não é verdadeiramente desgraçado senão quando sente a falta daquilo que lhe é necessário para a vida e a saúde do corpo. Essa privação é talvez conseqüência de sua própria falta e então ele só deve queixar-se de si mesmo. Se a falta fosse de outro, a responsabilidade caberia a quem a tivesse causado.

928. Pela natureza especial das aptidões naturais Deus indica evidentemente a nossa vocação neste mundo. Muitos males não provêm do fato de não

seguirmos essa vocação?

Isso é verdade, e muitas vezes são os pais que, por orgulho ou avareza, fazem os filhos se desviarem do caminho traçado pela Natureza,comprometendo-lhes com isso a felicidade. Mas serão responsabilizados.

928-a. Então considerais justo que o filho de um homem da alta sociedade fabricasse tamancos, por exemplo, se fosse essa a sua aptidão?

Não se precisa cair no absurdo nem no exagero: a civilização tem as suas necessidades. Por que o filho de um homem da alta sociedade, como dizes, teria de fazer tamancos se pode fazer outras coisas? Ele poderá sempre se tornar útil na medida de suas faculdades, se não as aplicar em sentido contrário. Assim, por exemplo, em vez de um mau advogado, poderia ser talvez um bom mecânico, etc.

O deslocamento dos homens de sua esfera intelectual própria é seguramente uma das causas mais freqüentes de decenção. A inaptidão para a carreira abraçada é uma fonte inesgotável de revezes. Depois, oamor-próprio vem juntar-se a isso, impedindo o homem de recorrer a uma profissão mais humilde e lhe mostra o suicídio como o supremo remédio para escapar ao que ele julga uma humilhação. Se uma educação moral o tivesse preparado acima dos tolos preconceitos do orgulho, jamais ele seria apanhado desprevenido.

929. Há pessoas que, privadas de todos os recursos, mesmo quando reine a

abundância em seu redor não vêem outra perspectiva de solução para o seu caso a não ser a morte. Que devem fazer? Deixar-se morrer de fome?

O homem jamais deve ter a idéia de se deixar morrer de fome, pois sempre encontraria meios de se alimentar, se o orgulho não se lhe interpusesse entre a necessidade e o trabalho. Freqüentemente dizemos que não há profissões humilhantes e que não é o ofício que desonra; mas o dizemos para os outros e não para nós.

930. É evidente que, sem os preconceitos sociais, pelos quais se deixa dominar, o homem sempre encontraria um trabalho qualquer que o pudesse ajudar a viver, mesmo deslocado de sua posição. Mas entre as pessoas que não têm preconceitos ou que os põem de lado, não há as que estão impossibilitadas de prover às suas necessidades em conseqüência de moléstias ou outras causas independentes de sua vontade?

Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome.

Com uma organização social previdente e sábia o homem não pode sofrer necessidades, a não ser por sua culpa. Mas as próprias culpas do homem são freqüentemente o resultado do meio em que ele vive. Quando o homem praticar a lei de Deus, disporá de uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade e com isso ele mesmo será melhor. (Ver item 793).

931.Por que as classes sociais sofredoras são mais numerosas do que as felizes?

— Nenhuma é perfeitamente feliz, pois aquilo que se considera a felicidade muitas vezes oculta pungentes aflições. 0 sofrimento está por toda parte. Entretanto, para responder ao teu pensamento, direi que as classes a que chamas sofredoras são mais numerosas porque a Terra é um lugar de expiação. Quando o homem a tiver transformado em morada do bem e das bons Espíritos não mais será infeliz neste mundo, que será para ele o paraíso terrestre.

932.Por que, neste mundo, os maus exercem geralmente maior influência sobre os bons?

— Pela fraqueza dos bons. Os maus são intrigantes e audaciosos; os bons são tímidos. Estes, quando quiserem, assumirão a preponderância.

933.Se é o homem, em geral, o artífice dos seus sofrimentos materiais, sê-lo-á também dos sofrimentos morais?

— Mais ainda, pois os sofrimentos materiais são às vezes independentes da vontade, enquanto o orgulho ferido, a ambição frustrada, a ansiedade da avareza, a inveja, o ciúme, todas as paixões enfim, constituem torturas da alma.

— Inveja e ciúme! Felizes os que não conhecem esses dois vermes vorazes.

Com a inveja e o ciúme não há calma, não há repouso possível. Para aquele que sofre desses males, os objetos da sua cobiça, do seu ódio e do seu despeito se erguem diante dele como fantasmas que não o deixam em paz e o perseguem até no sono. O invejoso e o ciumento vivem num estado de febre contínua. É essa uma situação desejável? Não compreendeis que, com essas paixões, o homem cria para si mesmo suplícios voluntários e que a Terra se transforma para ele num verdadeiro inferno?

Muitas expressões figuram energicamente os efeitos de algumas paixões.Diz-se estar inchado de orgulho, morrer de inveja, secar de ciúmes ou de despeito, perder o apetite por ciúmes, etc. Esse quadro nos dá bem a verdade. As vezes o ciúme nem tem objeto determinado. Há pessoas que se mostram naturalmente ciumentas de todos os que se elevam, de todos os que saem da vulgaridade, mesmo quando não tenham no caso nenhum interesse direto, mas unicamente por não poderem atingir o mesmo plano. Tudo aquilo que parece acima do horizonte comum as ofusca, e, se formassem a maioria da sociedade, tudo desejariam rebaixar ao seu próprio nível. Temos nestes casos o ciúme aliado à mediocridade.

O homem só é infeliz, geralmente, pela importância que liga às coisas deste mundo. A vaidade, a ambição e a cupidez fracassadas o fazem infeliz. Se ele se elevar acima do círculo estreito da vida material, se elevar o seu

pensamento ao infinito, que é o seu destino, as vicissitudes da Humanidade lhe parecerão mesquinhas e pueris, como as mágoas da criança ao se afligir pela perda de um brinquedo que representava a sua felicidade suprema.

Aquele que só encontra a felicidade na satisfação do orgulho e dos apetites grosseiros é infeliz quando não os pode satisfazer, enquanto o que não se interessa pelo supérfluo se sente feliz com aquilo que para os outros constituiria infortúnio.

Referimo-nos aos homens civilizados, porque o selvagem, tendo necessidades mais limitadas, não tem os mesmos motivos de cobiça e de angústias: sua maneira de ver as coisas é muito diferente. No estado de civilização o homem pondera a sua infelicidade, a analisa, e por isso é mais afetado por ela, mas pode também ponderar e analisar os seus meios de consolação. Esta consolação ele a encontra no sentimento cristão que lhe dá a esperança de um futuro melhor, e no Espiritismo, que lhe dá a certeza do futuro.

II— Perda de Entes Queridos

934.A perda de entes queridos não nos causa um sofrimento tanto mais legítimo, quando é irreparável e independente da nossa vontade?

— Essa causa de sofrimento atinge tanto o rico como o pobre: é uma prova ou expiação e lei para todos. Mas é uma consolação poderdes comunicar-vos

com os vossos amigos pelos meios de que dispondes, enquanto esperais o

aparecimento de outros mais diretos e mais acessíveis aos vossos sentidos.

935.Que pensar da opinião das pessoas que consideram as comunicações de além-túmulo como uma profanação?

— Não pode haver profanação quando há recolhimento e quando a evocação

éfeita com respeito e decoro. O que o prova é que os Espíritos que vos são afeiçoados se manifestam com prazer, sentem-se felizes com a vossa lembrança e por conversarem convosco. Profanação haveria se as evocações fossem feitas com leviandade.

A possibilidade de entrar em comunicação com os Espíritos é uma bem doce consolação, que nos proporciona o meio de nos entretermos com os parentes e amigos que deixaram a Terra antes de nós. Pela evocação eles se aproximam de nós, permanecem ao nosso lado, nos ouvem e nos respondem. Não existe mais, por assim dizer, separação entre nós e eles, que nos ajudam com os seus conselhos, nos dão testemunho da sua afeição e do contentamento que experimentam por nos lembrarmos deles. É para nós uma satisfação sabê-los felizes e aprender através deles os detalhes da sua nova existência, adquirindo a certeza de um dia, por nossa vez, nos juntarmos a eles.

936.Como as dores inconsoláveis dos que ficaram na Terra afetam os Espíritos que partiram?

— O Espírito é sensível à lembrança e às lamentações daqueles que amou, mas uma dor incessante e desarrazoada o afeta penosamente, porque ele vê nesse excesso uma falta de fé no futuro e de confiança em Deus, e por conseguinte, um obstáculo ao progresso e talvez ao próprio reencontro com os que deixou.

Estando o Espírito mais feliz do que na Terra, lamentar que tenha deixado esta vida é lamentar que ele seja feliz. Dois amigos estão presos na mesma cadeia; ambos devem ter um dia a liberdade, mas um deles a obtém primeiro. Seria caridoso que aquele que continua preso se entristecesse por ter o seu amigo se libertado antes? Não haveria de sua parte mais egoismo do que afeição, ao querer que o outro partilhasse por mais tempo do seu cativeiro e dos seus sofrimentos? O mesmo acontece entre dois seres que se amam na Terra. O que parte primeiro foi o primeiro a se libertar e devemos felicitá-lopor isso, esperando com paciência o momento em que também nos libertaremos.

Faremos outra comparação. Tendes um amigo que, ao vosso lado, se encontra em situação penosa. Sua saúde ou seu interesse exige que vá para outro país, onde estará melhor sob todos os aspectos. Dessa maneira, ele não estará mais ao vosso lado, durante algum tempo, mas estareis sempre em correspondência com ele. A separação não será mas do que material. Ficareis

aborrecido com o seu afastamento, que é para o seu bem?

A doutrina espírita, pelas provas patentes que nos dá quanto a vida futura, à presença ao nosso redor dos seres aos quais amamos, à continuidade da sua afeição e da sua solicitude, pelas relações que nos permite entreter com eles, nos oferece uma suprema consolação, numa das causas mais legítimas de dor. Com o Espiritismo não há mais solidão, não há mais abandono. O mais isolado dos homens tem sempre amigos ao seu redor, com os quais podecomunicar-se.

Suportamos impacientemente as atribulações da vida. Elas nos parecem tão intoleráveis que supomos não as poder agüentar. Não obstante, se as suportamos com coragem, se soubermos impor silêncio às nossas lamentações, haveremos de nos felicitar quando estivermos fora desta prisão terrena, como o paciente que sofria se felicita ao se ver curado, por haver suportado com resignação um tratamento doloroso.

III— Decepções, Ingratidão, Quebra de Afeições

937.As decepções provocadas pela ingratidão e pela fragilidade dos laços de amizade não são, também, para o homem de coração, uma fonte de amarguras?

— Sim, mas já vos ensinamos a lastimar os ingratos e os amigos infiéis, que serão mais infelizes do que vós. A ingratidão é filha do egoísmo e o egoísta

encontrará mais tarde corações insensíveis como ele próprio o foi. Pensai em todos os que fizeram maior bem do que vós, que valiam mais do que vós, e no entanto foram pagos com a ingratidão. Pensai que o próprio Jesus, quando na Terra, foi injuriado e desprezado, tratado de patife e impostor, e não vos admireis de que o mesmo vos aconteça. Que o bem que fizestes seja a vossa recompensa neste mundo e não vos importeis com o que dizem os beneficiados.

A ingratidão é uma prova para a vossa persistência em fazer o bem. Isso vos será levado em conta, e os que não vos foram reconhecidos serão punidos tanto mais quanto maior houver sido a sua ingratidão.

938. As decepções causadas pela ingratidão não podem endurecer o coração e torná-lo insensível?

Seria um erro pensar assim, porque o homem de coração, como dizes, será sempre feliz pelo que praticar. Ele sabe que, se não o reconhecerem nesta vida, na outra o farão, e o ingrato sentirá então remorso e vergonha.

938-a. Este pensamento não impede que o seu coração se sinta ferido. Ora, disso não pode nascer-lhe a idéia de que seria mais feliz se fosse menos sensível?

Sim, se ele preferir a felicidade do egoísta, uma bem triste felicidade! Se ele sabe, no entanto, que os amigos ingratos que o abandonam não são dignos

da sua amizade e que se enganou a respeito dos mesmos, não deve mais lamentar a sua perda. Mais tarde encontrará os que melhor o compreenderão. Lamentai os que vos tratam de maneira que não mereceis, pois terão uma triste recompensa. Mas não vos aflijais por isso: é o meio de vos elevardes sobre eles.

A Natureza deu ao homem a necessidade de amar e ser amado. Um dos maiores gozos que lhes são concedidos na Terra é o de encontrar corações que simpatizem com o seu. Ela lhe concede, assim, as primícias da felicidade que lhe está reservada no mundo dos Espíritos perfeitos, onde tudo é amor e benevolência: essa é uma ventura recusada ao egoísta.

IV — Uniões Antipáticas

939. Desde que os Espíritos simpáticos são levados a se unir, como se explica que entre os encarnados a afeição freqüentemente exista apenas de um lado e o amor mais sincero seja recebido com indiferença e mesmo com repulsa? Como, além disso, a mais viva afeição entre dois seres pode se transformar em antipatia e algumas vezes em ódio?

— Não compreendes, então, que seja uma punição, embora passageira? Além disso, quantos há que pensam amar perdidamente porque julgam apenas as aparências, e quando são obrigados a viver em comum não tardam em reconhecer que se tratava somente de uma paixão material. Não é suficiente

estar enamorado de uma pessoa que vos agrada e que supondes dotada de belas qualidades; é vivendo realmente com ela que a podereis apreciar. Quantas uniões, por outro lado, que a princípio pareciam incompatíveis e com o correr do tempo, quando ambos se conheceram melhor, se transformaram num amor terno e durável, porque baseado na estima recíproca! É necessário não esquecer que o Espírito é quem ama, e não o corpo, e que, dissipada a ilusão material, o Espírito vê a realidade.

Há duas espécies de afeição: a do corpo e a da alma, e freqüentemente se toma uma pela outra. A afeição da alma, quando pura e simpática, é duradoura; a do corpo é perecível: eis porque os que se julgam amar com um amor eterno acabam se odiando, quando passa a ilusão.

940. A falta de simpatia entre os seres destinados a viver juntos não é igualmente uma fonte de sofrimentos, tanto mais amarga quanto envenena toda a existência?

Muito amarga, de fato: mas é uma dessas infelicidades de que, na maioria das vezes, sois a primeira causa. Em primeiro lugar as vossas leis são erradas, pois acreditais que Deus vos obriga a viver com aqueles que vos desagradam? Depois, nessas uniões procurais quase sempre mais a satisfação do vosso orgulho e da vossa ambição do que a felicidade de uma afeição mútua. E sofreis, então, apenas a conseqüência dos vossos preconceitos.

940-a. Mas nesse caso não haverá quase sempre, uma vítima inocente?

— Sim, e isso é para ela uma dura expiação, mas a responsabilidade da sua infelicidade recairá sobre os que a causaram. Se a luz da verdade tiver penetrado em sua alma ela se consolará com a fé no futuro. De resto, à medida que os preconceitos se enfraquecerem, desaparecerão também as causas dessas infelicidades íntimas.

V — Preocupação com a Morte

941. A preocupação com a morte é para muitas pessoas uma causa de perplexidade; mas por que essa preocupação, se elas têm o futuro pela frente?

— É errado que tenham essa preocupação. Mas que queres? Procurampersuadi-las, desde cedo, de que há um inferno e um paraíso, sendo mais certo que elas vão para o inferno, pois lhes ensinam que aquilo que pertence à própria Natureza é um pecado mortal para a alma. Assim, quando se tornam grandes, se tiverem um pouco de raciocínio, não podem admitir isso e se tornam ateus ou materialistas. É dessa maneira que são levados a crer que nada existe além da vida presente. Quanto aos que persistiram na crença da infância, temem o fogo eterno que deve queimá-los sem os destruir. A morte não inspira nenhum temor ao justo, porque a fé lhe dá a certeza do futuro, a esperança lhe acena com uma vida melhor e a caridade, cuja lei praticou, lhe

dá a segurança de que não encontrará, no mundo em que vai entrar, nenhum ser cujo olhar ele deva temer. (Ver item 730).

O homem carnal, mais ligado à vida corpórea do que à vida espiritual, tem na Terra as suas penas e os seus prazeres materiais. Sua felicidade está na satisfação fugitiva de todos os seus desejos. Sua alma, constantemente preocupada e afetada pelas vicissitudes da vida, permanece numa ansiedade e numa tortura perpétuas. A morte o amedronta, porque ele duvida do futuro e porque acredita deixar na Terra todas as suas afeiçôes e todas as suas esperanças.

O homem moral, que se elevou acima das necessidades artificiais criadas pelas paixões, tem, desde este mundo, prazeres desconhecidos do homem material. A moderação dos seus desejos dá ao seu Espírito calma e serenidade. Feliz com o bem que fez, não há para ele decepções e as contrariedades deslizam por sua alma sem lhe deixarem marcas dolorosas.

942. Algumas pessoas não acharão estes conselhos de felicidade um pouco banais, não verão neles o que chamam lugares-comuns ou verdades cediças, e não dirão, por fim, que o segredo da felicidade consiste em saber suportar a infelicidade?

— Há as que dirão isso, e numerosas. Mas muitas delas são como certos doentes aos quais o médico prescreve a dieta: desejariam ser curados sem

remédios e continuando a entregar-se aos excessos.

VI — Desgosto pela Vida. Suicídio

943.De onde vem o desgosto pela vida, que se apodera de alguns indivíduos sem motivos plausíveis?

— Efeito da ociosidade, da falta de fé e geralmente da sociedade. Para aqueles que exercem as suas faculdades com um fim útil e segundo as suas aptidões naturais, o trabalho nada tem de árido e a vida se escoa mais rapidamente; suportam as suas vicissitudes com tanto mais paciência e resignação, quanto mais agem tendo em vista a felicidade mais sólida e mais durável que os espera.

944.O homem tem o direito de dispor da sua própria vida?

Não; somente Deus tem esse direito. O suicídio voluntário é uma transgressão dessa lei.

944-a. O suicídio não é sempre voluntário?

O louco que se mata não sabe o que faz.

945. Que pensar do suicídio que tem por causa o desgosto da vida?

— Insensatos! Por que não trabalhavam? A existência não lhes teria sido tão pesada!

946. Que pensar do suicida que tem por fim escapar às misérias e às decepções deste mundo?

Pobres Espíritos que não tiveram a coragem de suportar as misérias da existência! Deus ajuda aos que sofrem e não aos que não têm forças nem coragem. As tribulações da vida são provas ou expiações. Felizes os que as suportam sem se queixar, porque serão recompensados! Infelizes, ao contrário, os que esperam uma saída nisso que, na sua impiedade, chamam de sorte ou acaso! A sorte ou o acaso, para me servir da sua linguagem, podem de fato favorecê-los por um instante, mas somente para lhes fazer sentir mais tarde, e de maneira mais cruel, o vazio de suas palavras.

946-a. Os que levaram o desgraçado a esse ato de desespero sofrerão as conseqüências disso?

Oh! Infelizes deles! Porque responderão como por um assassínio.

947. O homem que se vê às voltas com a necessidade e se deixa morrer de desespero pode ser considerado como suicida?

— É um suicida, mas os que o causaram ou que o poderiam impedir são mais culpáveis que ele, a quem a indulgência espera. Não acrediteis, porém, que seja inteiramente absolvido se lhe faltou a firmeza e a perseverança e se não fez uso de toda a sua inteligência para sair das dificuldades. Infeliz dele, sobretudo, se o seu desespero é filho do orgulho; quero dizer, se é um desses homens em quem o orgulho paralisa os recursos da inteligência e que se envergonhariam se tivessem de dever a existência ao trabalho das próprias

mãos, preferindo morrer de fome a descer do que chamam a sua posição social! Não há cem vezes mais grandeza e dignidade em lutar contra a adversidade, em enfrentar a crítica de um mundo fútil e egoísta, que tem boa vontade para aqueles a quem nada falta, e que vos volta as costas quando dele necessitais? Sacrificar a vida à consideração desse mundo é um coisa estúpida, porque ele não se importará com isso.

948.O suicida que tem por fim escapar à vergonha de uma ação má é tão repreensível como o que é levado pelo desespero?

— 0 suicídio não apaga a falta. Pelo contrário, com ele aparecem duas em lugar de uma. Quando se teve a coragem de praticar o mal, é preciso tê-lapara sofrer as conseqüências. Deus é quem julga. E, segundo a causa, pode às vezes diminuir o seu rigor.

949.O suicídio é perdoável quando tem por fim impedir que a vergonha envolva os filhos ou a família?

— Aquele que assim age não procede bem, mas acredita que sim e Deus levará em conta a sua intenção, porque será uma expiação que a si mesmo se impôs. Ele atenua a sua falta pela intenção, mas nem por isso deixa de cometer uma falta. De resto, se abolirdes os abusos da vossa sociedade e os vossos preconceitos, não tereis mais suicídios.

Aquele que tira a própria vida para fugir à vergonha de uma ação má, prova

que tem mais em conta a estima dos homens que a de Deus, porque vai entrar na vida espiritual carregado de suas iniqüidades, tendo-se privado dos meios de repará-las durante a vida. Deus é muitas vezes menos inexorável que os homens: perdoa o arrependimento sincero e leva em conta o nosso esforço de reparação; mas o suicídio nada repara.

950.Que pensar daquele que tira a própria vida com a esperança de chegar mais cedo a uma vida melhor?

— Outra loucura! Que ele faça o bem e estará mais seguro de alcançá-la,porque, daquela forma, retarda a sua entrada num mundo melhor e ele mesmo pedirá para vir completar essa vida que interrompeu por uma falsa idéia. Uma falta, qualquer que ela seja, não abre jamais o santuário dos eleitos.

951.O sacrifício da vida não é às vezes meritório, quando tem por fim salvar a de outros ou ser útil aos semelhantes?

— Isso é sublime, de acordo com a intenção, e o sacrifício da vida não é então um suicídio. Mas Deus se opõe a um sacrifício inútil e não pode vê-locom prazer, se estiver manchado pelo orgulho. Um sacrifício não é meritório senão pelo desinteresse, e aquele que o pratica tem às vezes uma segunda intenção, que lhe diminui o valor aos olhos de Deus.

Todo sacrifício feito à custa da própria felicidade é um ato soberanamente meritório aos olhos de Deus, porque é a prática da lei de caridade. Ora, sendo

a vida o bem terreno a que o homem dá maior valor, aquele que a ela renuncia pelo bem dos seus semelhantes não comete um atentado: é um sacrifício que ele realiza. Mas antes de o realizar deve refletir se a sua vida não poderá ser mais útil do que a sua morte.

952.O homem que perece como vítima do abuso das paixões que, como o sabe, deve abreviar o seu fim, mas às quais não tem mais o poder de resistir, porque o hábito as transformou em verdadeiras necessidades físicas, comete um suicídio?

— É um suicídio moral. Não compreendeis que o homem, neste caso, é duplamente culpado? Há nele falta de coragem e bestialidade, e além disso o esquecimento de Deus.

952-a. É mais ou é menos culpado do que aquele que corta a sua vida por desespero?

— É mais culpado, porque teve tempo de raciocinar sobre o seu suicídio. Naquele que o comete instantaneamente há às vezes uma espécie de desvario que se aproxima da loucura; o outro será muito mais punido, porque as penas são sempre proporcionadas à consciência que se tenha das faltas cometidas.

953.Quando uma pessoa vê à sua frente uma morte inevitável e terrível, é culpada por abreviar de alguns instantes o seu sofrimento por uma morte voluntária?

Sempre se é culpado de não esperar o termo fixado por Deus. Aliás, haverá certeza de que ele tenha chegado, malgrado as aparências, e não se pode receber um socorro inesperado no derradeiro momento?

953-a. Concebe-se que, em circunstâncias ordinárias, seja o suicídio repreensível, mas figuramos o caso em que a morte é inevitável e em que a vida só é abreviada por alguns instantes.

E sempre uma falta de resignação e de submissão à vontade do Criador. 953-b. Nesse caso, quais são as conseqüências de tal ação?

Uma expiação proporcional à gravidade da falta, segundo as circunstâncias, como sempre.

954.Uma imprudência que compromete a vida sem necessidade é repreensível?

— Não há culpabilidade quando não há a intenção ou a consciência positiva de fazer o mal.

955.As mulheres que, em certos países, se queimam voluntariamente sobre os corpos de seus maridos, podem ser consideradas como se tendo suicidado e sofrem as conseqüências disso?

— Elas obedecem a um preconceito e geralmente o fazem mais pela força do que pela própria vontade. Acreditam cumprir um dever, o que não é característica do suicídio. Sua escusa está na falta de formação moral da

maioria delas e na sua ignorância. Essas usanças bárbaras e estúpidas

desaparecem com a civilização.

956.Os que, não podendo suportar a perda de pessoas queridas, se matam na esperança de se juntarem a elas, atingem o seu objetivo?

— O resultado para elas é bastante diverso do que esperam, pois em vez de se unirem ao objeto de sua afeição, dele se afastam por mais tempo, porque Deus não pode recompensar um ato de covardia e o insulto que lhe é lançado com a dúvida quanto à sua providência. Eles pagarão esse instante de loucura com aflições ainda maiores do que aquelas que quiseram abreviar, e não terão para os compensar a satisfação que esperavam. (Ver item 934 e seguintes).

957.Quais são, em geral, as conseqüências do suicídio sobre o estado do Espírito?

— As conseqüências do suicídio são as mais diversas. Não há penalidades fixadas e em todos os casos elas são sempre relativas às causas que o produziram. Mas uma conseqüência a que o suicida não pode escapar é o desapontamento. De resto, a sorte não é a mesma para todos, dependendo das circunstâncias. Alguns expiam sua falta imediatamente, outros numa nova existência, que será pior do que aquela cujo curso interromperam.

A observação mostra, com efeito, que as conseqüências do suicídio não são sempre as mesmas. Há, porém, as que são comuns a todos os casos de morte

violenta, as que decorrem da interrupção brusca da vida. E primeiro a persistência mais prolongada e mais tenaz do laço que liga o Espírito e o corpo, porque esse laço está quase sempre em todo o seu vigor no momento em que foi rompido, enquanto na morte natural se enfraquece gradualmente e em geral até mesmo se desata antes da extinção completa da vida. As conseqüências desse estado de coisas são o prolongamento da perturbação espírita, seguido da ilusão que, durante um tempo mais ou menos longo, faz o Espírito acreditar que ainda se encontra no número dos vivos. (Ver itens 155 e 165).

A afinidade que persiste entre o Espírito e o corpo produz, em alguns suicidas, uma espécie de repercussão do estado do corpo sobre o Espírito, que assim ressente, malgrado seu, os efeitos da decomposição, experimentando uma sensação cheia de angústias e de horror. Esse estado pode persistir tão longamente quanto tivesse de durar a vida que foi interrompida. Esse efeito não é geral; mas em alguns casos o suicida não se livra das conseqüências da sua falta de coragem e cedo ou tarde expia essa falta, de uma ou de outra maneira. É assim que certos Espíritos, que haviam sido muito infelizes na Terra, disseram haver se suicidado na existência precedente e estar voluntariamente submetidos a novas provas, tentando suporta-las com mais resignação. Em alguns é uma espécie de apego à matéria, da qual procuram

inutilmente desembaraçar-se para se dirigirem a mundos melhores, mas cujo acesso lhes é interditado. Na maioria é o remorso de haverem feito uma coisa inútil, da qual só provam decepções.

A religião, a moral, todas as Filosofias condenam o suicídio como contrário à lei natural. Todas nos dizem, em princípio, que não se tem o direito de abreviar voluntariamente a vida. Mas por que não se terá esse direito? Por que não se é livre de pôr um termo aos próprios sofrimentos? Estava reservado ao Espiritismo demonstrar, pelo exemplo dos que sucumbiram, que o suicídio não é apenas uma falta como infração a uma moral, consideração que pouco importa para certos indivíduos, mas um ato estúpido, pois que nada ganha quem o pratica e até pelo contrário. Não é pela teoria que ele nos ensina isso, mas pelos próprios fatos que coloca sob os nossos olhos.

 

 

 

 

 

 

 

[Prefácio]

PREFÁCIO

Os Espíritos do Senhor, que são as virtudes dos Céus, qual imenso exército que se movimenta ao receber as ordens do seu comando, espalham-se por toda a superfície da Terra e, semelhantes a estrelas cadentes, vêm iluminar os caminhos e abrir os olhos aos cegos.

Eu vos digo, em verdade, que são chegados os tempos em que todas as coisas hão de ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos.

As grandes vozes do Céu ressoam como sons de trombetas, e os cânticos dos anjos se lhes associam. Nós vos convidamos, a vós homens, para o divino concerto. Tomai da lira, fazei uníssonas vossas vozes, e que, num hino sagrado, elas se estendam e repercutam de um extremo a outro do Universo.

Homens, irmãos a quem amamos, aqui estamos junto de vós. Amai-vos, também, uns aos outros e dizei do fundo do coração, fazendo as vontades do Pai, que está no Céu: Senhor! Senhor!... e podereis entrar no reino dos Céus.

O ESPÍRITO DE VERDADE

NOTA - A instrução acima, transmitida por via mediúnica, resume a um tempo o verdadeiro caráter do Espiritismo e a finalidade desta obra; por isso foi colocada aqui como prefácio.

[Introdução]

INTRODUÇÃO

- OBJETIVO DESTA OBRA

Podem dividir-se em cinco partes as matérias contidas nos Evangelhos: os atos comuns da vida do

Cristo; os milagres; as predições; as palavras que foram tomadas pela Igreja para fundamento de seus dogmas; o ensino moral. As quatro primeiras têm sido objeto de controvérsias; a última, porém,conservou-se constantemente inatacável. Diante desse código divino, a própria incredulidade se curva. É terreno onde todos os cultos podem reunir-se, estandarte sob o qual podem todos colocar-se, quaisquer que sejam suas crenças, porquanto jamais ele constituiu matéria das disputas religiosas, que sempre e

por toda a parte se originaram das questões dogmáticas. Aliás, se o discutissem, nele teriam as seitas encontrado sua própria condenação, visto que, na maioria, elas se agarram mais à parte mística do que à parte moral, que exige de cada um a reforma de si mesmo. Para os homens, em particular, constitui aquele código uma regra de proceder que abrange todas as circunstancias da vida privada e da vida pública, o principio básico de todas, as relações sociais que se fundam na mais rigorosa justiça. E, finalmente e acima de tudo, o roteiro infalível para a felicidade vindoura, o levantamento de uma ponta do véu que nos oculta a vida futura. Essa parte é a que será objeto exclusivo desta obra.

Toda a gente admira a moral evangélica; todos lhe proclamam a sublimidade e a necessidade; muitos, porém, assim se pronunciam por fé, confiados no que ouviram dizer, ou firmados em certas máximas que se tornaram proverbiais. Poucos, no entanto, a conhecem a fundo e menos ainda são os que a compreendem e lhe sabem deduzir as conseqüências. A razão está, por muito, na dificuldade que apresenta o entendimento do Evangelho que, para o maior número dos seus leitores, é ininteligível. A forma alegórica e o intencional misticismo da linguagem fazem que a maioria o leia por desencargo de consciência e por dever, como lêem as preces, sem as entender, isto é, sem proveito. Passam-lhes despercebidos os preceitos morais, disseminados aqui e ali, intercalados na massa das narrativas. Impossível, então, apanhar-se-lhes o conjunto e tomá-los para objeto de leitura e meditações especiais.

É certo que tratados já se hão escrito de moral evangélica; mas, o arranjo em moderno estilo literário lhe tira a primitiva simplicidade que, ao mesmo tempo, lhe constitui o encanto e a autenticidade. Outro tanto cabe dizer-se das máximas destacadas e reduzidas à sua mais simples expressão proverbial. Desde logo, já não passam de aforismos, privados de uma parte do seu valor e interesse, pela ausência dos acessórios e das circunstâncias em que foram enunciadas.

Para obviar a esses inconvenientes, reunimos, nesta obra, os artigos que podem compor, a bem dizer, um código de moral universal, sem distinção de culto. Nas citações, conservamos o que é útil ao desenvolvimento da idéia, pondo de lado unicamente o que se não prende ao assunto. Além disso, respeitamos escrupulosamente a tradução de Sacy, assim como a divisão em versículos. Em vez, porém, de nos atermos a uma ordem cronológica impossível e sem vantagem real para o caso, grupamos e classificamos metodicamente as máximas, segundo as respectivas naturezas, de modo que decorram umas das outras, tanto quanto possível. A indicação dos números de ordem dos capítulos e dos versículos permite se recorra à classificação vulgar, em sendo oportuno.

Esse, entretanto, seria um trabalho material que, por si só, apenas teria secundária utilidade. O essencial era pô-lo ao alcance de todos, mediante a explicação das passagens obscuras e o desdobramento de todas as conseqüências, tendo em vista a aplicação dos ensinos a todas as condições da vida. Foi o que tentamos fazer, com a ajuda dos bons Espíritos que nos assistem.

Muitos pontos dos Evangelhos, da Bíblia e dos autores sacros em geral só são ininteligíveis, parecendo alguns até irracionais, por falta da chave que faculte se lhes apreenda o verdadeiro sentido. Essa chave está completa no Espiritismo, como já o puderam reconhecer os que o têm estudado seriamente e como todos, mais tarde, ainda melhor o reconhecerão. O Espiritismo se nos depara por toda a parte na

antigüidade e nas diferentes épocas da Humanidade. Por toda a parte se lhe descobrem os vestígios: nos escritos, nas crenças e nos monumentos. Essa a razão por que, ao mesmo tempo que rasga horizontes novos para o futuro, projeta luz não menos viva sobre os mistérios do passado.

Como complemento de cada preceito, acrescentamos algumas instruções escolhidas, dentre as que os Espíritos ditaram em vários países e por diferentes médiuns. Se elas fossem tiradas de uma fonte única, houveram talvez sofrido uma influência pessoal ou a do meio, enquanto a diversidade de origens prova que os Espíritos dão indistintamente seus ensinos e que ninguém a esse respeito goza de qualquer privilégio. (1)

(1) Houvéramos, sem dúvida, podido apresentar, sobre cada assunto, maior número de comunicações obtidas numa porção de outras cidades e centros, além das que citamos. Tivemos, porém, de evitar a monotonia das repetições inúteis e limitar a nossa escolha às que, tanto pelo fundo quanto pela forma, se enquadravam melhor no plano desta obra, reservando para publicações ulteriores as que não puderam caber aqui.

Quanto aos médiuns, abstivemo-nos de nomeá-los. Na maioria dos casos, não os designamos a pedido deles próprios e, assim sendo, não convinha fazer exceções. Ao demais, os nomes dos médiuns nenhum valor teriam acrescentado à obra dos Espíritos. Mencioná-los mais não fora, então, do que satisfazer ao amor próprio, coisa a que os médiuns verdadeiramente sérios nenhuma importância ligam. Compreendem eles, que, por ser meramente passivo o papel que lhes toca, o valor das comunicações em nada lhes exalça o mérito pessoal; e que seria pueril envaidecerem-se de um trabalho de inteligência ao qual é apenas mecânico o concurso que prestam.

Esta obra é para uso de todos. Dela podem todos haurir os meios de conformar com a moral do Cristo o respectivo proceder. Aos espíritas oferece aplicações que lhes concernem de modo especial. Graças às relações estabelecidas, doravante e permanentemente, entre os homens e o mundo invisível, a lei evangélica, que os próprios Espíritos ensinaram a todas as nações, já não será letra morta, porque cada um a compreenderá e se verá incessantemente compelido a pô-la em prática, a conselho de seus guias espirituais. As instruções que promanam dos Espíritos são verdadeiramenteas vozes do céu que vêm esclarecer os homens e convidá-los à prática do Evangelho.

II - AUTORIDADE DA DOUTRINA ESPÍRITA

Controle universal do ensino dos Espíritos

Se a Doutrina Espírita fosse de concepção puramente humana, não ofereceria por penhor senão as luzes daquele que a houvesse concebido. Ora, ninguém, neste mundo, poderia alimentar fundadamente a pretensão de possuir, com exclusividade, a verdade absoluta. Se os Espíritos que a revelaram se

houvessem manifestado a um só homem, nada lhe garantiria a origem, porquanto fora mister acreditar, sob palavra, naquele que dissesse ter recebido deles o ensino. Admitida, de sua parte, sinceridade perfeita, quando muito poderia ele convencer as pessoas de suas relações; conseguiria sectários, mas nunca chegaria a congregar todo o mundo.

Quis Deus que a nova revelação chegasse aos homens por mais rápido caminho e mais autêntico. Incumbiu, pois, os Espíritos de levá-la de um pólo a outro, manifestando-se por toda a parte, sem conferir a ninguém o privilégio de lhes ouvir a palavra. Um homem pode ser ludibriado, pode enganar- se a si mesmo; já não será assim, quando milhões de criaturas vêem e ouvem a mesma coisa. Constitui isso uma garantia para cada um e para todos. Ao demais, pode fazer-se que desapareça um homem; mas não se pode fazer que desapareçam as coletividades; podem queimar-se os livros, mas não se podem queimar os Espíritos. Ora, queimassem-se todos os livros e a fonte da doutrina não deixaria de conservar- se inexaurível, pela razão mesma de não estar na Terra, de surgir em todos os lugares e de poderem todos dessedentar-se nela. Faltem os homens para difundi-la: haverá sempre os Espíritos, cuja atuação a todos atinge e aos quais ninguém pode atingir.

São, pois, os próprios Espíritos que fazem a propagação, com o auxílio dos inúmeros médiuns que, também eles, os Espíritos, vão suscitando de todos os lados. Se tivesse havido unicamente um intérprete, por mais favorecido que fosse, o Espiritismo mal seria conhecido. Qualquer que fosse a classe a que pertencesse, tal intérprete houvera sido objeto das prevenções de muita gente e nem todas as nações o teriam aceitado, ao passo que os Espíritos se comunicam em todos os pontos da Terra, a todos os povos, a todas as seitas, a todos os partidos, e todos os aceitam. O Espiritismo não tem nacionalidade e não faz parte de nenhum culto existente; nenhuma classe social o impõe, visto que qualquer pessoa pode receber instruções de seus parentes e amigos de além-túmulo. Cumpre seja assim, para que ele possa conduzir todos os homens à fraternidade. Se não se mantivesse em terreno neutro, alimentaria as dissensões, em vez de apaziguá-las.

Nessa universalidade do ensino dos Espíritos reside a força do Espiritismo e, também, a causa de sua tão rápida propagação. Enquanto a palavra de um só homem, mesmo com o concurso da imprensa, levaria séculos para chegar ao conhecimento de todos, milhares de vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos os recantos do planeta, proclamando os mesmos princípios etransmitindo-os aos mais ignorantes, como aos mais doutos, a fim de que não haja deserdados. É uma vantagem de que não gozara ainda nenhuma das doutrinas surgidas até hoje. Se o Espiritismo, portanto, é uma verdade, não teme o malquerer dos homens, nem as revoluções morais, nem as subversões físicas do globo, porque nada disso pode atingir os Espíritos.

Não é essa, porém, a única vantagem que lhe decorre da sua excepcional posição. Ela lhe faculta inatacável garantia contra todos os cismas que pudessem provir, seja da ambição de alguns, seja das contradições de certos Espíritos. Tais contradições, não há negar, são um escolho; mas que traz consigo o remédio, ao lado do mal.

Sabe-se que os Espíritos, em virtude da diferença entre as suas capacidades, longe se acham de estar,

individualmente considerados, na posse de toda a verdade; que nem a todos é dado penetrar certos mistérios; que o saber de cada um deles é proporcional à sua depuração; que os Espíritos vulgares mais não sabem do que muitos homens; que entre eles, como entre estes, há presunçosos e sofômanos, que julgam saber o que ignoram; sistemáticos, que tomam por verdades as suas idéias; enfim, que só os Espíritos da categoria mais elevada, os que já estão completamente desmaterializados, se encontram despidos das idéias e preconceitos terrenos; mas, também é sabido que os Espíritos enganadores não escrupulizam em tomar nomes que lhes não pertencem, para impingirem suas utopias. Daí resulta que, com relação a tudo o que seja fora do âmbito do ensino exclusivamente moral, as revelações que cada um possa receber terão caráter individual, sem cunho de autenticidade; que devem ser consideradas opiniões pessoais de tal ou qual Espírito e que imprudente fora aceitá-las e propagá-las levianamente como verdades absolutas.

O primeiro exame comprobativo é, pois, sem contradita, o da razão, ao qual cumpre se submeta, sem exceção, tudo o que venha dos Espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom senso, com uma lógica rigorosa e com os dados positivos já adquiridos, deve ser rejeitada, por mais respeitável que seja o nome que traga como assinatura. Incompleto, porém, ficará esse exame em muitos casos, por efeito da falta de luzes de certas pessoas e das tendências de não poucas a tomar as próprias opiniões como juizes únicos da verdade. Assim sendo, que hão de fazer aqueles que não depositam confiança absoluta em si mesmos? Buscar o parecer da maioria e tomar por guia a opinião desta. De tal modo é que se deve proceder em face do que digam os Espíritos, que são os primeiros a nos fornecer os meios de consegui-lo.

A concordância no que ensinem os Espíritos é, pois, a melhor comprovação. Importa, no entanto, que ela se dê em determinadas condições. A mais fraca de todas ocorre quando um médium, a sós, interroga muitos Espíritos acerca de um ponto duvidoso. É evidente que, se ele estiver sob o império de uma obsessão, ou lidando com um Espírito mistificador, este lhe pode dizer a mesma coisa sob diferentes nomes. Tampouco garantia alguma suficiente haverá na conformidade que apresente o que se possa obter por diversos médiuns, num mesmo centro, porque podem estar todos sob a mesma influência.

Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.

Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações referentes a interesses secundários, mas do que respeita aos princípios mesmos da doutrina. Prova a experiência que, quando um principio novo tem de ser enunciado, isso se dá espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de modo idêntico, senão quanto à forma, quanto ao fundo.

Se, portanto, aprouver a um Espírito formular um sistema excêntrico, baseado unicamente nas suas idéias e com exclusão da verdade, pode ter-se a certeza de que tal sistema conservar-se-á circunscrito e cairá, diante das instruções dadas de todas as partes, conforme os múltiplos exemplos que já se conhecem. Foi essa unanimidade que pôs por terra todos os sistemas parciais que surgiram na origem do

Espiritismo, quando cada um explicava à sua maneira os fenômenos, e antes que se conhecessem as leis que regem as relações entre o mundo visível e o mundo invisível.

Essa a base em que nos apoiamos, quando formulamos um principio da doutrina. Não é porque esteja de acordo com as nossas idéias que o temos por verdadeiro. Não nos arvoramos, absolutamente, em árbitro supremo da verdade e a ninguém dizemos: "Crede em tal coisa, porque somos nós que vo-lo dizemos."

A nossa opinião não passa, aos nossos próprios olhos, de uma opinião pessoal, que pode ser verdadeira ou falsa, visto não nos considerarmos mais infalível do que qualquer outro. Também não é porque um principio nos foi ensinado que, para nós, ele exprime a verdade, mas porque recebeu a sanção da concordância. Na posição em que nos encontramos, a receber comunicações de perto de mil centros espiritas sérios, disseminados pelos mais diversos pontos da Terra, achamo-nos em condições de observar sobre que principio se estabelece a concordância. Essa observação é que nos tem guiado até hoje e é a que nos guiará em novos campos que o Espiritismo terá de explorar. Porque, estudando atentamente as comunicações vindas tanto da França como do estrangeiro, reconhecemos, pela natureza toda especial das revelações, que ele tende a entrar por um novo caminho e que lhe chegou o momento de dar um passo para diante. Essas revelações, feitas muitas vezes com palavras veladas, hão freqüentemente passado despercebidas a muitos dos que as obtiveram. Outros julgaram-se os únicos a possui-las. Tomadas insuladamente, elas, para nós, nenhum valor teriam; somente a coincidência lhes imprime gravidade. Depois, chegado o momento de serem entregues à publicidade, cada um se lembrará de haver obtido instruções no mesmo sentido. Esse movimento geral, que observamos e estudamos, com a assistência dos nossos guias espirituais, é que nos auxilia a julgar da oportunidade de fazermos ou não alguma coisa.

Essa verificação universal constitui uma garantia para a unidade futura do Espiritismo e anulará todas as teorias contraditórias. Aí é que, no porvir, se encontrará o critério da verdade. O que deu lugar ao êxito da doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns foi que em toda a parte todos receberam diretamente dos Espíritos a confirmação do que esses livros contêm. Se de todos os lados tivessem vindo os Espíritos contradizê-la, já de há muito haveriam aquelas obras experimentado a sorte de todas as concepções fantásticas. Nem mesmo o apoio da imprensa as salvaria do naufrágio, ao passo que, privadas como se viram desse apoio, não deixaram elas de abrir caminho e de avançar celeremente. E que tiveram o dos Espíritos, cuja boa vontade não só compensou, como também sobrepujou o malquerer dos homens. Assim sucederá a todas as idéias que, emanando quer dos Espíritos, quer dos homens, não possam suportar a prova desse confronto, cuja força a ninguém é lícito contestar.

Suponhamos praza a alguns Espíritos ditar, sob qualquer título, um livro em sentido contrário; suponhamos mesmo que, com intenção hostil, objetivando desacreditar a doutrina, a malevolência suscitasse comunicações apócrifas; que influência poderiam exercer tais escritos, desde que de todos os lados os desmentissem os Espíritos? E com a adesão destes que se deve garantir aquele que queira lançar, em seu nome, um sistema qualquer. Do sistema de um só ao de todos, medeia a distancia que vai da unidade ao infinito. Que poderão conseguir os argumentos dos detratores, sobre a opinião das massas, quando milhões de vozes amigas, provindas do Espaço, se façam ouvir em todos os recantos do Universo e no seio das famílias, a infirmá-los? A esse respeito já não foi a teoria confirmada pela experiência? Que é feito das inúmeras publicações que traziam a pretensão de arrasar o Espiritismo?

Qual a que, sequer, lhe retardou a marcha? Até agora, não se considera a questão desse ponto de vista, sem contestação um dos mais graves. Cada um contou consigo, sem contar com os Espíritos.

O princípio da concordância é também uma garantia contra as alterações que poderiam sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se dele em proveito próprio e acomodá-lo a vontade. Quem quer que tentasse desviá-lo do seu providencial objetivo, malsucedido se veria, pela razão muito simples de que os Espíritos, em virtude da universalidade de seus ensinos, farão cair por terra qualquer modificação que se divorcie da verdade.

De tudo isso ressalta uma verdade capital: a de que aquele que quisesse opor-se à corrente de idéias estabelecida e sancionada poderia, é certo, causar uma pequena perturbação local e momentânea; nunca, porém, dominar o conjunto, mesmo no presente, nem, ainda menos, no futuro.

Também ressalta que as instruções dadas pelos Espíritos sobre os pontos ainda não elucidados da Doutrina não constituirão lei, enquanto essas instruções permanecerem insuladas; que elas não devem, por conseguinte, ser aceitas senão sob todas as reservas e a título de esclarecimento.

Daí a necessidade da maior prudência em dar-lhes publicidade; e, caso se julgue conveniente publicá- las, importa não as apresentar senão como opiniões individuais, mais ou menos prováveis, porém, carecendo sempre de confirmação. Essa confirmação é que se precisa aguardar, antes de apresentar um princípio como verdade absoluta, a menos se queira ser acusado de leviandade ou de credulidade irrefletida.

Com extrema sabedoria procedem os Espíritos superiores em suas revelações. Não atacam as grandes questões da Doutrina senão gradualmente, à medida que a inteligência se mostra apta a compreender verdade de ordem mais elevada e quando as circunstâncias se revelam propicias à emissão de uma idéia nova. Por isso é que logo de principio não disseram tudo, e tudo ainda hoje não disseram, jamais cedendo à impaciência dos muito afoitos, que querem os frutos antes de estarem maduros. Fora, pois, supérfluo pretender adiantar-se ao tempo que a Providência assinou para cada coisa, porque, então, os Espíritos verdadeiramente sérios negariam o seu concurso. Os Espíritos levianos, pouco se preocupando com a verdade, a tudo respondem; daí vem que, sobre todas as questões prematuras, há sempre respostas contraditórias.

Os princípios acima não resultam de uma teoria pessoal: são conseqüência forçada das condições em que os Espíritos se manifestam. E evidente que, se um Espírito diz uma coisa de um lado, enquanto milhões de outros dizem o contrário algures, a presunção de verdade não pode estar com aquele que é o único ou quase o único de tal parecer. Ora, pretender alguém ter razão contra todos seria tão ilógico da parte dos Espíritos, quanto da parte dos homens. Os Espíritos verdadeiramente ponderados, se não se sentem suficientemente esclarecidos sobre uma questão, nunca a resolvem de modo absoluto; declaram que apenas a tratam do seu ponto de vista e aconselham que se aguarde a confirmação.

Por grande, bela e justa que seja uma idéia, impossível é que desde o primeiro momento congregue todas

as opiniões. Os conflitos que daí decorrem são conseqüência inevitável do movimento que se opera; eles são mesmo necessários para maior realce da verdade e convém se produzam desde logo, para que as idéias falsas prontamente sejam postas de lado. Os espíritas que a esse respeito alimentassem qualquer temor podem ficar perfeitamente tranqüilos: todas as pretensões insuladas cairão, pela força mesma das coisas, diante do enorme e poderoso critério da concordância universal.

Não será à opinião de um homem que se aliarão os outros, mas à voz unânime dos Espíritos; não será um homem, nem nós, nem qualquer outro que fundará a ortodoxia espírita; tampouco será um Espírito

que se venha impor a quem quer que seja: será a universalidade dos Espíritos que se comunicam em toda a Terra, por ordem e eus. Esse o caráter essencial da Doutrina Espírita; essa a sua força, a sua autoridade. Quis Deus que a sua lei assentasse em base inamovível e por isso não lhe deu por fundamento a cabeça frágil de um só.

Diante de tão poderoso areópago, onde não se conhecem corrilhos, nem rivalidades ciosas, nem seitas, nem nações, é que virão quebrar-se todas as oposições, todas as ambições, todas as pretensões à supremacia individual; é que nos quebraríamos nós mesmos, se quiséssemos substituir os seus decretos soberanos pelas nossas próprias idéias. Só Ele decidirá todas as questões litigiosas, imporá silêncio às dissidências e dará razão a quem a tenha. Diante desse imponente acordo de todas as vozes do Céu, que pode a opinião de um homem ou de um Espírito? menos do que a gota d'água que se perde no oceano, menos do que a voz da criança que a tempestade abafa.

A opinião universal, eis o juiz supremo, o que se pronuncia em última instância. Formam-na todas as opiniões individuais. Se uma destas é verdadeira, apenas tem na balança o seu peso relativo. Se é falsa, não pode prevalecer sobre todas as demais. Nesse imenso concurso, as individualidades se apagam, o que constitui novo insucesso para o orgulho humano.

Já se desenha o harmonioso conjunto. Este século não passará sem que ele resplandeça em todo o seu brilho, de modo a dissipar todas as incertezas, porquanto daqui até lá potentes vozes terão recebido a missão de se fazerem ouvir, para congregar os homens sob a mesma bandeira, uma vez que o campo se ache suficientemente lavrado. Enquanto isso se não dá, aquele que flutue entre dois sistemas opostos pode observar em que sentido se forma a opinião geral; essa será a indicação certa do sentido em que se pronuncia a maioria dos Espíritos, nos diversos pontos em que se comunicam, e um sinal não menos certo de qual dos dois sistemas prevalecerá.

III - NOTÍCIAS HISTÓRICAS

Para bem se compreenderem algumas passagens dos Evangelhos, necessário se faz conhecer o valor de muitas palavras neles freqüentemente empregadas e que caracterizam o estado dos costumes e da sociedade judia naquela época. Já não tendo para nós o mesmo sentido, essas palavras foram com freqüência mal-interpretadas, causando isso uma espécie de incerteza. A inteligência da significação delas explica, ao demais, o verdadeiro sentido de certas máximas que, à primeira vista, parecem singulares.

Escribas. - Nome dado, a princípio, aos secretários dos reis de Judá e a certos intendentes dos exércitos judeus. Mais tarde, foi aplicado especialmente aos doutores que ensinavam a lei de Moisés e a interpretavam para o povo. Faziam causa comum com os fariseus, de cujos princípios partilhavam, bem como da antipatia que aqueles votavam aos inovadores. Daí o envolvê-los Jesus na reprovação que lançava aos fariseus.

Essênios ou esseus. - Também seita judia fundada cerca do ano 150 antes de Jesus-Cristo, ao tempo dos macabeus, e cujos membros, habitando uma especie de mosteiros, formavam entre si uma como associação moral e religiosa. Distinguiam-se pelos costumes brandos e por austeras virtudes, ensinavam o amor a Deus e ao próximo, a imortalidade da alma e acreditavam na ressurreição. Viviam em celibato, condenavam a escravidão e a guerra, punham em comunhão os seus bens e se entregavam à agricultura. Contrários aos saduceus sensuais, que negavam a imortalidade; aos fariseus de rígidas práticas exteriores e de virtudes apenas aparentes, nunca os essênios tomaram parte nas querelas que tornaram antagonistas aquelas duas outras seitas. Pelo gênero de vida que levavam, assemelhavam-semuito aos primeiros cristãos, e os princípios da moral que professavam induziram muitas pessoas a supor que Jesus, antes de dar começo à sua missão pública, lhes pertencera à comunidade. E certo que ele há de tê-la conhecido, mas nada prova que se lhe houvesse filiado, sendo, pois, hipotético tudo quanto a esse respeito se escreveu. (1)

(1) A morte de Jesus, supostamente escrita por um essênio, é obra inteiramente apócrifa, cujo único fim foi servir de apoio a uma opinião. Ela traz em si mesma a prova de sua origem moderna.

Fariseus (do hebreu parush, divisão, separação). - A tradição constituía parte importante da teologia dos judeus. Consistia numa compilação das interpretações sucessivamente dadas ao sentido das Escrituras e tomadas artigos de dogma. Constituía, entre os doutores, assunto de discussões intermináveis, as mais das vezes sobre simples questões de palavras ou de formas, no gênero das disputas teológicas e das sutilezas da escolástica da Idade Média. Daí nasceram diferentes seitas, cada uma das quais pretendia ter o monopólio da verdade, detestando-se umas às outras, como sói acontecer.

Entre essas seitas, a mais influente era a dos fariseus, que teve por chefe Hillel (2), doutor judeu nascido na Babilônia, fundador de uma escola célebre, onde se ensinava que só se devia depositar fé nas Escrituras. Sua origem remonta a 180 ou 200 anos antes de Jesus-Cristo. Os fariseus, em diversas épocas, foram perseguidos, especialmente sob Hircano -soberano pontífice e rei dos judeus -,Aristóbulo e Alexandre, rei da Síria. Este último, porém, lhes deferiu honras e restituiu os bens, de sorte que eles readquiriram o antigo poderio e o conservaram até à ruína de Jerusalém, no ano 70 da era cristã, época em que se lhes apagou o nome, em conseqüência da dispersão dos judeus.

(2) Não confundir esse Hillel que fundou a seita dos fariseus com o seu homônimo que viveu duzentos anos mais tarde e estabeleceu os princípios religiosos e sociais de um sistema todo de tolerância e amor, sistema hoje conhecido por Hilelismo. - A Editora da FEB, 1947.

Tomavam parte ativa nas controvérsias religiosas. Servis cumpridores das práticas exteriores do culto e das cerimônias; cheios de um zelo ardente de proselitismo, inimigos dos inovadores, afetavam grande severidade de princípios; mas, sob as aparências de meticulosa devoção, ocultavam costumes dissolutos, muito orgulho e, acima de tudo, excessiva ânsia de dominação. Tinham a religião mais como meio de chegarem a seus fins, do que como objeto de fé sincera. Da virtude nada possuíam, além das exterioridade e da ostentação; entretanto, por umas e outras, exerciam grande influência sobre o povo, a cujos olhos passavam por santas criaturas. Daí o serem muito poderosos em Jerusalém.

Acreditavam, ou, pelo menos, fingiam acreditar na Providência, na imortalidade da alma, na eternidade das penas e na ressurreição dos mortos. (Cap. IV, nº. 4.) Jesus, que prezava, sobretudo, a simplicidade e as qualidades da alma, que, na lei, preferia o espírito, que vivifica, a' letra, que mata, se aplicou, durante toda a sua missão, a lhes desmascarar a hipocrisia, pelo que tinha neles encarniçados inimigos. Essa a razão por que se ligaram aos príncipes dos sacerdotes para amotinar contra ele o povo e eliminá-lo.

Nazarenos. - Nome dado, na antiga lei, aos judeus que faziam voto, ou perpétuo ou temporário, de guardar perfeita pureza. Eles se comprometiam a observar a castidade, a abster-se de bebidas alcoólicas e a conservar a cabeleira. Sansão, Samuel e João Batista eram nazarenos.

Mais tarde, os judeus deram esse nome aos primeiros cristãos, por alusão a Jesus de Nazaré.

Também foi essa a denominação de uma seita herética dos primeiros séculos da era cristã, a qual, do mesmo modo que os ebionitas, de quem adotava certos princípios, misturava as práticas do moisaísmo com os dogmas cristãos, seita essa que desapareceu no século quarto.

Portageiros. - Eram os arrecadadores de baixa categoria, incumbidos principalmente da cobrança dos direitos de entrada nas cidades. Suas funções correspondiam mais ou menos à dos empregados de alfândega e recebedores dos direitos de barreira. Compartilhavam da repulsa que pesava sobre os publicanos em geral. Essa a razão por que, no Evangelho, se depara freqüentemente com a palavrapublicano ao lado da expressão gente de má vida. Tal qualificação não implicava a de debochados ou vagabundos. Era um termo de desprezo, sinônimo de gente de má companhia, gente indigna de conviver com pessoas distintas.

Publicanos. - Eram assim chamados, na antiga Roma, os cavalheiros arrendatários das taxas públicas, incumbidos da cobrança dos impostos e das rendas de toda espécie, quer em Roma mesma, quer nas outras partes do Império. Eram como os arrendatários gerais e arrematadores de taxas do antigo regímen

na França e que ainda existem nalgumas legiões. Os riscos a que estavam sujeitos faziam que os olhos se fechassem para as riquezas que muitas vezes adquiriam e que, da parte de alguns, eram frutos de exações e de lucros escandalosos. O nome de publicano se estendeu mais tarde a todos os que superintendiam os dinheiros públicos e aos agentes subalternos. Hoje esse termo se emprega em sentido pejorativo, para designar os financistas e os agentes pouco escrupulosos de negócios. Diz-sepor vezes: "Ávido como um publicano, rico como um publicano", com referência a riquezas de mau quilate.

De toda a dominação romana, o imposto foi o que os judeus mais dificilmente aceitaram e o que mais irritação causou entre eles. Dai nasceram várias revoltas, fazendo-se do caso uma questão religiosa, por ser considerada contrária à Lei. Constituiu-se, mesmo, um partido poderoso, a cuja frente se pôs um certo Judá, apelidado o Gaulonita, tendo por principio o não pagamento do imposto, Os judeus, pois, abominavam a este e, como consequência, a todos os que eram encarregados de arrecadá-lo,donde a aversão que votavam aos publicanos de todas as categorias, entre os quais podiamencontrar-se pessoas muito estimáveis, mas que, em virtude das suas funções, eram desprezadas, assim como os que com elas mantinham relações, os quais se viam atingidos pela mesma reprovação. Os judeus de destaque consideravam um comprometimento ter com eles intimidade.

Saduceus. - Seita judia, que se formou por volta do ano 248 antes de Jesus-Cristo e cujo nome lhe veio do de Sadoc, seu fundador. Não criam na imortalidade, nem na ressurreição, nem nos anjos bons e maus.

Entretanto, criam em Deus; nada, porém, esperando após a morte, só o serviam tendo em vista recompensas temporais, ao que, segundo eles, se limitava a providência divina. Assim pensando, tinham a satisfação dos sentidos tísicos por objetivo essencial da vida. Quanto às Escrituras,atinham-se ao texto da lei antiga. Não admitiam a tradição, nem interpretações quaisquer. Colocavam as boas obras e a observância pura e simples da Lei acima das práticas exteriores do culto. Eram, como se vê, os materialistas, os deístas e os sensualistas da época. Seita pouco numerosa, mas que contava em seu seio importantes personagens e se tornou um partido polftico oposto constantemente aos fariseus.

Samaritanos. - Após o cisma das dez tribos, Samaria se constituiu a capital do reino dissidente de Israel. Destruída e reconstruída várias vezes, tomou-se, sob os romanos, a cabeça da Samaria, uma das quatro divisões da Palestina. Herodes, chamado o Grande, a embelezou de suntuosos monumentos e, para lisonjear Augusto, lhe deu o nome de Augusta, em grego Sebaste.

Os samaritanos estiveram quase constantemente em guerra com os reis de Judá. Aversão profunda, datando da época da separação, perpetuou-se entre os dois povos, que evitavam todas as relações recíprocas. Aqueles, para tornarem maior a cisão e não terem de vir a Jerusalém pela celebração das festas religiosas, construfram para si um templo particular e adotaram algumas reformas. Somente admitiam o Pentateuco, que continha a lei de Moisés, e rejeitavam todos os outros livros que a esse foram posteriormente anexados. Seus livros sagrados eram escritos em caracteres hebraicos da mais alta antigüidade. Para os judeus ortodoxos, eles eram heréticos e, portanto, desprezados, anatematizados e perseguidos. Ó antagonismo das duas nações tinha, pois, por fundamento único a divergência das opiniões religiosas; se bem fosse a mesma a origem das crenças de uma e outra. Eram os protestantes

desse tempo.

Ainda hoje se encontram samaritanos em algumas regiões do Levante, particularmente em Nablus e em Jafa. Observam a lei de Moisés com mais rigor que os outros judeus e só entre si contraem alianças.

Sinagoga (do grego synagogê, assembléia, congregação). - Um único templo havia na Judéia, o de Salomão, em Jerusalém, onde se celebravam as grandes cerimônias do culto. Os judeus, todos os anos, lá iam em peregrinação para as festas principais, como as da Páscoa, da Dedicação e dos Tabernáculos. Por ocasião dessas festas é que Jesus também costumava ir lá. As outras cidades não possuíam templos, mas, apenas, sinagogas: edifícios onde os judeus se reuniam aos sábados, para fazer preces públicas, sob a chefia dos anciães, dos escribas, ou doutores da Lei. Nelas também se realizavam leituras dos livros sagrados, seguidas de explicações e comentários, atividades das quais qualquer pessoa podia participar. Por isso é que Jesus, sem ser sacerdote, ensinava aos sábados nas sinagogas.

Desde a ruína de Jerusalém e a dispersão dos judeus, as sinagogas, nas cidades por eles habitadas, servem-lhes de templos para a celebração do culto.

Terapeutas (do grego therapeutai, formado de therapeuein, servir, cuidar, isto é: servidores de Deus, ou curadores). - Eram sectários judeus contemporâneos do Cristo, estabelecidos principalmente em Alexandria, no Egito. Tinham muita relação com os essênios, cujos princípios adotavam, aplicando-se,como esses últimos, à prática de todas as virtudes. Eram de extrema frugalidade na alimentação. Também celibatários, votados à contemplação e vivendo vida solitária, constituíam uma verdadeira ordem religiosa. Fílon, filósofo judeu platônico, de Alexandria, foi o primeiro a falar dos terapeutas,considerando-os uma seita do judaísmo. Eusébio, S. Jerônimo e outros Pais da Igreja pensam que eles eram cristãos. Fossem tais, ou fossem judeus, o que é evidente é que, do mesmo modo que os essênios, eles representam o traço de união entre o Judaísmo e o Cristianismo.

IV - SÓCRATES E PLATÃO, PRECURSORES DA IDÉIA CRISTÃ E DO ESPIRITISMO

Do fato de haver Jesus conhecido a seita dos essênios, fora errôneo concluir-se que a sua doutrina hauriu- a ele na dessa seita e que, se houvera vivido noutro meio, teria professado outros princípios. As grandes idéias jamais irrompem de súbito. As que assentam sobre a verdade sempre têm precursores que lhes preparam parcialmente os caminhos. Depois, em chegando o tempo, envia Deus um homem com a missão de resumir, coordenar e completar os elementos esparsos, de reuni-los em corpo de doutrina. Desse modo, não surgindo bruscamente, a idéia, ao aparecer, encontra espíritos dispostos aaceitá-la. Tal o que se deu com a idéia cristã, que foi pressentida muitos séculos antes de Jesus e dos essênios, tendo por principais precursores Sócrates e Platão.

Sócrates, como o Cristo, nada escreveu, ou, pelo menos, nenhum escrito deixou. Como o Cristo, teve a morte dos criminosos, vítima do fanatismo, por haver atacado as crenças que encontrara e colocado a virtude real acima da hipocrisia e do simulacro das formas; por haver, numa palavra, combatido os preconceitos religiosos. Do mesmo modo que Jesus, a quem os fariseus acusavam de estar corrompendo

o povo com os ensinamentos que lhe ministrava, também ele foi acusado, pelos fariseus do seu tempo, visto que sempre os houve em todas as épocas, por proclamar o dogma da unidade de Deus, da imortalidade da alma e da vida futura. Assim como a doutrina de Jesus só a conhecemos pelo que escreveram seus discípulos, da de Sócrates só temos conhecimento pelos escritos de seu discípulo Platão. Julgamos conveniente resumir aqui os pontos de maior relevo, para mostrar a concordância deles com os princípios do Cristianismo. Aos que considerarem esse paralelo uma profanação e pretendam que não pode haver paridade entre a doutrina de um pagão e a do Cristo, diremos que não era pagã a de Sócrates, pois que objetivava combater o paganismo; que a de Jesus, mais completa e mais depurada do que

aquela, nada tem que perder com a comparação; que a grandeza da missão divina do Cristo não pode ser diminuída; que, ao demais, trata-se de um fato da História, que a ninguém será possível apagar. O homem há chegado a um ponto em que a luz emerge por si mesma de sob o alqueire. Ele se acha maduro bastante para encará-la de frente; tanto pior para os que não ousem abrir os olhos. Chegou o tempo de se considerarem as coisas de modo amplo e elevado, não mais do ponto de vista mesquinho e acanhado dos interesses de seitas e de castas.

Além disso, estas citações provarão que, se Sócrates e Platão pressentiram a idéia cristã, em seus escritos também se nos deparam os princípios fundamentais do Espiritismo.

Resumo da doutrina de Sócrates e de Platão

I. O homem é uma alma encarnada. Antes da sua encarnação, existia unida aos tipos primordiais, às idéias do verdadeiro, do bem e do belo; separa-se deles, encarnando, e, recordando o seu passado, é mais ou menos atormentada pelo desejo de voltar a ele.

Não se pode enunciar mais claramente a distinção e independência entre o princípio inteligente e o princípio material. E, além disso, a doutrina da preexistência da alma; da vaga intuição que ela guarda de um outro mundo, a que aspira; da sua sobrevivência ao corpo; da sua saída do mundo espiritual, para encarnar, e da sua volta a esse mesmo mundo, após a morte. É, finalmente, o gérmen da doutrina dos Anjos decaídos.

1I.A alma se transvia e perturba, quando se serve do corpo para considerar qualquer objeto; tem vertigem, como se estivesse ébria, porque se prende a coisas que estão, por sua natureza, sujeitas a mudanças; ao passo que, quando contempla a sua própria essência, dirige-se para o que é puro, eterno, imortal, e, sendo ela desta natureza, permanece aí ligada, por tanto tempo quanto passa. Cessam então os seus transviamentos, pois que está unida ao que é imutável e a esse estado da alma é que se chamasabedoria.

Assim, ilude-se a si mesmo o homem que considera as coisas de modo terra-a-terra, do ponto de vista material. Para as apreciar com justeza, tem de as ver do alto, isto é, do ponto de vista espiritual. Aquele, pois, que está de posse da verdadeira sabedoria, tem de isolar do corpo a alma, para ver com os olhos do Espírito. E o que ensina oEspiritismo. (Cap. II, nº 5.)

III. Enquanto tivermos o nosso corpo e a alma se achar mergulhado nessa corrupção, nunca possuiremos o objeto dos nossos desejos: a verdade. Com efeito, o corpo nos suscita mil obstáculos pela necessidade em que nas achamos de cuidar dele. Ao demais, ele nos enche de desejos, de apetites, de temores, de mil quimeras e de mil tolices, de maneira que, com ele, impossível se nos torna ser ajuizados, sequer por um instante. Mas, se não nos é possível conhecer puramente coisa alguma, enquanto a alma nos está ligada ao corpo, de duas uma: ou jamais conheceremos a verdade, ou só a conheceremos após a morte. Libertos da loucura do corpo, conversaremos então, lícito é esperá-lo, com homens igualmente libertos e conheceremos, por nós mesmos, a essência das coisas. Essa a razão por que os verdadeiros filósofos se exercitam em morrer e a morte não se lhes afigura, de modo nenhum, temível.

Está ai o princípio das faculdades da alma obscurecidas por motivo dos órgãos corporais e o da expansão dessas faculdades depois da morte. Mas trata-se apenas de almas já depuradas; o mesmo não se dá com as almas impuras. (O Céu e o Inferno, 1ª Parte, cap. II; 2ª Parte, cap. I.)

IV. A alma impura, nesse estado, se encontra oprimida e se vê de novo arrastado para o mundo visível, pelo horror do que é invisível e imaterial. Erra, então, diz-se, em torno dos monumentos e dos túmulos, junto aos quais já se têm visto tenebrosos fantasmas, quais devem ser as imagens das almas que deixaram o corpo sem estarem ainda inteiramente puras, que ainda conservam alguma coisa do forma material, o que faz que a vista humana possa percebê-las. Não são as almas dos bons; silo, porém, as dos maus, que se vêem forçadas a vagar por esses lugares, onde arrastam consigo a pena do primeira vida que tiveram e onde continuam a vagar até que os apetites inerentes à forma material de que se revestiram as reconduzam a um corpo.

Então, sem dúvida, retomam os mesmos costumes que durante a primeira vida constituíam objeto de suas predileções.

Não somente o princípio da reencarnação se acha ai claramente expresso, mas também o estado das almas que se mantêm sob o jugo da matéria é descrito qual o mostra o Espiritismo nas evocações. Mais ainda: no tópico acima se diz que a reencarnação num corpo material é conseqüência da impureza da alma, enquanto as almas purificadas se encontram isentas de reencarnar. Outra coisa não diz o Espiritismo, acrescentando apenas que a alma? que boas resoluções tomou na erraticidade e que possui conhecimentos adquiridos, traz, ao renascer, menos defeitos, mais virtudes e idéias intuitivas do que tinha na sua existência precedente. Assim, cada existência lhe marca um progresso intelectual e moral.

(O Céu e o Inferno, 2.ª Parte: Exemplos.)

V. Após a nossa morte, o gênio (daimon, demônio), que nos fora designado durante a vida, leva-nos a um lugar onde se reúnem todos os que têm de ser conduzidas ao Hades, para serem julgados. As almas, depois de haverem estado no Hades o tempo necessário, são reconduzidas a esta vida em múltiplos e longos períodos.

É a doutrina dos Anjos guardiães, ou Espíritos protetores, e das reencarnações sucessivas, em seguida a intervalos mais ou menos longos de erraticidade.

VI. Os demônios ocupam o espaço que separa o céu da Terra; constituem o laço que une o Grande Todo a si mesmo. Não entrando nunca a divindade em comunicação direta com o homem, é por intermédio dos demônios que os deuses entram em comércio e se entretêm com ele, quer durante a vigília, quer durante o sono.

A palavra daimon, da qual fizeram o termo demônio, não era, na antigüidade, tomada à má parte, como nos tempos modernos. Não designava exclusivamente seres malfazejos, mas todos os Espíritos, em geral, dentre os quais se destacavam os Espíritos superiores, chamados deuses, e os menos elevados, ou demônios propriamente ditos, que comunicavam diretamente com os homens. Também o Espiritismo diz que os Espíritos povoam o espaço; que

Deus só se comunica com os homens por intermédio dos Espíritos puros, que são os incumbidos de lhe transmitir as vontades; que os Espíritos se comunicam com eles durante a vigília e durante o sono. Ponde, em lugar da palavra demônio, a palavra Espírito e tereis a doutrina espírita; ponde a palavraanjo e tereis a doutrina cristã.

VII. A preocupação constante do filósofo (tal como o compreendiam Sócrates e Platão) é, a de tomar o maior cuidado com a alma, menos pelo que respeita a esta vida, que não dura mais que um instante, do que tendo em vista a eternidade. Desde que a alma é, imortal, não será prudente viver visando a eternidade?

O Cristianismo e o Espiritismo ensinam a mesma coisa.

VIII. Se a alma é imaterial, tem de passar, após essa vida, a um mundo igualmente invisível e imaterial, do mesmo modo que o corpo, decompondo-se, volta à matéria, Muito importa, no entanto, distinguir bem a alma pura, verdadeiramente imaterial, que se alimente, como Deus, de ciência e pensamentos, da alma mais ou menos maculada de impurezas materiais, que a impedem de elevar-se para o divino e a retêm nos lugares da sua estada na Terra.

Sócrates e Platão, como se vê, compreendiam perfeitamente os diferentes graus de desmaterialização da alma. Insistem na diversidade de situação que resulta para elas da sua maior ou menor pureza. O que eles diziam, por intuição, o Espiritismo o prova com os inúmeros exemplos que nos põe sob as vistas. (O Céu e o Inferno, 2ª Parte.)

IX. Se a morte fosse a dissolução completa do homem, muito ganhariam com a morte os maus, pois se veriam livres, ao mesmo tempo, do corpo, da alma e dos vícios. Aquele que guarnecer a alma, não de ornatos estranhos, mas com os que lhe são próprios, só esse poderá aguardar tranqüilamente a hora da sua partida para o outro mundo.

Eqüivale isso a dizer que o materialismo, com o proclamar para depois da morte o nada, anula toda responsabilidade moral ulterior, sendo, conseguintemente, um incentivo para o mal; que o mau tem tudo a ganhar do nada. Somente o homem que se despojou dos vícios e se enriqueceu de virtudes, pode esperar com tranqúilidade o despertar na outra vida. Por meio de exemplos, que todos os dias nos

apresenta, o Espiritismo mostra quão penoso é, para o mau, o passar desta à outra vida, a entrada na vida futura. (O Céu e o Inferno, 2ª Parte, cap. 1.)

X. O corpo conserva bem impressos os vestígios dos cuidados de que foi objeto e dos acidentes que sofreu.Dá-se o mesmo com a alma. Quando despida do corpo, ela guarda, evidentes, os traços do seu caráter, de suas afeições e as marcas que lhe deixaram todos os atos de sua visa. Assim, a maior desgraça que pode acontecer ao homem é ir para o outro mundo com a alma carregado de crimes. Vês, Cálicles, que nem tu, nem Pólux, nem Górgias podereis provar que devamos levar outra vida que nos seja útil quando estejamos do outro lado. De tantas opiniões diversas, a única que permanece inabalável é a de que mais vale receber do que cometer uma injustiça e que, acima de tudo, devemos cuidar, não de parecer, mas de ser homem de bem. (Colóquios de Sócrates com seus discípulos, na prisão.)

Depara-se-nos aqui outro ponto capital, confirmado hoje pela experiência: o de que a alma não depurada conserva as idéias, as tendências, o caráter e as paixões que teve na Terra. Não é inteiramente cristã esta máxima: mais vale receber do que cometer uma injustiça? O mesmo pensamento exprimiu Jesus, usando desta figura: "Se alguém vos bater numa face, apresentai-lhe a outra." (Cap. XII, nº 7 e nº 8.)

XI. De duas uma: ou a morte é uma destruição absoluta, ou é passagem da alma para outro lugar. Se tudo tem de extinguir-se, a morte será como uma dessas raras noites que passamos sem sonho e sem nenhuma consciência de nós mesmos. Todavia, se a morte é apenas uma mudança de morada, a passagem para o lugar onde os mortos se têm de reunir, que felicidade a de encontrarmos lá aqueles a quem conhecemos! O meu maior prazer seria examinar de perto os habitantes dessa outra morada e distinguir lá, como aqui, os que são dignos dos que se julgam tais e não o são. Mas, é tempo de nos separarmos, eu para morrer, vós para viverdes. (Sócrates aos seus juizes.)

Segundo Sócrates, os que viveram na Terra se encontram após a morte e se reconhecem. Mostra o Espiritismo que continuam as relações que entre eles se estabeleceram, de tal maneira que a morte não é nem uma interrupção, nem a cessação da vida, mas uma transformação, sem solução de continuidade.

Houvessem Sócrates e Platão conhecido os ensinos que o Cristo difundiu quinhentos anos mais tarde e os que agora o Espiritismo espalha, e não teriam falado de outro modo. Não há nisso, entretanto, o que surpreenda, se considerarmos que as grandes verdades são eternas e que os Espíritos adiantados hão de tê-las conhecido antes de virem a Terra, para onde as trouxeram; que Sócrates, Platão e os grandes filósofos daqueles tempos bem podem, depois, ter sido dos que secundaram o Cristo na sua missão divina, escolhidos para esse fim precisamente por se acharem, mais do que outros, em condições de lhe compreenderem as sublimes lições; que, finalmente, pode dar-se façam eles agora parte da plêiade dos Espíritos encarregados de ensinar aos homens as mesmas verdades.

XII. Nunca se deve retribuir com outra uma injustiça, nem fazer mal a ninguém, seja qual for o dano que nos hajam causado. Poucos, no entanto, serão os que admitam esse principio, e os que se desentenderem a tal respeito nada mais farão, sem dúvida. do que se votarem uns aos outros mútuo desprezo.

Não está aí o princípio de caridade, que prescreve não se retribua o mal com o mal e se perdoe aos

inimigos?

XII. É pelos frutos que se conhece a árvore. Toda ação deve ser qualificada pelo que produz: qualificá-la de má, quando dela provenha mal; de boa, quando dê origem ao bem.

Esta máxima: "Pelos frutos é que se conhece a árvore", se encontra muitas vezes repetida textualmente no Evangelho.

XIV. A riqueza é um grande perigo. Todo homem que ama a riqueza não ama a si mesmo, nem ao que é seu; ama a uma coisa que lhe é ainda mais estranha do que o que lhe pertence. (Capítulo XVI.)

XV. As mais belas preces e os mais belos sacrifícios prazem menos à Divindade do que uma alma virtuosa que faz esforços por se lhe assemelhar. Grave coisa fora que os deuses dispensassem mais atenção às nossas oferendas, do que a nossa alma; se tal se desse, poderiam os mais culpados conseguir que eles se lhes tornassem propícios. Mas, não: verdadeiramente justos e retos só o são os que, por suas palavras e atos, cumprem seus deveres para com os deuses e para com os homens. (Cap. X, nº 7 e nº e 8.)

XVI. Chamo homem vicioso a esse amante vulgar, que mais ama o corpo do que a alma. O amor está par toda parte em a Natureza, que nos convida ao exercício da nossa inteligência; até no movimento dos astros o encontramos. É o amor que orna a Natureza de seus ricos tapetes; ele se enfeita e fixa morada onde se lhe deparem flores e perfumes. É ainda o amor que dá paz aos homens, calma ao mar, silêncio aos ventos e sono a dor.

O amor, que há de unir os homens por um laço fraternal, é uma conseqüência dessa teoria de Platão sobre o amor universal, como lei da Natureza. Tendo dito Sócrates que "o amor não é nem um deus, nem um mortal, mas um grande demônio", isto é, um grande Espírito que preside ao amor universal, essa proposição lhe foi imputada como crime.

XVII. A virtude não pode ser ensinada; vem por dom de Deus aos que a possuem.

É quase a doutrina cristã sobre a graça; mas, se a virtude é um dom de Deus, é um favor e, então, podeperguntar-se por que não é concedida a todos. Por outro lado, se é um dom, carece de mérito para aquele que a possui. O Espiritismo é mais explícito, dizendo que aquele que possui a virtude a adquiriu por seus esforços, em existências sucessivas, despojando-se pouco a pouco de suas imperfeições. A graça é a força que Deus faculta ao homem de boa vontade para se expungir do mal e praticar o bem.

XVIII. É disposição natural em todos nós a de nos apercebermos muito menos dos nossos defeitos, do que dos de outrem.

Diz o Evangelho: "Vedes a palha que está no olho do vosso próximo e não vedes a trave que está no vosso." (Cap. X, nº 9 e nº 10.)

XIX. Se os médicos são malsucedidos, tratando da maior parte das moléstias, é que tratam do corpo, sem

tratarem da alma. Ora, não se achando o todo em bom estado, impossível é que uma parte dele passe bem.

O Espiritismo fornece a chave das relações existentes entre a alma e o corpo e prova que um reage incessantemente sobre o outro. Abre, assim, nova senda para a Ciência. Com o lhe mostrar a verdadeira causa de certas afecções, faculta-lhe os meios de as combater. Quando a Ciência levar em conta a ação do elemento espiritual na economia, menos freqüentes serão os seus maus êxitos.

XX. Todos os homens, a partir da infância, muito mais fazem de mal, do que de bem.

Essa sentença de Sócrates fere a grave questão da predominância do mal na Terra, questão insolúvel sem o conhecimento da pluralidade dos mundos e da destinação do planeta terreno, habitado apenas por uma fração mínima da Humanidade. Somente o Espiritismo resolve essa questão, que se encontra explanada aqui adiante, nos capítulos II, III e V.

XXI. Ajuizado serás, não supondo que sabes o que ignoras.

Isso vai com vistas aos que criticam aquilo de que desconhecem até mesmo os primeiros termos. Platão completa esse pensamento de Sócrates, dizendo: "Tentemos, primeiro, torná-los, se for possível, mais honestos nas palavras; se não o forem, não nos preocupemos com eles e não procuremos senão a verdade. Cuidemos de instruir-nos, mas não nos injuriemos." E assim que devem proceder os espíritas com relação aos seus contraditores de boa ou má-fé. Revivesse hoje Platão e acharia as coisas quase como no seu tempo e poderia usar da mesma linguagem. Também Sócrates toparia criaturas que zombariam da sua crença nos Espíritos e que o qualificariam de louco, assim como ao seu discípulo Platão.

Foi por haver professado esses princípios que Sócrates se viu ridiculizado, depois acusado de impiedade e condenado a beber cicuta. Tão certo é que, levantando contra si os interesses e os preconceitos que elas ferem, as grandes verdades novas não se podem firmar sem luta e sem fazer mártires.

[Capítulo I]

CAPÍTULO I

NÃO VIM DESTRUIR A LEI

As três revelações: Moisés, Cristo, Espiritismo. Aliança da Ciência e da Religião. -Instruçõesdos Espíritos: A nova era.

1. Não penseis que eu tenha vindo destruir a lei ou os profetas: não os vim destruir, mas cumpri- los: - porquanto, em verdade vos digo que o céu e a Terra não passarão, sem que tudo o que se acha na lei esteja perfeitamente cumprido, enquanto reste um único iota e um único ponto. (S.

MATEUS, cap. V, vv. 17 e 18.)

Moisés

2. Na lei moisaica, há duas partes distintas: a lei de Deus, promulgada no monte Sinai, e a lei civil ou disciplinar, decretada por Moisés. Uma é invariável; a outra, apropriada aos costumes e ao caráter do povo, se modifica com o tempo.

A lei de Deus está formulada nos dez mandamentos seguintes:

I. Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirei do Egito, da casa da servidão. Não tereis, diante de mim, outros deuses estrangeiros.

II. Não fareis imagem esculpida, nem figura alguma do que está em cima do céu, nem embaixo na Terra, nem do que quer que esteja nas águas sob a terra. Não os adorareis e não lhes prestareis culto soberano. (1) II. Não pronunciareis em vão o nome do Senhor, vosso Deus.

(1) Allan Kardec cita a parte mais importante do primeiro mandamento, e deixa de transcrever as seguintes frases: "... porque eu, o Senhor vosso Deus, sou Deus zeloso, que puno a iniquidade dos pais nos filhos, na terceira e na quarta gerações daqueles que me aborrecem, e uso de misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos." - (ÊXODO, XX, 5 e 6.) Nas traduções feitas pelas Igrejas católica e protestantes, essa parte do mandamento foi truncada para harmonizá-la com a doutrina da encarnação única da alma. Onde está "na terceira e na quarta gerações", conforme a tradução Brasileira da Bíblia, a Vulgata Latina (in tertiam et quartam generationem), a tradução de Zamenhof (en la tria kaj kvara generacioj), mudaram o texto para "até à terceira e quarta gerações".

Esses textos truncados que aparecem na tradução da Igreja Anglicana, na Católica de Figueiredo, na Protestante de Almeida e outras, tornam monstruosa a justiça divina, pois que filhos, netos, bisnetos, tetranetos inocentes teriam de ser castigados pelo pecado dos pais, avós, bisavós, tetravós. Foi uma infeliz tentativa de acomodação da Lei à vida única. - A Editora da FEB, 1947.

III. Lembrai-vos de santificar o dia do sábado.

IV. Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na terra que o Senhor vosso Deus vos dará.

V. Não mateis.

VI. Não cometais adultério. VII. Não roubeis.

VIII. Não presteis testemunho falso contra o vosso próximo. IX. Não desejeis a mulher do vosso próximo.

X. Não cobiceis a casa do vosso próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu asno, nem qualquer das coisas que lhe pertençam.

É de todos os tempos e de todos os países essa lei e tem, por isso mesmo, caráter divino. Todas as outras são leis que Moisés decretou, obrigado que se via a conter, pelo temor, um povo de seu natural turbulento e indisciplinado, no qual tinha ele de combater arraigados abusos e preconceitos, adquiridos durante a escravidão do Egito. Para imprimir autoridade às suas leis, houve de lhes atribuir origem divina, conforme o fizeram todos os legisladores dos povos primitivos. A autoridade do homem precisava apoiar-se na autoridade de Deus; mas, só a idéia de um Deus terrível podia impressionar criaturas ignorantes, em as quais ainda pouco desenvolvidos se encontravam o senso moral e o sentimento de uma justiça reta. E evidente que aquele que incluíra, entre os seus mandamentos, este: "Não matareis; não causareis dano ao vosso próximo", não poderiacontradizer-se, fazendo da exterminação um dever. As leis moisaicas, propriamente ditas, revestiam, pois, um caráter essencialmente transitório.

O Cristo

3. Jesus não veio destruir a lei, isto é, a lei de Deus; veio cumpri-la, isto é, desenvolvê-la, dar-lhe o verdadeiro sentido e adaptá-la ao grau de adiantamento dos homens. Por isso é que se nos depara, nessa lei, o principio dos deveres para com Deus e para com o próximo, base da sua doutrina. Quanto às leis de Moisés, propriamente ditas, ele, ao contrário, as modificou profundamente, quer na substancia, quer na forma. Combatendo constantemente o abuso das práticas exteriores e as falsas interpretações, por mais radical reforma não podia fazê-las passar, do que as reduzindo a esta única prescrição: "Amar a Deus acima de todas as coisas e o próximo como a si mesmo", e acrescentando:aí estão a lei toda e os profetas.

Por estas palavras: "O céu e a Terra não passarão sem que tudo esteja cumprido até o último iota", quis dizer Jesus ser necessário que a lei de Deus tivesse cumprimento integral, isto é, fosse praticada na Terra inteira, em toda a sua pureza, com todas as suas ampliações e conseqüências. Efetivamente, de que serviria haver sido promulgada aquela lei, se ela devesse constituir privilégio de alguns homens, ou, sequer, de um único povo? Sendo filhos de Deus todos os homens, todos, sem distinção nenhuma, são objeto da mesma solicitude.

O texto certo que, por mercê de Deus, já está reproduzido pelas edições recentíssimas a que nos referimos - traduções Brasileira e de Zamenhof -, que conferem com S. Jerônimo, mostra que a Lei ensina veladamente a reencarnação e as expiações e provas. Na primeira e na segunda gerações, como

contemporâneos de seus filhos e netos, o Espírito culpado ainda não reencarnou, mas, um pouco mais tarde - na terceira e quarta gerações - já ele voltou e recebe as consequências de suas faltas. Assim, o culpado mesmo, e não outrem, paga sua dívida.

Logo, têm-se de excluir a primeira 1ª e 2ª gerações e expressar "naª 3ª e 4ª, como realmente é o original.

Achamos conveniente acrescentar aqui esta nota, para facilitar a compreensão do estudioso que confronte a sua tradução da Bíblia com a citação do Mestre. - A Editora da FEB, 1947.

4. Mas, o papel de Jesus não foi o de um simples legislador moralista, tendo por exclusiva autoridade a sua palavra. Cabia-lhe dar cumprimento às profecias que lhe anunciaram o advento; a autoridade lhe vinha da natureza excepcional do seu Espírito e da sua missão divina. Ele viera ensinar aos homens que a verdadeira vida não é a que transcorre na Terra e sim a que é vivida no reino dos céus; viera ensinar- lhes o caminho que a esse reino conduz, os meios de eles se reconciliarem com Deus e de pressentirem esses meios na marcha das coisas por vir, para a realização dos destinos humanos. Entretanto, não disse tudo, limitando-se, respeito a muitos pontos, a lançar o gérmen de verdades que, segundo ele próprio o declarou, ainda não podiam ser compreendidas. Falou de tudo, mas em termos mais ou menos implícitos. Para ser apreendido o sentido oculto de algumas palavras suas, mister se fazia que novas idéias e novos conhecimentos lhes trouxessem a chave indispensável, idéias que, porém, não podiam surgir antes que o espírito humano houvesse alcançado um certo grau de madureza. A Ciência tinha de contribuir poderosamente para a eclosão e o desenvolvimento de tais idéias. Importava, pois, dar à Ciência tempo para progredir.

O Espiritismo

5.O Espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por meio de provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e as suas relações com o mundo corpóreo. Ele no-lomostra, não mais como coisa sobrenatural, porém, ao contrário, como uma das forças vivas e sem cessar atuantes da Natureza, como a fonte de uma imensidade de fenômenos até hoje incompreendidos e, por isso, relegados para o domino do fantástico e do maravilhoso. E a essas relações que o Cristo alude em muitas circunstâncias e dai vem que muito do que ele disse permaneceu ininteligível ou falsamente interpretado. O Espiritismo é a chave com o auxilio da qual tudo se explica de modo fácil.

6.A lei do Antigo Testamento teve em Moisés a sua personificação; a do Novo Testamento tem-nano Cristo. O Espiritismo é a terceira revelação da lei de Deus, mas não tem a personificá-lanenhuma individualidade, porque é fruto do ensino dado, não por um homem, sim pelos Espíritos, que são as vozes do Céu, em todos os pontos da Terra, com o concurso de uma multidão inumerável de intermediários. É, de certa maneira, um ser coletivo, formado pelo conjunto dos seres do mundo espiritual, cada um dos quais traz o tributo de suas luzes aos homens, para lhes tornar conhecido esse mundo e a sorte que os espera.

7. Assim como o Cristo disse: "Não vim destruir a lei, porém cumpri-la", também o Espiritismo diz: "Não venho destruir a lei cristã, mas dar-lhe execução." Nada ensina em contrário ao que ensinou o Cristo; mas, desenvolve, completa e explica, em termos claros e para toda gente, o que foi dito apenas sob forma alegórica. Vem cumprir, nos tempos preditos, o que o Cristo anunciou e preparar a realização das coisas futuras. Ele é, pois, obra do Cristo, que preside, conforme igualmente o anunciou, à regeneração que se opera e prepara o reino de Deus na Terra.

Aliança da Ciência e da Religião

8. A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana: uma revela as leis do mundo material e a outra as do mundo moral. Tendo, no entanto, essas leis o mesmo princípio, que é Deus,não podem contradizer-se. Se fossem a negação uma da outra, uma necessariamente estaria em erro e a outra com a verdade, porquanto Deus não pode pretender a destruição de sua própria obra. A incompatibilidade que se julgou existir entre essas duas ordens de idéias provém apenas de uma observação defeituosa e de excesso de exclusivismo, de um lado e de outro. Daí um conflito que deu origem à incredulidade e à intolerância.

São chegados os tempos em que os ensinamentos do Cristo têm de ser completados; em que o véu intencionalmente lançado sobre algumas partes desse ensino tem de ser levantado; em que a Ciência, deixando de ser exclusivamente materialista, tem de levar em conta o elemento espiritual e em que a Religião, deixando de ignorar as leis orgânicas e imutáveis da matéria, como duas forças que são,apoiando-se uma na outra e marchando combinadas, se prestarão mútuo concurso. Então, não mais desmentida pela Ciência, a Religião adquirirá inabalável poder, porque estará de acordo com a razão, já se lhe não podendo mais opor a irresistível lógica dos fatos.

A Ciência e a Religião não puderam, até hoje, entender-se, porque, encarando cada uma as coisas do seu ponto de vista exclusivo, reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher o vazio que as separava, um traço de união que as aproximasse. Esse traço de união está no conhecimento das leis que regem o Universo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que regem o movimento dos astros e a existência dos seres. Uma vez comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé dirigiu-se à razão; esta nada encontrou de ilógico na fé: vencido foi o materialismo. Mas, nisso, como em tudo, há pessoas que ficam atrás, até serem arrastadas pelo movimento geral, que as esmaga, se tentam resistir-lhe, em vez de o acompanharem. E toda uma revolução que neste momento se opera e trabalha os espíritos. Após uma elaboração que durou mais de dezoito séculos, chega ela à sua plena realização e

vai marcar uma nova era na vida da Humanidade. Fáceis são de prever as conseqüências: acarretará para as relações sociais inevitáveis modificações, às quais ninguém terá força para se opor, porque elas estão nos desígnios de Deus e derivam da lei do progresso, que é lei de Deus.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A nova era

9. Deus é único e Moisés é o Espírito que Ele enviou em missão para torná-lo conhecido não só dos hebreus, como também dos povos pagãos. O povo hebreu foi o instrumento de que se serviu Deus para se revelar por Moisés e pelos profetas, e as vicissitudes por que passou esse povodestinavam-se a chamar a atenção geral e a fazer cair o véu que ocultava aos homens a divindade.

Os mandamentos de Deus, dados por intermédio de Moisés, contêm o gérmen da mais ampla moral cristã. Os comentários da Bíblia, porém, restringiam-lhe o sentido, porque, praticada em toda a sua pureza, não na teriam então compreendido. Mas, nem por isso os dez mandamentos de Deus deixavam de ser um como frontispício brilhante, qual farol destinado a clarear a estrada que a Humanidade tinha de percorrer.

A moral que Moisés ensinou era apropriada ao estado de adiantamento em que se encontravam os povos que ela se propunha regenerar, e esses povos, semi-selvagens quanto ao aperfeiçoamento da alma, não teriam compreendido que se pudesse adorar a Deus de outro modo que não por meio de holocaustos, nem que se devesse perdoar a um inimigo. Notável do ponto de vista da matéria e mesmo do das artes e das ciências, a inteligência deles muito atrasada se achava em moralidade e não se houvera convertido sob o império de uma religião inteiramente espiritual. Era-lhes necessária uma representação semimaterial, qual a que apresentava então a religião hebraica.

Os holocaustos lhes falavam aos sentidos, do mesmo passo que a idéia de Deus lhes falava ao espírito.

O Cristo foi o iniciador da mais pura, da mais sublime moral, da moral evangélico-cristã, que há de renovar o mundo, aproximar os homens e torná-los irmãos; que há de fazer brotar de todos os corações a caridade e o amor do próximo e estabelecer entre os humanos uma solidariedade comum; de uma moral, enfim, que há de transformar a Terra, tornando-a morada de Espíritos superiores aos que hoje a habitam. E a lei do progresso, a que a Natureza está submetida, que se cumpre, e o Espiritismo é a alavanca de que Deus se utiliza para fazer que a Humanidade avance.

São chegados os tempos em que se hão de desenvolver as idéias, para que se realizem os progressos que estão nos desígnios de Deus. Têm elas de seguir a mesma rota que percorreram as idéias de liberdade, suas precursoras. Não se acredite, porém, que esse desenvolvimento se efetue sem lutas. Não; aquelas idéias precisam, para atingirem a maturidade, de abalos e discussões, a fim de que atraiam a atenção das massas. Uma vez isso conseguido, a beleza e a santidade da moral tocarão os espíritos, que então abraçarão uma ciência que lhes dá a chave da vida futura e descerra as portas da felicidade eterna. Moisés abriu o caminho; Jesus continuou a obra; o Espiritismo a concluirá. - Um Espírito israelita. (Mulhouse, 1861.)

10. Um dia, Deus, em sua inesgotável caridade, permitiu que o homem visse a verdade varar as trevas. Esse dia foi o do advento do Cristo. Depois da luz viva, voltaram as trevas. Após alternativas de verdade e obscuridade, o mundo novamente se perdia. Então, semelhantemente aos profetas do Antigo

Testamento, os Espíritos se puseram a falar e a vos advertir. O mundo está abalado em seus fundamentos; reboará o trovão. Sede firmes!

O Espiritismo é de ordem divina, pois que se assenta nas próprias leis da Natureza, e estai certos de que tudo o que é de ordem divina tem grande e útil objetivo. O vosso mundo se perdia; a Ciência, desenvolvida à custa do que é de ordem moral, mas conduzindo-vos ao bem-estar material, redundava em proveito do espírito das trevas. Como sabeis, cristãos, o coração e o amor têm de caminhar unidos à Ciência. O reino do Cristo, ah! passados que são dezoito séculos e apesar do sangue de tantos mártires, ainda não veio. Cristãos, voltai para o Mestre, que vos quer salvar. Tudo é fácil àquele que crê e ama; o amor o enche de inefável alegria. Sim, meus filhos, o mundo está abalado; os bons Espíritos vo-lo dizem sobejamente; dobrai-vos à rajada que anuncia a tempestade, a fim de não serdes derribados, isto é, preparai-vos e não imiteis as virgens loucas, que foram apanhadas desprevenidas à chegada do esposo.

A revolução que se apresta é antes moral do que material. Os grandes Espíritos, mensageiros divinos, sopram a fé, para que todos vós, obreiros esclarecidos e ardorosos, façais ouvir a vossa voz humilde, porquanto sois o grão de areia; mas, sem grãos de areia, não existiriam as montanhas. Assim, pois, que estas palavras - "Somos pequenos" - careçam para vós de significação. A cada um a sua missão, a cada um o seu trabalho. Não constrói a formiga o edifício de sua república e imperceptíveis animálculos não elevam continentes? Começou a nova cruzada. Apóstolos da paz universal, que não de uma guerra, modernos São Bernardos, olhai e marchai para frente; a lei dos mundos é a do progresso. Fénelon. (Poitiers, 1861.)

11. Santo Agostinho é um dos maiores vulgarizadores do Espiritismo. Manifesta-se quase por toda parte. A razão disso, encontramo-la na vida desse grande filósofo cristão. Pertence ele à vigorosa falange do Pais da Igreja, aos quais deve a cristandade seus mais sólidos esteios. Como vários outros, foi arrancado ao paganismo, ou melhor, à impiedade mais profunda, pelo fulgor da verdade. Quando, entregue aos maiores excessos, sentiu em sua alma aquela singular vibração que o fez voltar a si e compreender que a felicidade estava alhures, que não nos prazeres enervantes e fugitivos; quando, afinal, no seu caminho de Damasco, também lhe foi dado ouvir a santa voz a clamar-lhe: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" exclamou:

"Meu Deus! Meu Deus! perdoai-me, creio, sou cristão!" E desde então tornou-se um dos mais fortes sustentáculos do Evangelho. Podem ler-se, nas notáveis confissões que esse eminente espírito deixou, as características e, ao mesmo tempo, proféticas palavras que proferiu, depois da morte de Santa Mônica:

Estou convencido de que minha mãe me virá visitar e dar conselhos, revelando-me o que nos espera na vida futura. Que ensinamento nessas palavras e que retumbante previsão da doutrina porvindoura! Essa a razão por que hoje, vendo chegada a hora de divulgar-se a verdade que ele outrora pressentira, se constituiu seu ardoroso disseminador e, por assim dizer, se multiplica para responder a todos os que o chamam. -Erasto, discípulo de S. Paulo. (Paris, 1863.)

Nota. - Dar-se-á venha Santo Agostinho demolir o que edificou? Certamente que não. Como tantos outros, ele vê com os olhos do espírito o que não via enquanto homem. Liberta, sua alma entrevê

claridades novas, compreende o que antes não compreendia. Novas idéias lhe revelaram o sentido verdadeiro de algumas sentenças. Na Terra, apreciava as coisas de acordo com os conhecimentos que possuía; desde que, porém, uma nova luz lhe brilhou, pôde apreciá-las mais judiciosamente Assim é que teve de abandonar a crença, que alimentara, nos Espíritos íncubos e súcubos e o anátema que lançara contra a teoria dos antípodas. Agora que o Cristianismo se lhe mostra em toda a pureza, pode ele, sobre alguns pontos, pensar de modo diverso do que pensava quando vivo, sem deixar de ser um apóstolo cristão. Pode, sem renegar a sua fé, constituir-se disseminador do Espiritismo, porque vêcumprir-se o que fora predito. Proclamando-o, na atualidade, outra coisa não faz senão conduzir-nosa uma interpretação mais acertada e lógica dos textos. O mesmo ocorre com outros Espíritos que se encontram em posição análoga.

[Capítulo II]

CAPÍTULO II

MEU REINO NÃO É DESTE MUNDO

A vida futura. - A realeza de Jesus. - O ponto de vista. - Instruções dos Espíritos: Uma realeza terrestre.

1. Pilatos, tendo entrado de novo no palácio e feito vir Jesus à sua presença, perguntou-lhe: És o rei dos judeus? - Respondeu-lhe Jesus: Meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste

mundo, a minha gente houvera combatido para impedir que eu caísse nas mãos dos judeus; mas, o meu reino ainda não é aqui.

Disse-lhe então Pilatos: És, pois, rei? - Jesus lhe respondeu: Tu o dizes; sou rei; não nasci e não vim a este mundo senão para dar testemunho da verdade. Aquele que pertence a verdade escuta a minha voz. (S. JOÃO , cap. XVIII, vv. 33, 36 e 37.)

A vida futura

2. Por essas palavras, Jesus claramente se refere à vida futura, que ele apresenta, em todas as circunstâncias, como a meta a que a Humanidade irá ter e como devendo constituir objeto das maiores preocupações do homem na Terra. Todas as suas máximas se reportam a esse grande principio. Com efeito, sem a vida futura, nenhuma razão de ser teria a maior parte dos seus preceitos morais, donde vem que os que não crêem na vida futura, imaginando que ele apenas falava na vida presente, não os compreendem, ou os consideram pueris.

Esse dogma pode, portanto, ser tido como o eixo do ensino do Cristo, pelo que foi colocado num dos primeiros lugares à frente desta obra. E que ele tem de ser o ponto de mira de todos os homens; só ele justifica as anomalias da vida terrena e se mostra de acordo com a justiça de Deus.

3. Apenas idéias muito imprecisas tinham os judeus acerca da vida futura.

Acreditavam nos anjos, considerando-os seres privilegiados da Criação; não sabiam, porém, que os homens podem um dia tomar-se anjos e partilhar da felicidade destes. Segundo eles, a observância das leis de Deus era recompensada com os bens terrenos, com a supremacia da nação a que pertenciam, com vitórias sobre os seus inimigos. As calamidades públicas e as derrotas eram o castigo da desobediência àquelas leis. Moisés não pudera dizer mais do que isso a um povo pastor e ignorante, que precisava ser tocado, antes de tudo, pelas coisas deste mundo. Mais tarde, Jesus lhe revelou que há outro mundo, onde a justiça de Deus segue o seu curso. E esse o mundo que ele promete aos que cumprem os mandamentos de Deus e onde os bons acharão sua recompensa. Aí o seu reino; lá é que ele se encontra na sua glória e para onde voltaria quando deixasse a Terra.

Jesus, porém, conformando seu ensino com o estado dos homens de sua época, não julgou conveniente dar-lhes luz completa, percebendo que eles ficariam deslumbrados, visto que não a compreenderiam. Limitou-se a, de certo modo, apresentar a vida futura apenas como um principio, como uma lei da Natureza a cuja ação ninguém pode fugir. Todo cristão, pois, necessariamente crê na vida futura; mas, a idéia que muitos fazem dela é ainda vaga, incompleta e, por isso mesmo, falsa em diversos pontos. Para grande número de pessoas, não há, a tal respeito, mais do que uma crença, balda de certeza absoluta, donde as dúvidas e mesmo a incredulidade.

O Espiritismo veio completar, nesse ponto, como em vários outros, o ensino do Cristo, fazendo-oquando os homens já se mostram maduros bastante para apreender a verdade. Com o Espiritismo, a vida futura deixa de ser simples artigo de fé, mera hipótese; torna-se uma realidade material, que os latos demonstram, porquanto são testemunhas oculares os que a descrevem nas suas fases todas e em todas as suas peripécias, e de tal sorte que, além de impossibilitarem qualquer dúvida a esse propósito, facultam à mais vulgar inteligência a possibilidade de imaginá-la sob seu verdadeiro aspecto, como toda gente imagina um país cuja pormenorizada descrição leia. Ora, a descrição da vida futura é tão circunstanciadamente feita, são tão racionais as condições, ditosas ou infortunadas, da existência dos que lá se encontram, quais eles próprios pintam, que cada um, aqui, a seu mau grado, reconhece e declara a si mesmo que não pode ser de outra forma, porquanto, assim sendo, patente fica a verdadeira justiça de Deus.

A realeza de Jesus

4. Que não é deste mundo o reino de Jesus todos compreendem, mas, também na Terra não terá ele uma realeza? Nem sempre o título de rei implica o exercício do poder temporal. Dá-se esse título, por unânime consenso, a todo aquele que, pelo seu gênio, ascende à primeira plana numa ordem de idéias quaisquer, a todo aquele que domina o seu século e influi sobre o progresso da Humanidade. E nesse sentido que se costuma dizer: o rei ou príncipe dos filósofos, dos artistas, dos poetas, dos escritores, etc. Essa realeza, oriunda do mérito pessoal, consagrada pela posteridade, não revela, muitas vezes, preponderância bem maior do que a que cinge a coroa real? Imperecível é a primeira, enquanto esta outra é joguete das vicissitudes; as gerações que se sucedem à primeira sempre a bendizem, ao passo

que, por vezes, amaldiçoam a outra. Esta, a terrestre, acaba com a vida; a realeza moral se prolonga e mantém o seu poder, governa, sobretu-

do, após a morte. Sob esse aspecto não é Jesus mais poderoso rei do que os potentados da Terra? Razão, pois, lhe assistia para dizer a Pilatos, conforme disse: "Sou rei, mas o meu reino não é deste mundo."

O ponto de vista

5. A idéia clara e precisa que se faça da vida futura proporciona inabalável fé no porvir, fé que acarreta enormes conseqüências sobre a moralização dos homens, porque muda completamente o ponto de vista sob o qual encaram eles a vida terrena. Para quem se coloca, pelo pensamento, na vida espiritual, que é indefinida, a vida corpórea se torna simples passagem, breve estada num pai ingrato. As vicissitudes e tribulações dessa vida não passam de incidentes que ele suporta com paciência, porsabê-las de curta duração, devendo seguir-se-lhes um estado mais ditoso. A morte nada mais restará de aterrador; deixa de ser a porta que se abre para o nada e torna-se a que dá para a libertação, pela qual entra o exilado numa mansão de bem-aventurança e de paz. Sabendo temporária e não definitiva a sua estada no lugar onde se encontra, menos atenção presta às preocupações da vida, resultando-lhedaí uma calma de espírito que tira àquela muito do seu amargor.

Pelo simples fato de duvidar da vida futura, o homem dirige todos os seus pensamentos para a vida terrestre. Sem nenhuma certeza quanto ao porvir, dá tudo ao presente. Nenhum bem divisando mais precioso do que os da Terra, torna-se qual a criança que nada mais vê além de seus brinquedos. E não há o que não faça para conseguir os únicos bens que se lhe afiguram reais. A perda do menor deles lhe ocasiona causticante pesar; um engano, uma decepção, uma ambição insatisfeita, uma injustiça de que seja vítima, o orgulho ou a vaidade feridos são outros tantos tormentos, que lhe transformam a existência numa perene angústia, infligindo-se ele, desse modo, a si próprio, verdadeira tortura de todos os instantes. Colocando o ponto de vista, de onde considera a vida corpórea, no lugar mesmo em que ele aí se encontra, vastas proporções assume tudo o que o rodeia. O mal que o atinja, como o bem que toque aos outros, grande importância adquire aos seus olhos. Aquele que se acha no interior de uma cidade, tudo lhe parece grande: assim os homens que ocupem as altas posições, como os monumentos. Suba ele, porém, a uma montanha, e logo bem pequenos lhe parecerão homens e coisas.

É o que sucede ao que encara a vida terrestre do ponto de vista da vida futura; a Humanidade, tanto quanto as estrelas do firmamento, perde-se na imensidade. Percebe então que grandes e pequenos estão confundidos, como formigas sobre um montículo de terra; que proletários e potentados são da mesma estatura, e lamenta que essas criaturas efêmeras a tantas canseiras se entreguem para conquistar um lugar que tão pouco as elevará e que por tão pouco tempo conservarão. Daí se segue que a importância dada aos bens terrenos está sempre em razão inversa da fé na vida futura.

6. Se toda a gente pensasse dessa maneira, dir-se-ia, tudo na Terra periclitaria, porquanto ninguém mais se iria ocupar com as coisas terrenas. Não; o homem, instintivamente, procura o seu bem-estar e, embora certo de que só por pouco tempo permanecerá no lugar em que se encontra, cuida de estar aí o melhor ou

o menos mal que lhe seja possível. Ninguém há que, dando com um espinho debaixo de sua mão, não a retire, para se não picar. Ora, o desejo do bem-estar força o homem a tudo melhorar, impelido que é pelo instinto do progresso e da conservação, que está nas leis da Natureza. Ele, pois, trabalha por necessidade, por gosto e por dever, obedecendo, desse modo, aos desígnios da Providência que, para tal fim, o pôs na Terra. Simplesmente, aquele que se preocupa com o futuro não liga ao presente mais do que relativa importância e facilmente se consola dos seus insucessos, pensando no destino que o aguarda.

Deus, conseguintemente, não condena os gozos terrenos; condena, sim, o abuso desses gozos em detrimento das coisas da alma. Contra tais abusos é que se premunem os que a si próprios aplicam estas palavras de Jesus: Meu reino não é deste mundo.

Aquele que se identifica com a vida futura assemelha-se ao rico que perde sem emoção uma pequena soma. Aquele cujos pensamentos se concentram na vida terrestre assemelha-se ao pobre que perde tudo o que possui e se desespera.

7. O Espiritismo dilata o pensamento e lhe rasga horizontes novos. Em vez dessa visão, acanhada e mesquinha, que o concentra na vida atual, que faz do instante que vivemos na Terra único e frágil eixo do porvir eterno, ele, o Espiritismo, mostra que essa vida não passa de um elo no harmonioso e magnífico conjunto da obra do Criador. Mostra a solidariedade que conjuga todas as existências de um mesmo ser, todos os seres de um mesmo mundo e os seres de todos os mundos. Faculta assim uma base e uma razão de ser à fraternidade universal, enquanto a doutrina da criação da alma por ocasião do nascimento de cada corpo torna estranhos uns aos outros todos os seres. Essa solidariedade entre as partes de um mesmo todo explica o que inexplicável se apresenta, desde que se considere apenas um ponto. Esse conjunto, ao tempo do Cristo, os homens não o teriam podido compreender, motivo por que ele reservou para outros tempos o fazê-lo conhecido.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Uma realeza terrestre

8. Quem melhor do que eu pode compreender a verdade destas palavras de Nosso Senhor: "O meu reino não é deste mundo"? O orgulho me perdeu na Terra. Quem, pois, compreenderia o nenhum valor dos reinos da Terra, se eu o não compreendia? Que trouxe eu comigo da minha realeza terrena? Nada, absolutamente nada. E, como que para tornar mais terrível a lição, ela nem sequer me acompanhou até o túmulo! Rainha entre os homens, como rainha julguei que penetrasse no reino dos céus! Que desilusão! Que humilhação, quando, em vez de ser recebida aqui qual soberana, vi acima de mim, mas muito acima, homens que eu julgava insignificantes e aos quais desprezava, por não terem sangue nobre! Oh! como então compreendi a esterilidade das honras e grandezas que com tanta avidez se requestam na Terra!

Para se granjear um lugar neste reino, são necessárias a abnegação, a humildade, a caridade em toda a

sua celeste prática, a benevolência para com todos. Não se vos pergunta o que fostes, nem que posição ocupastes, mas que bem fizestes, quantas lágrimas enxugastes.

Oh! Jesus, tu o disseste, teu reino não é deste mundo, porque é preciso sofrer pira chegar ao céu, de onde os degraus de um trono a ninguém aproximam. A ele só conduzem as veredas mais penosas da vida. Procurai-lhe, pois, o caminho, através das urzes e dos espinhos, não por entre as flores.

Correm os homens por alcançar os bens terrestres, como se os houvessem de guardar para sempre. Aqui, porém, todas as ilusões se somem. Cedo se apercebem eles de que apenas apanharam uma sombra e desprezaram os únicos bens reais e duradouros, os únicos que lhes aproveitam na morada celeste, os únicos que lhes podem facultar acesso a esta.

Compadecei-vos dos que não ganharam o reino dos céus; ajudai-os com as vossas preces, porquanto a prece aproxima do Altíssimo o homem; é o traço de união entre o céu e a Terra: não o esqueçais. - Uma

Rainha de França. (Havre, 1863.)

[Capítulo III]

CAPÍTULO III

HÁ MUITAS MORADAS NA CASA DE MEU PAI

Diferentes estados da alma na erraticidade. - Diferentes categorias de mundos habitados. - Destinação da Terra. Causas das misérias terrenas. - Instruções dos Espíritos: Mundos superiores e mundos inferiores. - Mundos de expiações e de provas. - Mundos regeneradores. - Progressão dos mundos.

1. Não se turbe o vosso coração. - Credes em Deus, crede também em mim. Há muitas moradas na casa de meu Pai; se assim não fosse, já eu vo-lo teria dito, pois me vou para vos preparar o lugar. - Depois que me tenha ido e que vos houver preparado o lugar, voltarei e vos retirarei para mim, a fim de que onde eu estiver, também vós aí estejais. ( S. JOÃO , cap. XIV, vv. 1 a 3.)

Diferentes estados da alma na erraticidade

2. A casa do Pai é o Universo. As diferentes moradas são os mundos que circulam no espaço infinito e oferecem, aos Espíritos que neles encarnam, moradas correspondentes ao adiantamento dos mesmos Espíritos.

Independente da diversidade dos mundos, essas palavras de Jesus também podem referir-se ao estado venturoso ou desgraçado do Espírito na erraticidade. Conforme se ache este mais ou menos depurado e desprendido dos laços materiais, variarão ao infinito o meio em que ele se encontre, o aspecto das coisas, as sensações que experimente, as percepções que tenha. Enquanto uns não se podem afastar da esfera onde viveram, outros se elevam e percorrem o espaço e os mundos; enquanto alguns Espíritos

culpados erram nas trevas, os bem-aventurados gozam de resplendente claridade e do espetáculo sublime do Infinito; finalmente, enquanto o mau, atormentado de remorsos e pesares, muitas vezes insulado, sem consolação, separado dos que constituíam objeto de suas afeições, pena sob o guante dos sofrimentos morais, o justo, em convívio com aqueles a quem ama, frui as delícias de uma felicidade indizível. Também nisso, portanto, há muitas moradas, embora não circunscritas, nem localizadas.

Diferentes categorias de mundos habitados

3.Do ensino dado pelos Espíritos, resulta que muito diferentes umas das outras são as condições dos mundos, quanto ao grau de adiantamento ou de inferioridade dos seus habitantes. Entre eles há-os em que estes últimos são ainda inferiores aos da Terra, física e moralmente; outros, da mesma categoria que o nosso; e outros que lhe são mais ou menos superiores a todos os respeitos. Nos mundos inferiores, a existência é toda material, reinam soberanas as paixões, sendo quase nula a vida moral. A medida que esta se desenvolve, diminui a influência da matéria, de tal maneira que, nos mundos mais adiantados, a vida é, por assim dizer, toda espiritual.

4.Nos mundos intermédios, misturam-se o bem e o mal, predominando um ou outro, segundo o grau de adiantamento da maioria dos que os habitam. Embora se não possa fazer, dos diversos mundos, uma classificação absoluta, pode-se contudo, em virtude do estado em que se acham e da destinação que trazem, tomando por base os matizes mais salientes, dividi-los, de modo geral, como segue: mundos primitivos, destinados às primeiras encarnações da alma humana; mundos de expiação e provas, onde domina o mal; mundos de regeneração, nos quais as almas que ainda têm o que expiar haurem novas forças, repousando das fadigas da luta; mundos ditosos, onde o bem sobrepuja o mal; mundos celestes ou divinos, habitações de Espíritos depurados, onde exclusivamente reina o bem. A Terra pertence à categoria dos mundos de expiação e provas, razão por que aí vive o homem a braços com tantas misérias.

5.Os Espíritos que encarnam em um mundo não se acham a ele presos indefinidamente, nem nele atravessam todas as fases do progresso que lhes cumpre realizar, para atingir a perfeição. Quando, em um mundo, eles alcançam o grau de adiantamento que esse mundo comporta, passam para outro mais adiantado, e assim por diante, até que cheguem ao estado de puros Espíritos. São outras tantas estações, em cada uma das quais se lhes deparam elementos de progresso apropriados ao adiantamento que já conquistaram. É-lhes uma recompensa ascenderem a um mundo de ordem mais elevada, como é um castigo o prolongarem a sua permanência em um mundo desgraçado, ou serem relegados para outro ainda mais infeliz do que aquele a que se vêem impedidos de voltar quando se obstinaram no mal.

Destinação da Terra. - Causas das misérias humanas

6. Muitos se admiram de que na Terra haja tanta maldade e tantas paixões grosseiras, tantas misérias e enfermidades de toda natureza, e daí concluem que a espécie humana bem triste coisa é. Provém esse juízo do acanhado ponto de vista cm que se colocam os que o emitem e que lhes dá uma falsa idéia do conjunto.Deve-se considerar que na Terra não está a Humanidade toda, mas apenas uma pequena fração

da Humanidade. Com efeito, a espécie humana abrange todos os seres dotados de razão que povoam os inúmeros orbes do Universo. Ora, que é a população da Terra, em face da população total desses mundos? Muito menos que a de uma aldeia, em confronto com a de um grande império. A situação material e moral da Humanidade terrena nada tem que espante, desde que se leve em conta a destinação da Terra e a natureza dos que a habitam.

7. Faria dos habitantes de uma grande cidade falsíssima idéia quem os julgasse pela população dos seus quarteirões mais íntimos e sórdidos. Num hospital, ninguém vê senão doentes e estropiados; numa penitenciária, vêem-se reunidas todas as torpezas, todos os vícios; nas regiões insalubres, os habitantes, em sua maioria são pálidos, franzinos e enfermiços. Pois bem: figure-se a Terra como um subúrbio, um hospital, uma penitenciaria, um sítio malsão, e ela é simultaneamente tudo isso, ecompreender-se-á por que as aflições sobrelevam aos gozos, porquanto não se mandam para o hospital os que se acham com saúde, nem para as casas de correção os que nenhum mal praticaram; nem os hospitais e as casas de correção se podem ter por lugares de deleite.

Ora, assim como, numa cidade, a população não se encontra toda nos hospitais ou nas prisões, também na Terra não está a Humanidade inteira. E, do mesmo modo que do hospital saem os que se curaram e da prisão os que cumpriram suas penas, o homem deixa a Ferra, quando está curado de suas enfermidades morais.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Mundos Interiores e mundos superiores

8. A qualificação de mundos inferiores e mundos superiores nada tem de absoluta; é, antes, muito relativa. Tal inundo é inferior ou superior com referência aos que lhe estão acima ou abaixo, na escala progressiva.

Tomada a Terra por termo de comparação, pode-se fazer idéia do estado de um mundo inferior, supondo os seus habitantes na condição das raças selvagens ou das nações bárbaras que ainda entre nós se encontram, restos do estado primitivo do nosso orbe. Nos mais atrasados, são de certo modo rudimentares os seres que os habitam.

Revestem a forma humana, mas sem nenhuma beleza. Seus instintos não têm a abrandá-los qualquer sentimento de delicadeza ou de benevolência, nem as noções do justo e do injusto. A força bruta é, entre eles, a única lei. Carentes de indústrias e de invenções, passam a vida na conquista de alimentos. Deus, entretanto, a nenhuma de suas criaturas abandona; no fundo das trevas da inteligência jaz, latente, a vaga intuição, mais ou menos desenvolvida, de um Ente supremo. Esse instinto basta paratorná-los superiores uns aos outros e para lhes preparar a ascensão a uma vida mais completa, porquanto eles não são seres degradados, mas crianças que estão a crescer.

Entre os degraus inferiores e os mais elevados, inúmeros outros há, e difícil é reconhecer-se nos

Espíritos puros, desmaterializados e resplandecentes de glória, os que foram esses seres primitivos, do mesmo modo que no homem adulto se custa a reconhecer o embrião.

9. Nos mundos que chegaram a um grau superior, as condições da vida moral e material são muitíssimo diversas das da vida na Terra. Como por toda parte, a forma corpórea aí é sempre a humana, mas embelezada, aperfeiçoada e, sobretudo, purificada. O corpo nada tem da materialidade terrestre e não está, conseguintemente, sujeito às necessidades, nem às doenças ou deteriorações que a predominância da matéria provoca. Mais apurados, os sentidos são aptos a percepções a que neste mundo a grosseria da matéria obsta. A leveza específica do corpo permite locomoção rápida e fácil: em vez de se arrastar penosamente pelo solo, desliza, a bem dizer, pela superfície, ou plana na atmosfera, sem qualquer outro esforço além do da vontade, conforme se representam os anjos, ou como os antigos imaginavam os manes nos Campos Elíseos. Os homens conservam, a seu grado, os traços de suas passadas migrações e se mostram a seus amigos tais quais estes os conheceram, porém, irradiando uma luz divina, transfigurados pelas impressões interiores, então sempre elevadas. Em lugar de semblantes descorados, abatidos pelos sofrimentos e paixões, a inteligência e a vida cintilam com o fulgor que os pintores hão figurado no nimbo ou auréola dos santos.

A pouca resistência que a matéria oferece a Espíritos já muito adiantados torna rápido o desenvolvimento dos corpos e curta ou quase nula a infância. Isenta de cuidados e angústias, a vida é proporcionalmente muito mais longa do que na Terra. Em princípio, a longevidade guarda proporção com o grau de adiantamento dos mundos. A morte de modo algum acarreta os horrores da decomposição; longe de causar pavor, é considerada uma transformação feliz, por isso que lá não existe a dúvida sobre o porvir. Durante a vida, a alma, já não tendo a constringi-la a matéria compacta, expande-se e goza de uma lucidez que a coloca em estado quase permanente de emancipação e lhe consente a livre transmissão do pensamento.

10.Nesses mundos venturosos, as relações, sempre amistosas entre os povos, jamais são perturbadas pela ambição, da parte de qualquer deles, de escravizar o seu vizinho, nem pela guerra que daí decorre. Não há senhores, nem escravos, nem privilegiados pelo nascimento; só a superioridade moral e intelectual estabelece diferença entre as condições e dá a supremacia. A autoridade merece o respeito de todos, porque somente ao mérito é conferida e se exerce sempre com justiça. O homem não procura elevar-se acima do homem, mas acima de si mesmo, aperfeiçoando-se. Seu objetivo é galgar a categoria dos Espíritos puros, não lhe constituindo um tormento esse desejo, porem, uma ambição nobre, que o induz a estudar com ardor para os igualar. Lá, todos os sentimentos delicados e elevados da natureza humana se acham engrandecidos e purificados; desconhecem-se os ódios, os mesquinhos ciúmes, as baixas cobiças da inveja; uni laço de amor e fraternidade prende uns aos outros todos os homens, ajudando os mais fortes aos mais fracos. Possuem bens, em maior ou menor quantidade, conforme os tenham adquirido, mais ou menos por meio da inteligência; ninguém, todavia, sofre, por lhe faltar o necessário, uma vez que ninguém se acha em expiação. Numa palavra: o mal, nesses mundos, não existe.

11.No vosso, precisais do mal para sentirdes o bem; da noite, para admirardes a luz; da doença, para apreciardes a saúde. Naqueles outros não há necessidade desses contrastes. A eterna luz, a eterna beleza

e a eterna serenidade da alma proporcionam uma alegria eterna, livre de ser perturbada pelas angústias da vida material, ou pelo contacto dos maus, que lá não têm acesso. Isso o que o espírito humano maior dificuldade encontra para compreender. Ele foi bastante engenhoso para pintar os tormentos do inferno, mas nunca pôde imaginar as alegrias do céu. Por quê? Porque, sendo inferior, só há experimentado dores e misérias, jamais entreviu as claridades celestes; não pode, pois, falar do que não conhece. A medida, porém, que se eleva e depura, o horizonte se lhe dilata e ele compreende o bem que está diante de si, como compreendeu o mal que lhe está atrás.

12. Entretanto, os mundos felizes não são orbes privilegiados, visto que Deus não é parcial para qualquer de seus filhos; a todos dá os mesmos direitos e as mesmas facilidades para chegarem a tais mundos. Fá- los partir todos do mesmo ponto e a nenhum dota melhor do que aos outros; a todos são acessíveis as mais altas categorias: apenas lhes cumpre a eles conquistá-las pelo seu trabalho,alcançá-las mais depressa, ou permanecer inativos por séculos de séculos no lodaçal da Humanidade.(Resumo do ensino de todos os Espíritos superiores.)

Mundos de expiações e de provas

13.Que vos direi dos mundos de expiações que já não saibais, pois basta observeis o em que habitais? A superioridade da inteligência, em grande número dos seus habitantes, indica que a Terra não é um mundo primitivo, destinado à encarnação dos Espíritos que acabaram de sair das mãos do Criador. As qualidades inatas que eles trazem consigo constituem a prova de que já viveram e realizaram certo progresso. Mas, também, os numerosos vícios a que se mostram propensos constituem o índice de grande imperfeição moral. Por isso os colocou Deus num mundo ingrato, para expiarem aí suas faltas, mediante penoso trabalho e misérias da vida, até que hajam merecido ascender a um planeta mais ditoso.

14.Entretanto, nem todos os Espíritos que encarnam na Terra vão para aí em expiação. As raças a que chamais selvagens são formadas de Espíritos que apenas saíram da infância e que na Terra se acham, por assim dizer, em curso de educação, para se desenvolverem pelo contacto com Espíritos mais adiantados. Vêm depois as raças semicivilizadas, constituídas desses mesmos os Espíritos em via de progresso. São elas, de certo modo, raças indígenas da Terra, que aí se elevaram pouco a pouco em longos períodos seculares, algumas das quais hão podido chegar ao aperfeiçoamento intelectual dos povos mais esclarecidos.

Os Espíritos em expiação, se nos podemos exprimir dessa forma, são exóticos, na Terra; já tiveram noutros mundos, donde foram excluídos em conseqüência da sua obstinação no mal e por se haverem constituído, em tais mundos, causa de perturbação para os bons. Tiveram de ser degradados, por algum tempo, para o meio de Espíritos mais atrasados, com a missão de fazer que estes últimos avançassem, pois que levam consigo inteligências desenvolvidas e o gérmen dos conhecimentos que adquiriram. Daí vem que os Espíritos em punição se encontram no seio das raças mais inteligentes. Por isso mesmo, para essas raças é que de mais amargor se revestem OS infortúnios da vida. E que há nelas mais sensibilidade, sendo, portanto, mais provadas pelas contrariedades e desgostos do que as raças primitivas, cujo senso moral se acha mais embotado.

15. A Terra, conseguintemente, oferece um dos tipos de mundos expiatórios, cuja variedade é infinita, mas revelando todos, como caráter comum, o servirem de lugar de exílio para Espíritos rebeldes à lei de Deus. Esses Espíritos tem aí de lutar, ao mesmo tempo, com a perversidade dos homens e com a inclemência da Natureza, duplo e árduo trabalho que simultaneamente desenvolve as qualidades do coração e as da inteligência. E assim que Deus, em sua bondade, faz que o próprio castigo redunde em proveito do progresso do Espírito. - Santo Agostinho. Paris, 1862.)

Mundos regeneradores

16.Entre as estrelas que cintilam na abóbada azul do firmamento, quantos mundos não haverá como o vosso, destinados pelo Senhor à expiação e à provação! Mas, também os há mais miseráveis e melhores, como os há de transição, que se podem denominar de regeneradores. Cada turbilhão planetário, a deslocar-se no espaço em torno de um centro comum, arrasta consigo seus mundos primitivos, de exílio, de provas, de regeneração e de felicidade. Já se vos há falado de mundos onde a alma recém-nascida é colocada, quando ainda ignorante do bem e do mal, mas com a possibilidade de caminhar para Deus, senhora de si mesma, na posse do livre-arbítrio. Já também se vos revelou de que amplas faculdades é dotada a alma para praticar o bem. Mas, ah! há as que sucumbem, e Deus, que não as quer aniquiladas, lhes permite irem para esses mundos onde, de encarnação em encarnação, elas se depuram, regeneram e voltam dignas da glória que lhes fora destinada.

17.Os mundos regeneradores servem de transição entre os mundos de expiação e os mundos felizes. A alma penitente encontra neles a calma e o repouso e acaba por depurar-se. Sem dúvida, em tais mundos o homem ainda se acha sujeito às leis que regem a matéria; a Humanidade experimenta as vossas sensações e desejos, mas liberta das paixões desordenadas de que sois escravos, isenta do orgulho que impõe silêncio ao coração, da inveja que a tortura, do ódio que a sufoca. Em todas as frontes, vê-se escrita a palavra amor; perfeita equidade preside às relações sociais, todos reconhecem Deus e tentam caminhar para Ele, cumprindo-lhe as leis.

Nesses mundos, todavia, ainda não existe a felicidade perfeita, mas a aurora da felicidade. O homem lá é ainda de carne e, por isso, sujeito às vicissitudes de que libertos só se acham os seres completamente desmaterializados. Ainda tem de suportar provas, porém, sem as pungentes angústias da expiação. Comparados à Terra, esses mundos são bastante ditosos e muitos dentre vós se alegrariam de habitá-los, pois que eles representam a calma após a tempestade, a convalescença após a moléstia cruel. Contudo, menos absorvido pelas coisas materiais, o homem divisa, melhor do que vós, o futuro; compreende a existência de outros gozos prometidos pelo Senhor aos que deles se mostrem dignos, quando a morte lhes houver de novo ceifado os corpos, a fim de lhes outorgar a verdadeira vida. Então, liberta, a alma pairará acima de todos os horizontes. Não mais sentidos materiais e grosseiros; somente os sentidos de um perispírito puro e celeste, a aspirar as emanações do próprio Deus, nos aromas de amor e de caridade que do seu seio emanam.

18. Mas, ah! nesses mundos, ainda falível é o homem e o Espírito do mal não há perdido completamente o seu império. Não avançar é recuar, e, se o homem não se houver firmado bastante na senda do bem,

pode recair nos mundos de expiação, onde, então, novas e mais terríveis provas o aguardam.

Contemplai, pois, à noite, à hora do repouso e da prece, a abóbada azulada e, das inúmeras esferas que brilham sobre as vossas cabeças, indagai de vós mesmos quais as que conduzem a Deus e pedi-lhe que uni mundo regenerador vos abra seu seio, após a expiação na Terra. - Santo Agostinho. (Paris, 1862.)

Progressão dos mundos

19. O progresso é lei da Natureza. A essa lei todos os seres da Criação, animados e inanimados, foram submetidos pela bondade de Deus, que quer que tudo se engrandeça e prospere. A própria destruição, que aos homens parece o termo final de todas as coisas, é apenas uni meio de se chegar, pela transformação, a um estado mais perfeito, visto que tudo morre para renascer e nada sofre o aniquilamento.

Ao mesmo tempo que todos os seres vivos progridem moralmente, progridem materialmente os mundos em que eles habitam. Quem pudesse acompanhar um mundo em suas diferentes fases, desde o instante em que se aglomeraram os primeiros átomos destinados e constituí-lo, vê-lo-ia a percorrer uma escala incessantemente progressiva, mas de degraus imperceptíveis para cada geração, e a oferecer aos seus habitantes uma morada cada vez mais agradável, à medida que eles próprios avançam na senda do progresso. Marcham assim, paralelamente, o progresso do homem, o dos animais, seus auxiliares, o dos vegetais e o da habitação, porquanto nada em a Natureza permanece estacionário. Quão grandiosa é essa idéia e digna da majestade do Criador! Quanto, ao contrário, é mesquinha e indigna do seu poder a que concentra a sua solicitude e a sua providência no imperceptível grão de areia, que é a Terra, e restringe a Humanidade aos poucos homens que a habitam!

Segundo aquela lei, este mundo esteve material e moralmente num estado inferior ao em que hoje se acha e se alçará sob esse duplo aspecto a um grau mais elevado. Ele há chegado a um dos seus períodos de transformação, em que, de orbe expiatório, mudar-se-á em planeta de regeneração, onde os homens serão ditosos, porque nele imperará a lei de Deus. - Santo Agostinho. (Paris, 1862.)

[Capítulo IV]

CAPÍTULO IV

NINGUÉM PODERÁ VER O REINO DE DEUS SE NÃO NASCER DE NOVO

Ressurreição e Reencarnação. - A reencarnação fortalece os laços de família, ao passo que a unicidade da existência os rompe. - Instruções dos Espíritos: Limites da encarnação. -Necessidade da encarnação.

1. Jesus, tendo vindo às cercanias de Cezaréia de Filipe, interrogou assim seus discípulos: "Que dizem os homens, com relação ao Filho do Homem? Quem dizem que eu sou?" - Eles lhe responderam: "Dizem uns que és João Batista; outros, que Elias; outros, que Jeremias, ou algum

dos profetas." - Perguntou-lhes Jesus: "E vós, quem dizeis que eu sou?" - Simão Pedro, tomando a palavra, respondeu: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo." - Replicou-lhe Jesus: "Bem- aventurado és, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne nem o sangue que isso te revelaram, mas meu Pai, que está nos céus." (S. Mateus, cap. XVI, vv. 13 a 17; S. Marcos, cap. VIII, vv. 27 a 30.)

2.Nesse ínterim, Herodes, o Tetrarca, ouvira falar de tudo o que fazia Jesus e seu espírito se achava em suspenso - porque uns diziam que João Batista ressuscitara dentre os mortos; outros que aparecera Elias; e outros que uns dos antigos profetas ressuscitara. - Disse então Herodes: "Mandei cortar a cabeça a João Batista; quem é então esse de quem ouço dizer tão grandes coisas?" E ardia por vê-lo. (S. Marcos, cap. VI, vv. 14 a 16; S. Lucas, cap. IX, vv. 7 a 9.)

3.(Após a transfiguração.) Seus discípulos então o interrogam desta forma: "Por que dizem os escribas ser preciso que antes volte Elias?" - Jesus lhes respondeu: "É verdade que Elias há de vir e restabelecer todas as coisas: - mas, eu vos declaro que Elias já veio e eles não o conheceram e o trataram como lhes aprouve. É assim que farão sofrer o Filho do Homem." - Então, seus discípulos compreenderam que fora de João Batista que ele falara. (S. Mateus, cap. XVII, vv. 10 a 13; - S. Marcos, cap. IX, vv. 11 a 13.)

Ressurreição e reencarnação

4. A reencarnação fazia parte dos dogmas dos judeus, sob o nome de ressurreição. Só os saduceus, cuja crença era a de que tudo acaba com a morte, não acreditavam nisso. As idéias dos judeus sobre esse ponto, como sobre muitos outros, não eram claramente definidas, porque apenas tinham vagas e incompletas noções acerca da alma e da sua ligação com o corpo. Criam eles que um homem que vivera podia reviver, sem saberem precisamente de que maneira o fato poderia dar-se. Designavam pelo termo ressurreição o que o Espiritismo, mais judiciosamente, chama reencarnação. Com efeito, a ressurreição dá idéia de voltar à vida o corpo que já está morto, o que a Ciência demonstra ser materialmente impossível, sobretudo quando os elementos desse corpo já se acham desde muito tempo dispersos e absorvidos. A reencarnação é a volta da alma ou Espírito à vida corpórea, mas em outro corpo especialmente formado para ele e que nada tem de comum com o antigo. A palavra ressurreição podia assim aplicar-se a Lázaro, mas não a Elias, nem aos outros profetas. Se, portanto, segundo a crença deles, João Batista era Elias, o corpo de João não podia ser o de Elias, pois que João fora visto criança e seus pais eram conhecidos. João, pois, podia ser Eliasreencarnado, porém, não ressuscitado.

5Ora, entre os fariseus, havia um homem chamado Nicodememos, senador dos judeus - que veio à noite ter com Jesus e lhe disse: "Mestre, sabemos que vieste da parte de Deus para nos instruir como um doutor, porquanto ninguém poderia fazer os milagres que fazes, se Deus não estivesse com ele."

Jesus lhe respondeu: "Em verdade, em verdade, digo-te: Ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo."

Disse-lhe Nicodemos: "Como pode nascer um homem já velho? Pode tornar a entrar no ventre de sua mãe, para nascer segunda vez?"

Retorquiu-lhe Jesus: "Em verdade, em verdade, digo-te: Se um homem não renasce da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. - O que é nascido da carne é carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. - Não te admires de que eu te haja dito ser preciso que nasças de novo. - O Espírito sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes donde vem ele, nem para onde vai; o mesmo se dá com todo homem que é nascido do Espírito."

Respondeu-lhe Nicodemos: "Como pode isso fazer-se?" - Jesus lhe observou: "Pois quê! és mestre em Israel e ignoras estas coisas? Digo-te em verdade, em verdade, que não dizemos senão o que sabemos e que não damos testemunho, senão do que temos visto. Entretanto, não aceitas o nosso testemunho. - Mas, se não me credes, quando vos falo das coisas da Terra, como me crereis, quando vos fale das coisas do céu?" (S. JOÃO, cap. III, vv. 1 a 12.)

6. A idéia de que João Batista era Elias e de que os profetas podiam reviver na Terra se nos depara em muitas passagens dos Evangelhos, notadamente nas acima reproduzidas (nº 1, nº 2, nº 3). Se fosse errônea essa crença, Jesus não houvera deixado de a combater, como combateu tantas outras. Longe disso, ele a sanciona com toda a sua autoridade e a põe por princípio e como condição necessária, quando diz: "Ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo." E insiste, acrescentando: Não te admires de que eu te haja dito ser preciso nasças de novo.

7Estas palavras: Se um homem não renasce do água e do Espírito foram interpretadas no sentido da regeneração pela água do batismo. O texto primitivo, porém, rezava simplesmente: não renasce da água e do Espírito, ao passo que nalgumas traduções as palavras - do Espírito - foram substituídas pelas seguintes: do Santo Espírito, o que já não corresponde ao mesmo pensamento. Esse ponto capital ressalta dos primeiros comentários a que os Evangelhos deram lugar, como se comprovará um dia, sem equívoco possível. (1)

(1) A tradução de Osterwald está conforme o texto primitivo. Diz: "Não renasce da água e do Espírito"; a de Sacy diz: do Santo Espírito; a de Lamennais: do Espírito Santo.

À nota de Allan Kardec, podemos hoje acrescentar que as modernas traduções já restituíram o texto primitivo, pois que só imprimem "Espírito" e não Espírito Santo. Examinamos a tradução brasileira, a inglesa, a em esperanto, a de Ferreira de Almeida, e todas elas está somente "Espírito".

Além dessas modernas, encontramos a confirmação numa latina de Theodoro de Beza, de 1642, que diz: "...genitus ex aqua et Spiritu..." "...et quod genitum est ex Spiritu, spiritus est." É fora de dúvida que a palavra "Santo" foi interpolada, como diz Kardec. - A Editora da FEB, 1947.

8. Para se apanhar o verdadeiro sentido dessas palavras, cumpre também se atente na significação do termo água que ali não fora empregado na acepção que lhe é própria.

Muito imperfeitos eram os conhecimentos dos antigos sobre as ciências físicas. Eles acreditavam que a Terra saíra das águas e, por isso, consideravam a água como elemento gerador absoluto. Assim é que na Gênese se lê: "O Espírito de Deus era levado sobre as águas; flutuava sobre as águas; - Que o firmamento seja feito no meio das águas; - Que as águas que estão debaixo do céu se reúnam em um só lugar e que apareça o elemento árido; - Que as águas produzam animais vivos que nadem na água e pássaros que voem sobre a terra e sob o firmamento." Segundo essa crença, a água se tornara o símbolo da natureza material, como o Espírito era o da natureza inteligente. Estas palavras: "Se o homem não renasce da água e do Espírito, ou em água e em Espírito", significam pois: "Se o homem não renasce com seu corpo e sua alma." E nesse sentido que a principio as compreenderam.

Tal interpretação se justifica, aliás, por estas outras palavras: O que é nascido da carne é carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. Jesus estabelece aí uma distinção positiva entre o Espírito e o corpo. O que é nascido da carne é carne indica claramente que só o corpo procede do corpo e que o Espírito independe deste.

9. O Espírito sopra onde quer; ouves-lhe a voz, mas não sabes nem donde ele vem, nem para onde vai:pode-se entender que se trata do Espírito de Deus, que dá vida quem ele quer, ou da alma do homem.Nesta última acepção - "não sabes donde ele vem, nem para onde vai - significa que ninguém sabe o que foi, nem o que será o Espírito. Se o Espírito, ou alma, fosse criado ao mesmo tempo que o corpo, saber-se-ia donde ele veio, pois que se lhe conheceria o começo. Como quer que seja, essa passagem consagra o princípio da preexistência da alma e, por conseguinte, o da pluralidade das existências.

10.Ora, desde o tempo de João Batista até o presente, o reino dos céus é tomado pela violência e são os violentos que o arrebatam; - pois que assim o profetizaram todos os profetas até João, e também a lei. - Se quiserdes compreender o que vos digo, ele mesmo é o EIias que há de vir. -Ouça-o aquele que tiver ouvidos de ouvir. (S. MATEUS, cap. XI, vv. 12 a 15.)

11.Se o princípio da reencarnação, conforme se acha expresso em S. João, podia, a rigor, ser interpretado em sentido puramente místico, o mesmo já não acontece com esta passagem de S. Mateus, que não permite equívoco: ELE MESMO é o Elias que há de vir. Não há aí figura, nem alegoria: é uma afirmação positiva. -"Desde o tempo de João Batista até o presente o reino dos céus é tomado pela violência." Que significam essas palavras, uma vez que João Batista ainda vivia naquele momento? Jesus as explica, dizendo: "Se quiserdes compreender o que digo, ele mesmo é o Elias que há de vir." Ora, sendo João o próprio Elias, Jesus alude à época em que João vivia com o nome de Elias. "Até ao presente o reino dos céus é tomado pela violência": outra alusão à violência da lei moisaica, que ordenava o extermínio dos infiéis, para que os demais ganhassem a Terra Prometida, Paraíso dos hebreus, ao passo que, segundo a nova lei, o céu se ganha pela caridade e pela brandura.

E acrescentou: Ouça aquele que tiver ouvidos de ouvir. Essas palavras, que Jesus tanto repetiu, claramente dizem que nem todos estavam em condições de compreender certas verdades.

12.Aqueles do vosso povo a quem a morte foi dada viverão de novo; aqueles que estavam mortos em meio a mim ressuscitarão. Despertai do vosso sono e entoai louvores a Deus, vós que habitais no pó; porque o orvalho que cai sobre vós é um orvalho de luz e porque arruinareis a Terra e o reino dos gigantes. (ISAÍAS, cap. XXVI, v. 19.)

13.E também muito explícita esta passagem de lsaías: "Aqueles do vosso povo a quem a morte foi dada viverão de novo." Se o profeta houvera querido falar da vida espiritual, se houvera pretendido dizer que aqueles que tinham sido executados não estavam mortos em Espírito, teria dito: ainda vivem,e não: viverão de novo. No sentido espiritual, essas palavras seriam um contra-senso, pois que implicariam uma interrupção na vida da alma. No sentido de regeneração moral, seriam a negação das penas eternas, pois que estabelecem, em princípio, que todos os que estão mortos reviverão.

14.Mas, quando o homem há morrido uma vez, quando seu corpo, separado de seu espírito, foi consumido, que é feito dele? -Tendo morrido uma vez, poderia o homem reviver de novo? Nesta guerra em que me acho todos os dias da minha vida, espero que chegue a minha mutação. (JOB, cap. XIV, v. 10,14. Tradução de Le Maistre de Sacy.)

Quando o homem morre, perde toda a sua força. expira. Depois, onde está ele? -Se o homem morre, viverá de novo? Esperarei todos os dias de meu combate, até que venha alguma mutação? (ID. Tradução protestante de Osterwald.)

Quando o homem está morto, vive sempre; acabando os dias da minha existência terrestre, esperarei, porquanto a ela voltarei de novo. (ID. Versão da Igreja grega.)

15.Nessas três versões, o princípio da pluralidade das existências se acha claramente expresso. Ninguém poderá supor que Job haja querido falar da regeneração pela água do batismo, que ele de certo não conhecia. "Tendo o homem morrido uma vez, poderia reviver de novo?" A idéia de morrer uma vez, e de reviver implica a de morrer e reviver muitas vezes. A versão da Igreja grega ainda é mais explícita, se é que isso é possível: "Acabando os dias da minha existência terrena, esperarei, porquanto a ela voltarei", ou, voltarei à existência terrestre. Isso é tão claro, como se alguém dissesse: "Saio de minha casa, mas a ela tornarei." "Nesta guerra em que me encontro todos os dias de minha vida, espero que se dê a minha mutação." Job, evidentemente, pretendeu referir-se à luta que sustentava contra as misérias da vida. Espera a sua mutação, isto é, resigna-se. Na versão grega,esperarei parece aplicar-se, preferentemente, a uma nova existência: "Quando a minha existência estiver acabada, esperarei, porquanto a ela voltarei." Job como que se coloca, após a morte, no intervalo que separa uma existência de outra e diz que lá aguardará o momento de voltar.

16.Não há, pois, duvidar de que, sob o nome de ressurreição, o princípio da reencarnação era ponto de uma das crenças fundamentais dos judeus, ponto que Jesus e os profetas confirmaram de modo formal;

donde se segue que negar a reencarnação é negar as palavras do Cristo. Um dia, porém, suas palavras, quando forem meditadas sem idéias preconcebidas, reconhecer-se-ão autorizadas quanto a esse ponto, bem como em relação a muitos outros.

17. A essa autoridade, do ponto de vista religioso, se adita, do ponto de vista filosófico, a das provas que resultam da observação dos fatos. Quando se trata de remontar dos efeitos às causas, a reencarnação surge como de necessidade absoluta, como condição inerente à Humanidade; numa palavra: como lei da Natureza. Pelos seus resultados, ela se evidencia, de modo, por assim dizer, material, da mesma forma que o motor oculto se revela pelo movimento. Só ela pode dizer ao homem donde ele vem, para onde vai, por que está na Terra, e justificar todas as anomalias e todas as aparentes injustiças que a vida apresenta. (1) Sem o princípio da preexistência da alma e da pluralidade das existências, são ininteligíveis, em sua maioria, as máximas do Evangelho, razão por que hão dado lugar a tão contraditórias interpretações. Está nesse princípio a chave que lhes restituirá o sentido verdadeiro.

(1) Veja-se, para os desenvolvimentos do dogma da reencarnação, O Livro dos Espíritos, caps. IV e V; O que é o Espiritismo, cap. II, por Allan Kardec; Pluralidade das Existências, por PEZZANI.

A reencarnação fortalece os laços de família, ao passo que a unicidade da existência os rompe

18. Os laços de família não sofrem destruição alguma com a reencarnação, como o pensam certas pessoas. Ao contrário, tornam-se mais fortalecidos e apertados. O princípio oposto, sim, os destrói.

No espaço, os Espíritos formam grupos ou famílias entrelaçados pela afeição, pela simpatia e pela semelhança das inclinações. Ditosos por se encontrarem juntos, esses Espíritos se buscam uns aos outros. A encarnação apenas momentaneamente os separa, porquanto, ao regressarem à erraticidade, novamente se reúnem como amigos que voltam de uma viagem. Muitas vezes, até, uns seguem a outros na encarnação, vindo aqui reunir-se numa mesma família, ou num mesmo círculo, a fim de trabalharem juntos pelo seu mútuo adiantamento. Se uns encarnam e outros não, nem por isso deixam de estar unidos pelo pensamento. Os que se conservam livres velam pelos que se acham em cativeiro. Os mais adiantados se esforçam por fazer que os retardatários progridam. Após cada existência, todos têm avançado um passo na senda do aperfeiçoamento.

Cada vez menos presos à matéria, mais viva se lhes torna a afeição recíproca, pela razão mesma de que, mais depurada, não tem a perturbá-la o egoísmo, nem as sombras das paixões. Podem, portanto, percorrer, assim, ilimitado número de existências corpóreas, sem que nenhum golpe receba a mútua estima que os liga.

Está bem visto que aqui se trata de afeição real, de alma a alma, única que sobrevive à destruição do

corpo, porquanto os seres que neste mundo se unem apenas pelos sentidos nenhum motivo têm para se procurarem no mundo dos Espíritos. Duráveis somente o são as afeições espirituais; as de natureza carnal se extinguem com a causa que lhes deu origem. Ora, semelhante causa não subsiste no mundo dos Espíritos, enquanto a alma existe sempre. No que concerne às pessoas que se unem exclusivamente por motivo de interesse, essas nada realmente são umas para as outras: a morte as separa na Terra e no céu.

19.A união e a afeição que existem entre pessoas parentes são um índice da simpatia anterior que as aproximou, Daí vem que, falando-se de alguém cujo caráter, gostos e pendores nenhuma semelhança apresentam com os dos seus parentes mais próximos, se costuma dizer que ela não é da família. Dizendo- se isso, enuncia-se uma verdade mais profunda do que se supõe. Deus permite que, nas famílias, ocorram essas encarnações de Espíritos antipáticos ou estranhos, com o duplo objetivo de servir de prova para uns e, para outros, de meio de progresso. Assim, os maus se melhoram pouco a pouco, ao contacto dos bons e por efeito dos cuidados que se lhes dispensam. O caráter deles se abranda, seus costumes se apuram, as antipatizas se esvaem. E desse modo que se opera a fusão das diferentes categorias de Espíritos, como se dá na Terra com as raças e os povos.

20.O temor de que a parentela aumente indefinidamente, em conseqüência da reencarnação, é de fundo egoístico: prova, naquele que o sente, falta de amor bastante amplo para abranger grande número de pessoas. Um pai, que tem muitos filhos, ama-os menos do que amaria a um deles, se fosse único? Mas, tranqüilizem-se os egoístas: não há fundamento para semelhante temor. Do fato de um homem ter tido dez encarnações, não se segue que vá encontrar, no mundo dos Espíritos, dez pais, dez mães, dez mulheres e um número proporcional de filhos e de parentes novos. Lá encontrará sempre os que foram objeto da sua afeição, os quais se lhe terão ligado na Terra, a títulos diversos, e, talvez, sob o mesmo título.

21.Vejamos agora as conseqüências da doutrina antireencarcionista. Ela, necessariamente, anula a preexistência da alma. Sendo estas criadas ao mesmo tempo que os corpos, nenhum laço anterior há entre elas, que, nesse caso, serão completamente estranhas umas às outras. O pai é estranho a seu filho. A filiação das famílias fica assim reduzida à só filiação corporal, sem qualquer laço espiritual. Não há então motivo algum para quem quer que seja glorificar-se de haver tido por antepassados tais ou tais personagens ilustres. Com a reencarnação, ascendentes e descendentes podem já se terem conhecido, vivido juntos, amado, e podem reunir-se mais tarde, a fim de apertarem entre si os laços de simpatia.

22.Isso quanto ao passado. Quanto ao futuro, segundo um dos dogmas fundamentais que decorrem danão-reencarnação, a sorte das almas se acha irrevogavelmente determinada, após uma só existência. A fixação definitiva da sorte implica a cessação de todo progresso, pois desde que haja qualquer progresso já não há sorte definitiva. Conforme tenham vivido bem ou mal, elas vão imediatamente para a mansão dos bem-aventurados, ou para o inferno eterno. Ficam assim, imediatamente e para sempre, separadas e sem esperança de tornarem a juntar-se, de forma que pais, mães e filhos, mandos e mulheres, irmãos, irmãs e amigos jamais podem estar certos de se verem novamente; é a ruptura absoluta dos laços de família.

Com a reencarnação e progresso a que dá lugar, todos os que se amaram tornam a encontrar-se na Terra e no espaço e juntos gravitam para Deus. Se alguns fraquejam no caminho, esses retardam o seu adiantamento e a sua felicidade, mas não há para eles perda de toda esperança. Ajudados, encorajados e amparados pelos que os amam, um dia sairão do lodaçal em que se enterraram. Com a reencarnação, finalmente, há perpétua solidariedade entre os encarnados e os desencarnados, e, daí, estreitamento dos laços de afeição.

23. Em resumo, quatro alternativas se apresentam ao homem, para o seu futuro de além-túmulo: 1ª, o nada, de acordo com a doutrina materialista; 2ª, a absorção no todo universal, de acordo com a doutrina panteísta; 3ª, a individualidade, com fixação definitiva da sorte, segundo a doutrina da Igreja; 4ª, a individualidade, com progressão indefinita, conforme a Doutrina Espírita. Segundo as duas primeiras, os laços de família se rompem por ocasião da morte e nenhuma esperança resta às almas de se encontrarem futuramente. Com a terceira, há para elas a possibilidade de se tornarem a ver, desde que sigam para a mesma região, que tanto pode ser o inferno como o paraíso. Com a pluralidade das existências, inseparável da progressão gradativa, há a certeza na continuidade das relações entre os que se amaram, e é isso o que constitui a verdadeira família.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Limites da encarnação

24. Quais os limites da encarnação?

A bem dizer, a encarnação carece de limites precisamente traçados, se tivermos em vista apenas o envoltório que constitui o corpo do Espírito, dado que a materialidade desse envoltório diminui à proporção que o Espírito se purifica. Em certos mundos mais adiantados do que a Terra, já ele é menos compacto, menos pesado e menos grosseiro e, por conseguinte, menos sujeito a vicissitudes.

Em grau mais elevado, é diáfano e quase fluídico. Vai desmaterializando-se de grau em grau e acaba por se confundir com o perispírito. Conforme o mundo em que é levado a viver, o Espírito reveste o invólucro apropriado à natureza desse mundo.

O próprio periespírito passa por transformações sucessivas. Torna-se cada vez mais etéreo, até à depuração completa, que é a condição dos puros Espíritos. Se mundos especiais são destinados a Espíritos de grande adiantamento, estes últimos não lhes ficam presos, como nos mundos inferiores. O estado de desprendimento em que se encontram lhes permite ir a toda parte onde os chamem as missões que lhes estejam confiadas.

Se se considerar do ponto de vista material a encarnação, tal como se verifica na Terra, poder-se-ádizer que ela se limita aos mundos inferiores. Depende, portanto, de o Espírito libertar-se dela mais ou menos rapidamente, trabalhando pela sua purificação.

Deve também considerar-se que no estado de desencarnado, isto é, no intervalo das existências corporais, a situação do Espírito guarda relação com a natureza do mundo a que o liga o grau do seu adiantamento. Assim, na erraticidade, é ele mais ou menos ditoso, livre e esclarecido, conforme está mais ou menos desmaterializado. SLuís. (Paris, 1859.)

Necessidade da encarnação

25. É um castigo a encarnação e somente os Espíritos culpados estão sujeitos a sofrê-la?

A passagem dos Espíritos pela vida corporal é necessária para que eles possam cumprir, por meio de uma ação material, os desígnios cuja execução Deus lhes confia. É-lhes necessária, a bem deles, visto que a atividade que são obrigados a exercer lhes auxilia o desenvolvimento da inteligência. Sendo soberanamente justo, Deus tem de distribuir tudo igualmente por todos os seus filhos; assim é que estabeleceu para todos o mesmo ponto de partida, a mesma aptidão, as mesmas obrigações a cumprir e a mesma liberdade de proceder. Qualquer privilégio seria uma preferência, uma injustiça. Mas, a encarnação para todos os Espíritos, é apenas um estado transitório. E uma tarefa que Deus lhes impõe, quando iniciam a vida, como primeira experiência do uso que farão do livre-arbítrio. Os que desempenham com zelo essa tarefa transpõem rapidamente e menos penosamente os primeiros graus da iniciação e mais cedo gozam do fruto de seus labores. Os que, ao contrário, usam mal da liberdade que Deus lhes concede retardam a sua marcha e, tal seja a obstinação que demonstrem, podem prolongar indefinidamente a necessidade da reencarnação e é quando se torna um castigo. - S. Luís.(Paris, 1859.)

26. NOTA. - Uma comparação vulgar fará se compreenda melhor essa diferença. O escolar não chega aos estudos superiores da Ciência, senão depois de haver percorrido a série das classes que até lá o conduzirão. Essas classes, qualquer que seja o trabalho que exijam, são um meio de o estudante alcançar o fim e não um castigo que se lhe inflige. Se ele é esforçado, abrevia o caminho, no qual, então, menos espinhos encontra. Outro tanto não sucede àquele a quem a negligência e a preguiça obrigam a passar duplamente por certas classes. Não é o trabalho da classe que constitui a punição; esta se acha na obrigação de recomeçar o mesmo trabalho.

Assim acontece com o homem na Terra. Para o Espírito do selvagem, que está apenas no início da vida espiritual, a encarnação é um meio de ele desenvolver a sua inteligência; contudo, para o homem esclarecido, em quem o senso moral se acha largamente desenvolvido e que é obrigado a percorrer de novo as etapas de uma vida corpórea cheia de angústias, quando já poderia ter chegado ao fim, é um castigo, pela necessidade em que se vê de prolongar sua permanência em mundos inferiores e desgraçados. Aquele que, ao contrário, trabalha ativamente pelo seu progresso moral, além de abreviar o tempo da encarnação material, pode também transpor de uma só vez os degraus intermédios que o separam dos mundos superiores.

Não poderiam os Espíritos encarnar uma única vez em determinado globo e preencher em esferas diferentes suas diferentes existências? Semelhante modo de ver só seria admissível se, na Terra, todos os homens estivessem exatamente no mesmo nível intelectual e moral. As diferenças que há entre eles,

desde o selvagem ao homem civilizado, mostram quais os degraus que têm de subir. A encarnação, aliás, precisa ter um fim útil. Ora, qual seria o das encarnações efêmeras das crianças que morrem em tenra idade? Teriam sofrido sem proveito para si, nem para outrem. Deus, cujas leis todas são soberanamente sábias, nada faz de inútil. Pela reencarnação no mesmo globo, quis ele que os mesmos Espíritos, pondo- se novamente em contacto, tivessem ensejo de reparar seus danos recíprocos. Por meio das suas relações anteriores, quis, além disso, estabelecer sobre base espiritual os laços de família e apoiar numa lei natural os princípios da solidariedade, da fraternidade e da igualdade.

[Capítulo V]

CAPÍTULO V

BEM-AVENTURADOS OS AFLITOS

Justiça das aflições. - Causas atuais das aflições. - Causas anteriores das aflições. -Esquecimento do passado. - Motivos de resignação. - O suicídio e a loucura. - Instruções dos Espíritos: Bem e mal sofrer. - O mal e o remédio. - A felicidade não é deste mundo. - Perda de pessoas amadas. Mortes prematuras. - Se fosse um homem de bem, teria morrido. - Os tormentos voluntários. - A desgraça real. - A melancolia. - Provas voluntárias. O verdadeiro cilício. - Dever-se-á pôr termo às provas do próximo? - Será lícito abreviar a vida de um doente que sofra sem esperança de cura? - Sacrifício da própria vida. - Proveito dos sofrimentos para outrem.

1.Bem-aventurados os que choram, pois que serão consolados. - Bem-aventurados os famintos e os sequiosos de justiça, pois que serão saciados. - Bem-aventurados os que sofrem perseguição pela justiça, pois que é deles o reino dos céus. (S. MATEUS, cap. V, vv. 5, 6 e 10.)

2.Bem-aventurados vós que sois pobres, porque vosso é o reino dos céus. - Bem-aventuradosvós, que agora tendes fome, porque sereis saciados. - Ditosos sois, vós que agora chorais, porque rireis. (S. LUCAS, cap. VI, vv. 20 e 21.)

Mas, ai de vós, ricos que tendes no mundo a vossa consolação. - Ai de vós que estais saciados, porque tereis fome. - Ai de vós que agora rides, porque sereis constrangidos a gemer e a chorar. (S. LUCAS, cap. VI, vv. 24 e 25.)

Justiça das aflições

3. Somente na vida futura podem efetivar-se as compensações que Jesus promete aos aflitos da Terra. Sem a certeza do futuro, estas máximas seriam um contra-senso; mais ainda: seriam um engodo. Mesmo com essa certeza, dificilmente se compreende a conveniência de sofrer para ser feliz. E, dizem, para se ter maior mérito. Mas, então, pergunta-se: por que sofrem uns mais do que outros? Por que nascem uns na miséria e outros na opulência, sem coisa alguma haverem feito que justifique essas posições? Por que uns nada conseguem, ao passo que a outros tudo parece sorrir? Todavia, o que ainda menos se

compreende é que os bens e os males sejam tão desigualmente repartidos entre o vício e a virtude; e que os homens virtuosos sofram, ao lado dos maus que prosperam. A fé no futuro pode consolar e infundir paciência, mas não explica essas anomalias, que parecem desmentir a justiça de Deus. Entretanto, desde que admita a existência de Deus, ninguém o pode conceber sem o infinito das perfeições. Ele necessariamente tem todo o poder, toda a justiça, toda a bondade, sem o que não seria Deus. Se é soberanamente bom e justo, não pode agir caprichosamente, nem com parcialidade. Logo, as vicissitudes da vida derivam de uma causa e, pois que Deus é justo, justa há de ser essa causa. Isso o de que cada um deve bem compenetrar-se. Por meio dos ensinos de Jesus, Deus pôs os homens na direção dessa causa, e hoje, julgando-os suficientemente maduros para compreendê-la, lhes revela completamente a aludida causa, por meio do Espiritismo, isto é, pela palavra dos Espíritos.

Causas atuais das aflições

4. De duas espécies são as vicissitudes da vida, ou, se o preferirem, promanam de duas fontes bem diferentes, que importa distinguir. Umas têm sua causa na vida presente; outras, fora desta vida.

Remontando-se à origem dos males terrestres, reconhecer-se-á que muitos são conseqüência natural do caráter e do proceder dos que os suportam.

Quantos homens caem por sua própria culpa! Quantos são vítimas de sua imprevidência, de seu orgulho e de sua ambição!

Quantos se arruinam por falta de ordem, de perseverança, pelo mau proceder, ou por não terem sabido limitar seus desejos!

Quantas uniões desgraçadas, porque resultaram de um cálculo de interesse ou de vaidade e nas quais o coração não tomou parte alguma!

Quantas dissensões e funestas disputas se teriam evitado com um pouco de moderação e menos suscetibilidade!

Quantas doenças e enfermidades decorrem da intemperança e dos excessos de todo gênero!

Quantos pais são infelizes com seus filhos, porque não lhes combateram desde o princípio as más tendências! Por fraqueza, ou indiferença, deixaram que neles se desenvolvessem os germens do orgulho, do egoísmo e da tola vaidade, que produzem a secura do coração; depois, mais tarde, quando colhem o que semearam, admiram-se e se afligem da falta de deferência com que são tratados e da ingratidão deles.

Interroguem friamente suas consciências todos os que são feridos no coração pelas vicissitudes e decepções da vida; remontem passo a passo à origem dos males que os torturam e verifiquem se, as mais das vezes, não poderão dizer: Se eu houvesse feito, ou deixado de fazer tal coisa, não estaria em

semelhante condição.

A quem, então, há de o homem responsabilizar por todas essas aflições, senão a si mesmo? O homem, pois, em grande número de casos, é o causador de seus próprios infortúnios; mas, em vez de reconhecê- lo, acha mais simples, menos humilhante para a sua vaidade acusar a sorte, a Providência, a má fortuna, a má estrela, ao passo que a má estrela é apenas a sua incúria.

Os males dessa natureza fornecem, indubitavelmente, um notável contingente ao cômputo das vicissitudes da vida. O homem as evitará quando trabalhar por se melhorar moralmente, tanto quanto intelectualmente.

5. A lei humana atinge certas faltas e as pune. Pode, então, o condenado reconhecer que sofre a conseqüência do que fez. Mas a lei não atinge, nem pode atingir todas as faltas; incide especialmente sobre as que trazem prejuízo â sociedade e não sobre as que só prejudicam os que as cometem, Deus, porém, quer que todas as suas criaturas progridam e, portanto, não deixa impune qualquer desvio do caminho reto, Não há falta alguma, por mais leve que seja, nenhuma infração da sua lei, que não acarrete forçosas e inevitáveis conseqüências, mais ou menos deploráveis. Daí se segue que, nas pequenas coisas, como nas grandes, o homem é sempre punido por aquilo em que pecou. os sofrimentos que decorrem do pecado são-lhe uma advertência de que procedeu mal. Dão-lheexperiência, fazem-lhe sentir a diferença existente entre o bem e o mal e a necessidade de se melhorar para, de futuro, evitar o que lhe originou uma fonte de amarguras; sem o que, motivo não haveria para que se emendasse. Confiante na impunidade, retardaria seu avanço e, conseqüentemente, a sua felicidade futura.

Entretanto, a experiência, algumas vezes, chega um pouco tarde: quando a vida já foi desperdiçada e turbada; quando as forças já estão gastas e sem remédio o mal, Põe-se então o homem a dizer: "Se no começo dos meus dias eu soubera o que sei hoje, quantos passos em falso teria evitado! Se houvesse de recomeçar, conduzir-me-ia de outra maneira. No entanto, já não há mais tempo!" Como o obreiro preguiçoso, que diz: "Perdi o meu dia", também ele diz: "Perdi a minha vida". Contudo, assim como para o obreiro o Sol se levanta no dia seguinte, permitindo-lhe neste reparar o tempo perdido, também para o homem, após a noite do túmulo, brilhará o Sol de uma nova vida, em que lhe será possível aproveitar a experiência do passado e suas boas resoluções para o futuro.

Causas anteriores das aflições

6. Mas, se há males nesta vida cuja causa primária é o homem, outros há também aos quais, pelo menos na aparência, ele é completamente estranho e que parecem atingi-lo como por fatalidade. Tal, por exemplo, a perda de entes queridos e a dos que são o amparo da família. Tais, ainda, os acidentes que nenhuma previsão poderia impedir; os reveses da fortuna, que frustram todas as precauções aconselhadas pela prudência; os flagelos naturais, as enfermidades de nascença, sobretudo as que tiram a tantos infelizes os meios de ganhar a vida pelo trabalho: as deformidades, a idiotia, o cretinismo, etc.

Os que nascem nessas condições, certamente nada hão feito na existência atual para merecer, sem

compensação, tão triste sorte, que não podiam evitar, que são impotentes para mudar por si mesmos e que os põe à mercê da comiseração pública. Por que, pois, seres tão desgraçados, enquanto, ao lado deles, sob o mesmo teto, na mesma família, outros são favorecidos de todos os modos?

Que dizer, enfim, dessas crianças que morrem em tenra idade e da vida só conheceram sofrimentos? Problemas são esses que ainda nenhuma filosofia pôde resolver, anomalias que nenhuma religião pôde justificar e que seriam a negação da bondade, da justiça e da providência de Deus, se se verificasse a hipótese de ser criada a alma ao mesmo tempo que o corpo e de estar a sua sorte irrevogavelmente determinada após a permanência de alguns instantes na Terra. Que fizeram essas almas, que acabam de sair das mãos do Criador, para se verem, neste mundo, a braços com tantas misérias e para merecerem no futuro urna recompensa ou uma punição qualquer, visto que não hão podido praticar nem o bem, nem o mal?

Todavia, por virtude do axioma segundo o qual todo efeito tem uma causa, tais misérias são efeitos que hão de ter uma causa e, desde que se admita um Deus justo, essa causa também há de ser justa. Ora, ao efeito precedendo sempre a causa, se esta não se encontra na vida atual, há de ser anterior a essa vida, isto é, há de estar numa existência precedente. Por outro lado, não podendo Deus punir alguém pelo bem que fez, nem pelo mal que não fez, se somos punidos, é que fizemos o mal; se esse mal não o fizemos na presente vida, tê-lo-emos feito noutra. E uma alternativa a que ninguém pode fugir e em que a lógica decide de que parte se acha a justiça de Deus.

O homem, pois, nem sempre é punido, ou punido completamente, na sua existência atual; mas não escapa nunca às conseqüências de suas faltas. A prosperidade do mau é apenas momentânea; se ele não expiar hoje, expiará amanhã, ao passo que aquele que sofre está expiando o seu passado. O infortúnio que, à primeira vista, parece imerecido tem sua razão de ser, e aquele que se encontra em sofrimento pode sempre dizer: 'Perdoa-me, Senhor, porque pequei.

7. Os sofrimentos devidos a causas anteriores à existência presente, como os que se originam de culpas atuais, são muitas vezes a conseqüência da falta cometida, isto é, o homem, pela ação de uma rigorosa justiça distributiva, sofre o que fez sofrer aos outros. Se foi duro e desumano, poderá ser a seu turno tratado duramente e com desumanidade; se foi orgulhoso, poderá nascer em humilhante condição; se foi avaro, egoísta, ou se fez mau uso de suas riquezas, poderá ver-se privado do necessário; se foi mau filho, poderá sofrer pelo procedimento de seus filhos, etc.

Assim se explicam pela pluralidade das existências e pela destinação da Terra, como mundo expiatório, as anomalias que apresenta a distribuição da ventura e da desventura entre os bons e os maus neste planeta. Semelhante anomalia, contudo, só existe na aparência, porque considerada tão-sódo ponto de vista da vida presente. Aquele que se elevar, pelo pensamento, de maneira a apreender toda uma série de existências, verá que a cada um é atribuída a parte que lhe compete, sem prejuízo da que lhe tocará no mundo dos Espíritos, e verá que a justiça de Deus nunca se interrompe.

Jamais deve o homem olvidar que se acha num mundo inferior, ao qual somente as suas imperfeições o

conservam preso. A cada vicissitude, cumpre-lhe lembrar-se de que, se pertencesse a um mundo mais adiantado, isso não se daria e que só de si depende não voltar a este, trabalhando por se melhorar.

8.As tribulações podem ser impostas a Espíritos endurecidos, ou extremamente ignorantes, para levá-los a fazer uma escolha com conhecimento de causa. Os Espíritos penitentes, porém, desejosos de reparar o mal que hajam feito e de proceder melhor, esses as escolhem livremente. Tal o caso de um que, havendo desempenhado mal sua tarefa, pede lha deixem recomeçar, para não perder o fruto de seu trabalho As tribulações, portanto, são, ao mesmo tempo, expiações do passado, que recebe nelas o merecido castigo, e provas com relação ao futuro, que elas preparam. Rendamos graças a Deus, que, em sua bondade, faculta ao homem reparar seus erros e não o condena irrevogavelmente por uma primeira falta.

9.Não há crer, no entanto, que todo sofrimento suportado neste mundo denote a existência de uma determinada falta. Muitas vezes são simples provas buscadas pelo Espírito para concluir a sua depuração e ativar o seu progresso. Assim, a expiação serve sempre de prova, mas nem sempre a prova é uma expiação. Provas e expiações, todavia, são sempre sinais de relativa inferioridade, porquanto o que é perfeito não precisa ser provado. Pode, pois, um Espírito haver chegado a certo grau de elevação e, nada obstante, desejoso de adiantar-se mais, solicitar uma missão, uma tarefa a executar, pela qual tanto mais recompensado será, se sair vitorioso, quanto mais rude haja sido a luta. Tais são, especialmente, essas pessoas de instintos naturalmente bons, de alma elevada, de nobres sentimentos inatos, que parece nada de mau haverem trazido de suas precedentes existências e que sofrem, com resignação toda cristã, as maiores dores, somente pedindo a Deus que as possam suportar sem murmurar. Pode-se, ao contrário, considerar como expiações as aflições que provocam queixas e impelem o homem à revolta contra Deus.

Sem dúvida, o sofrimento que não provoca queixumes pode ser uma expiação; mas, é indício de que foi buscada voluntariamente, antes que imposta, e constitui prova de forte resolução, o que é sinal de progresso.

10. Os Espíritos não podem aspirar à completa felicidade, enquanto não se tenham tornado puros: qualquer mácula lhes interdita a entrada nos mundos ditosos. São como os passageiros de um navio onde há pestosos, aos quais se veda o acesso à cidade a que aportem, até que se hajam expurgado. Mediante as diversas existências corpóreas é que os Espíritos se vão expungindo, pouco a pouco, de suas imperfeições. As provações da vida os fazem adiantar-se, quando bem suportadas. Como expiações, elas apagam as faltas e purificam. São o remédio que limpa as chagas e cura o doente. Quanto mais grave é o mal, tanto mais enérgico deve ser o remédio. Aquele, pois, que muito sofre deve reconhecer que muito tinha a expiar e deve regozijar-se à idéia da sua próxima cura. Dele depende, pela resignação, tornar proveitoso o seu sofrimento e não lhe estragar o fruto com as suas impaciências, visto que, do contrário, terá de recomeçar.

Esquecimento do passado

11. Em vão se objeta que o esquecimento constitui obstáculo a que se possa aproveitar da experiência de vidas anteriores. havendo Deus entendido de lançar um véu sobre o passado, é que há nisso vantagem.

Com efeito, a lembrança traria gravíssimos inconvenientes. Poderia, em certos casos,humilhar-nos singularmente, ou, então, exaltar-nos o orgulho e, assim, entravar o nossolivre-arbítrio. Em todas as circunstâncias, acarretaria inevitável perturbação nas relações sociais.

Freqüentemente, o Espírito renasce no mesmo meio em que já viveu, estabelecendo de novo relações com as mesmas pessoas, a fim de reparar o mal que lhes haja feito. Se reconhecesse nelas as a quem odiara, quiçá o ódio se lhe despertaria outra vez no íntimo. De todo modo, ele se sentiria humilhado em presença daquelas a quem houvesse ofendido.

Para nos melhorarmos, outorgou-nos Deus, precisamente, o de que necessitamos e nos basta: a voz da consciência e as tendências instintivas. Priva-nos do que nos seria prejudicial.

Ao nascer, traz o homem consigo o que adquiriu, nasce qual se fez; em cada existência, tem um novo ponto de partida. Pouco lhe importa saber o que foi antes: se se vê punido, é que praticou o mal. Suas atuais tendências más indicam o que lhe resta a corrigir em si próprio e é nisso que deveconcentrar-se toda a sua atenção, porquanto, daquilo de que se haja corrigido completamente, nenhum traço mais conservará. As boas resoluções que tomou são a voz da consciência, advertindo-odo que é bem e do que é mal e dando-lhe forças para resistir às tentações.

Aliás, o esquecimento ocorre apenas durante a vida corpórea. Volvendo à vida espiritual, readquire o Espírito a lembrança do passado; nada mais há, portanto, do que uma interrupção temporária, semelhante à que se dá na vida terrestre durante o sono, a qual não obsta a que, no dia seguinte, nos recordemos do que tenhamos feito na véspera e nos dias precedentes.

E não é somente após a morte que o Espírito recobra a lembrança dó passado. Pode dizer-se que jamais a perde, pois que, como a experiência o demonstra, mesmo encarnado, adormecido o corpo, ocasião em que goza de certa liberdade, o Espírito tem consciência de seus atos anteriores; sabe por que sofre e que sofre com justiça. A lembrança unicamente se apaga no curso da vida exterior, da vida de relação. Mas, na falta de uma recordação exata, que lhe poderia ser penosa e prejudicá-lo nas suas relações sociais, forças novas haure ele nesses instantes de emancipação da alma, se os sabe aproveitar.

Motivos de resignação

12. Por estas palavras: Bem-aventurados os aflitos, pois que serão consolados, Jesus aponta a compensação que hão de ter os que sofrem e a resignação que leva o padecente a bendizer do sofrimento, como prelúdio da cura.

Também podem essas palavras ser traduzidas assim: Deveis considerar-vos felizes por sofrerdes, visto que as dores deste mundo são o pagamento da dívida que as vossas passadas faltas vos fizeram contrair; suportadas pacientemente na Terra, essas dores vos poupam séculos de sofrimentos na vida futura. Deveis, pois, sentir-vos felizes por reduzir Deus a vossa dívida, permitindo que a saldeis agora, o que vos garantirá a tranqüilidade no porvir.

O homem que sofre assemelha-se a um devedor de avultada soma, a quem o credor diz: "Se me pagares hoje mesmo a centésima parte do teu débito, quitar-te-ei do restante e ficarás livre; se o não fizeres, atormentar-te-ei, até que pagues a última parcela." Não se sentiria feliz o devedor por suportar toda espécie de privações para se libertar, pagando apenas a centésima parte do que deve? Em vez de se queixar do seu credor, não lhe ficará agradecido?

Tal o sentido das palavras: "Bem-aventurados os aflitos, pois que serão consolados." São ditosos, porque se quitam e porque, depois de se haverem quitado, estarão livres. Se, porém, o homem, aoquitar-se de um lado, endivida-se de outro, jamais poderá alcançar a sua libertação. Ora, cada nova falta aumenta a dívida, porquanto nenhuma há, qualquer que ela seja, que não acarrete forçosa e inevitavelmente uma punição. Se não for hoje, será amanhã; se não for na vida atual, será noutra. Entre essas faltas, cumpre se coloque na primeira fiada a carência de submissão à vontade de Deus. Logo, se murmurarmos nas aflições, se não as aceitarmos com resignação e como algo que devemos ter merecido, se acusarmos a Deus de ser injusto, nova dívida contraímos, que nos faz perder o fruto que devíamos colher do sofrimento. E por isso que teremos de recomeçar, absolutamente como se, a um credor que nos atormente, pagássemos uma cota e a tomássemos de novo por empréstimo.

Ao entrar no mundo dos Espíritos, o homem ainda está como o operário que comparece no dia do pagamento. A uns dirá o Senhor: "Aqui tens a paga dos teus dias de trabalho"; a outros, aos venturosos da Terra, aos que hajam vivido na ociosidade, que tiverem feito consistir a sua felicidade nas satisfações do amor-próprio e nos gozos mundanos: "Nada vos toca, pois que recebestes na Terra o vosso salário. Ide e recomeçai a tarefa."

13. O homem pode suavizar ou aumentar o amargor de suas provas, conforme o modo por que encare a vida terrena. Tanto mais sofre ele, quanto mais longa se lhe afigura a duração do sofrimento. Ora, aquele que a encara pelo prisma da vida espiritual apanha, num golpe de vista, a vida corpórea. Ele a vê como um ponto no infinito, compreende-lhe a curteza e reconhece que esse penoso momento terá presto passado. A certeza de um próximo futuro mais ditoso o sustenta e anima e, longe de se queixar, agradece ao Céu as dores que o fazem avançar. Contrariamente, para aquele que apenas vê a vida corpórea, interminável lhe parece esta, e a dor o oprime com todo o seu peso. Daquela maneira de considerar a vida, resulta ser diminuída a importância das coisas deste mundo, e sentir-se compelido o homem a moderar seus desejos, a contentar-secom a sua posição, sem invejar a dos outros, a receber atenuada a impressão dos reveses e das decepções que experimente. Dai tira ele uma calma e uma resignação tão úteis à saúde do corpo quanto à da alma, ao passo que, com a inveja, o ciúme e a ambição, voluntariamente se condena à tortura e aumenta as misérias e as angústias da sua curta existência.

O suicídio e a loucura

14. A calma e a resignação hauridas da maneira de considerar a vida terrestre e da confiança no futuro dão ao espírito uma serenidade que é o melhor preservativo contra a loucura e o suicídio. Com efeito, é certo que a maioria dos casos de loucura se deve à comoção produzida pelas vicissitudes que o homem não tem a coragem de suportar. Ora, se encarando as coisas deste mundo da maneira por que o

Espiritismo faz que ele as considere, o homem recebe com indiferença, mesmo com alegria, os reveses e as decepções que o houveram desesperado noutras circunstâncias, evidente se torna que essa força, que o coloca acima dos acontecimentos, lhe preserva de abalos a razão, os quais, se não fora isso, a conturbariam.

15.O mesmo ocorre com o suicídio. Postos de lado os que se dão em estado de embriaguez e de loucura, aos quais se pode chamar de inconscientes, é incontestável que tem ele sempre por causa um descontentamento, quaisquer que sejam os motivos particulares que se lhe apontem. Ora, aquele que está certo de que só é desventurado por um dia e que melhores serão os dias que hão de vir, enche-sefacilmente de paciência. Só se desespera quando nenhum termo divisa para os seus sofrimentos. E que é a vida humana, com relação à eternidade, senão bem menos que um dia? Mas, para o que não crê na eternidade e julga que com a vida tudo se acaba, se os infortúnios e as aflições o acabrunham, unicamente na morte vê uma solução para as suas amarguras. Nada esperando, acha muito natural, muito lógico mesmo, abreviar pelo suicídio as suas misérias.

16.A incredulidade, a simples dúvida sobre o futuro, as idéias materialistas, numa palavra, são os maiores incitantes ao suicídio; ocasionam a covardia moral. Quando homens de ciência, apoiados na autoridade do seu saber, se esforçam por provar aos que os ouvem ou lêem que estes nada têm a esperar depois da morte, não estão de

fato levando-os a deduzir que, se são desgraçados, coisa melhor não lhes resta senão se matarem? Que lhes poderiam dizer para desviá-los dessa conseqüência? Que compensação lhes podem oferecer? Que esperança lhes podem dar? Nenhuma, a não ser o nada. Daí se deve concluir que, se o nada é o único remédio heróico, a única perspectiva, mais vale buscá-lo imediatamente e não mais tarde, para sofrer por menos tempo.

A propagação das doutrinas materialistas é, pois, o veneno que inocula a idéia do suicídio na maioria dos que se suicidam, e os que se constituem apóstolos de semelhantes doutrinas assumem tremenda responsabilidade. Com o Espiritismo, tornada impossível a dúvida, muda o aspecto da vida. O crente sabe que a existência se prolonga indefinidamente para lá do túmulo, mas em condições muito diversas; donde a paciência e a resignação que o afastam muito naturalmente de pensar no suicídio; donde, em suma, a coragem moral.

17. O Espiritismo ainda produz, sob esse aspecto, outro resultado igualmente positivo e talvez mais decisivo. Apresenta-nos os próprios suicidas a informar-nos da situação desgraçada em que se encontram e a provar que ninguém viola impunemente a lei de Deus, que proíbe ao homem encurtar a sua vida. Entre os suicidas, alguns há cujos sofrimentos, nem por serem temporários e não eternos, não são menos terríveis e de natureza a fazer refletir os que porventura pensam em daqui sair, antes que Deus o haja ordenado. O espírita tem, assim, vários motivos a contrapor à idéia do suicídio: acerteza de uma vida futura, em que, sabe-o ele, será tanto mais ditoso, quanto mais inditoso e resignado haja sido na Terra: a certeza de que, abreviando seus dias, chega, precisamente, a resultado oposto ao que esperava; que se liberta de um mal, para incorrer num mal pior, mais longo e mais terrível; que se

engana, imaginando que, com o matar-se, vai mais depressa para o céu; que o suicídio é um obstáculo a que no outro mundo ele se reúna aos que foram objeto de suas afeições e aos quais esperava encontrar; donde

a conseqüência de que o suicídio, só lhe trazendo decepções, é contrário aos seus próprios interesses. Por isso mesmo, considerável já é o número dos que têm sido, pelo Espiritismo, obstados de suicidar-se,podendo daí concluir-se que, quando todos os homens forem espiritas, deixará de haver suicídios conscientes. Comparando-se, então, os resultados que as doutrinas materialistas produzem com os que decorrem da Doutrina Espírita, somente do ponto de vista do suicídio, forçoso será reconhecer que, enquanto a lógica das primeiras a ele conduz, a da outra o evita, fato que a experiência confirma.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Bem e mal sofrer

18. Quando o Cristo disse: "Bem-aventurados os aflitos, o reino dos céus lhes pertence", não se referia de modo geral aos que sofrem, visto que sofrem todos os que se encontram na Terra, quer ocupem tronos, quer jazam sobre a palha. Mas, ah! poucos sofrem bem; poucos compreendem que somente as provas bem suportadas podem conduzi-los ao reino de Deus. O desânimo é uma falta. Deus vos recusa consolações, desde que vos falte coragem. A prece é um apoio para a alma; contudo, não basta: é preciso tenha por base uma fé viva na bondade de Deus. Ele já muitas vezes vos disse que não coloca fardos pesados em ombros fracos. O fardo é proporcionado às forças, como a recompensa o será à resignação e à coragem. Mais opulenta será a recompensa, do que penosa a aflição. Cumpre, porém, merecê-la, e é para isso que a vida se apresenta cheia de tribulações.

O militar que não é mandado para as linhas de fogo fica descontente, porque o repouso no campo nenhuma ascensão de posto lhe faculta. Sede, pois, como o militar e não desejeis um repouso em que o vosso corpo se enervaria e se entorpeceria a vossa alma. Alegrai-vos, quando Deus vos enviar para a luta. Não consiste esta no fogo da batalha, mas nos amargores da vida, onde, às vezes, de mais coragem se há mister do que num combate sangrento, porquanto não é raro que aquele que se mantém firme em presença do inimigo fraqueje nas tenazes de uma pena moral. Nenhuma recompensa obtém o homem por essa espécie de coragem; mas, Deus lhe reserva palmas de vitória e uma situação gloriosa. Quando vos advenha uma causa de sofrimento ou de contrariedade, sobreponde-vos a ela, e, quando houverdes conseguido dominar os ímpetos da impaciência, da cólera, ou do desespero, dizei, de vós para convosco, cheio de justa satisfação: "Fui o mais forte." Bem-aventurados os aflitos pode então traduzir-se assim: Bem-aventurados os que têm ocasião de provar sua fé, sua firmeza, sua perseverança e sua submissão à vontade de Deus, porque terão centuplicada a alegria que lhes falta na Terra, porque depois do labor virá o repouso. - Lacordaire. (Havre, 1863.)

O mal e o remédio

19. Será a Terra um lugar de gozo, um paraíso de delícias? Já não ressoa mais aos vossos ouvidos a voz

do profeta? Não proclamou ele que haveria prantos e ranger de dentes para os que nascessem nesse vale de dores? Esperai, pois, todos vós que aí viveis, causticantes lágrimas e amargo sofrer e, por mais agudas e profundas sejam as vossas dores, volvei o olhar para o Céu e bendizei do Senhor por ter querido experimentar-vos... Ó homens! dar-se-á não reconheçais o poder do vosso Senhor, senão quando ele vos haja curado as chagas do corpo e coroado de beatitude e ventura os vossos dias?Dar-se-á não reconheçais o seu amor, senão quando vos tenha adornado o corpo de todas as glórias e lhe haja restituído o brilho e a brancura? Imitai aquele que vos foi dado p ara exemplo. Tendo chegado ao último grau da abjeção e da miséria, deitado sobre uma estrumeira, disse ele a Deus: "Senhor, conheci todos os deleites da opulência e me reduzistes à mais absoluta miséria; obrigado, obrigado, meu Deus, por haverdes querido experimentar o vosso servo!" Até quando os vossos olhares se deterão nos horizontes que a morte limita? Quando, afinal, vossa alma se decidirá alançar-se para além dos limites de um túmulo? Houvésseis de chorar e sofrer a vida inteira, que seria isso, a par da eterna glória reservada ao que tenha sofrido a prova com fé, amor e resignação? Buscai consolações para os vossos males no porvir que Deus vos prepara e procurai-lhe a causa no passado. E vós, que mais sofreis, considerai-vos os afortunados da Terra.

Como desencarnados, quando pairáveis no Espaço, escolhestes as vossas provas, julgando-vosbastante fortes para as suportar. Por que agora murmurar? Vós, que pedistes a riqueza e a glória, queríeis sustentar luta com a tentação e vencê-la. Vós, que pedistes para lutar de corpo e espírito contra o mal moral e físico, sabíeis que quanto mais forte fosse a prova, tanto mais gloriosa a vitória e que, se triunfásseis, embora devesse o vosso corpo parar numa estrumeira, dele, ao morrer, se desprenderia uma alma de rutilante alvura e purificada pelo batismo da expiação e do sofrimento.

Que remédio, então, prescrever aos atacados de obsessões cruéis e de cruciantes males? Só um é infalível: a fé, o apelo ao Céu. Se, na maior acerbidade dos vossos sofrimentos, entoardes hinos ao Senhor, o anjo, à vossa cabeceira, com a mão vos apontará o sinal da salvação e o lugar que um dia ocupareis... A fé é o remédio seguro do sofrimento; mostra sempre os horizontes do infinito diante dos quais se esvaem os poucos dias brumosos do presente. Não nos pergunteis, portanto, qual o remédio para curar tal úlcera ou tal chaga, para tal tentação ou tal prova. Lembrai-vos de que aquele que crê é forte pelo remédio da fé e que aquele que duvida um instante da sua eficácia é imediatamente punido, porque logo sente as pungitivas angústias da aflição.

O Senhor apôs o seu selo em todos os que nele crêem. O Cristo vos disse que com a fé se transportam montanhas e eu vos digo que aquele que sofre e tem a fé por amparo ficara sob a sua égide e não mais sofrerá. Os momentos das mais fortes dores lhe serão as primeiras notas alegres da eternidade. Sua alma se desprenderá de tal maneira do corpo, que, enquanto se estorcer em convulsões, ela planará nas regiões celestes, entoando, com os anjos, hinos de reconhecimento e de glória ao Senhor.

Ditosos os que sofrem e choram! Alegres estejam suas almas, porque Deus as cumulará de bem- aventuranças. - Santo Agostinho. (Paris, 1863.)

A felicidade não é deste mundo

20. Não sou feliz! A felicidade não foi feita para mim! exclama geralmente o homem em todas as posições sociais. Isso, meus caros filhos, prova, melhor do que todos os raciocínios possíveis, a verdade desta máxima do Eclesiastes: "A felicidade não é deste mundo." Com efeito, nem a riqueza, nem o poder, nem mesmo a florida juventude são condições essenciais à felicidade. Digo mais: nem mesmo reunidas essas três condições tão desejadas, porquanto incessantemente se ouvem, no seio das classes mais privilegiadas, pessoas de todas as idades se queixarem amargamente da situação em que se encontram.

Diante de tal fato, é incontestável que as classes laboriosas e militantes invejem com tanta ânsia a posição das que parecem favorecidas da fortuna. Neste mundo, por mais que faça, cada um tem a sua parte de labor e de miséria, sua cota de sofrimentos e de decepções, donde facilmente se chega à conclusão de que a Terra é lugar de provas e de expiações.

Assim, pois, os que pregam que ela é a única morada do homem e que somente nela e numa só existência é que lhe cumpre alcançar o mais alto grau das felicidades que a sua natureza comporta,iludem-se e enganam os que os escutam, visto que demonstrado está, por experiência arqui-secular,que só excepcionalmente este globo apresenta as condições necessárias à completa felicidade do indivíduo.

Em tese geral pode afirmar-se que a felicidade é uma utopia a cuja conquista as gerações se lançam sucessivamente, sem jamais lograrem alcançá-la. Se o homem ajuizado é uma raridade neste mundo, o homem absolutamente feliz jamais foi encontrado.

O em que consiste a felicidade na Terra é coisa tão efêmera para aquele que não tem a guiá-lo a ponderação, que, por um ano, um mês, uma semana de satisfação completa, todo o resto da existência é uma série de amarguras e decepções. E notai, meus caros filhos, que falo dos venturosos da Terra, dos que são invejados pela multidão.

Conseguintemente, se à morada terrena são peculiares as provas e a expiação, forçoso é se admita que, algures, moradas há mais favorecidas, onde o Espírito, conquanto aprisionado ainda numa carne material, possui em toda a plenitude os gozos inerentes à vida humana. Tal a razão por que Deus semeou, no vosso turbilhão, esses belos planetas superiores para os quais os vossos esforços e as vossas tendências vos farão gravitar um dia, quando vos achardes suficientemente purificados e aperfeiçoados.

Todavia, não deduzais das minhas palavras que a Terra esteja destinada para sempre a ser uma penitenciária. Não, certamente! Dos progressos já realizados, podeis facilmente deduzir os progressos futuros e, dos melhoramentos sociais conseguidos, novos e mais fecundos melhoramentos. Essa a tarefa imensa cuja execução cabe à nova doutrina que os Espíritos vos revelaram.

Assim, pois, meus queridos filhos, que uma santa emulação vos anime e que cada um de vós se despoje do homem velho. Deveis todos consagrar-vos à propagação desse Espiritismo que já deu começo à vossa própria regeneração. Corre-vos o dever de fazer que os vossos irmãos participem dos raios da sagrada luz. Mãos, portanto, à obra, meus muito queridos filhos! Que nesta reunião solene todos os vossos

corações aspirem a esse grandioso objetivo de preparar para as gerações porvindouras um mundo onde já não seja vã a palavra felicidade. - François-Nicolas-Madeleine, cardeal Morlot. (Paris, 1863.)

Perda de pessoas amadas. Mortes prematuras

21. Quando a morte ceifa nas vossas famílias, arrebatando, sem restrições, os mais moços antes dos velhos, costumais dizer: Deus não é justo, pois sacrifica um que está forte e tem grande futuro e conserva os que já viveram longos anos cheios de decepções; pois leva os que são úteis e deixa os que para nada mais servem; pois despedaça o coração de uma mãe, privando-a da inocente criatura que era toda a sua alegria.

Humanos, é nesse ponto que precisais elevar-vos acima do terra-a-terra da vida, para compreenderdes que o bem, muitas vezes, está onde julgais ver o mal, a sábia previdência onde pensais divisar a cega fatalidade do destino. Por que haveis de avaliar a justiça divina pela vossa? Podeis supor que o Senhor dos mundos se aplique, por mero capricho, a vos infligir penas cruéis? Nada se faz sem um fim inteligente e, seja o que for que aconteça, tudo tem a sua razão de ser. Se perscrutásseis melhor todas as dores que vos advêm, nelas encontraríeis sempre a razão divina, razão regeneradora, e os vossos miseráveis interesses se tornariam de tão secundária consideração, que os atiraríeis para o último plano.

Crede-me, a morte é preferível, numa encarnação de vinte anos, a esses vergonhosos desregramentos que pungem famílias respeitáveis, dilaceram corações de mães e fazem que antes do tempo embranqueçam os cabelos dos pais. Freqüentemente, a morte prematura é um grande benefício que Deus concede àquele que se vai e que assim se preserva das misérias da vida, ou das seduções que talvez lhe acarretassem a perda. Não é vítima da fatalidade aquele que morre na flor dos anos; é que Deus julga não convir que ele permaneça por mais tempo na Terra.

É uma horrenda desgraça, dizeis, ver cortado o fio de uma vida tão prenhe de esperanças! De que esperanças falais? Das da Terra, onde o liberto houvera podido brilhar, abrir caminho e enriquecer? Sempre essa visão estreita, incapaz de elevar-se acima da matéria. Sabeis qual teria sido a sorte dessa vida, ao vosso parecer tão cheia de esperanças? Quem vos diz que ela não seria saturada de amarguras? Desdenhais então das esperanças da vida futura, ao ponto de lhe preferirdes as da vida efêmera que arrastais na Terra? Supondes então que mais vale uma posição elevada entre os homens, do que entre os Espíritos bem-aventurados?

Em vez de vos queixardes, regozijai-vos quando praz a Deus retirar deste vale de misérias um de seus filhos. Não será egoístico desejardes que ele aí continuasse para sofrer convosco? Ah! essa dor se concebe naquele que carece de fé e que vê na morte uma separação eterna. Vós, espíritas, porém, sabeis que a alma vive melhor quando desembaraçada do seu invólucro corpóreo. Mães, sabei que vossos filhos bem-amados estão perto de vós; sim, estão muito perto; seus corpos fluídicos vos envolvem, seus pensamentos vos protegem, a lembrança que deles guardais os transporta de alegria, mas também as vossas dores desarrazoadas os afligem, porque denotam falta de fé e exprimem uma revolta contra a vontade de Deus.

Vós, que compreendeis a vida espiritual, escutai as pulsações do vosso coração a chamar esses entes bem-amados e, se pedirdes a Deus que os abençoe, em vós sentireis fortes consolações, dessas que secam as lágrimas; sentireis aspirações grandiosas que vos mostrarão o porvir que o soberano Senhor prometeu. - Sanson, ex-membro da Sociedade Espírita de Paris. (1863.)

Se fosse um homem de bem, teria morrido

22. Falando de um homem mau, que escapa de um perigo, costumais dizer: "Se fosse um homem bom, teria morrido." Pois bem, assim falando, dizeis uma verdade, pois, com efeito, muito amiúde sucede dar Deus a um Espírito de progresso ainda incipiente prova mais longa, do que a um bom que, por prêmio do seu mérito, receberá a graça de ter tão curta quanto possível a sua provação. Por conseguinte, quando vos utilizais daquele axioma, não suspeitais de que proferis uma blasfêmia.

Se morre um homem de bem, cujo vizinho é mau homem, logo observais: "Antes fosse este." Enunciais uma enormidade, porquanto aquele que parte concluiu a sua tarefa e o que fica talvez não haja principiado a sua. Por que, então, haveríeis de querer que ao mau faltasse tempo para terminá-la e que o outro permanecesse preso à gleba terrestre? Que diríeis se um prisioneiro, que cumpriu a sentença contra ele pronunciada, fosse conservado no cárcere, ao mesmo tempo que restituíssem à liberdade um que a esta não tivesse direito? Ficai sabendo que a verdadeira liberdade, para o Espírito, consiste no rompimento dos laços que o prendem ao corpo e que, enquanto vos achardes na Terra, estareis em cativeiro.

Habituai-vos a não censurar o que não podeis compreender e crede que Deus é justo em todas as coisas. Muitas vezes, o que vos parece um mal é um bem. Tão limitadas, no entanto, são as vossas faculdades, que o conjunto do grande todo não o apreendem os vossos sentidos obtusos. Esforçai-vospor sair, pelo pensamento, da vossa acanhada esfera e, à medida que vos elevardes, diminuirá para vós a importância da vida material que, nesse caso, se vos apresentará como simples incidente, no curso infinito da vossa existência espiritual, única existência verdadeira. - Fénelon. (Sens, 1861.)

Os tormentos voluntários

Vive o homem incessantemente em busca da felicidade, que também incessantemente lhe foge, porque felicidade sem mescla não se encontra na Terra. Entretanto, mau grado às vicissitudes que formam o cortejo inevitável da vida terrena, poderia ele, pelo menos, gozar de relativa felicidade, se não a procurasse nas coisas perecíveis e sujeitas às mesmas vicissitudes, isto é, nos gozos materiais em vez de a procurar nos gozos da alma, que são um prelibar dos gozos celestes, imperecíveis; em vez de procurar a paz do coração, única felicidade real neste mundo, ele se mostra ávido de tudo o que o agitará e turbará, e, coisa singular! o homem, como que de intento, cria para si tormentos que está nas suas mãos evitar.

Haverá maiores do que os que derivam da inveja e do ciúme? Para o invejoso e o ciumento, não há repouso; estão perpetuamente febricitantes. O que não têm e os outros possuem lhes causa insônias. Dão-

lhes vertigem os êxitos de seus rivais; toda a emulação,, para eles, se resume em eclipsar os que lhes estão próximos, toda a alegria em excitar, nos que se lhes assemelham pela insensatez, a raiva do ciúme que os devora. Pobres insensatos, com efeito, que não imaginam sequer que, amanhã talvez, terão de largar todas essas frioleiras cuja cobiça lhes envenena a vida! Não é a eles, decerto, que se aplicam estas palavras: "Bem-aventurados os aflitos, pois que serão consolados", visto que as suas preocupações não são aquelas que têm no céu as compensações merecidas.

Que de tormentos, ao contrário, se poupa aquele que sabe contentar-se com o que tem, que nota sem inveja o que não possui, que não procura parecer mais do que é. Esse é sempre rico, porquanto, se olha para baixo de si e não para, cima, vê sempre criaturas que têm menos do que ele. E calmo, porque não cria para si necessidades quiméricas. E não será uma felicidade a calma, em meio das tempestades da vida? - Fénelon. (Lião, 1860.)

A desgraça real

24. Toda a gente fala da desgraça, toda a gente já a sentiu e julga conhecer-lhe o caráter múltiplo. Venho eu dizer-vos que quase toda a gente se engana e que a desgraça real não é, absolutamente, o que os homens, isto é, os desgraçados, o supõem. Eles a vêem na miséria, no fogão sem lume, no credor que ameaça, no berço de que o anjo sorridente desapareceu, nas lágrimas, no féretro que se acompanha de cabeça descoberta e com o coração despedaçado, na angústia da traição, na desnudação do orgulho que desejara envolver-se em púrpura e mal oculta a sua nudez sob os andrajos da vaidade. A tudo isso e a muitas coisas mais se dá o nome de desgraça, na linguagem humana. Sim, é desgraça para os que só vêem o presente; a verdadeira desgraça, porém, está nas conseqüências de um fato, mais do que no próprio fato. Dizei-me se um acontecimento, considerado ditoso na ocasião, mas que acarreta conseqüências funestas, não é, realmente, mais desgraçado do que outro que a princípio causa viva contrariedade e acaba produzindo o bem. Dizei-me se a tempestade que vos arranca as arvores, mas que saneia o ar, dissipando os miasmas insalubres que causariam a morte, não é antes uma felicidade do que uma infelicidade.

Para julgarmos de qualquer coisa, precisamos ver-lhe as conseqüências. Assim, para bem apreciarmos o que, em realidade, é ditoso ou inditoso para o homem, precisamos transportar-nos para além desta vida, porque é lá que as conseqüências se fazem sentir. Ora, tudo o que se chama infelicidade, segundo as acanhadas vistas humanas, cessa com a vida corporal e encontra a sua compensação na vida futura.

Vou revelar-vos a infelicidade sob uma nova forma, sob a forma bela e florida que acolheis e desejais com todas as veras de vossas almas iludidas. A infelicidade é a alegria, é o prazer, é o tumulto, é a vã agitação, é a satisfação louca da vaidade, que fazem calar a consciência, que comprimem a ação do pensamento, que atordoam o homem com relação ao seu futuro. A infelicidade é o ópio do esquecimento que ardentemente procurais conseguir.

Esperai, vós que chorais! Tremei, vós que rides, pois que o vosso corpo está satisfeito! A Deus não se engana; não se foge ao destino; e as provações, credoras mais impiedosas do que a matilha que a miséria

desencadeia, vos espreitam o repouso ilusório para vos imergir de súbito na agonia da verdadeira infelicidade, daquela que surpreende a alma amolentada pela indiferença e pelo egoísmo.

Que, pois, o Espiritismo vos esclareça e recoloque, para vós, sob verdadeiros prismas, a verdade e o erro, tão singularmente deformados pela vossa cegueira! Agireis então como bravos soldados que, longe de fugirem ao perigo, preferem as lutas dos combates arriscados à paz que lhes não pode dar glória, nem promoção! Que importa ao soldado perder na refrega armas, bagagens e uniforme, desde que saia vencedor e com glória? Que importa ao que tem fé no futuro deixar no campo de batalha da vida a riqueza e o manto de carne, contanto que sua alma entre gloriosa no reino celeste? - Delfina de Girardin. (Paris, 1861.)

A melancolia

25. Sabeis por que, às vezes, uma vaga tristeza se apodera dos vossos corações e vos leva a considerar amarga a vida? E que vosso Espírito, aspirando à felicidade e à liberdade, se esgota, jungido ao corpo que lhe serve de prisão, em vãos esforços para sair dele. Reconhecendo inúteis esses esforços, cai no desânimo e, como o corpo lhe sofre a influência, toma-vos a lassidão, o abatimento, uma espécie de apatia, e vos julgais infelizes.

Crede-me, resisti com energia a essas impressões que vos enfraquecem a vontade. São inatas no espírito de todos os homens as aspirações por uma vida melhor; mas, não as busqueis neste mundo e, agora, quando Deus vos envia os Espíritos que lhe pertencem, para vos instruírem acerca da felicidade que Ele vos reserva, aguardai pacientemente o anjo da libertação, para vos ajudar a romper os liames que vos mantêm cativo o Espírito. Lembrai-vos de que, durante o vosso degredo na Terra, tendes de desempenhar uma missão de que não suspeitais, quer dedicando-vos à vossa família, quer cumprindo as diversas obrigações que Deus vos confiou. Se, no curso desse degredo-provação, exonerando-vosdos vossos encargos, sobre vós desabarem os cuidados, as inquietações e tribulações, sede fortes e corajosos para os suportar. Afrontai-os resolutos. Duram pouco e vos conduzirão à companhia dos amigos por quem chorais e que, jubilosos por ver-vos de novo entre eles, vos estenderão os braços, a fim de guiar- vos a uma região inacessível às aflições da Terra. - François de Genève. (Bordéus.)

Provas voluntárias. O verdadeiro cilício

26. Perguntais se é licito ao homem abrandar suas próprias provas. Essa questão eqüivale a esta outra: É lícito, àquele que se afoga, cuidar de salvar-se? Aquele em quem um espinho entrou, retirá-lo? Ao que está doente, chamar o médico? As provas têm por fim exercitar a inteligência, tanto quanto a paciência e a resignação. Pode dar-se que um homem nasça em posição penosa e difícil, precisamente para se ver obrigado a procurar meios de vencer as dificuldades. O mérito consiste em sofrer, sem murmurar, as conseqüências dos males que lhe não seja possível evitar, em perseverar na luta, em se não desesperar, se não é bem-sucedido; nunca, porém, numa negligência que seria mais preguiça do que virtude.

Essa questão dá lugar naturalmente a outra. Pois, se Jesus disse: "Bem-aventurados os aflitos", haverá

mérito em procurar, alguém, aflições que lhe agravem as provas, por meio de sofrimentos voluntários? A isso responderei muito positivamente: sim, há grande mérito quando os sofrimentos e as privações objetivam o bem do próximo, porquanto é a caridade pelo sacrifício; não, quando os sofrimentos e as privações somente objetivam o bem daquele que a si mesmo as inflige, porque aí só há egoísmo por fanatismo.

Grande distinção cumpre aqui se faça: pelo que vos respeita pessoalmente, contentai-vos com as provas que Deus vos manda e não lhes aumenteis o volume, já de si por vezes tão pesado; aceitá-lassem queixumes e com fé, eis tudo o que de vós exige ele. Não enfraqueçais o vosso corpo com privações inúteis e macerações sem objetivo, pois que necessitais de todas as vossas forças para cumprirdes a vossa missão de trabalhar na Terra. Torturar e martirizar voluntariamente o vosso corpo é coutravir a lei de Deus, que vos dá meios de o sustentar e fortalecer. Enfraquece-lo sem necessidade é um verdadeiro suicídio. Usai, mas não abuseis, tal a lei. O abuso das melhores coisas tem a sua punição nas inevitáveis conseqüências que acarreta.

Muito diverso é o quê ocorre, quando o homem impõe a si próprio sofrimentos para o alívio do seu próximo. Se suportardes o frio e a fome para aquecer e alimentar alguém que precise ser aquecido e alimentado e se o vosso corpo disso se ressente, fazeis um sacrifício que Deus abençoa. Vós que deixais os vossos aposentos perfumados para irdes à mansarda infecta levar a consolação; vós que sujais as mãos delicadas pensando chagas; vós que vos privais do sono para velar à cabeceira de um doente que apenas é vosso irmão em Deus; vós, enfim, que despendeis a vossa saúde na prática das boas obras, tendes em tudo isso o vosso cilício, verdadeiro e abençoado cilício, visto que os gozos do mundo não vos secaram o coração, que não adormecestes no seio das volúpias enervantes da riqueza, antes vos constituístes anjos consoladores dos pobres deserdados.

Vós, porém, que vos retirais do mundo, para lhe evitar as seduções e viver no insulamento, que utilidade tendes na Terra? Onde a vossa coragem nas provações, uma vez que fugis à luta e desertais do combate? Se quereis um cilício, aplicai-o às vossas almas e não aos vossos corpos; mortificai o vosso Espírito e não a vossa carne; fustigai o vosso orgulho, recebei sem murmurar as humilhações; flagiciai o vosso amor-próprio; enrijai-vos contra a dor da injúria e da calúnia, mais pungente do que a dor física. Aí tendes o verdadeiro cilício cujas feridas vos serão contadas, porque atestarão a vossa coragem e a vossa submissão à vontade de Deus. Um anjo guardião. (Paris, 1863.)

Dever-se-á pôr termo às provas do próximo?

27. Deve alguém por termo às provas do seu próximo quando o possa, ou deve, para respeitar os desígnios de Deus, deixar que sigam seu curso?

Já vos temos dito e repetido muitíssimas vezes que estais nessa Terra de expiação para concluirdes as vossas provas e que tudo que vos sucede é conseqüência das vossas existências anteriores, são os juros da divida que tendes de pagar. Esse pensamento, porém, provoca em certas pessoas reflexões que devem ser combatidas, devido aos funestos efeitos que poderiam determinar.

Pensam alguns que, estando-se na Terra para expiar, cumpre que as provas sigam seu curso. Outros há, mesmo, que vão até ao ponto de julgar que, não só nada devem fazer para as atenuar, mas que, ao contrário, devem contribuir para que elas sejam mais proveitosas, tornando-as mais vivas. Grande erro. E certo que as vossas provas têm de seguir o curso que lhes traçou Deus; dar-se-á, porém, conheçais esse curso? Sabeis até onde têm elas de ir e se o vosso Pai misericordioso não terá dito ao sofrimento de tal ou tal dos vossos irmãos: "Não irás mais longe?" Sabeis se a Providência não vos escolheu, não como instrumento de suplício para agravar os sofrimentos do culpado, mas como o bálsamo da consolação para fazer cicatrizar as chagas que a sua justiça abrira? Não digais, pois, quando virdes atingido um dos vossos irmãos: "E a justiça de Deus, importa que siga o seu curso. Dizei antes: "Vejamos que meios o Pai misericordioso me pôs ao alcance para suavizar o sofrimento do meu irmão. Vejamos se as minhas consolações morais, o meu amparo material ou meus conselhos poderão ajudá-lo a vencer essa prova com mais energia, paciência e resignação. Vejamos mesmo se Deus não me pôs nas mãos os meios de fazer que cesse esse sofrimento; se não me deu a mim, também como prova, como expiação talvez, deter o mal e substitui-lo pela paz." Ajudai-vos, pois, sempre, mutuamente, nas vossas respectivas provações e nunca vos considereis instrumentos de tortura. Contra essa idéia deve revoltar-se todo homem de coração, principalmente todo espírita, porquanto este, melhor do que qualquer outro, deve compreender a extensão infinita da bondade de Deus. Deve o espírita estar compenetrado de que a sua vida toda tem de ser um ato de amor e de devotamento; que, faça ele o que fizer para se opor às decisões do Senhor, estas se cumprirão. Pode, portanto, sem receio, empregar todos os esforços por atenuar o amargor da expiação, certo, porém, de que só a Deus cabe detê-la ou prolongá-la,conforme julgar conveniente.

Não haveria imenso orgulho, da parte do homem, em se considerar no direito de, por assim dizer, revirar a arma dentro da ferida? De aumentar a dose do veneno nas vísceras daquele que está sofrendo, sob o pretexto de que tal é a sua expiação? Oh! considerai-vos sempre como instrumento para fá-lacessar. Resumindo: todos estais na Terra para expiar; mas, todos, sem exceção, deveis esforçar-vospor abrandar a expiação dos vossos semelhantes, de acordo com a lei de amor e caridade. -Bernardino, Espírito protetor. (Bordéus, l863.)

Será lícito abreviar a vida de um doente que sofra sem esperança de cura?

28. Um homem está agonizante, presa de cruéis sofrimentos. Sabe-se que seu estado é desesperador.

Será lícito pouparem-se-lhe alguns instantes de angústias, apressando-se-lhe o fim?

Quem vos daria o direito de prejulgar os desígnios de Deus? Não pode ele conduzir o homem até à borda do fosso, para dai o retirar, a fim de fazê-lo voltar a si e alimentar idéias diversas das que tinha? Ainda que haja chegado ao último extremo um moribundo, ninguém pode afirmar com segurança que lhe haja soado a hora derradeira. A Ciência não se terá enganado nunca em suas previsões?

Sei bem haver casos que se podem, com razão, considerar desesperadores; mas, se não há nenhuma esperança fundada de um regresso definitivo à vida e à saúde, existe a possibilidade, atestada por inúmeros exemplos, de o doente, no momento mesmo de exalar o último suspiro, reanimar-se e recobrar por alguns instantes as faculdades! Pois bem: essa hora de graça, que lhe é concedida, pode ser-lhe de

grande importância. Desconheceis as reflexões que seu Espírito poderá fazer nas convulsões da agonia e quantos tormentos lhe pode poupar um relâmpago de arrependimento.

O materialista, que apenas vê o corpo e em nenhuma conta tem a alma, é inapto a compreender essas coisas; o espírita, porém, que já sabe o que se passa no além-túmulo, conhece o valor de um último pensamento. Minorai os derradeiros sofrimentos, quanto o puderdes; mas, guardai-vos de abreviar a vida, ainda que de um minuto, porque esse minuto pode evitar muitas lágrimas no futuro. - S. Luís. (Paris, 1860.)

Sacrifício da própria vida

29. Aquele que se acha desgostoso da vida mas que não quer extingui-la por suas próprias mãos, será culpado se procurar a morte num campo de batalha, com o propósito de tornar útil sua morte?

Que o homem se mate ele próprio, ou faça que outrem o mate, seu propósito é sempre cortar o fio da existência: há, por conseguinte, suicídio intencional, se não de fato. E ilusória a idéia de que sua morte servirá para alguma coisa; isso não passa de pretexto para colorir o ato e escusá-lo aos seus próprios olhos. Se ele desejasse seriamente servir ao seu país, cuidaria de viver para defendê-lo; não procuraria morrer, pois que, morto, de nada mais lhe serviria. O verdadeiro devotamento consiste em não temer a morte, quando se trate de ser útil, em afrontar o perigo, em fazer, de antemão e sem pesar, o sacrifício da vida, se for necessário. Mas, buscar a morte com premeditada intenção, expondo-se a um perigo, ainda que para prestar serviço, anula o mérito da ação. - S. Luís. (Paris, 1860)

30. Se um homem se expõe a um perigo iminente para salvar a vida a um de seus semelhantes, sabendo de antemão que sucumbirá, pode o seu ato ser considerado suicídio?

Desde que no ato não entre a intenção de buscar a morte, não há suicídio e, sim, apenas, devotamento e abnegação, embora também haja a certeza de que morrera. Mas, quem pode ter essa certeza? Quem poderá dizer que a Providência não reserva um inesperado meio de salvação para o momento mais crítico? Não poderia ela salvar mesmo aquele que se achasse diante da boca de um canhão? Pode muitas vezes dar-se que ela queira levar ao extremo limite a prova da resignação e, nesse caso, uma circunstância inopinada desvia o golpe fatal. -S. Luís. (Paris, 1860.)

Proveito dos sofrimentos para outrem

31. Os que aceitam resignados os sofrimentos, por submissão à vontade de Deus e tendo em vista a felicidade futura, não trabalham somente em seu próprio benefício? Poderão tornar seus sofrimentos proveitosos a outrem?

Podem esses sofrimentos ser de proveito para outrem, material e moralmente: materialmente se, pelo trabalho, pelas privações e pelos sacrifícios que tais criaturas se imponham, contribuem para obem-estar material de seus semelhantes; moralmente, pelo exemplo que elas oferecem de sua submissão à vontade

de Deus. Esse exemplo do poder da fé espírita pode induzir os desgraçados à resignação e salvá-losdo desespero e de suas conseqüências funestas para o futuro. - S. Luís. (Paris, 1860.)

[Capítulo VI]

CAPÍTULO VI

O CRISTO CONSOLADOR

O jugo leve. Consolador prometido. - Instruções dos Espíritos: Advento do Espírito de Verdade.

O jugo leve

1.Vinde a mim, todos vós que estais aflitos e sobrecarregados, que eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei comigo que sou brando e humilde de coração e achareis repouso para vossas almas, pois é suave o meu jugo e leve o meu fardo. (S. MATEUS, cap. XI, vv. 28 a 30.)

2.Todos os sofrimentos: misérias, decepções, dores físicas, perda de seres amados, encontram consolação em a fé no futuro, em a confiança na justiça de Deus, que o Cristo veio ensinar aos homens. Sobre aquele que, ao contrário, nada espera após esta vida, ou que simplesmente duvida, as aflições caem com todo o seu peso e nenhuma esperança lhe mitiga o amargor. Foi isso que levou Jesus a dizer: "Vinde a mim todos vós que estais fatigados, que eu vos aliviarei." Entretanto, faz depender de uma condição a sua assistência e a felicidade que promete aos aflitos. Essa condição está na lei por ele ensinada. Seu jugo é a observância dessa lei; mas, esse jugo é leve e a lei é suave, pois que apenas impõe, como dever, o amor e a caridade.

Consolador prometido

3. Se me amais, guardai os meus mandamentos; e eu rogarei a meu Pai e ele vos enviará outro

Consolador, a fim de que fique eternamente convosco: - O Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque o não vê e absolutamente o não conhece. Mas, quanto a vós,conhecê-lo-eis, porque ficará convosco e estará em vós. -Porém, o Consolador, que é o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará recordar tudo o que vos tenho dito. (S. JOÃO, cap. XIV, vv. 15 a 17 e 26.)

4Jesus promete outro consolador: o Espírito de Verdade, que o mundo ainda não conhece, por não estar maduro para o compreender, consolador que o Pai enviará para ensinar todas as coisas e para relembrar o que o Cristo há dito. Se, portanto, o Espírito de Verdade tinha de vir mais tarde ensinar todas as coisas, é que o Cristo não dissera tudo; se ele vem relembrar o que o Cristo disse, é que o que este disse foi esquecido ou mal compreendido.

O Espiritismo vem, na época predita, cumprir a promessa do Cristo: preside ao seu advento o Espírito de

Verdade. Ele chama os homens à observância da lei; ensina todas as coisas fazendo compreender o que Jesus só disse por parábolas. Advertiu o Cristo: "Ouçam os que têm ouvidos para ouvir." O Espiritismo vem abrir os olhos e os ouvidos, porquanto fala sem figuras, nem alegorias; levanta o véu intencionalmente lançado sobre certos mistérios. Vem, finalmente, trazer a consolação suprema aos deserdados da Terra e a todos os que sofrem, atribuindo causa justa e fim útil a todas as dores.

Disse o Cristo: "Bem-aventurados os aflitos, pois que serão consolados." Mas, como há de alguém sentir- se ditoso por sofrer, se não sabe por que sofre? O Espiritismo mostra a causa dos sofrimentos nas existências anteriores e na destinação da Terra, onde o homem expia o seu passado. Mostra o objetivo dos sofrimentos, apontando-os como crises salutares que produzem a cura e como meio de depuração que garante a felicidade nas existências futuras. O homem compreende que mereceu sofrer e acha justo o sofrimento. Sabe que este lhe auxilia o adiantamento e o aceita sem murmurar, como o obreiro aceita o trabalho que lhe assegurará o salário. O Espiritismo lhe dá fé inabalável no futuro e a dúvida pungente não mais se lhe apossa da alma. Dando-lhe a ver do alto as coisas, a importância das vicissitudes terrenas some-se no vasto e esplêndido horizonte que ele o faz descortinar, e a perspectiva da felicidade que o espera lhe dá a paciência, a resignação e a coragem de ir até ao termo do caminho.

Assim, o Espiritismo realiza o que Jesus disse do Consolador prometido: conhecimento das coisas, fazendo que o homem saiba donde vem, para onde vai e por que está na Terra; atrai para os verdadeiros princípios da lei de Deus e consola pela fé e pela esperança.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Advento do Espírito de Verdade

5. Venho, como outrora aos transviados filhos de Israel, trazer-vos a verdade e dissipar as trevas. Escutai- me. O Espiritismo, como o fez antigamente a minha palavra, tem de lembrar aos incrédulos que acima deles reina a imutável verdade: o Deus bom, o Deus grande, que faz germinem as plantas e se levantem as ondas. Revelei a doutrina divinal. Como um ceifeiro, reuni em feixes o bem esparso no seio da Humanidade e disse: "Vinde a mim, todos vós que sofreis." Mas, ingratos, os homensafastaram-se do caminho reto e largo que conduz ao reino de meu Pai e enveredaram pelas ásperas sendas da impiedade. Meu Pai não quer aniquilar a raça humana; quer que, ajudando-vos uns aos outros, mortos e vivos, isto

é, mortos segundo a carne, porquanto não existe a morte, vos socorrais mutuamente, e que se faça ouvir não mais a voz dos profetas e dos apóstolos, mas a dos que já não vivem na Terra, a clamar: Orai e crede! pois que a morte é a ressurreição, sendo a vida a prova buscada e durante a qual as virtudes que houverdes cultivado crescerão e se desenvolverão como o cedro.

Homens fracos, que compreendeis as trevas das vossas inteligências, não afasteis o facho que a clemência divina vos coloca nas mãos para vos clarear o caminho e reconduzir-vos, filhos perdidos, ao regaço de vosso Pai.

Sinto-me por demais tomado de compaixão pelas vossas misérias, pela vossa fraqueza imensa, para

deixar de estender mão socorredora aos infelizes transviados que, vendo o céu, caem nos abismos do erro. Crede, amai, meditai sobre as coisas que vos são reveladas; não mistureis o joio com a boa semente, as utopias com as verdades.

Espíritas! amai-vos, este o primeiro ensinamento; instruí-vos, este o segundo. No Cristianismoencontram-se todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se enraizaram. Eis que do além- túmulo, que julgáveis o nada, vozes vos clamam: "Irmãos! nada perece. Jesus-Cristo é o vencedor do mal, sede os vencedores da impiedade." - O Espírito de Verdade. (Paris, 1860.)

6. Venho instruir e consolar os pobres deserdados. Venho dizer-lhes que elevem a sua resignação ao nível de suas provas, que chorem, porquanto a dor foi sagrada no Jardim das Oliveiras; mas, que esperem, pois que também a eles os anjos consoladores lhes virão enxugar as lágrimas.

Obreiros, traçai o vosso sulco; recomeçai no dia seguinte o afanoso labor da véspera; o trabalho das vossas mãos vos fornece aos corpos o pão terrestre; vossas almas, porém, não estão esquecidas; e eu, o jardineiro divino, as cultivo no silêncio dos vossos pensamentos. Quando soar a hora do repouso, e a trama da vida se vos escapar das mãos e vossos olhos se fecharem para a luz, sentireis que surge em vós e germina a minha preciosa semente.

Nada fica perdido no reino de nosso Pai e os vossos suores e misérias formam o tesouro que vos tornará ricos nas esferas superiores, onde a luz substitui as trevas e onde o mais desnudo dentre todos vós será talvez o mais resplandecente. - O Espírito de Verdade. (Paris, 1861.)

Em verdade vos digo: os que carregam seus fardos e assistem os seus irmãos são bem-amados meus.Instruí-vos na preciosa doutrina que dissipa o erro das revoltas e vos mostra o sublime objetivo da provação humana. Assim como o vento varre a poeira, que também o sopro dos Espíritos dissipe os vossos despeitos contra os ricos do mundo, que são, não raro, muito miseráveis, porquanto se acham sujeitos a provas mais perigosas do que as vossas. Estou convosco e meu apóstolo vos instrui. Bebei na fonte viva do amor e preparai-vos, cativos da vida, a lançar-vos um dia, livres e alegres, no seio dAquele que vos criou fracos para vos tornar perfectíveis e que quer modeleis vós mesmos a vossa maleável argila, a fim de serdes os artífices da vossa imortalidade. - O Espírito de Verdade. (Paris, 1861.)

7. Sou o grande médico das almas e venho trazer-vos o remédio que vos há de curar. Os fracos, os sofredores e os enfermos são os meus filhos prediletos. Venho salvá-los. Vinde, pois, a mim, vós que sofreis e vos achais oprimidos, e sereis aliviados e consolados. Não busqueis alhures a força e a consolação, pois que o mundo é impotente para dá-las. Deus dirige um supremo apelo aos vossos corações, por meio do Espiritismo. Escutai-o. Extirpados sejam de vossas almas doloridas a impiedade, a mentira, o erro, a incredulidade. São monstros que sugam o vosso mais puro sangue e que vos abrem chagas quase sempre mortais. Que, no futuro, humildes e submissos ao Criador, pratiqueis a sua lei divina. Amai e orai; sede dóceis aos Espíritos do Senhor; invocai-o do fundo de vossos corações. Ele, então, vos enviará o seu Filho bem-amado, para vos instruir e dizer estas boas palavras: Eis-me aqui; venho até vós, porque me chamastes. - O Espírito de Verdade. (Bordéus, 1861.)

8. Deus consola os humildes e dá força aos aflitos que lha pedem. Seu poder cobre a Terra e, por toda a parte, junto de cada lágrima colocou ele um bálsamo que consola. A abnegação e o devotamento são uma prece continua e encerram um ensinamento profundo. A sabedoria humana reside nessas duas palavras. Possam todos os Espíritos sofredores compreender essa verdade, em vez de clamarem contra suas dores, contra os sofrimentos morais que neste mundo vos cabem em partilha. Tomai, pois, por divisa estas duas palavras: devotamento abnegação, e sereis fortes, porque elas resumem todos os deveres que a caridade e a humildade vos impõe. O sentimento do dever cumprido vos dará repouso ao espírito e resignação. O coração bate então melhor, a alma se asserena e o corpo se forra aos desfalecimentos, por isso que o corpo tanto menos forte se sente, quanto mais profundamente golpeado é o espírito. - O Espírito de Verdade. (Havre, 1863.)

[Capítulo VII]

CAPÍTULO VII

BEM-AVENTURADOS OS POBRES DE ESPÍRITO

O que se deve entender por pobres de espírito. - Aquele que se eleva será rebaixado. -Mistériosocultos aos doutos e aos prudentes. - Instruções dos Espíritos: O orgulho e a humildade. - Missão do homem inteligente na Terra.

O que se deve entender por pobres de espírito

1.Bem-aventurados os pobres de espírito, pois que deles é o reino dos céus. (S. MATEUS, cap. V, v. 3.)

2.A incredulidade zombou desta máxima: Bem-aventurados os pobres de espírito, como tem zombado de muitas outras coisas que não compreende. Por pobres de espírito Jesus não entende os baldos de inteligência, mas os humildes, tanto que diz ser para estes o reino dos céus e não para os orgulhosos.

Os homens de saber e de espírito, no entender do mundo, formam geralmente tão alto conceito de si próprios e da sua superioridade, que consideram as coisas divinas como indignas de lhes merecer a atenção. Concentrando sobre si mesmos os seus olhares, eles não os podem elevar até Deus. Essa tendência, de se acreditarem superiores a tudo, muito amiúde os leva a negar aquilo que,estando-lhes acima, os depreciaria, a negar até mesmo a Divindade. Ou, se condescendem emadmiti-la, contestam- lhe um dos mais belos atributos: a ação providencial sobre as coisas deste mundo, persuadidos de que eles são suficientes para bem governá-lo. Tomando a inteligência que possuem para medida da inteligência universal, e julgando-se aptos a tudo compreender, não podem crer na possibilidade do que não compreendem. Consideram sem apelação as sentenças que proferem.

Se se recusam a admitir o mundo invisível e uma potência extra-humana, não é que isso lhes esteja fora

do alcance; é que o orgulho se lhes revolta à idéia de uma coisa acima da qual não possam colocar-see que os faria descer do pedestal onde se contemplam. Dai o só terem sorrisos de mofa para tudo o que não pertence ao mundo visível e tangível. Eles se atribuem espírito e saber em tão grande cópia, que não podem crer em coisas, segundo pensam, boas apenas para gente simples, tendo por pobres de espírito os que as tomam a sério.

Entretanto, digam o que disserem, forçoso lhes será entrar, como os outros, nesse mundo invisível de que escarnecem. E lá que os olhos se lhes abrirão e eles reconhecerão o erro em que caíram. Deus, porém, que é justo, não pode receber da mesma forma aquele que lhe desconheceu a majestade e outro que humildemente se lhe submeteu às leis, nem os aquinhoar em partes iguais.

Dizendo que o reino dos céus é dos simples, quis Jesus significar que a ninguém é concedida entrada nesse reino, sem a simplicidade de coração humildade de espírito; que o ignorante possuidor dessas qualidades será preferido ao sábio que mais crê em si do que em Deus. Em todas as circunstâncias, Jesus põe a humildade na categoria das virtudes que aproximam de Deus e o orgulho entre os vícios que dele afastam a criatura, e isso por uma razão multo natural: a de ser a humildade um ato de submissão a Deus, ao passo que o orgulho é a revolta contra ele. Mais vale, pois, que o homem, para felicidade do seu futuro, seja pobre em espírito, conforme o entende o mundo, e rico em qualidades morais.

Aquele que se eleva será rebaixado

3.Por essa ocasião, os discípulos se aproximaram de Jesus e lhe perguntaram: "Quem é o maior no reino dos céus?" - Jesus, chamando a si um menino, o colocou no meio deles e respondeu: "Digo-vos, em verdade, que, se não vos converterdes e tornardes quais crianças, não entrareis no reino dos céus. - Aquele, portanto, que se humilhar e se tornar pequeno como esta criança será o maior no reino dos céus - e aquele que recebe em meu nome a uma criança, tal como acabo de dizer, é a mim mesmo que recebe." (S. MATEUS, cap. XVIII, vv. 1 a 5.)

4.Então, a mãe dos filhos de Zebedeu se aproximou dele com seus dois filhos e o adorou, dando a entender que lhe queria pedir alguma coisa. - Disse-lhe ele: "Que queres?" "Manda, disse ela, que estes meus dois filhos tenham assento no teu reino, um à sua direita e o outro à sua esquerda." - Mas, Jesus respondeu, "Não sabes o que pedes; podeis vós ambos beber o cálice que eu vou beber?" Eles responderam: "Podemos." -Jesus lhes replicou: "É certo que bebereis o cálice que eu beber; mas, pelo que respeita a vos sentardes à minha direita ou à minha esquerda, não me cabe a mim vo-loconceder; isso será para aqueles a quem meu Pai o tem preparado." - Ouvindo isso, os dez outros apóstolos se encheram de indignação contra os dois irmãos. - Jesus, chamando-os para perto de si, lhes disse: "Sabeis que os príncipes das nações as dominam e que os grandes os tratam com império. - Assim não deve ser entre vós; ao contrário, aquele que quiser tornar-se o maior, seja vosso servo; - e, aquele que quiser ser o primeiro entre vós seja vosso escravo; - do mesmo modo que o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de muitos." (S. MATEUS, capítulo XX, vv. 20 a 28.)

5. Jesus entrou em dia de sábado na casa de um dos principais fariseus para aí fazer a sua refeição. Os que lá estavam o observaram. - Então, notando que os convidados escolhiam os primeiros lugares,propôs-lhes uma parábola, dizendo: "Quando fordes convidados para bodas, não tomeis o primeiro lugar, para que não suceda que, havendo entre os convidados uma pessoa mais considerada do que vós, aquele que vos haja convidado venha a dizer-vos: dai o vosso lugar a este, e vos vejais constrangidos a ocupar, cheios de vergonha, o último lugar. - Quando fordes convidados, idecolocar-vos no último lugar, a fim de que, quando aquele que vos convidou chegar, vos diga: meu amigo, venha mais para cima. Isso então será para vós um motivo

de glória, diante de todos os que estiverem convosco à mesa; - porquanto todo aquele que se eleva será rebaixado e todo aquele que se abaixa será elevado." (S. LUCAS, cap. XIV, vv. 1 e 7 a 11.)

6. Estas máximas decorrem do princípio de humildade que Jesus não cessa de apresentar como condição essencial da felicidade prometida aos eleitos do Senhor e que ele formulou assim: "Bem-aventurados os pobres de espírito, pois que o reino dos céus lhes pertence." Ele toma uma criança como tipo da simplicidade de coração e diz: "Será o maior no reino dos céus aquele que se humilhar e se fizer pequeno como uma criança, isto é, que nenhuma pretensão alimentar à superioridade ou à infalibilidade.

A mesma idéia fundamental se nos depara nesta outra máxima: Seja vosso servidor aquele que quiser tornar-se o maior, e nesta outra: Aquele que se humilhar será exalçado e aquele que se elevar será rebaixado.

O Espiritismo sanciona pelo exemplo a teoria, mostrando-nos na posição de grandes no mundo dos Espíritos os que eram pequenos na Terra; e bem pequenos, muitas vezes, os que na Terra eram os maiores e os mais poderosos. E que os primeiros, ao morrerem, levaram consigo aquilo que faz a verdadeira grandeza no céu e que não se perde nunca: as virtudes, ao passo que os outros tiveram de deixar aqui o que lhes constituía a grandeza terrena e que se não leva para a outra vida: a riqueza, os títulos, a glória, a nobreza do nascimento. Nada mais possuindo senão isso, chegam ao outro mundo privados de tudo, como náufragos que tudo perderam, até as próprias roupas. Conservaram apenas o orgulho que mais humilhante lhes torna a nova posição, porquanto vêem colocados acima de si e resplandecentes de glória os que eles na Terra espezinharam.

O Espiritismo aponta-nos outra aplicação do mesmo princípio nas encarnações sucessivas, mediante as quais os que, numa existência, ocuparam as mais elevadas posições, descem, em existência seguinte, às mais ínfimas condições, desde que os tenham dominado o orgulho e a ambição. Não procureis, pois, na Terra, os primeiros lugares, nem vos colocar acima dos outros, se não quiserdes ser obrigados a descer. Buscai, ao contrário, o lugar mais humilde e mais modesto, porquanto Deus saberá dar-vos um mais elevado no céu, se o merecerdes.

Mistérios ocultos aos doutos e aos prudentes

7Disse, então, Jesus estas palavras: "Graças te rendo, meu Pai, Senhor do céu e da Terra, por

haveres ocultado estas coisas aos doutos e aos prudentes e por as teres revelado aos simples e aos pequenos." (S. MATEUS, cap. XI, v. 25.)

8.Pode parecer singular que Jesus renda graças a Deus, por haver revelado estas coisas aos simples e aos pequenos, que são os pobres de espírito, e por as ter ocultado aos doutos e aos prudentes, mais aptos, na aparência, a compreendê-las. E que cumpre se entenda que os primeiros são os humildes,são os que se humilham diante de Deus e não se consideram superiores a toda a gente. Os segundos são os orgulhosos, envaidecidos do seu saber mundano, os quais se julgam prudentes porque negam e tratam a Deus de igual para igual, quando não se recusam a admiti-lo, porquanto, na antigüidade,douto era sinônimo de sábio. Por isso é que Deus lhes deixa a pesquisa dos segredos da Terra e revela os do céu aos simples e aos humildes que diante dEle se prostram.

9.O mesmo se dá hoje com as grandes verdades que o Espiritismo revelou, Alguns incrédulos se admiram de que os Espíritos tão poucos esforços façam para os convencer. A razão está em que estes últimos cuidam preferentemente dos que procuram, de boa fé e com humildade, a luz, do que daqueles que se supõem na posse de toda a luz e imaginam, talvez, que Deus deveria dar-se por muito feliz em atraí-los a si, provando-lhes a sua existência.

O poder de Deus se manifesta nas mais pequeninas coisas, como nas maiores. Ele não põe a luz debaixo do alqueire, por isso que a derrama em ondas por toda a parte, de tal sorte que só cegos não a vêem. A esses não quer Deus abrir à força os olhos, dado que lhes apraz tê-los fechados. A vez deles chegará, mas é preciso que, antes, sintam as angústias das trevas e reconheçam que é a Divindade e não o acaso quem lhes fere o orgulho.

Para vencer a incredulidade, Deus emprega os meios mais convenientes, conforme os indivíduos. Não é à incredulidade que compete prescrever-lhe o que deva fazer, nem lhe cabe dizer: "Se me queres convencer, tens de proceder dessa ou daquela maneira, em tal ocasião e não em tal outra, porque essa ocasião é a que mais me convém." Não se espantem, pois, os incrédulos de que nem Deus, nem os Espíritos, que são os executores da sua vontade, se lhes submetam às exigências. Inquiram de si mesmos o que diriam, se o último de seus servidores se lembrasse de lhes prescrever fosse o que fosse. Deus impõe condições e não aceita as que lhe queiram impor. Escuta, bondoso, os que a Ele se dirigem humildemente e não os que se julgam mais do que Ele.

10. Perguntar-se-á: não poderia Deus tocá-los pessoalmente, por meio de manifestações retumbantes, diante das quais se inclinassem os mais obstinados incrédulos? E fora de toda dúvida que o poderia; mas, então, que mérito teriam eles e, ao demais, de que serviria? Não se vêem todos os dias criaturas que não cedem nem à evidência, chegando até a dizer: "Ainda que eu visse, não acreditaria, porque sei que é

impossível?" Esses, se se negam assim a reconhecer a verdade, é que ainda não trazem maduro o espírito para compreendê-la, nem o coração para senti-la. O orgulho é a catarata que lhes tolda a visão. De que vale apresentar a luz a um cego? Necessário é que, antes, se lhe destrua a causa do mal. Daí vem que, médico hábil, Deus primeiramente corrige o orgulho. Ele não deixa ao abandono aqueles de seus filhos que se acham perdidos, porquanto sabe que cedo ou tarde os olhos se lhes abrirão. Quer, porém, que isso

se dê de moto-próprio, quando, vencidos pelos tormentos da incredulidade, eles venham de si mesmos lançar-se-lhe nos braços e pedir-lhe perdão, quais filhos pródigos.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

O orgulho e a humildade

11. Que a paz do Senhor seja convosco, meus queridos amigos! Aqui venho para encorajar-vos a seguir o bom caminho.

Aos pobres Espíritos que habitaram outrora a Terra, conferiu Deus a missão de vos esclarecer. Bendito seja Ele, pela graça que nos concede: a de podermos auxiliar o vosso aperfeiçoamento. Que o Espírito Santo me ilumine e ajude a tomar compreensível a minha palavra, outorgando-me o favor de pô-la ao alcance de todos! Oh! vós, encarnados, que vos achais em prova e buscais a luz, que a vontade de Deus venha em meu auxílio para fazê-la brilhar aos vossos olhos!

A humildade é virtude muito esquecida entre vós. Bem pouco seguidos são os exemplos que dela se vos têm dado. Entretanto, sem humildade, podeis ser caridosos com o vosso próximo? Oh! não, pois que este sentimento nivela os homens, dizendo-lhes que todos são irmãos, que se devem auxiliar mutuamente, e os induz ao bem. Sem a humildade, apenas vos adornais de virtudes que não possuís, como se trouxésseis um vestuário para ocultar as deformidades do vosso corpo. Lembrai-vos dAquele que nos salvou; lembrai-vosda sua humildade, que tão grande o fez, colocando-o acima de todos os profetas.

O orgulho é o terrível adversário da humildade. Se o Cristo prometia o reino dos céus aos mais pobres, é porque os grandes da Terra imaginam que os títulos e as riquezas são recompensas deferidas aos seus méritos e se consideram de essência mais pura do que a do pobre. Julgam que os títulos e as riquezas lhes são deferidas; pelo que, quando Deus lhos retira, o acusam de injustiça. Oh! irrisão e cegueira! Pois, então, Deus vos distingue pelos corpos? O envoltório do pobre não é o mesmo que o do rico? Terá o Criador feito duas espécies de homens? Tudo o que Deus faz é grande e sábio; não lhe atribuais nunca as idéias que os vossos cérebros orgulhosos engendram.

Ó rico! Enquanto dormes sob dourados tetos, ao abrigo do frio, ignoras que jazem sobre a palha milhares de irmãos teus, que valem tanto quanto tu? Não é teu igual o infeliz que passa fome? Ao ouvires isso, bem o sei, revolta-se o teu orgulho. Concordarás em dar-lhe uma esmola, mas em lhe apertar fraternalmente a mão, nunca. "Pois quê! dirás, eu, de sangue nobre, grande da Terra, igual a este miserável coberto de andrajos! Vã utopia de pseudofilósofos! Se fôssemos iguais, por que o teria Deus colocado tão baixo e a mim tão alto?" E exato que as vossas vestes não se assemelham; mas,despi-vos ambos: que diferença haverá entre vós? A nobreza do sangue, dirás; a química, porém, ainda nenhuma diferença descobriu entre o sangue de um grão-senhor e o de um plebeu; entre o do senhor e o do escravo. Quem te garante que também tu já não tenhas sido miserável e desgraçado como ele? Que também não hajas pedido esmola? Que não a pedirás um dia a esse mesmo a quem hoje desprezas? São eternas as riquezas? Não desaparecem quando se extingue o corpo, envoltório perecível do teu Espírito?

Ah! lança sobre ti um pouco de humildade! Põe os olhos, afinal, na realidade das coisas deste mundo, sobre o que dá lugar ao engrandecimento e ao rebaixamento no outro; lembra-te de que a morte não te poupará, como a nenhum homem; que os teus títulos não te preservarão do seu golpe; que ela te poderá ferir amanhã, hoje, a qualquer hora. Se te enterras no teu orgulho, oh! quanto então te lamento, pois bem digno de compaixão serás.

Orgulhosos! Que éreis antes de serdes nobres e poderosos? Talvez estivésseis abaixo do último dos vossos criados. Curvai, portanto, as vossas frontes altaneiras, que Deus pode fazer se abaixem, justo no momento em que mais as elevardes. Na balança divina, são iguais todos os homens; só as virtudes os distinguem aos olhos de Deus. São da mesma essência todos os Espíritos e formados de igual massa todos os corpos. Em nada os modificam os vossos títulos e os vossos nomes. Eles permanecerão no túmulo e de modo nenhum contribuirão para que gozeis da ventura dos eleitos. Estes, na caridade e na humildade é que tem seus títulos de nobreza.

Pobre criatura! és mãe, teus filhos sofrem; sentem frio; tem fome, e tu vais, curvada ao peso da tua cruz, humilhar-te, para lhes conseguires um pedaço de pão! Oh! inclino-me diante de ti. Quão nobremente santa és e quão grande aos meus olhos! Espera e ora; a felicidade ainda não é deste mundo. Aos pobres oprimidos que nele confiam, concede Deus o reino dos céus.

E tu, donzela, pobre criança lançada ao trabalho, às privações, por que esses tristes pensamentos? Por que choras? Dirige a Deus, piedoso e sereno, o teu olhar: ele dá alimento aos passarinhos; tem-lhe confiança: ele não te abandonará. O ruído das festas, dos prazeres do mundo, faz bater-te o coração; também desejaras adornar de flores os teus cabelos e misturar-te com os venturosos da Terra. Dizes de ti para contigo que, como essas mulheres que vês passar, despreocupadas e risonhas, também poderias ser rica. Oh! caia-te,criança! Se soubesses quantas lágrimas e dores inomináveis se ocultam sob esses vestidos recamados, quantos soluços são abafados pelos sons dessa orquestra rumorosa, preferirias o teu humilde retiro e a tua pobreza. Conserva-te pura aos olhos de Deus, se não queres que o teu anjo guardião para o seu seio volte, cobrindo o semblante com as suas brancas asas e deixando-te com os teus remorsos, sem guia, sem amparo, neste mundo, onde ficarias perdida, a aguardar a punição no outro.

Todos vós que dos homens sofreis injustiças, sede indulgentes para as faltas dos vossos irmãos, ponderando que também vós não vos achais isentos de culpas; é isso caridade, mas é igualmente humildade. Se sofreis pelas calúnias, abaixai a cabeça sob essa prova. Que vos importam as calúnias do mundo? Se é puro o vosso proceder, não pode Deus vo-las compensar? Suportar com coragem as humilhações dos homens é ser humilde e reconhecer que somente Deus é grande e poderoso.

Oh! meu Deus, será preciso que o Cristo volte segunda vez à Terra para ensinar aos homens as tuas leis, que eles olvidam? Terá que de novo expulsar do templo os vendedores que conspurcam a tua casa, casa que é unicamente de oração? E, quem sabe? ó homens! se o não renegaríeis como outrora, caso Deus vos concedesse essa graça! Chamar-lhe-íeis blasfemador, porque abateria o orgulho dos modernos fariseus. E bem possível que o fizésseis perlustrar novamente o caminho do Gólgota.

Quando Moisés subiu ao monte Sinai para receber os mandamentos de Deus, o povo de Israel, entregue a si mesmo, abandonou o Deus verdadeiro. Homens e mulheres deram o ouro e as jóias que possuíam, para que se construísse um ídolo que entraram a adorar. Vós outros, homens civilizados, os imitais. O Cristo vos legou a sua doutrina; deu-vos o exemplo de todas as virtudes e tudo abandonastes, exemplos e preceitos. Concorrendo para isso com as vossas paixões, fizestes um Deus a vosso jeito: segundo uns, terrível e sanguinário; segundo outros, alheado dos interesses do mundo. O Deus que fabricastes é ainda o bezerro de ouro que cada um adapta aos seus gostos e às suas idéias.

Despertai, meus irmãos, meus amigos. Que a voz dos Espíritos ecoe nos vossos corações. Sede generosos e caridosos, sem ostentação, isto é, fazei o bem com humildade. Que cada um proceda pouco a pouco à demolição dos altares que todos ergueram ao orgulho. Numa palavra: sede verdadeiros cristãos e tereis o reino da verdade. Não continueis a duvidar da bondade de Deus, quando dela vos dá ele tantas provas. Vimos preparar os caminhos para que as profecias se cumpram. Quando o Senhor vos der uma manifestação mais retumbante da sua demência, que o enviado celeste já vos encontre formando uma grande família; que os vossos corações, mansos e humildes, sejam dignos de ouvir a palavra divina que ele vos vem trazer; que ao eleito somente se deparem em seu caminho as palmas que aí tenhais deposto, volvendo ao bem, à caridade, à fraternidade. Então, o vosso mundo se tornará o

paraíso terrestre. Mas, se permanecerdes insensíveis à voz dos Espíritos enviados para depurar e renovar a vossa sociedade civilizada, rica de ciências, mas, no entanto, tão pobre de bons sentimentos, ah! então não nos restará senão chorar e gemer pela vossa sorte. Mas, não, assim não será. Voltai para Deus, vosso pai, e todos nós que houvermos contribuído para o cumprimento da sua vontade entoaremos o cântico de ação de graças, agradecendo-lhe a inesgotável bondade e glorificando-o por todos os séculos dos

séculos. Assim seja. Lacordaire. (Constantina, 1863.)

12. Homens, por que vos queixais das calamidades que vós mesmos amontoastes sobre as vossas cabeças? Desprezastes a santa e divina moral do Cristo; não vos espanteis, pois, de que a taça da iniquidade haja transbordado de todos os lados.

Generaliza-se o mal-estar. A quem inculpar, senão a vós que incessantemente procurais esmagar-vosuns aos outros? Não podeis ser felizes, sem mútua benevolência; mas, como pode a benevolência coexistir com o orgulho? O orgulho, eis a fonte de todos os vossos males. Aplicai-vos, portanto, emdestruí-lo, se não lhe quiserdes perpetuar as funestas conseqüências. Um único meio se vos oferece para isso, mas infalível: tomardes para regra invariável do vosso proceder a lei do Cristo, lei que tendes repelido ou falseado em sua interpretação.

Por que haveis de ter em maior estima o que brilha e encanta os olhos, do que o que toca o coração? Por que fazeis do vício na opulência objeto das vossas adulações, ao passo que desdenhais do verdadeiro mérito na obscuridade? Apresente-se em qualquer parte um rico debochado, perdido de corpo e alma, e todas as portas se lhe abrem, todas as atenções são para ele, enquanto ao homem de bem, que vive do seu trabalho, mal se dignam todos de saudá-lo com ar de proteção. Quando a consideração dispensada aos outros se mede pelo ouro que possuem ou pelo nome de que usam, que interesse podem eles ter em se corrigirem de seus defeitos?

Dar-se-ia o inverso, se a opinião geral fustigasse o vicio dourado, tanto quanto o vicio em andrajos; mas, o orgulho se mostra indulgente para com tudo o que o lisonjeia. Século de cupidez e de dinheiro, dizeis. Sem dúvida; mas por que deixastes que as necessidades materiais sobrepujassem o bom senso e a razão? Por que há de cada um querer elevar-se acima de seu irmão? Desse fato sofre hoje a sociedade as conseqüências.

Não esqueçais que tal estado de coisas é sempre sinal certo de decadência moral. Quando o orgulho chega ao extremo, tem-se um indicio de queda próxima, porquanto Deus nunca deixa de castigar os soberbos. Se por vezes consente que eles subam, é para lhes dar tempo a reflexão e a que se emendem, sob os golpes que de quando em quando lhes desfere no orgulho para os advertir. Mas, em lugar de se humilharem, eles se revoltam. Então, cheia a medida, Deus os abate completamente e tanto mais horrível lhes é a queda, quanto mais alto hajam subido.

Pobre raça humana, cujo egoísmo corrompeu todas as sendas, toma novamente coragem, apesar de tudo. Em sua misericórdia infinita, Deus te envia poderoso remédio para os teus males, um inesperado socorro à tua miséria. Abre os olhos à luz: aqui estão as almas dos que já não vivem na Terra e que te vêm chamar ao cumprimento dos deveres reais. Eles te dirão, com a autoridade da experiência, quanto as vaidades e as grandezas da vossa passageira existência são mesquinhas a par da eternidade.Dir-te-ão que, lá, o maior é aquele que haja sido o mais humilde entre os pequenos deste mundo; que aquele que mais amou os seus irmãos será também o mais amado no céu; que os poderosos da Terra, se abusaram da sua autoridade, ver-se-ão reduzidos a obedecer aos seus servos; que, finalmente, a humildade e a caridade, irmãs que andam sempre de mãos dadas, são os meios mais eficazes de se obter graça diante do Eterno. - Adolfo, bispo de Argel. (Marmande, 1862.)

Missão do homem inteligente na Terra

13. Não vos ensoberbais do que sabeis, porquanto esse saber tem limites muito estreitos no mundo em que habitais. Suponhamos sejais sumidades em inteligência neste planeta: nenhum direito tendes deenvaidecer-vos. Se Deus, em seus desígnios, vos fez nascer num meio onde pudestes desenvolver a vossa inteligência, é que quer a utilizeis para o bem de todos; é uma missão que vos dá, pondo-vos nas mãos o instrumento com que podeis desenvolver, por vossa vez, as inteligências retardatárias e conduzi- las a ele. A natureza do instrumento não está a indicar a que utilização deve prestar-se? A enxada que o jardineiro entrega a seu ajudante não mostra a este último que lhe cumpre cavar a terra? Que diríeis, se esse ajudante, em vez de trabalhar, erguesse a enxada para ferir o seu patrão? Diríeis que é horrível e que ele merece expulso. Pois bem: não se dá o mesmo com aquele que se serve da sua inteligência para destruir a idéia de Deus e da Providência entre seus irmãos? Não levanta ele contra o seu senhor a enxada que lhe foi confiada para arrotear o terreno? Tem ele direito ao salário prometido? Não merece, ao contrário, ser expulso do jardim? Sê-lo-á, não duvideis, e atravessará existências miseráveis e cheias de humilhações, até que se curve diante dAquele a quem tudo deve.

A inteligência é rica de méritos para o futuro, mas, sob a condição de ser bem empregada. Se todos os homens que a possuem dela se servissem de conformidade com a vontade de Deus, fácil seria, para os

Espíritos, a tarefa de fazer que a Humanidade avance. Infelizmente, muitos a tomam instrumento de orgulho e de perdição contra si mesmos. O homem abusa da inteligência como de todas as suas outras faculdades e, no entanto, não lhe faltam ensinamentos que o advirtam de que uma poderosa mão pode retirar o que lhe concedeu. - Ferdinando, Espírito protetor. (Bordéus, 1862.)

[Capítulo VIII]

CAPÍTULO VIII

BEM-AVENTURADOS OS QUE TÊM PURO O CORAÇÃO

Simplicidade e pureza de coração. - Pecado por pensamento. Adultério. - Verdadeira pureza. Mãos não lavadas. - Escândalos. Se a vossa mão é motivo de escândalo, cortai-a. Instruções dos Espíritos: Deixai que venham a mim as criancinhas. - Bem-aventurados os que têm fechados os olhos.

Simplicidade e pureza de coração

1.Bem-aventurados os que têm puro o coração, porquanto verão a Deus. (S.

Mateus, cap. V, v. 8.)

2.Apresentaram-lhe então algumas crianças, a fim de que ele as tocasse, e, como seus discípulos afastassem com palavras ásperas os que lhas apresentavam, Jesus, vendo isso,zangou-se e lhes disse: "Deixai que venham a mim as criancinhas e não as impeçais, porquanto o reino dos céus é para os que se lhes assemelham. - Digo-vos, em verdade, que aquele que não receber o reino de Deus como uma criança, nele não entrará." - E, depois de as abraçar,abençoou-as, impondo-lhes as mãos. (S. MARCOS, cap. X, vv. 13 a 16.)

3.A pureza do coração é inseparável da simplicidade e da humildade. Exclui toda idéia de egoísmo e de orgulho. Por isso é que Jesus toma a infância como emblema dessa pureza, do mesmo modo que a tomou como o da humildade.

Poderia parecer menos justa essa comparação, considerando-se que o Espírito da criança pode ser muito antigo e que traz, renascendo para a vida corporal, as imperfeições de que se não tenha despojado em suas precedentes existências. Só um Espírito que houvesse chegado à perfeição nos poderia oferecer o tipo da verdadeira pureza. E exata a comparação, porém, do ponto de vista da vida presente, porquanto a criancinha, não havendo podido ainda manifestar nenhuma tendência perversa, nos apresenta a imagem da inocência e da candura. Daí o não dizer Jesus, de modo absoluto, que o reino dos céus é para elas, mas para os que se lhes assemelhem.

4. Pois que o Espírito da criança já viveu, por que não se mostra, desde o nascimento, tal qual é? Tudo é sábio nas obras de Deus. A criança necessita de cuidados especiais, que somente a ternura materna lhe

pode dispensar, ternura que se acresce da fraqueza e da ingenuidade da criança. Para uma mãe, seu filho é sempre um anjo e assim era preciso que fosse, para lhe cativar a solicitude. Ela não houvera podido ter- lhe o mesmo devotamento, se, em vez da graça ingênua, deparasse nele, sob os traços infantis, um caráter viril e as idéias de um adulto e, ainda menos, se lhe viesse a conhecer o passado.

Aliás, faz-se necessário que a atividade do princípio inteligente seja proporcionada à fraqueza do corpo, que não poderia resistir a uma atividade muito grande do Espírito, como se verifica nos indivíduos grandemente precoces. Essa a razão por que, ao aproximar-se-lhe a encarnação, o Espírito entra em perturbação e perde pouco a pouco a consciência de si mesmo, ficando, por certo tempo, numa espécie de sono, durante o qual todas as suas faculdades permanecem em estado latente. E necessário esse estado de transição para que o Espírito tenha um novo ponto de partida e para que esqueça, em sua nova existência, tudo aquilo que a possa entravar. Sobre ele, no entanto, reage o passado. Renasce para a vida maior, mais forte, moral e intelectualmente, sustentado e secundado pela intuição que conserva da experiência adquirida.

A partir do nascimento, suas idéias tomam gradualmente impulso, à medida que os órgãos se desenvolvem, pelo que se pode dizer que, no curso dos primeiros anos, o Espírito é verdadeiramente criança, por se acharem ainda adormecidas as idéias que lhe formam o fundo do caráter. Durante o tempo em que seus instintos se conservam amodorrados, ele é mais maleável e, por isso mesmo, mais acessível às impressões capazes de lhe modificarem a natureza e de fazê-lo progredir, o que toma mais fácil a tarefa que incumbe aos pais.

O Espírito, pois, enverga temporariamente a túnica da inocência e, assim, Jesus está com a verdade, quando, sem embargo da anterioridade da alma, toma a criança por símbolo da pureza e da simplicidade.

Pecado por pensamentos. - Adultério

5.Aprendestes que foi dito aos antigos: "Não cometereis adultério. Eu, porém, vos digo que aquele que houver olhado uma mulher, com mau desejo para com ela, já em seu coração cometeu adultério com ela." (S. Mateus, cap. V, vv.27 e 28.)

6.A palavra adultério não deve absolutamente ser entendida aqui no sentido exclusivo da acepção que lhe é própria, porém, num sentido mais geral. Muitas vezes Jesus a empregou por extensão, para designar o mal, o pecado, todo e qualquer pensamento mau, como, por exemplo, nesta passagem:

"Porquanto se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, dentre esta raça adúltera e pecadora, o Filho do Homem também se envergonhará dele, quando vier acompanhado dos santos anjos, na glória de seu Pai." (S. MARCOS, cap. VIII, v. 38.)

A verdadeira pureza não está somente nos atos; está também no pensamento, porquanto aquele que tem puro o coração, nem sequer pensa no mal. Foi o que Jesus quis dizer: ele condena o pecado, mesmo em pensamento, porque é sinal de impureza.

7. Esse principio suscita naturalmente a seguinte questão: Sofrem-se as conseqüências de um pensamento mau, embora nenhum efeito produza?

Cumpre que se façaaqui uma importante distinção. À medida que avança na vida espiritual, a alma que enveredou pelo mau caminho se esclarece e despoja pouco a pouco de suas imperfeições, conforme a maior ou menor boa-vontade que demonstre, em virtude do seu livre-arbítrio. Todo pensamento mau resulta, pois, da imperfeição da alma; mas, de acordo com o desejo que alimenta de depurar-se,mesmo esse mau pensamento se lhe torna uma ocasião de adiantar-se, porque ela o repele com energia. É indício de esforço por apagar uma mancha. Não cederá, se se apresentar oportunidade de satisfazer a um mau desejo. Depois que haja resistido, sentir-se-á mais forte e contente com a sua vitória.

Aquela que, ao contrário, não tomou boas resoluções, procura ocasião de praticar o mau ato e, se não o leva a efeito, não é por virtude da sua vontade, mas por falta de ensejo. E, pois, tão culpada quanto o seria se o cometesse.

Em resumo, naquele que nem sequer concebe a idéia do mal, já há progresso realizado; naquele a quem essa idéia acode, mas que a repele, há progresso em vias de realizar-se; naquele, finalmente, que pensa no mal e nesse pensamento se compraz, o mal ainda existe na plenitude da sua força. Num, o trabalho está feito; no outro, está por fazer-se. Deus, que é justo, leva em conta todas essas gradações na responsabilidade dos atos e dos pensamentos do homem.

Verdadeira pureza. - Mãos não lavadas

8. Então os escribas e os fariseus, que tinham vindo de Jerusalém, aproximaram-se de Jesus e lhe disseram: "Por que violam os teus discípulos a tradição dos antigos, uma vez que não lavam as mãos quando fazem suas refeições?" Jesus lhes respondeu: "Por que violais vós outros o mandamento de Deus, para seguir a vossa tradição? Porque Deus pôs este mandamento: Honrai a vosso pai e a vossa mãe; e este outro: Seja punido de morte aquele que disser a seu pai ou a sua mãe palavras ultrajantes; e vós outros, no entanto, dizeis: Aquele que haja dito a seu pai ou a sua mãe: - Toda oferenda que faço a Deus vos é proveitosa, satisfaz à lei, - ainda que depois não honre, nem assista a seu pai ou à sua mãe. Tornam assim inútil o mandamento de Deus, pela vossa tradição.

Hipócritas, bem profetizou de vós Isaías, quando disse: Este povo me honra de lábios, ma s conserva longe de mim o coração; é em vão que me honram ensinando máximas e ordenações humanas." Depois, tendo chamado o povo, disse: "Escutai e compreendei bem isto: - Não é o que entra na boca que macula o homem; o que sai da boca do homem é que o macula. -O que sai da boca procede do coração e é o que torna impuro o homem; - porquanto do coração é que partem os maus pensamentos, os assassínios, os adultérios, as fornicações, os latrocínios, os falsos- testemunhos, as blasfêmias e as maledicências. - Essas são as coisas que tornam impuro o homem; o comer sem haver lavado as mãos não é o que o torna impuro." Então, aproximando-se, disseram- lhe seus discípulos: "Sabeis que, ouvindo o que acabais de dizer, os fariseus se escandalizaram?" -

Ele, porém, respondeu: "Arrancada será toda planta que meu Pai celestial não plantou. - Deixai- os, são cegos que conduzem cegos; se um cego conduz outro, caem ambos no fosso."( S. Mateus, cap. XV, vv. 1 a 20.)

9. Enquanto ele falava, um fariseu lhe pediu que fosse jantar em sua companhia.

Jesus foi e sentou-se à mesa. - O fariseu entrou então a dizer consigo mesmo: "Por que não lavou ele as mãos antes de jantar?" Disse-lhe, porém, o Senhor: "Vós outros, fariseus, pondes grandes cuidado em limpar o exterior do copo e do prato; entretanto, o interior dos vossos corações está cheio de rapinas e de iniqüidades. Insensatos que sois! aquele que fez o exterior não é o que faz também o interior?" (S. LUCAS, cap. XI. vv., 37 a 40.)

10. Os judeus haviam desprezado os verdadeiros mandamentos de Deus para se aferrarem à prática dos regulamentos que os homens tinham estatuído e da rígida observância desses regulamentos faziam casos de consciência. A substância, muito simples, acabara por desaparecer debaixo da complicação da forma. Como fosse muito mais fácil praticar atos exteriores, do que se reformar moralmente, lavar as mãos do que expurgar o coração, iludiram-se a si próprios os homens, tendo-se como quites para com Deus, por se conformarem com aquelas práticas, conservando-se tais quais eram, visto se lhes ter ensinado que Deus não exigia mais do que isso. Dai o haver dito o profeta: É em vão que este povo me honra de

lábios, ensinando máximas e ordenações humanas.

Verificou-se o mesmo com a doutrina moral do Cristo, que acabou por ser atirada para segundo plano, donde resulta que muitos cristãos, a exemplo dos antigos judeus, consideram mais garantida a salvação por meio das práticas exteriores, do que pelas da moral. E a essas adições, feitas pelos homens à lei de Deus, que Jesus alude, quando diz: Arrancada será toda planta que meu Pai celestial não plantou.

O objetivo da religião é conduzir a Deus o homem. Ora, este não chega a Deus senão quando se torna perfeito. Logo, toda religião que não torna melhor o homem, não alcança o seu objetivo. Toda aquela em que o homem julgue poder apoiar-se para fazer o mal, ou é falsa, ou está falseada em seu principio. Tal o resultado que dão as em que a forma sobreleva ao fundo. Nula é a crença na eficácia dos sinais exteriores, se não obsta a que se cometam assassínios, adultérios, espoliações, que se levantem calúnias, que se causem danos ao próximo, seja no que for. Semelhantes religiões fazem supersticiosos, hipócritas, fanáticos; não, porém, homens de bem.

Não basta se tenham as aparências da pureza; acima de tudo, é preciso ter a do coração.

Escândalos. Se a vossa mão é motivo de escândalo, cortai-a

11. Se algum escandalizar a um destes pequenos que crêem em mim, melhor fora que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós que um asno faz girar e que o lançassem no fundo do mar.

Ai do mundo por causa dos escândalos (1); pois é necessário que venham escândalos; mas, ai do

homem por quem o escândalo venha.

(1) Nas traduções mais recentes e mais fiéis da Bíblia, a palavra escândalo está expressa por tropeço (na tradução em Esperanto falilo), querendo significar que Jesus se referia a tudo o que leva o homem à queda: o mau exemplo, princípios falsos, abuso do poder, etc. - A Editora.

Tende muito cuidado em não desprezar um destes pequenos. Declaro-vos que seus anjos no céu vêem incessantemente a face de meu Pai que está nos céus, porquanto o Filho do Homem veio salvar o que estava perdido.

Se a vossa mão ou o vosso pé vos é objeto de escândalo, cortai-os e lançai-os longe de vós; melhor será para vós que entreis na vida tendo um só pé ou uma só mão, do que terdes dois e serdes lançados no fogo eterno. - Se o vosso olho vos é objeto de escândalo, arrancai-o e lançai-o longe de vós; melhor para vós será que entreis na vida tendo um só olho, do que terdes dois e serdes precipitados no fogo do inferno. (S. MATEUS, cap. XVIII, vv. 6 a 11; V, vv. 29 e 30.)

12. No sentido vulgar, escândalo se diz de toda ação que de modo ostensivo vá de encontro à moral ou ao decoro. O escândalo não está na ação em si mesma, mas na repercussão que possa ter. A palavra escândalo implica sempre a idéia de um certo arruído. Muitas pessoas se contentam com evitar o escândalo, porque este lhes faria sofrer o orgulho, lhes acarretaria perda de consideração da parte dos homens. Desde que as suas torpezas fiquem ignoradas, é quanto basta para que se lhes conserve em repouso a consciência. São, no dizer de Jesus: "sepulcros branqueados por fora, mas cheios, por dentro, de podridões; vasos limpos no exterior e sujos no interior".

No sentido evangélico, a acepção da palavra escândalo, tão amiúde empregada, é muito mais geral, pelo que, em certos casos, não se lhe apreende o significado. Já não é somente o que afeta a consciência de outrem, é tudo o que resulta dos vícios e das imperfeições humanas, toda reação má de um indivíduo para outro, com ou sem repercussão. O escândalo, neste caso, é o resultado efetivo do mal moral.

13.É preciso que haja escândalo no mundo, disse Jesus, porque, imperfeitos como são na Terra, os homens se mostram propensos a praticar o mal, e porque, árvores más, só maus frutos dão.Deve-se, pois, entender por essas palavras que o mal é uma conseqüência da imperfeição dos homens e não que haja, para estes, a obrigação de praticá-lo.

14.É necessário que o escândalo venha, porque, estando em expiação na Terra, os homens se punem a si mesmos pelo contacto de seus vícios, cujas primeiras vitimas são eles próprios e cujos inconvenientes acabam por compreender. Quando estiverem cansados de sofrer devido ao mal, procurarão remédio no

bem. A reação desses vícios serve, pois, ao mesmo tempo, de castigo para uns e de provas para outros. E

assim que do mal tira Deus o bem e que os próprios homens utilizam as coisas más ou as escórias.

15.Sendo assim, dirão, o mal é necessário e durará sempre, porquanto, se desaparecesse, Deus se veria privado de um poderoso meio de corrigir os culpados. Logo, é inútil cuidar de melhorar os homens. Deixando, por m, de haver culpados, também desnecessário se tornariam quaisquer castigos. Suponhamos que a Humanidade se transforme e passe a ser constituída de homens de bem: nenhum pensará em fazer mal ao seu próximo e todos serão ditosos por serem bons. Tal a condição dos mundos elevados, donde já o mal foi banido; tal virá a ser a da Terra, quando houver progredido bastante. Mas, ao mesmo tempo que alguns mundos se adiantam, outros se formam, povoados de Espíritos primitivos e que, além disso, servem de habitação, de exílio e de estância expiatória a Espíritos imperfeitos, rebeldes, obstinados no mal, expulsos de mundos que se tornaram felizes.

16.Mas, ai daquele por quem venha o escândalo. Quer dizer que o mal sendo sempre o mal, aquele que a seu mau grado servir de instrumento à justiça divina, aquele cujos maus instintos foram utilizados, nem por isso deixou de praticar o mal e de merecer punição. Assim é, por exemplo, que um filho ingrato é uma punição ou uma prova para o pai que sofre com isso, porque esse pai talvez tenha sido também um mau filho que fez sofresse seu pai. Passa ele pela pena de talião. Mas, essa circunstancia não pode servir de escusa ao filho que, a seu turno, terá de ser castigado em seus próprios filhos, ou de outra maneira.

17.Se vossa mão é causa de escândalo, cortai-a. Figura enérgica esta, que seria absurda se tomada ao pé da letra, e que apenas significa que cada um deve destruir em si toda causa de escândalo, isto é, de mal; arrancar do coração todo sentimento impuro e toda tendência viciosa. Quer dizer também que, para o homem, mais vale ter cortada uma das mãos, antes que servir essa mão de instrumento para uma ação má; ficar privado da vista, antes que lhe servirem os olhos para conceber maus pensamentos. Jesus nada disse de absurdo, para quem quer que apreenda o sentido alegórico e profundo de suas palavras. Muitas coisas, entretanto, não podem ser compreendidas sem a chave que para as decifrar o Espiritismo faculta.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Deixai que venham a mim as criancinhas

18. Disse o Cristo: "Deixai que venham a mim as criancinhas." Profundas em sua simplicidade, essas palavras não continham um simples chamamento dirigido às crianças, mas, também, o das almas que gravitam nas regiões inferiores, onde o infortúnio desconhece a esperança. Jesus chamava a si a infância intelectual da criatura formada: os fracos, os escravizados e os viciosos. Ele nada podia ensinar à infância física, presa à matéria, submetida ao jugo do instinto, ainda não incluída na categoria superior da razão e da vontade que se exercem em torno dela e por ela.

Queria que os homens a ele fossem com a confiança daqueles entezinhos de passos vacilantes, cujo chamamento conquistava, para o seu, o coração das mulheres, que são todas mães. Submetia assim as almas à sua terna e misteriosa autoridade. Ele foi o facho que ilumina as trevas, a claridade matinal que

toca a despertar; foi o iniciador do Espiritismo, que a seu turno atrairá para ele, não as criancinhas, mas os homens de boa-vontade. Está empenhada a ação viril; já não se trata de crer instintivamente, nem de obedecer maquinalmente; é preciso que o homem siga a lei inteligente que se lhe revela na sua universalidade.

Meus bem-amados, são chegados os tempos em que, explicados, os erros se tomarão verdades. Ensinar- vos-emos o sentido exato das parábolas e vos mostraremos a forte correlação que existe entre o que foi e o que é. Digo-vos, em verdade: a manifestação espírita avulta no horizonte, e aqui está o seu enviado, que vai resplandecer como o Sol no cume dos montes. -João Evangelista. (Paris, 1863.)

19. Deixai venham a mim as criancinhas, pois tenho o leite que fortalece os fracos. Deixai venham a mim todos os que, tímidos e débeis, necessitam de amparo e consolação. Deixai venham a mim os ignorantes, para que eu os esclareça. Deixai venham a mim todos os que sofrem, a multidão dos aflitos e dos infortunados: eu lhes ensinarei o grande remédio que suaviza os males da vida e lhes revelarei o segredo da cura de suas feridas! Qual é, meus amigos, esse bálsamo soberano, que possui tão grande virtude, que se aplica a todas as chagas do coração e as cicatriza? E o amor, é a caridade! Se possuís esse fogo divino, que é o que podereis temer? Direis a todos os instantes de vossa vida: "Meu Pai, que a tua vontade se faça e não a minha; se te apraz experimentar-me pela dor e pelas tribulações, bendito sejas, porquanto é para meu bem, eu o sei, que a tua mão sobre mim se abate. Se é do teu agrado, Senhor, ter piedade da tua criatura fraca, dar-lhe ao coração as alegrias sãs, bendito sejas ainda. Mas, faze que o amor divino não lhe fique amodorrado na alma, que incessantemente faça subir aos teus pés o testemunho do seu reconhecimento!" Se tendes amor, possuís tudo o que há de desejável na Terra, possuís preciosíssima pérola, que nem os acontecimentos, nem as maldades dos que vos odeiem e persigam poderão arrebatar. Se tendes amor, tereis colocado o vosso tesouro lá onde os vermes e a ferrugem não o podem atacar e vereis apagar-se da vossa alma tudo o que seja capaz de lhe conspurcar a pureza; sentireis diminuir dia a dia o peso da matéria e, qual pássaro que adeja nos ares e já não se lembra da Terra, subireis continuamente, subireis sempre, até que vossa alma, inebriada, se farte do seu elemento de vida no seio do Senhor. - Um Espírito protetor. (Bordéus, 1861.)

Bem-aventurados os que têm fechados os olhos (1)

(1) Esta comunicação foi dada com relação a uma pessoa cega, a cujo favor se evocara o Espírito de J. B. Vianney, cura d'Ars.

20. Meus bons amigos, para que me chamastes? Terá sido para que eu imponha as mãos sobre a pobre sofredora que está aqui e a cure? Ah! que sofrimento, bom Deus! Ela perdeu a vista e as trevas a envolveram. Pobre filha! Que ore e espere. Não sei fazer milagres, eu, sem que Deus o queira. Todas as curas que tenho podido obter e que vos foram assinaladas não as atribuais senão àquele que é o Pai de

todos nós. Nas vossas aflições, volvei sempre para o céu o olhar e dizei do fundo do coração: "Meu Pai, cura-me, mas faze que minha alma enferma se cure antes que o meu corpo; que a minha carne seja castigada, se necessário, para que minha alma se eleve ao teu seio, com a brancura que possuía quando a criaste." Após essa prece, meus amigos, que o bom Deus ouvirá sempre, dadas vos serão a força e a coragem e, quiçá, também a cura que apenas timidamente pedistes, em recompensa da vossa abnegação.

Contudo, uma vez que aqui me acho, numa assembléia onde principalmente se trata de estudos,dir-vos- ei que os que são privados da vista deveriam considerar-se os bem-aventurados da expiação. Lembrai- vos de que o Cristo disse convir que arrancásseis o vosso olho se fosse mau, e que mais valeria lançá-lo ao fogo, do que deixar se tornasse causa da vossa condenação. Ah! quantos há no mundo que um dia, nas trevas, maldirão o terem visto a luz! Oh! sim, como são felizes os que, por expiação, vêm a ser atingidos na vista! Os olhos não lhes serão causa de escândalo e de queda; podem viver inteiramente da vida das almas; podem ver mais do que vós que tendes límpida a visão!... Quando Deus me permite descerrar as pálpebras a algum desses pobres sofredores e lhes restituir a luz, digo a mim mesmo: Alma querida, por que não conheces todas as delicias do Espírito que vive de contemplação e de amor? Não pedirias, então, que se te concedesse ver imagens menos puras e menos suaves, do que as que te é dado entrever na tua cegueira!

Oh! bem-aventurado o cego que quer viver com Deus. Mais ditoso do que vós que aqui estais, ele sente a felicidade, toca-a, vê as almas e pode alçar-se com elas às esferas espirituais que nem mesmo os predestinados da Terra logram divisar. Abertos, os olhos estão sempre prontos a causar a falência da alma; fechados, estão prontos sempre, ao contrário, a fazê-la subir para Deus. Crede-me, bons e caros amigos, a cegueira dos olhos é, muitas vezes, a verdadeira luz do coração, ao passo que a vista é, com freqüência, o anjo tenebroso que conduz à morte.

Agora, algumas palavras dirigidas a ti, minha pobre sofredora. Espera e tem ânimo! Se eu te dissesse: Minha filha, teus olhos vão abrir-se, quão jubilosa te sentirias! Mas, quem sabe se esse júbilo não ocasionaria a tua perda! Confia no bom Deus, que fez a ventura e permite a tristeza. Farei tudo o que me for consentido a teu favor; mas, a teu turno, ora e, ainda mais, pensa em tudo quanto acabo de te dizer.

Antes que me vá, recebei todos vós, que aqui vos achais reunidos, a minha bênção. -Vianney, cura d'Ars. (Paris, 1863.)

21. NOTA. Quando uma aflição não é conseqüência dos atos da vida presente, deve-se-lhe buscar a causa numa vida anterior. Tudo aquilo a que se dá o nome de caprichos da sorte mais não é do que efeito da justiça de Deus, que não inflige punições arbitrárias pois quer que a pena esteja sempre em correlação com a falta. Se, por sua bondade, lançou um véu sobre os nossos atos passados, por outro lado nos aponta o caminho, dizendo: '"Quem matou à espada, pela espada perecerá", palavras que se podem traduzir assim: "A criatura é sempre punida por aquilo em que pecou." Se, portanto, alguém sofre o tormento da perda da vista, é que esta lhe foi causa de queda. Talvez tenha sido também causa de que outro perdesse a vista; de que alguém haja perdido a vista em conseqüência do excesso de trabalho que aquele lhe impôs, ou demaus-tratos, de falta de cuidados, etc. Nesse caso, passa ele pela pena de talião.

É possível que ele próprio, tomado de arrependimento, haja escolhido essa expiação, aplicando a si estas palavras de Jesus: "Se o teu olho for motivo de escândalo, arranca-o."

[Capítulo IX]

CAPÍTULO IX

BEM-AVENTURADOS OS QUE SÃO BRANDOS E PACÍFICOS

Injúrias e violências. - Instruções dos Espíritos: A afabilidade e a doçura. - A paciência. - Obediência e resignação. - A cólera.

Injúrias e violências

1. Bem-aventurados os que são brandos, porque possuirão a Terra(S. MATEUS, cap. V, v. 4.)

2.Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus. (Id., v. 9.)

3.Sabeis que foi dito aos antigos: Não matareis e quem quer que mate merecerá condenação pelo juízo. - Eu, porém, vos digo que quem quer que se puser em cólera contra seu irmão merecerá condenado no juízo; que aquele que disser a seu irmão: Raca, merecerá condenado pelo conselho; e que aquele que lhe disser: És louco, merecerá condenado ao fogo do inferno. (Id., vv. 21 e 22.)

4.Por estas máximas, Jesus faz da brandura, da moderação, da mansuetude, da afabilidade e da paciência, uma lei. Condena, por conseguinte, a violência, a cólera e até toda expressão descortês de que alguém possa usar para com seus semelhantes. Raca, entre os hebreus, era um termo desdenhoso que significavahomem que não vale nada, e se pronunciava cuspindo e virando para o lado a cabeça. Vai mesmo mais longe, pois que ameaça com o fogo do inferno aquele que disser a seu irmão: És louco.

Evidente se torna que aqui, como em todas as circunstâncias, a intenção agrava ou atenua a falta; mas, em que pode uma simples palavra revestir-se de tanta gravidade que mereça tão severa reprovação? E que toda palavra ofensiva exprime um sentimento contrário à lei do amor e da caridade que deve presidir às relações entre os homens e manter entre eles a concórdia e a união; é que constitui um golpe desferido na benevolência recíproca e na fraternidade que entretém o ódio e a animosidade; é' enfim, que, depois da humildade para com Deus, a caridade para com o próximo é a lei primeira de todo cristão.

5. Mas, que queria Jesus dizer por estas palavras: "Bem-aventurados os que são brandos, porque possuirão a Terra", tendo recomendado aos homens que renunciassem aos bens deste mundo e havendo- lhes prometido os do céu?

Enquanto aguarda os bens do céu, tem o homem necessidade dos da Terra para viver. Apenas, o que ele

lhe recomenda é que não ligue a estes últimos mais importância do que aos primeiros.

Por aquelas palavras quis dizer que até agora os bens da Terra são açambarcados pelos violentos, em prejuízo dos que são brandos e pacíficos; que a estes falta muitas vezes o necessário, ao passo que outros têm o supérfluo. Promete que justiça lhes será feita, assim na Terra como no céu, porque serão

chamados filhos de Deus. Quando a Humanidade se submeter à lei de amor e de caridade, deixará de haver egoísmo; o fraco e o pacífico já não serão explorados, nem esmagados pelo forte e pelo violento. Tal a condição da Terra, quando, de acordo com a lei do progresso e a promessa de Jesus, se houver tornado mundo ditoso, por efeito do afastamento dos maus.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A afabilidade e a doçura

6. A benevolência para com os seus semelhantes, fruto do amor ao próximo, produz a afabilidade e a doçura, que lhe são as formas de manifestar-se. Entretanto, nem sempre há que fiar nas aparências. A educação e a frequentação do mundo podem dar ao homem o verniz dessas qualidades. Quantos há cuja fingida bonomia não passa de máscara para o exterior, de uma roupagem cujo talhe primoroso dissimula as deformidades interiores! O mundo está cheio dessas criaturas que têm nos lábios o sorriso e no coração o veneno; que aso brandas, desde que nada as agaste, mas que mordem à menor contrariedade; cuja língua, de ouro quando falam pela frente, se muda em dardo peçonhento, quando estão por detrás.

A essa classe também pertencem esses homens, de exterior benigno, que, tiranos domésticos, fazem que suas famílias e seus subordinados lhes sofram o peso do orgulho e do despotismo, como a quererem desforrar-se do constrangimento que, fora de casa, se impõem a si mesmos. Não se atrevendo a usar de autoridade para com os estranhos, que os chamariam à ordem, acham que pelo menos devem fazer-se temidos daqueles que lhes não podem resistir. Envaidecem-se de poderem dizer: "Aqui mando e sou obedecido", sem lhes ocorrer que poderiam acrescentar: "E sou detestado." Não basta que dos lábios manem leite e mel. Se o coração de modo algum lhes está associado, só há hipocrisia. Aquele cuja afabilidade e doçura não são fingidas nunca se desmente: é o mesmo, tanto em sociedade, como na intimidade. Esse, ao demais, sabe que se, pelas aparências, se consegue enganar os homens, a Deus ninguém engana. - Lázaro. (Paris, 1861.)

A paciência

7. A dor é uma bênção que Deus envia a seus eleitos; não vos aflijais, pois, quando sofrerdes; antes, bendizei de Deus onipotente que, pela dor, neste mundo, vos marcou para a glória no céu.

Sede pacientes. A paciência também é uma caridade e deveis praticar a lei de caridade ensinada pelo Cristo, enviado de Deus. A caridade que consiste na esmola dada aos pobres é a mais fácil de todas. Outra há, porém, muito mais penosa e, conseguintemente, muito mais meritória: a de perdoarmos aos que Deus colocou em nosso caminho para serem instrumentos do nosso sofrer e para nos porem à prova

a paciência.

A vida é difícil, bem o sei. Compõe-se de mil nadas, que são outras tantas picadas de alfinetes, mas que acabam por ferir. Se, porém, atentarmos nos deveres que nos são impostos, nas consolações e compensações que, por outro lado, recebemos, havemos de reconhecer que são as bênçãos muito mais numerosas do que as dores. O fardo parece menos pesado, quando se olha para o alto, do que quando se curva para a terra a fronte.

Coragem, amigos! Tendes no Cristo o vosso modelo. Mais sofreu ele do que qualquer de vós e nada tinha de que se penitenciar, ao passo que vós tendes de expiar o vosso passado e de vos fortalecer para o futuro. Sede, pois, pacientes, sede cristãos. Essa palavra resume tudo. - Um Espírito amigo.(Havre, 1862.)

Obediência e resignação

8. A doutrina de Jesus ensina, em todos os seus pontos, a obediência e a resignação, duas virtudes companheiras da doçura e muito ativas, se bem os homens erradamente as confundam com a negação do sentimento e da vontade. A obediência é o consentimento da razão; a resignação é o consentimento do coração, forças ativas ambas, porquanto carregam o fardo das provações que a revolta insensata deixa cair. O pusilânime não pode ser resignado, do mesmo modo que o orgulhoso e o egoísta não podem ser obedientes. Jesus foi a encarnação dessas virtudes que a antigüidade material desprezava. Ele veio no momento em que a sociedade romana perecia nos desfalecimentos da corrupção. Veio fazer que, no seio da Humanidade deprimida, brilhassem os triunfos do sacrifico e da renúncia carnal.

Cada época é marcada, assim, com o cunho da virtude ou do vício que a tem de salvar ou perder. A virtude da vossa geração é a atividade intelectual; seu vicio é a indiferença moral. Digo, apenas, atividade, porque o gênio se eleva de repente e descobre, por si só, horizontes que a multidão somente mais tarde verá, enquanto que a atividade é a reunião dos esforços de todos para atingir um fim menos brilhante, mas que prova a elevação intelectual de uma época. Submetei-vos à impulsão que vimos dar aos vossos espíritos; obedecei à grande lei do progresso, que é a palavra da vossa geração. Ai do espírito preguiçoso, ai daquele que cerra o seu entendimento! Ai dele! porquanto nós, que somos os guias da Humanidade em marcha, lhe aplicaremos o látego e lhe submeteremos a vontade rebelde, por meio da dupla ação do freio e da espora. Toda resistência orgulhosa terá de, cedo ou tarde, ser vencida. Bem- aventurados, no entanto, os que são brandos, pois prestarão dócil ouvido aos ensinos. -Lázaro. (Paris, 1863.)

A cólera

9. O orgulho vos induz a julgar-vos mais do que sois; a não suportardes uma comparação que vos possa rebaixar; a vos considerardes, ao contrário, tão acima dos vossos irmãos, quer em espírito, quer em posição social, quer mesmo em vantagens pessoais, que o menor paralelo vos irrita e aborrece. Que sucede então? - Entregais-vos à cólera.

Pesquisai a origem desses acessos de demência passageira que vos assemelham ao bruto, fazendo-vosperder o sangue-frio e a razão; pesquisai e, quase sempre, deparareis com o orgulho ferido. Que é o que vos faz repelir, coléricos, os mais ponderados conselhos, senão o orgulho ferido por uma contradição? Até mesmo as impaciências, que se originam de contrariedades muitas vezes pueris, decorrem da importância que cada um liga à sua personalidade, diante da qual entende que todos se devem dobrar.

Em seu frenesi, o homem colérico a tudo se atira: à natureza bruta, aos objetos inanimados, quebrando- os porque lhe não obedecem. Ah! se nesses momentos pudesse ele observar-se asangue-frio, ou teria medo de si próprio, ou bem ridículo se acharia! Imagine ele por aí que impressão produzirá nos outros. Quando não fosse pelo respeito que deve a si mesmo, cumpria-lhe esforçar-sepor vencer um pendor que o torna objeto de piedade.

Se ponderasse que a cólera a nada remedeia, que lhe altera a saúde e compromete até a vida, reconheceria ser ele próprio a sua primeira vítima. Mas, outra consideração, sobretudo, deveracontê-lo, a de que torna infelizes todos os que o cercam. Se tem coração, não lhe será motivo de remorso fazer que sofram os entes a quem mais ama? E que pesar mortal se, num acesso de fúria, praticasse um ato que houvesse de deplorar toda a sua vida!

Em suma, a cólera não exclui certas qualidades do coração, mas impede se faça muito bem e pode levar à prática de muito mal. Isto deve bastar para induzir o homem a esforçar-se pela dominar. O espírita, ao demais, é concitado a isso por outro motivo: o de que a cólera é contrária à caridade e à humildade cristãs. - Um Espírito protetor. (Bordéus, 1863.)

10. Segundo a idéia falsíssima de que lhe não é possível reformar a sua própria natureza, o homem se julga dispensado de empregar esforços para se corrigir dos defeitos em que de boa-vontade se compraz, ou que exigiriam muita perseverança para serem extirpados. E assim, por exemplo, que o indivíduo, propenso a encolerizar-se, quase sempre se desculpa com o seu temperamento. Em vez de se confessar culpado, lança a culpa ao seu organismo, acusando a Deus, dessa forma, de suas próprias faltas. E ainda uma conseqüência do orgulho que se encontra de permeio a todas as suas imperfeições.

Indubitavelmente, temperamentos há que se prestam mais que outros a atos violentos, como há músculos mais flexíveis que se prestam melhor aos atos de força. Não acrediteis, porém, que aí resida a causa primordial da cólera e persuadi-vos de que um Espírito pacífico, ainda que num corpo bilioso, será sempre pacífico, e que um Espírito violento, mesmo num corpo linfático, não será brando; somente, a violência tomará outro caráter. Não dispondo de um organismo próprio a lhe secundar a violência, a cólera tornar-se-á concentrada, enquanto no outro caso será expansiva.

O corpo não dá cólera àquele que não na tem, do mesmo modo que não dá os outros vícios. Todas as virtudes e todos os vícios são inerentes ao Espírito. A não ser assim, onde estariam o mérito e a responsabilidade? O homem deformado não pode tornar-se direito, porque o Espírito nisso não pode atuar; mas, pode modificar o que é do Espírito, quando o quer com vontade firme. Não vos mostra a experiência, a vós espíritas, até onde é capaz de ir o poder da vontade, pelas transformações

verdadeiramente miraculosas que se operam sob as vossas vistas? Compenetrai-vos, pois, de que o homem não se conserva vicioso, senão porque quer permanecer vicioso; de que aquele que queiracorrigir-se sempre o pode. De outro modo, não existiria para o homem a lei do progresso. -Hahnemann. (Paris, 1863.)

[Capítulo X]

CAPÍTULO X

BEM-AVENTURADOS OS QUE SÃO MISERICORDIOSOS

Perdoai, para que Deus vos perdoe. - Reconciliação com os adversários. - O sacrifício mais agradável a Deus. O argueiro e a trave no olho. - Não julgueis, para não serdes julgados. Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado. - Instruções dos Espíritos: - Perdão das ofensas. - A indulgência. - É permitido repreender os outros, notar as imperfeições de outrem, divulgar o mal de outrem?

Perdoai, para que Deus vos perdoe

1.Bem-aventurados os que são misericordiosos, porque obterão misericórdia(S. MATEUS, cap.

V, v. 7.)

2.Se perdoardes aos homens as faltas que cometerem contra vós, também vosso Pai celestial vos perdoará os pecados; - mas, se não perdoardes aos homens quando vos tenham ofendido, vosso Pai celestial também não vos perdoará os pecados. (S. MATEUS, cap. VI, vv. 14 e 15.)

3.Se contra vós pecou vosso irmão, ide fazer-lhe sentir a falta em particular, a sós com ele; se vos atender, tereis ganho o vosso irmão. - Então, aproximando-se dele, disse-lhe Pedro: "Senhor, quantas vezes perdoarei a meu irmão, quando houver pecado contra mim? Até sete vezes?" - Respondeu-lhe Jesus: "Não vos digo que perdoeis até sete vezes, mas até setenta vezes sete vezes." (S. MATEUS, cap. XVIII, vv. 15, 21 e 22.)

4.A misericórdia é o complemento da brandura, porquanto aquele que não for misericordioso não poderá ser brando e pacífico. Ela consiste no esquecimento e no perdão das ofensas. O ódio e o rancor denotam alma sem elevação, nem grandeza. O esquecimento das ofensas é próprio da alma elevada, que paira acima dos golpes que lhe possam desferir. Uma é sempre ansiosa, de sombria suscetibilidade e cheia de fel; a outra é calma, toda mansidão e caridade.

Ai daquele que diz: nunca perdoarei. Esse, se não for condenado pelos homens, sê-lo-á por Deus. Com que direito reclamaria ele o perdão de suas próprias faltas, se não perdoa as dos outros? Jesus nos ensina que a misericórdia não deve ter limites, quando diz que cada um perdoe ao seu irmão, não sete vezes, mas setenta vezes sete vezes.

Há, porém, duas maneiras bem diferentes de perdoar: uma, grande, nobre, verdadeiramente generosa, sem pensamento oculto, que evita, com delicadeza, ferir o amor-próprio e a suscetibilidade do adversário, ainda quando este último nenhuma justificativa possa ter; a segunda é a em que o ofendido, ou aquele que tal se julga, impõe ao outro condições humilhantes e lhe faz sentir o peso de um perdão que irrita, em vez de acalmar; se estende a mão ao ofensor, não o faz com benevolência, mas com ostentação, a fim de poder dizer a toda gente: vede como sou generoso! Nessas circunstâncias, é impossível uma reconciliação sincera de parte a parte. Não, não há aí generosidade; há apenas uma forma de satisfazer ao orgulho. Em toda contenda, aquele que se mostra mais conciliador, que demonstra mais desinteresse, caridade e verdadeira grandeza dalma granjeará sempre a simpatia das pessoas imparciais.

Reconciliação com os adversários

5.Reconciliai-vos o mais depressa possível com o vosso adversário, enquanto estais com ele a caminho, para que ele não vos entregue ao juiz, o juiz não vos entregue ao ministro da justiça e não sejais metido em prisão. - Digo-vos, em verdade, que daí não saireis, enquanto não houverdes pago o último ceitil. (S. MATEUS, cap. V, vv. 25 e 26.)

6.Na prática do perdão, como, em geral, na do bem, não há somente um efeito moral: há também um efeito material. A morte, como sabemos, não nos livra dos nossos inimigos; os Espíritos vingativos perseguem, muitas vezes, com seu ódio, no além-túmulo, aqueles contra os quais guardam rancor; donde decorre a falsidade do provérbio que diz: "Morto o animal, morto o veneno", quando aplicado ao homem. O Espírito mau espera que o outro, a quem ele quer mal, esteja preso ao seu corpo e, assim, menos livre, para mais facilmente o atormentar, ferir nos seus interesses, ou nas suas mais caras afeições. Nesse fato reside a causa da maioria dos casos de obsessão, sobretudo dos que apresentam certa gravidade, quais os de subjugação e possessão. O obsidiado e o possesso são, pois, quase sempre vítimas de uma vingança, cujo motivo se encontra em existência anterior, e à qual o que a sofre deu lugar pelo seu proceder. Deus o permite, para os punir do mal que a seu turno praticaram, ou, se tal não ocorreu, por haverem faltado com a indulgência e a caridade, não perdoando. Importa, conseguintemente, do ponto de vista da tranqüilidade futura, que cada um repare, quanto antes, os agravos que haja causado ao seu próximo, que perdoe aos seus inimigos, a fim de que, antes que a morte lhe chegue, esteja apagado qualquer motivo de dissensão, toda causa fundada de ulterior animosidade. Por essa forma, de um inimigo encarniçado neste mundo se pode fazer um amigo no outro; pelo menos, o que assim procede põe de seu lado o bom direito e Deus não consente que aquele que perdoou sofra qualquer vingança. Quando Jesus recomenda que nos reconciliemos o mais cedo possível com o nosso adversário, não é somente objetivando apaziguar as discórdias no curso da nossa atual existência; é, principalmente, para que elas se não perpetuem nas existências futuras. Não saireis de lá, da prisão, enquanto não houverdes pago até o último centavo, isto é, enquanto não houverdes satisfeito completamente a justiça de Deus.

O sacrifício mais agradável a Deus

7.Se, portanto, quando fordes depor vossa oferenda no altar, vos lembrardes de que o vosso irmão tem qualquer coisa contra vós, - deixai a vossa dádiva junto ao altar e ide, antes, reconciliar-vos com o vosso irmão; depois, então, voltai a oferecê-la. - (S. MATEUS, cap. V, vv. 23 e 24.)

8.Quando diz: "Ide reconciliar-vos com o vosso irmão, antes de depordes a vossa oferenda no altar", Jesus ensina que o sacrifício mais agradável ao Senhor é o que o homem faça do seu próprio ressentimento; que, antes de se apresentar para ser por ele perdoado, precisa o homem haver perdoado e reparado o agravo que tenha feito a algum de seus irmãos. Só então a sua oferenda será bem aceita, porque virá de um coração expungido de todo e qualquer pensamento mau. Ele materializou o preceito, porque os judeus ofereciam sacrifícios materiais; cumpria--lhe conformar suas palavras aos usos ainda em voga. O cristão não oferece dons materiais, pois que espiritualizou o sacrifício. Com isso, porém, o preceito ainda mais força ganha. Ele oferece sua alma a Deus e essa alma tem de ser purificada.

Entrando no templo do Senhor, deve ele deixar fora todo sentimento de ódio e de animosidade, todo mau pensamento contra seu irmão. Só então os anjos levarão sua prece aos pés do Eterno. Eis aí o que ensina Jesus por estas palavras: "Deixai a vossa oferenda junto do altar e ide primeiroreconciliar-vos com o vosso irmão, se quiserdes ser agradável ao Senhor."

O argueiro e a trave no olho

9.Como é que vedes um argueiro no olho do vosso irmão, quando não vedes uma trave no vosso olho? - Ou, como é que dizeis ao vosso irmão: Deixa-me tirar um argueiro ao teu olho, vós que tendes no vosso uma trave? - Hipócritas, tirai primeiro a trave ao vosso olho e depois, então, vede como podereis tirar o argueiro do olho do vosso irmão(S. MATEUS, cap. VII, vv. 3 a 5.)

10.Uma das insensatezes da Humanidade consiste em vermos o mal de outrem, antes de vermos o mal que está em nós. Para julgar-se a si mesmo, fora preciso que o homem pudesse ver seu interior num espelho, pudesse, de certo modo, transportar-se para fora de si próprio, considerar-se como outra pessoa e perguntar: Que pensaria eu, se visse alguém fazer o que faço? Incontestavelmente, é o orgulho que induz o homem a dissimular, para si mesmo, os seus defeitos, tanto morais, quanto físicos. Semelhante insensatez é essencialmente contrária à caridade, porquanto a verdadeira caridade é modesta, simples e indulgente. Caridade orgulhosa é um contra-senso, visto que esses dois sentimentos se neutralizam um ao outro. Com efeito, como poderá um homem, bastante presunçoso para acreditar na importância da sua personalidade e na supremacia das suas qualidades, possuir ao mesmo tempo abnegação bastante para fazer ressaltar em outrem o bem que o eclipsaria, em vez do mal que o exalçaria? Por isso mesmo, porque é o pai de muitos vícios, o orgulho é também a negação de muitas virtudes. Ele se encontra na base e como móvel de quase todas as ações humanas. Essa a razão por que Jesus se empenhou tanto em combatê-lo, como principal obstáculo ao progresso.

Não julgueis, para não serdes julgados. - Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado

11. Não julgueis, a fim de não serdes julgados; - porquanto sereis julgados conforme houverdes

julgado os outros; empregar-se-á convosco a mesma medida de que voz tenhais servido para com os outros. (S. MATEUS, cap. VII, vv. 1 e 2.)

12. Então, os escribas e os fariseus lhe trouxeram uma mulher que fora surpreendida em adultério e, pondo-a de pé no meio do povo, - disseram a Jesus: "Mestre, esta mulher acaba de ser surpreendida em adultério; - ora, Moisés, pela lei, ordena que se lapidem as adúlteras. Qual sobre isso a tua opinião?" - Diziam isto para o tentarem e terem de que o acusar. Jesus, porém,abaixando-se, entrou a escrever na terra com o dedo. - Como continuassem a interrogá-lo, ele se levantou e disse: "Aquele dentre vós que estiver sem pecado, atire a primeira pedra."

- Em seguida, abaixando-se de novo, continuou a escrever no chão. - Quanto aos que o interrogavam, esses, ouvindo-o falar daquele modo, se retiraram, um após outro, afastando-seprimeiro os velhos. Ficou, pois, Jesus a sós com a mulher, colocada no meio da praça.

Então, levantando-se, perguntou-lhe Jesus: "Mulher, onde estão os que te acusaram? Ninguém te condenou?" - Ela respondeu: "Não, Senhor." Disse-lhe Jesus: "Também eu não te condenarei. Vai-te e de futuro não tornes a pecar." (S. JOÃO, cap. VIII, vv. 3 a 11.)

13. "Atire-lhe a primeira pedra aquele que estiver isento de pecado", disse Jesus. Essa sentença faz da indulgência um dever para nós outros, porque ninguém há que não necessite, para si próprio, de indulgência. Ela nos ensina que não devemos julgar com mais severidade os outros, do que nos julgamos a nós mesmos, nem condenar em outrem aquilo de que nos absolvemos. Antes de profligarmos a alguém uma falta, vejamos se a mesma censura não nos pode ser feita.

O reproche lançado à conduta de outrem pode obedecer a dois móveis: reprimir o mal, ou desacreditar a pessoa cujos atos se criticam. Não tem escusa nunca este último propósito, porquanto, no caso, então, só há maledicência e maldade. O primeiro pode ser louvável e constitui mesmo, em certas ocasiões, um dever, porque um bem deverá daí resultar, e porque, a não ser assim, jamais, na sociedade, se reprimiria o mal. Não cumpre, aliás, ao homem auxiliar o progresso do seu semelhante? Importa, pois, não se tome em sentido absoluto este princípio: "Não julgueis se não quiserdes ser julgado", porquanto a letra mata e o espírito vivifica.

Não é possível que Jesus haja proibido se profligue o mal, uma vez que ele próprio nos deu o exemplo, tendo-o feito, até, em termos enérgicos. O que quis significar é que a autoridade para censurar está na razão direta da autoridade moral daquele que censura. Tornar-se alguém culpado daquilo que condena noutrem é abdicar dessa autoridade, é privar-se do direito de repressão. A consciência íntima, ao demais, nega respeito e submissão voluntária àquele que, investido de um poder qualquer, viola as leis e os princípios de cuja aplicação lhe cabe o encargo. Aos olhos de Deus, uma única autoridade legítima existe: a que se apóia no exemplo que dá do bem. E o que, igualmente, ressalta das palavras de Jesus.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Perdão das ofensas

14. Quantas vezes perdoarei a meu irmão? Perdoar-lhe-eis, não sete vezes, mas setenta vezes sete vezes. Aí tendes um dos ensinos de Jesus que mais vos devem percutir a inteligência e mais alto falar ao coração. Confrontai essas palavras de misericórdia com a oração tão simples, tão resumida e tão grande em suas aspirações, que ensinou a seus discípulos, e o mesmo pensamento se vos deparará sempre. Ele, o justo por excelência, responde a Pedro: perdoarás, mas ilimitadamente; perdoarás cada ofensa tantas vezes quantas ela te for feita; ensinarás a teus irmãos esse esquecimento de si mesmo, que torna uma criatura invulnerável ao ataque, aos maus procedimentos e às injúrias; serás brando e humilde de coração, sem medir a tua mansuetude; farás, enfim, o que desejas que o Pai celestial por ti faça. Não está ele a te perdoar freqüentemente? Conta porventura as vezes que o seu perdão desce a te apagar as faltas?

Prestai, pois, ouvidos a essa resposta de Jesus e, como Pedro, aplicai-a a vós mesmos. Perdoai, usai de indulgência, sede caridosos, generosos, pródigos até do vosso amor. Dai, que o Senhor vos restituirá; perdoai, que o Senhor vos perdoará; abaixai-vos, que o Senhor vos elevará; humilhai-vos,que o Senhor fará vos assenteis à sua direita.

Ide, meus bem-amados, estudai e comentai estas palavras que vos dirijo da parte dAquele que, do alto dos esplendores celestes, vos tem sempre sob as suas vistas e prossegue com amor na tarefa ingrata a que deu começo, faz dezoito séculos. Perdoai aos vossos irmãos, como precisais que se vos perdoe. Se seus atos pessoalmente vos prejudicaram, mais um motivo aí tendes para serdes indulgentes, porquanto o mérito do perdão é proporcionado à gravidade do mal. Nenhum merecimento teríeis em relevar os agravos dos vossos irmãos, desde que não passassem de simples arranhões.

Espíritas, jamais vos esqueçais de que, tanto por palavras, como por atos, o perdão das injúrias não deve ser um termo vão. Pois que vos dizeis espíritas, sede-o. Olvidai o mal que vos hajam feito e não penseis senão numa coisa: no bem que podeis fazer. Aquele que enveredou por esse caminho não tem que se afastar daí, ainda que por pensamento, uma vez que sois responsáveis pelos vossos pensamentos, os quais todos Deus conhece. Cuidai, portanto, de os expungir de todo sentimento de rancor. Deus sabe o que demora no fundo do coração de cada um de seus filhos. Feliz, pois, daquele que pode todas as noites adormecer, dizendo: Nada tenho contra o meu próximo. Simeão. (Bordéus, 1862.)

15. Perdoar aos inimigos é pedir perdão para si próprio; perdoar aos amigos é dar-lhes uma prova de amizade; perdoar as ofensas é mostrar-se melhor do que era. Perdoai, pois, meus amigos, a fim de que Deus vos perdoe, porquanto, se fordes duros, exigentes, inflexíveis, se usardes de rigor até por uma ofensa leve, como querereis que Deus esqueça de que cada dia maior necessidade tendes de indulgência? Oh! ai daquele que diz: "Nunca perdoarei", pois pronuncia a sua própria condenação. Quem sabe, aliás, se, descendo ao fundo de vós mesmos, não reconhecereis que fostes o agressor? Quem sabe se, nessa luta que começa por uma alfinetada e acaba por uma ruptura, não fostes quem atirou o primeiro golpe, se vos não escapou alguma palavra injuriosa, se não procedestes com toda a moderação necessária? Sem dúvida, o vosso adversário andou mal em se mostrar excessivamente suscetível; razão de mais para serdes indulgentes e para não vos tomardes merecedores da invectiva que lhe lançastes. Admitamos que,

em dada circunstância, fostes realmente ofendido: quem dirá que não envenenastes as coisas por meio de represálias e que não fizestes degenerasse em querela grave o que houvera podido cair facilmente no olvido? Se de vós dependia impedir as conseqüências do fato e não as impedistes, sois culpados. Admitamos, finalmente, que de nenhuma censura vos reconheceis merecedores: mostrai-vos dementes e com isso só fareis que o vosso mérito cresça.

Mas, há duas maneiras bem diferentes de perdoar: há o perdão dos lábios e o perdão do coração. Muitas pessoas dizem, com referência ao seu adversário: "Eu lhe perdôo", mas, interiormente, alegram-se com o mal que lhe advém, comentando que ele tem o que merece. Quantos não dizem: "Perdôo" e acrescentam. "mas, não me reconciliarei nunca; não quero tornar a vê-lo em toda a minha vida." Será esse o perdão, segundo o Evangelho? Não; o perdão verdadeiro, o perdão cristão é aquele que lança um véu sobre o passado; esse o único que vos será levado em conta, visto que Deus não se satisfaz com as aparências. Ele sonda o recesso do coração e os mais secretos pensamentos. Ninguém se lhe impõe por meio de vãs palavras e de simulacros. O esquecimento completo e absoluto das ofensas é peculiar às grandes almas; o rancor é sempre sinal de baixeza e de inferioridade. Não olvideis que o verdadeiro perdão se reconhece muito mais pelos atos do que pelas palavras. - Paulo, apóstolo. (Lião, 1861.)

A Indulgência

16. Espíritas, queremos falar-vos hoje da indulgência, sentimento doce e fraternal que todo homem deve alimentar para com seus irmãos, mas do qual bem poucos fazem uso.

A indulgência não vê os defeitos de outrem, ou, se os vê, evita falar deles, divulgá-los. Ao contrário,oculta-os, a fim de que se não tornem conhecidos senão dela unicamente, e, se a malevolência os descobre, tem sempre pronta uma escusa para eles, escusa plausível, séria, não das que, com aparência de atenuar a falta, mais a evidenciam com pérfida intenção.

A indulgência jamais se ocupa com os maus atos de outrem, a menos que seja para prestar um serviço; mas, mesmo neste caso, tem o cuidado de os atenuar tanto quanto possível. Não faz observações chocantes, não tem nos lábios censuras; apenas conselhos e, as mais das vezes, velados. Quando criticais, que conseqüência se há de tirar das vossas palavras? A de que não tereis feito o que reprovais, visto que estais a censurar; que valeis mais do que o culpado. O homens! quando será que julgareis os vossos próprios corações, os vossos próprios pensamentos, os vossos próprios atos, sem vos ocupardes com o que fazem vossos irmãos? Quando só tereis olhares severos sobre vós mesmos?

Sede, pois, severos para convosco, indulgentes para com os outros. Lembrai-vos daquele que julga em última instância, que vê os pensamentos íntimos de cada coração e que, por conseguinte, desculpa muitas vezes as faltas que censurais, ou condena o que relevais, porque conhece o móvel de todos os atos. Lembrai-vos de que vós, que clamais em altas vozes: anátema! tereis, quiçá, cometido faltas mais graves.

Sede indulgentes, meus amigos, porquanto a indulgência atrai, acalma, ergue, ao passo que o rigor

desanima, afasta e irrita. - José, Espírito protetor. (Bordéus, 1863.)

17. Sede indulgentes com as faltas alheias, quaisquer que elas sejam; não julgueis com severidade senão as vossas próprias ações e o Senhor usará de indulgência para convosco, como de indulgência houverdes usado para com os outros.

Sustentai os fortes: animai-os à perseverança. Fortalecei os fracos, mostrando-lhes a bondade de Deus, que leva em conta o menor arrependimento; mostrai a todos o anjo da penitência estendendo suas brancas asas sobre as faltas dos humanos e velando-as assim aos olhares daquele que não pode tolerar o que é impuro. Compreendei todos a misericórdia infinita de vosso Pai e não esqueçais nunca de lhe dizer, pelos pensamentos, mas, sobretudo, pelos atos: "Perdoai as nossas ofensas, como perdoamos aos que nos hão ofendido." Compreendei bem o valor destas sublimes palavras, nas quais não somente a letra é admirável, mas principalmente o ensino que ela veste.

Que é o que pedis ao Senhor, quando implorais para vós o seu perdão? Será unicamente o olvido das vossas ofensas? Olvido que vos deixaria no nada, porquanto, se Deus se limitasse a esquecer as vossas faltas, Ele não puniria, é exato, mas tampouco recompensaria. A recompensa não pode constituir prêmio do bem que não foi feito, nem, ainda menos, do mal que se haja praticado, embora esse mal fosse esquecido. Pedindo-lhe que perdoe os vossos desvios, o que lhe pedis é o favor de suas graças, para não reincidirdes neles, é a força de que necessitais para enveredar por outras sendas, as da submissão e do amor, nas quais podereis juntar ao arrependimento a reparação.

Quando perdoardes aos vossos irmãos, não vos contenteis com o estender o véu do esquecimento sobre suas faltas, porquanto, as mais das vezes, muito transparente é esse véu para os olhares vossos. Levai- lhes simultaneamente, com o perdão, o amor; fazei por eles o que pediríeis fizesse o vosso Pai celestial por vós. Substitui a cólera que conspurca, pelo amor que purifica. Pregai, exemplificando, essa caridade ativa, infatigável, que Jesus vos ensinou; pregai-a, como ele o fez durante todo o tempo em que esteve na Terra, visível aos olhos corporais e como ainda a prega incessantemente, desde que se tornou visível tão-somente aos olhos do Espírito. Segui esse modelo divino; caminhai em suas pegadas; elas vos conduzirão ao refúgio onde encontrareis o repouso após a luta. Como ele, carregai todos vós as vossas cruzes e subi penosamente, mas com coragem, o vosso calvário, em cujo cimo está a glorificação. - João, bispo de Bordéus. (1862.)

18. Caros amigos, sede severos convosco, indulgentes para as fraquezas dos outros. E esta uma prática da santa caridade, que bem poucas pessoas observam. Todos vós tendes maus pendores a vencer, defeitos a corrigir, hábitos a modificar; todos tendes um fardo mais ou menos pesado a alijar, para poderdes galgar o cume da montanha do progresso. Por que, então, haveis de mostrar-vos tão clarividentes com relação ao próximo e tão cegos com relação a vós mesmos? Quando deixareis de perceber, nos olhos de vossos irmãos, o pequenino argueiro que os incomoda, sem atentardes na trave que, nos vossos olhos, vos cega, fazendo-vos ir de queda em queda? Crede nos vossos irmãos, os Espíritos. Todo homem, bastante orgulhoso para se julgar superior, em virtude e mérito, aos seus irmãos encarnados, é insensato e culpado: Deus o castigará no dia da sua justiça. O verdadeiro caráter da

caridade é a modéstia e a humildade, que consistem em ver cada um apenas superficialmente os defeitos de outrem e esforçar-se por fazer que prevaleça o que há nele de bom e virtuoso, porquanto, embora o coração humano seja um abismo de corrupção, sempre há, nalgumas de suas dobras mais ocultas, o gérmen de bons sentimentos, centelha vivaz da essência espiritual.

Espiritismo! doutrina consoladora e bendita! felizes dos que te conhecem e tiram proveito dos salutares ensinamentos dos Espíritos do Senhor! Para esses, iluminado está o caminho, ao longo do qual podem ler estas palavras que lhes indicam o meio de chegarem ao termo da jornada: caridade prática, caridade do coração, caridade para com o próximo, como para si mesmo; numa palavra: caridade para com todos e amor a Deus acima de todas as coisas, porque o amor a Deus resume todos os deveres e porque impossível é amar realmente a Deus, sem praticar a caridade, da qual fez ele uma lei para todas as criaturas. -Dufêtre, bispo de Nevers. (Bordéus.)

É permitido repreender os outros, notar as imperfeições de outrem, divulgar o mal de outrem?

19. Ninguém sendo perfeito, seguir-se-á que ninguém tem o direito de repreender o seu próximo?

Certamente que não é essa a conclusão a tirar-se, porquanto cada um de vós deve trabalhar pelo progresso de todos e, sobretudo, daqueles cuja tutela vos foi confiada. Mas, por isso mesmo, deveis fazê- lo com moderação, para um fim útil, e não, como as mais das vezes, pelo prazer de denegrir. Neste último caso, a repreensão é uma maldade; no primeiro, é um dever que a caridade manda seja cumprido com todo o cuidado possível. Ao demais, a censura que alguém faça a outrem deve ao mesmo tempo dirigi-la a si próprio, procurando saber se não a terá merecido. - S. Luís. (Paris, 1860.)

20. Será repreensível notarem-se as imperfeições dos outros, quando daí nenhum proveito possa resultar para eles, uma vez que não sejam divulgadas?

Tudo depende da intenção. Decerto, a ninguém é defeso ver o mal, quando ele existe. Fora mesmo inconveniente ver em toda a parte só o bem. Semelhante ilusão prejudicaria o progresso. O erro está no fazer-se que a observação redunde em detrimento do próximo, desacreditando-o, sem necessidade, na opinião geral. Igualmente repreensível seria fazê-lo alguém apenas para dar expansão a um sentimento de malevolência e à satisfação de apanhar os outros em falta. Dá-se inteiramente o contrário quando, estendendo sobre o mal um véu, para que o público não o veja, aquele que note os defeitos do próximo o faça em seu proveito pessoal, isto é, para se exercitar em evitar o que reprova nos outros. Essa observação, em suma, não é proveitosa ao moralista? Como pintaria ele os defeitos humanos, se não estudasse os modelos? - S. Luís. (Paris, 1860.)

21. Haverá casos em que convenha se desvende o mal de outrem?

É muito delicada esta questão e, para resolvê-la, necessário se toma apelar para a caridade bem compreendida. Se as imperfeições de uma pessoa só a ela prejudicam, nenhuma utilidade haverá nunca em divulgá-la. Se, porém, podem acarretar prejuízo a terceiros, deve-se atender de preferência ao

interesse do maior número. Segundo as circunstâncias, desmascarar a hipocrisia e a mentira pode constituir um dever, pois mais vale caia um homem, do que virem muitos a ser suas vítimas. Em tal caso, deve-se pesar a soma das vantagens e dos inconvenientes. - São Luís. (Paris, 1860.)

[Capítulo XI]

CAPÍTULO XI

AMAR O PRÓXIMO COMO A SI MESMO

O mandamento maior. Fazermos aos outros o que queiramos que os outros nos façam. Parábola dos credores e dos devedores. - Dai a César o que é de César. - Instruções dos Espíritos: A lei de amor. - O egoísmo. - A fé e a caridade. - Caridade para com os criminosos. - Deve-se expor a vida por um malfeitor?

O mandamento maior. Fazermos aos outros o que queiramos que os outros nos façam. Parábola dos credores e dos devedores

1.Os fariseus, tendo sabido que ele tapara a boca dos saduceus, reuniram-se; e um deles, que era doutor da lei, para o tentar, propôs-lhe esta questão: - "Mestre, qual o mandamento maior da lei?" - Jesus respondeu: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito; este o maior e o primeiro mandamento. E aqui tendes o segundo, semelhante a esse: Amarás o teu próximo, como a ti mesmo. - Toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos." (S. MATEUS, cap. XXII, vv. 34 a 40.)

2.Fazei aos homens tudo o que queirais que eles vos façam, pois é nisto que consistem a lei e os profetas. (Idem, cap. VII, v. 12.) Tratai todos os homens como quereríeis que eles vos tratassem. (S. LUCAS, cap. VI, v. 31.)

3.O reino dos céus é comparável a um rei que quis tomar contas aos seus servidores. - Tendo começado a fazê-lo, apresentaram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. - Mas, como não tinha meios de os pagar, mandou seu senhor que o vendessem a ele, sua mulher, seus filhos e tudo o que lhe pertencesse, para pagamento da dívida. -O servidor, lançando-se-lhe aos pés, o conjurava, dizendo: "Senhor, tem um pouco de paciência e eu te pagarei tudo." - Então, o senhor, tocado de compaixão, deixou-o ir e lhe perdoou a dívida. - Esse servidor, porém, ao sair, encontrando um de seus companheiros, que lhe devia cem dinheiros, o segurou pela goela e, quase a estrangulá-lo, dizia: "Paga o que me deves." - O companheiro, lançando-se aos pés, o conjurava, dizendo: "Tem um pouco de paciência e eu te pagarei tudo." - Mas o outro não quisescutá-lo; foi-se e o mandou prender, par tê-lo preso até pagar o que lhe devia.

Os outros servidores, seus companheiros, vendo o que se passava, foram, extremamente aflitos, e informaram o senhor de tudo o que acontecera. - Então, o senhor, tendo mandado vir à sua

presença aquele servidor, lhe disse: "Mau servo, eu te havia perdoado tudo o que me devias, porque mo pediste. - Não estavas desde então no dever de também ter piedade do teu companheiro, como eu tivera de ti?" E o senhor, tomado de cólera, o entregou aos verdugos, para que o tivessem, até que ele pagasse tudo o que devia.

É assim que meu Pai, que está no céu, vos tratará, se não perdoardes, do fundo do coração, as faltas que vossos irmãos houverem cometido contra cada um de vós. (S. MATEUS, cap. XVIII, vv. 23 a 35.)

4. "Amar o próximo como a si mesmo: fazer pelos outros o que quereríamos que os outros fizessem por nós", é a expressão mais completa da caridade, porque resume todos os deveres do homem para com o próximo. Não podemos encontrar guia mais seguro, a tal respeito, que tomar para padrão, do que devemos fazer aos outros, aquilo que para nós desejamos. Com que direito exigiríamos dos nossos semelhantes melhor proceder, mais indulgência, mais benevolência e devotamento para conosco, do que os temos para com eles? A prática dessas máximas tende à destruição do egoísmo. Quando as adotarem para regra de conduta e para base de suas instituições, os homens compreenderão a verdadeira fraternidade e farão que entre eles reinem a paz e a justiça. Não mais haverá ódios, nem dissensões, mas, tão-somente, união, concórdia e benevolência mútua.

Dai a César o que é de César

5. Os fariseus, tendo-se retirado, entenderam-se entre si para enredá-lo com as suas próprias palavras. - Mandaram então seus discípulos, em companhia dos herodianos, dizer-lhe: Mestre, sabemos que és veraz e que ensinas o caminho de Deus pela verdade, sem levares em conta a quem quer que seja, porque, nos homens, não consideras as pessoas. Dize-nos, pois, qual a tua opinião sobre isto: É-nos permitido pagar ou deixar de pagar a César o tributo?

Jesus, porém, que lhes conhecia a malícia, respondeu: Hipócritas, por que me tentais? Apresentai- me uma das moedas que se dão em pagamento do tributo. E, tendo-lhe eles apresentado um denário, perguntou Jesus: De quem são esta imagem e esta inscrição? - De César, responderam eles. Então,observou-lhes Jesus: Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Ouvindo-o falar dessa maneira, admiraram-se eles da sua resposta e, deixando-o, se retiraram. (S. MATEUS, cap. XXII, vv. 15 a 22. - S. MARCOS, cap. XII, vv. 13 a 17.)

6. A questão proposta a Jesus era motivada pela circunstância de que os judeus, abominando o tributo que os romanos lhes impunham, haviam feito do pagamento desse tributo uma questão religiosa. Numeroso partido se fundara contra o imposto. O pagamento deste constituía, pois, entre eles, uma irritante questão de atualidade, sem o que nenhum senso teria a pergunta feita a Jesus: "É-nos lícito pagar ou deixar de pagar a César o tributo?" Havia nessa pergunta uma armadilha. Contavam os que a formularam poder, conforme a resposta, excitar contra ele a autoridade romana, ou os judeus dissidentes. Mas "Jesus, que lhes conhecia a malícia", contornou a dificuldade, dando-lhes uma lição de justiça, com

o dizer que a cada um seja dado o que lhe é devido. (Veja-se, na "Introdução", o artigo: Publicanos.)

7. Esta sentença: "Dai a César o que é de César", não deve, entretanto, ser entendida de modo restritivo e absoluto. Como em todos os ensinos de Jesus, há nela um princípio geral, resumido sob forma prática e usual e deduzido de uma circunstância particular. Esse princípio

é conseqüente daquele segundo o qual devemos proceder para com os outros como queiramos que os outros procedam para conosco. Ele condena todo prejuízo material e moral que se possa causar a outrem, toda postergação de seus interesses. Prescreve o respeito aos direitos de cada um, como cada um deseja que se respeitem os seus. Estende-se mesmo aos deveres contraídos para com a família, a sociedade, a autoridade, tanto quanto para com os indivíduos em geral.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A lei de amor

8. O amor resume a doutrina de Jesus toda inteira, visto que esse é o sentimento por excelência, e os sentimentos são os instintos elevados à altura do progresso feito. Em sua origem, o homem só tem instintos; quando mais avançado e corrompido, só tem sensações; quando instruído e depurado, tem sentimentos. E o ponto delicado do sentimento é o amor, não o amor no sentido vulgar do termo, mas esse sol interior que condensa e reúne em seu ardente foco todas as aspirações e todas as revelaçõessobre-humanas. A lei de amor substitui a personalidade pela fusão dos seres; extingue as misérias sociais. Ditoso aquele que, ultrapassando a sua humanidade, ama com amplo amor os seus irmãos em sofrimento! ditoso aquele que ama, pois não conhece a miséria da alma, nem a do corpo. Tem ligeiros os pés e vive como que transportado, fora de si mesmo. Quando Jesus pronunciou a divina palavra-amor, os povos sobressaltaram-se e os mártires, ébrios de esperança, desceram ao circo.

O Espiritismo a seu turno vem pronunciar uma segunda palavra do alfabeto divino. Estai atentos, pois que essa palavra ergue a lápide dos túmulos vazios, e a reencarnação, triunfando da morte, revela às criaturas deslumbradas o seu patrimônio intelectual. Já não é ao suplício que ela conduz o homem: condu-lo à conquista do seu ser, elevado e transfigurado. O sangue resgatou o Espírito e o Espírito tem hoje que resgatar da matéria o homem.

Disse eu que em seus começos o homem só instintos possuía. Mais próximo, portanto, ainda se acha do ponto de partida, do que da meta, aquele em quem predominam os instintos. A fim de avançar para a meta, tem a criatura que vencer os instintos, em proveito dos sentimentos, isto é, que aperfeiçoar estes últimos, sufocando os germes latentes da matéria. Os instintos são a germinação e os embriões do sentimento; trazem consigo o progresso, como a glande encerra em si o carvalho, e os seres menos adiantados são os que, emergindo pouco a pouco de suas crisálidas, se conservam escravizados aos instintos. O Espírito precisa ser cultivado, como um campo. Toda a riqueza futura depende do labor atual, que vos granjeará muito mais do que bens terrenos: a elevação gloriosa. E então que, compreendendo a lei de amor que liga todos os seres, buscareis nela os gozos suavíssimos da alma,

prelúdios das alegrias celestes. - Lázaro. (Paris, 1862.)

9. O amor é de essência divina e todos vós, do primeiro ao último, tendes, no fundo do coração, a centelha desse fogo sagrado. E fato, que já haveis podido comprovar muitas vezes, este: o homem, por mais abjeto, vil e criminoso que seja, vota a um ente ou a um objeto qualquer viva e ardente afeição, à prova de tudo quanto tendesse a diminuí-la e que alcança, não raro, sublimes proporções.

A um ente ou um objeto qualquer, disse eu, porque há entre vós indivíduos que, com o coração a transbordar de amor, despendem tesouros desse sentimento com animais, plantas e, até, com coisas materiais: espécies de misantropos que, a se queixarem da Humanidade em geral e a resistirem ao pendor natural de suas almas, que buscam em torno de si a afeição e a simpatia, rebaixam a lei de amor à condição de instinto. Entretanto, por mais que façam, não logram sufocar o gérmen vivaz que Deus lhes depositou nos corações ao criá-los. Esse gérmen se desenvolve e cresce com a moralidade e a inteligência e, embora comprimido amiúde pelo egoísmo, torna-se a fonte das santas e doces virtudes que geram as afeições sinceras e duráveis e ajudam a criatura a transpor o caminho escarpado e árido da existência humana.

Há pessoas a quem repugna a reencarnação, com a idéia de que outros venham a partilhar das afetuosas simpatias de que são ciosas. Pobres irmãos! o vosso afeto vos torna egoístas; o vosso amor se restringe a um círculo íntimo de parentes e de amigos, sendo-vos indiferentes os demais. Pois bem! para praticardes a lei de amor, tal como Deus o entende, preciso se faz chegueis passo a passo a amar a todos os vossos irmãos indistintamente. A tarefa é longa e difícil, mas cumprir-se-á: Deus o quer e a lei de amor constitui o primeiro e o mais importante preceito da vossa nova doutrina, porque é ela que um dia matará o egoísmo, qualquer que seja a forma sob que se apresente, dado que, além do egoísmo pessoal, há também o egoísmo de família, de casta, de nacionalidade. Disse Jesus: "Amai o vosso próximo como a vós mesmos." Ora, qual o limite com relação ao próximo? Será a família, a seita, a nação? Não; é a Humanidade inteira. Nos mundos superiores, o amor recíproco é que harmoniza e dirige os Espíritos adiantados que os habitam, e o vosso planeta, destinado a realizar em breve sensível progresso, verá seus habitantes, em virtude da transformação social por que passará, a praticar essa lei sublime, reflexo da Divindade.

Os efeitos da lei de amor são o melhoramento moral da raça humana e a felicidade durante a vida terrestre. Os mais rebeldes e os mais viciosos se reformarão, quando observarem os benefícios resultantes da prática deste preceito: Não façais aos outros o que não quiserdes que vos façam: fazei- lhes, ao contrário, todo o bem que vos esteja ao alcance fazer-lhes.

Não acrediteis na esterilidade e no endurecimento do coração humano; ao amor verdadeiro, ele, a seu mau grado, cede. E um ímã a que não lhe é possível resistir. O contacto desse amor vivifica e fecunda os germens que dele existem, em estado latente, nos vossos corações. A Terra, orbe de provação e de exílio, será então purificada por esse fogo sagrado e verá praticados na sua superfície a caridade, a humildade, a paciência, o devotamento, a abnegação, a resignação e o sacrifício, virtudes todas filhas do amor. Não vos canseis, pois, de escutar as palavras de João, o Evangelista. Como sabeis, quando a

enfermidade e a velhice o obrigaram a suspender o curso de suas prédicas, limitava-se a repetir estas suavíssimas palavras: Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros." Amados irmãos, aproveitai dessas lições; é difícil o praticá-las, porém, a alma colhe delas imenso bem. Crede-me, fazei o sublime esforço que vos peço: "Amai-vos" e vereis a Terra em breve transformada num Paraíso onde as almas dos justos virão repousar. - Fénelon. (Bordéus, 1861.)

10. Meus caros condiscípulos, os Espíritos aqui presentes vos dizem, por meu intermédio: "Amai muito, a fim de serdes amados." E tão justo esse pensamento, que nele encontrareis tudo o que consola e abranda as penas de cada dia; ou melhor: pondo em prática esse sábio conselho, elevar-vos-eis de tal modo acima da matéria que vos espiritualizareis antes de deixardes o invólucro terrestre. Havendo os estudos espíritas desenvolvido em vós a compreensão do futuro, uma certeza tendes: a de caminhardes para Deus, vendo realizadas todas as promessas que correspondem às aspirações de vossa alma, Por isso, deveis elevar-vos bem alto para julgardes sem as constrições da matéria, e não condenardes o vosso próximo sem terdes dirigido a Deus o pensamento.

Amar, no sentido profundo do termo, é o homem ser leal, probo, consciencioso, para fazer aos outros o que queira que estes lhe façam; é procurar em torno de si o sentido íntimo de todas as dores que acabrunham seus irmãos, para suavizá-las; é considerar como sua a grande família humana, porque essa família todos a encontrareis, dentro de certo período, em mundos mais adiantados; e os Espíritos que a compõem são, como vós, filhos de Deus, destinados a se elevarem ao infinito. Assim, não podeis recusar aos vossos irmãos o que Deus liberalmente vos outorgou, porquanto, de vosso lado, muito vos alegraria que vossos irmãos vos dessem aquilo de que necessitais. Para todos os sofrimentos, tende, pois, sempre uma palavra de esperança e de conforto, a fim de que sejais inteiramente amor e justiça.

Crede que esta sábia exortação: "Amai bastante, para serdes amados", abrirá caminho; revolucionária, ela segue sua rota, que é determinada, invariável. Mas, já ganhastes muito, vós que me ouvis, pois que já sois infinitamente melhores do que éreis há cem anos. Mudastes tanto, em proveito vosso, que aceitais de boa mente, sobre a liberdade e a fraternidade, uma imensidade de idéias novas, que outrora rejeitaríeis. Ora, daqui a cem anos, sem dúvida aceitareis com a mesma facilidade as que ainda vos não puderam entrar no cérebro.

Hoje, quando o movimento espírita há dado tão grande passo, vede com que rapidez as idéias de justiça e de renovação, constantes nos ditados espíritas, são aceitas pela parte mediana do mundo inteligente. E que essas idéias correspondem a tudo o que há de divino em vós. E que estais preparados por uma sementeira fecunda: a do século passado, que implantou no seio da sociedade terrena as grandes idéias de progresso. E, como tudo se encadeia sob a direção do Altíssimo, todas as lições recebidas e aceitas virão a encerrar-se na permuta universal do amor ao próximo. Por aí, os Espíritos encarnados, melhor apreciando e sentindo, se estenderão as mãos, de todos os confins do vosso planeta. Uns e outros reunir- se-ão, para se entenderem e amarem, para destruírem todas as injustiças, todas as causas de desinteligências entre os povos.

Grande conceito de renovação pelo Espiritismo, tão bem exposto em O Livro dos Espíritos; tu

produzirás o portentoso milagre do século vindouro, o da harmonização de todos os interesses materiais e espirituais dos homens, pela aplicação deste preceito bem compreendido: "Amai bastante, para serdes amados." Sanson, ex-membro da Sociedade Espírita de Paris. (1863.)

O egoísmo

11. O egoísmo, chaga da Humanidade, tem que desaparecer da Terra, a cujo progresso moral obsta. Ao Espiritismo está reservada a tarefa de fazê-la ascender na hierarquia dos mundos. O egoísmo é, pois, o alvo para o qual todos os verdadeiros crentes devem apontar suas armas, dirigir suas forças, sua coragem. Digo: coragem, porque dela muito mais necessita cada um para vencer-se a si mesmo, do que para vencer os outros. Que cada um, portanto, empregue todos os esforços a combatê-lo em si, certo de que esse monstro devorador de todas as inteligências, esse filho do orgulho é o causador de todas as misérias do mundo terreno. E a negação da caridade e, por conseguinte, o maior obstáculo à felicidade dos homens.

Jesus vos deu o exemplo da caridade e Pôncio Pilatos o do egoísmo, pois, quando o primeiro, o Justo, vai percorrer as santas estações do seu martírio, o outro lava as mãos, dizendo: Que me importa!Animou-se a dizer aos judeus: Este homem é justo, por que o quereis crucificar? E, entretanto, deixa que o conduzam ao suplício.

É a esse antagonismo entre a caridade e o egoísmo, à invasão do coração humano por essa lepra que se deve atribuir o fato de não haver ainda o Cristianismo desempenhado por completo a sua missão. Cabem- vos a vós, novos apóstolos da fé, que os Espíritos superiores esclarecem, o encargo e o dever de extirpar esse mal, a fim de dar ao Cristianismo toda a sua força e desobstruir o caminho dos pedrouços que lhe embaraçam a marcha. Expulsai da Terra o egoísmo para que ela possa subir na escala dos mundos, porquanto já é tempo de a Humanidade envergar sua veste viril, para o que cumpre que primeiramente o expilais dos vossos corações. - Emmanuel. (Paris, 1861.)

12. Se os homens se amassem com mútuo amor, mais bem praticada seria a caridade; mas, para isso, mister fora vos esforçásseis por largar essa couraça que vos cobre os corações, a fim de se tornarem eles mais sensíveis aos sofrimentos alheios. A rigidez mata os bons sentimentos; o Cristo jamais se escusava; não repelia aquele que o buscava, fosse quem fosse: socorria assim a mulher adúltera, como o criminoso; nunca temeu que a sua reputação sofresse por isso. Quando o tomareis por modelo de todas as vossas ações? Se na Terra a caridade reinasse, o mau não imperaria nela; fugiria envergonhado; ocultar--se-ia, visto que em toda parte se acharia deslocado. O mal então desapareceria, ficai bem certos.

Começai vós por dar o exemplo; sede caridosos para com todos indistintamente; esforçai-vos por não atentar nos que vos olham com desdém e deixai a Deus o encargo de fazer toda a justiça, a Deus que todos os dias separa, no seu reino, o joio do trigo.

O egoísmo é a negação da caridade. Ora, sem a caridade não haverá descanso para a sociedade humana.

Digo mais: não haverá segurança. Com o egoísmo e o orgulho, que andam de mãos dadas, a vida será sempre uma carreira em que vencerá o mais esperto, uma luta de interesses, em que se calcarão aos pés as mais santas afeições, em que nem sequer os sagrados laços da família merecerão respeito.Pascal. (Sens, 1862.)

A fé e a caridade

13. Disse-vos, não há muito, meus caros filhos, que a caridade, sem a fé, não basta para manter entre os homens uma ordem social capaz de os tornar felizes. Pudera ter dito que a caridade é impossível sem a fé. Na verdade, impulsos generosos se vos depararão, mesmo entre os que nenhuma religião têm; porém, essa caridade austera, que só com abnegação se pratica, com um constante sacrifício de todo interesse egoístico, somente a fé pode inspirá-la, porquanto só ela dá se possa carregar com coragem e perseverança a cruz da vida terrena.

Sim, meus filhos, é inútil que o homem ávido de gozos procure iludir-se sobre o seu destino nesse mundo, pretendendo ser-lhe licito ocupar-se unicamente com a sua felicidade. Sem dúvida, Deus nos criou para sermos felizes na eternidade; entretanto, a vida terrestre tem que servir exclusivamente ao aperfeiçoamento moral, que mais facilmente se adquire com o auxílio dos órgãos físicos e do mundo material. Sem levar em conta as vicissitudes ordinárias da vida, a diversidade dos gostos, dos pendores e das necessidades, é esse também um meio de vos aperfeiçoardes, exercitando-vos na caridade. Com efeito, só a poder de concessões e sacrifícios mútuos podeis conservar a harmonia entre elementos tão diversos.

Tereis, contudo, razão, se afirmardes que a felicidade se acha destinada ao homem nesse mundo, desde que ele a procure, não nos gozos materiais, sim no bem. A história da cristandade fala de mártires que se encaminhavam alegres para o suplício. Hoje, na vossa sociedade, para serdes cristãos, não se vos faz mister nem o holocausto do martírio, nem o sacrifício da vida, mas única e exclusivamente o sacrifício do vosso egoísmo, do vosso orgulho e da vossa vaidade. Triunfareis, se a caridade vos inspirar e vos sustentar a fé. -

Espírito protetor. (Cracóvia, 1861.)

Caridade para com os criminosos

14. A verdadeira caridade constitui um dos mais sublimes ensinamentos que Deus deu ao mundo. Completa fraternidade deve existir entre os verdadeiros seguidores da sua doutrina. Deveis amar os desgraçados, os criminosos, como criaturas, que são, de Deus, às quais o perdão e a misericórdia serão concedidos, se se arrependerem, como também a vós, pelas faltas que cometeis contra sua Lei. Considerai que sois mais repreensíveis, mais culpados do que aqueles a quem negardes perdão e comiseração, pois, as mais das vezes, eles não conhecem Deus como o conheceis, e muito menos lhes será pedido do que a vós.

Não julgueis, oh! não julgueis absolutamente, meus caros amigos, porquanto o juízo que proferirdes ainda mais severamente vos será aplicado e precisais de indulgência para os pecados em que sem cessar incorreis. Ignorais que há muitas ações que são crimes aos olhos do Deus de pureza e que o mundo nem sequer como faltas leves considera?

A verdadeira caridade não consiste apenas na esmola que dais, nem, mesmo, nas palavras de consolação que lhe aditeis. Não, não é apenas isso o que Deus exige de vós. A caridade sublime, que Jesus ensinou, também consiste na benevolência de que useis sempre e em todas as coisas para com o vosso próximo.

Podeis ainda exercitar essa virtude sublime com relação a seres para os quais nenhuma utilidade terão as vossas esmolas, mas que algumas palavras de consolo, de encorajamento, de amor, conduzirão ao Senhor supremo.

Estão próximos os tempos, repito-o, em que nesse planeta reinará a grande fraternidade, em que os homens obedecerão à lei do Cristo, lei que será freio e esperança e conduzirá as almas às moradas ditosas. Amai-vos, pois, como filhos do mesmo Pai; não estabeleçais diferenças entre os outros infelizes, porquanto quer Deus que todos sejam iguais; a ninguém desprezeis. Permite Deus que entre vós se achem grandes criminosos, para que vos sirvam de ensinamentos. Em breve, quando os homens se encontrarem submetidos às verdadeiras leis de Deus, já não haverá necessidade desses ensinos:todos os Espíritos impuros e revoltados serão relegados para mundos inferiores, de acordo com as suas inclinações.

Deveis, àqueles de quem falo, o socorro das vossas preces: é a verdadeira caridade. Não vos cabe dizer de um criminoso: ~ um miserável; deve-se expurgar da sua presença a Terra; muito branda é, para um ser de tal espécie, a morte que lhe infligem." Não, não é assim que vos compete falar. Observai o vosso modelo: Jesus. Que diria ele, se visse junto de si um desses desgraçados?Lamentá-lo-ia; considerá-lo-ia um doente bem digno de piedade; estender-lhe-ia a mão. Em realidade, não podeis fazer o mesmo; mas, pelo menos, podeis orar por ele, assistir-lhe o Espírito durante o tempo que ainda haja de passar na Terra. Pode ele ser tocado de arrependimento, se orardes com fé. E tanto vosso próximo, como o melhor dos homens; sua alma, transviada e revoltada, foi criada, como a vossa, para se aperfeiçoar; ajudai-o, pois, a sair do lameiro e orai por ele. Elisabeth de França.(Havre, 1862.)

Deve-se expor a vida por um malfeitor?

15. Acha-se em perigo de morte um homem; para o salvar tem um outro que expor a vida. Sabe-se,porém, que aquele é um malfeitor e que, se escapar, poderá cometer novos crimes. Deve, não obstante, o segundo arriscar-se para o salvar?

Questão muito grave é esta e que naturalmente se pode apresentar ao espírito. Responderei, na conformidade do meu adiantamento moral, pois o de que se trata é de saber se se deve expor a vida, mesmo por um malfeitor. O devotamento é cego; socorre-se um inimigo; deve-se, portanto, socorrer o inimigo da sociedade, a um malfeitor, em suma. Julgais que será somente à morte que, em tal caso, se corre a arrancar o desgraçado? E, talvez, a toda a sua vida passada. Imaginai, com efeito, que, nos

rápidos instantes que lhe arrebatam os derradeiros alentos de vida, o homem perdido volve ao seu passado, ou que, antes, este se ergue diante dele. A morte, quiçá, lhe chega cedo demais; a reencarnação poderá vir a ser-lhe terrível. Lançai-vos, então, ó homens; lançai-vos todos vós a quem a ciência espírita esclareceu; lançai-vos, arrancai-o à sua condenação e, talvez, esse homem, que teria morrido a blasfemar, se atirará nos vossos braços. Todavia, não tendes que indagar se o fará, ou não;socorrei-o, porquanto, salvando-o, obedeceis a essa voz do coração, que vos diz: "Podes salvá-lo,salva-o!" - Lamennais. (Paris, 1862.)

[Capítulo XII]

CAPÍTULO XII

AMAI OS VOSSOS INIMIGOS

Retribuir o mal com o bem. - Os inimigos desencarnados - Se alguém vos bater na face direita, apresentai-lhe também a outra. - Instruções dos Espíritos: A vingança. - O ódio. O duelo.

Retribuir o mal com o bem

1.Aprendestes que foi dito: "Amareis o vosso próximo e odiareis os vossos inimigos." Eu, porém, vos digo: "Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam, a fim de serdes filhos do vosso Pai que está nos céus e que faz se levante o Sol para os bons e para os maus e que chova sobre os justos e os injustos. - Porque, se só amardes os que vos amam, qual será a vossa recompensa? Não procedem assim também os publicanos? Se apenas os vossos irmãos saudardes, que é o que com isso fazeis mais do que os outros? Não fazem outro tanto os pagãos?" (S. MATEUS, cap. V, vv. 43 a 47.) - "Digo-vos que, se a vossa justiça não for mais abundante que a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no reino dos céus."(S. MATEUS, cap. V, v. 20.)

2."Se somente amardes os que vos amam, que mérito se vos reconhecerá, uma vez que as pessoas de má vida também amam os que os amam? - Se o bem somente o fizerdes aos que vo-lo fazem, que mérito se vos reconhecerá, dado que o mesmo faz a gente de má vida? - Se só emprestardes àqueles de quem possais esperar o mesmo favor, que mérito se vos reconhecerá, quando as pessoas de má vida se entreajudam dessa maneira, para auferir a mesma vantagem? Pelo que vos toca, amai os vossos inimigos, fazei bem a todos e auxiliai sem esperar coisa alguma.

Então, muito grande será a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo, que é bom para os ingratos e até para os maus. - Sede, pois, cheios de misericórdia, como cheio de misericórdia é o vosso Deus." (S. LUCAS, cap. VI, vv. 32 a 36.)

3. Se o amor do próximo constitui o princípio da caridade, amar os inimigos é a mais sublime aplicação desse princípio, porquanto a posse de tal virtude representa uma das maiores vitórias alcançadas contra o

egoísmo e o orgulho.

Entretanto, há geralmente equívoco no tocante ao sentido da palavra amar, neste passo. Não pretendeu Jesus, assim falando, que cada um de nós tenha para com o seu inimigo a ternura que dispensa a um irmão ou amigo. A ternura pressupõe confiança; ora, ninguém pode depositar confiança numa pessoa, sabendo que esta lhe quer mal; ninguém pode ter para com ela expansões de amizade, sabendo-a capaz de abusar dessa atitude. Entre pessoas que desconfiam umas das outras, não pode haver essas manifestações de simpatia que existem entre as que comungam nas mesmas idéias. Enfim, ninguém pode sentir, em estar com um inimigo, prazer igual ao que sente na companhia de um amigo.

A diversidade na maneira de sentir, nessas duas circunstâncias diferentes, resulta mesmo de uma lei física: a da assimilação e da repulsão dos fluidos. O pensamento malévolo determina uma corrente fluídica que impressiona penosamente. O pensamento benévolo nos envolve num agradável eflúvio. Daí a diferença das sensações que se experimenta à aproximação de um amigo ou de um inimigo. Amar os inimigos não pode, pois, significar que não se deva estabelecer diferença alguma entre eles e os amigos. Se este preceito parece de difícil prática, impossível mesmo, é apenas por entender-sefalsamente que ele manda se dê no coração, assim ao amigo, como ao inimigo, o mesmo lugar. Uma vez que a pobreza da linguagem humana obriga a que nos sirvamos do mesmo termo para exprimir matizes diversos de um sentimento, à razão cabe estabelecer as diferenças, conforme aos casos.

Amar os inimigos não é, portanto, ter-lhes uma afeição que não está na natureza, visto que o contacto de um inimigo nos faz bater o coração de modo muito diverso do seu bater, ao contacto de um amigo. Amar os Inimigos é não lhes guardar ódio, nem rancor, nem desejos de vingança; é perdoar-lhes, sem pensamento oculto e sem condições, o mal que nos causem; é não opor nenhum obstáculo a

reconciliação com eles; é desejar-lhes o bem e não o mal; é experimentar júbilo, em vez de pesar, com o bem que lhes advenha; é socorrê-los, em se apresentando ocasião; é abster-se, quer por palavras, quer por atos, de tudo o que os possa prejudicar; é, finalmente, retribuir-lhes sempre o mal com o bem, sem a intenção de os humilhar. Quem assim procede preenche as condições do mandamento: Amai os vossos inimigos.

4. Amar os inimigos é, para o incrédulo, um contra-senso. Aquele para quem a vida presente é tudo, vê no seu inimigo um ser nocivo, que lhe perturba o repouso e do qual unicamente a morte. pensa ele, o pode livrar. Daí, o desejo de vingar-se. Nenhum interesse tem em perdoar, senão para satisfazer o seu orgulho perante o mundo. Em certos casos, perdoar-lhe parece mesmo uma fraqueza indigna de si. Se não se vingar, nem por isso deixará de conservar rancor e secreto desejo de mal para o outro.

Para o crente e, sobretudo, para o espírita, muito diversa é a maneira de ver, porque suas vistas se lançam sobre o passado e sobre o futuro, entre os quais a vida atual não passa de um simples ponto. Sabe ele que, pela mesma destinação da Terra, deve esperar topar aí com homens maus e perversos; que as maldades com que se defronta fazem parte das provas que lhe cumpre suportar e o elevado ponto de vista em que se coloca lhe torna menos amargas as vicissitudes, quer advenham dos homens, quer das coisas. Se não se queixa das provas, tampouco deve queixar-se dos que lhe servem de instrumento.

Se, em vez de se queixar, agradece a Deus o experimentá-lo, deve também agradecer a mão que lhe dá ensejo de demonstrar a sua paciência e a sua resignação. Esta idéia o dispõe naturalmente ao perdão. Sente, além disso, que quanto mais generoso for. tanto mais se engrandece aos seus próprios olhos e se põe fora do alcance dos dardos do seu inimigo.

O homem que no mundo ocupa elevada posição não se julga ofendido com os insultos daquele a quem considera seu inferior. O mesmo se dá com o que, no mundo moral, se eleva acima da humanidade material. Este compreende que o ódio e o rancor o aviltariam e rebaixariam. Ora, para ser superior ao seu adversário, preciso é que tenha a alma maior, mais nobre, mais generosa do que a desse último.

Os inimigos desencarnados

5.Ainda outros motivos tem o espírita para ser indulgente com os seus inimigos. Sabe ele, primeiramente, que a maldade não é um estado permanente dos homens; que ela decorre de uma imperfeição temporária e que, assim como a criança se corrige dos seus defeitos, o homem mau reconhecerá um dia os seus erros e se tornará bom, Sabe também que a morte apenas o livra da presença material do seu inimigo, pois que este o pode perseguir com o seu ódio, mesmo depois de haver deixado a Terra; que, assim, a vingança, que tome, falha ao seu objetivo, visto que, ao contrário, tem por efeito produzir maior irritação, capaz de passar de uma existência a outra. Cabia ao Espiritismo demonstrar, por meio da experiência e da lei que rege as relações entre o mundo visível e o mundo invisível, que a expressão: extinguir o ódio com o sangue é radicalmente falsa, que a verdade é que o sangue alimenta o ódio, mesmo no além-túmulo. Cabia-lhe,portanto, apresentar uma razão de ser positiva e uma utilidade prática ao perdão e ao preceito do Cristo:Amai os vossos inimigos. Não há coração tão perverso que, mesmo a seu mau grado, não se mostre sensível ao bom proceder. Mediante o bom procedimento, tira- se, pelo menos, todo pretexto às represálias,podendo-se até fazer de um inimigo um amigo, antes e depois de sua morte. Com um mau proceder, o homem irrita o seu inimigo, que então se constitui instrumento de que a justiça de Deus se serve para punir aquele que não perdoou.

6.Pode-se, portanto, contar inimigos assim entre os encarnados, como entre os desencarnados. Os inimigos do mundo invisível manifestam sua malevolência pelas obsessões e subjugações com que tanta gente se vê a braços e que representam um gênero de provações, as quais, como as outras, concorrem para o adiantamento do ser, que, por isso; as deve receber com resignação e como conseqüência da natureza inferior do globo terrestre. Se não houvesse homens maus na Terra, não haveria Espíritos maus ao seu derredor. Se, conseguintemente, se deve usar de benevolência com os inimigos encarnados, do mesmo modo se deve proceder com relação aos que se acham desencarnados.

Outrora, sacrificavam-se vítimas sangrentas para aplacar os deuses infernais, que não eram senão os maus Espíritos. Aos deuses infernais sucederam os demônios, que são a mesma coisa. O Espiritismo demonstra que esses demônios mais não são do que as almas dos homens perversos, que ainda se não despojaram dos instintos materiais; que ninguém logra aplacá-los, senão mediante o sacrifício do ódio existente, isto é, pela caridade; que esta não tem por efeito, unicamente, impedi-los de praticar o mal e, sim, também o de os reconduzir ao caminho do bem e de contribuir para a salvação deles. E assim que o

de praticar alguma; que mais

mandamento: Amai os vossos inimigos não se circunscreve ao âmbito acanhado da Terra e da vida presente; antes, faz parte da grande lei da solidariedade e da fraternidade universais.

Se alguém vos bater na face direita, apresentai-lhe também a outra

7.Aprendestes que foi dito: olho por olho e dente por dente. - Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal que vos queiram fazer; que se alguém vos bater na face direita, lhe apresenteis também a outra; - e que se alguém quiser pleitear contra vós, para vos tomar a túnica, também lhes entregueis o manto; - e que se alguém vos obrigar a caminhar mil passos com ele, caminheis mais dois mil. - Dai àquele que vos pedir e não repilais aquele que vos queira tomar emprestado. (S. MATEUS, cap. V, vv. 38 a 42.)

8.Os preconceitos do mundo sobre o que se convencionou chamar "ponto de honra" produzem essa suscetibilidade sombria, nascida do orgulho e da exaltação da personalidade, que leva o homem a retribuir uma injúria com outra injúria, uma ofensa com outra, o que é tido como justiça por aquele cujo senso moral não se acha acima do nível das paixões terrenas. Por isso é que a lei moisaica prescrevia: olho por olho, dente por dente, de harmonia com a época em que Moisés vivia. Veio o Cristo e disse: Retribui o mal com o bem. E disse ainda: "Não resistais ao mal que vos queiram fazer; se alguém vos bater numa face, apresentai-lhe a outra." Ao orgulhoso este ensino parecerá uma covardia, porquanto ele não compreende que haja mais coragem em suportar um insulto do que em tomar uma vingança, e não compreende, porque sua visão não pode ultrapassar o presente.

Dever-se-á, entretanto, tomar ao pé da letra aquele preceito? Tampouco quanto o outro que manda se arranque o olho, quando for causa de escândalo. Levado o ensino às suas últimas conseqüências, importaria ele em condenar toda repressão, mesmo legal, e deixar livre o campo aos maus, isentando-os de todo e qualquer motivo de temor. Se se lhes não pusesse um freio as agressões, bem depressa todos os bons seriam suas vítimas. O próprio instinto de conservação, que é uma lei da Natureza, obsta a que alguém estenda o pescoço ao assassino. Enunciando, pois, aquela máxima, não pretendeu Jesus interdizer toda defesa, mascondenar a vingança. Dizendo que apresentemos a outra face àquele que nos haja batido numa, disse, sob outra forma, que não se deve pagar o mal com o mal; que o homem deve aceitar com humildade tudo o que seja de molde a lhe abater o orgulho; que maior glória lhe advém de ser ofendido do que de ofender, de suportar pacientemente uma injustiça do que

vale ser enganado do que enganador, arruinado do que arruinar os outros. E, ao mesmo tempo, a condenação do

duelo, que não passa de uma manifestação de orgulho. Somente a fé na vida futura e na justiça de Deus, que jamais deixa impune o mal, pode dar ao homem forças para suportar com paciência os golpes que lhe sejam desferidos nos interesses e no amor-próprio. Daí vem o repetirmos incessantemente: Lançai para diante o olhar; quanto mais vos elevardes pelo pensamento, acima da vida material, tanto menos vos magoarão as coisas da Terra.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A vingança

9. A vingança é um dos últimos remanescentes dos costumes bárbaros que tendem a desaparecer dentre os homens. E, como o duelo, um dos derradeiros vestígios dos hábitos selvagens sob cujos guantes se debatia a Humanidade, no começo da era cristã, razão por que a vingança constitui indício certo do estado de atraso dos homens que a ela se dão e dos Espíritos que ainda as inspirem. Portanto, meus amigos, nunca esse sentimento deve fazer vibrar o coração de quem quer que se diga e proclame espírita. Vingar-se é, bem o sabeis, tão contrário àquela prescrição do Cristo: "Perdoai aos vossos inimigos", que aquele que se nega a perdoar não somente não é espírita como também não é cristão. A vingança é uma inspiração tanto mais funesta, quanto tem por companheiras assíduas a falsidade e a baixeza. Com efeito, aquele que se entrega a essa fatal e cega paixão quase nunca se vinga a céu aberto. Quando é ele o mais forte, cai qual fera sobre o outro a quem chama seu inimigo, desde que a presença deste último lhe inflame a paixão, a cólera, o ódio. Porém, as mais das vezes assume aparências hipócritas, ocultando nas profundezas do coração os maus sentimentos que o animam. Toma caminhos escusos, segue na sombra o inimigo, que de nada desconfia, e espera o momento azado para sem perigo feri-lo. Esconde-se do outro, espreitando-o de contínuo, prepara-lhe odiosas armadilhas e, em sendo propícia a ocasião, derrama-lhe no copo o veneno, Quando seu ódio não chega a tais extremos, ataca-o então na honra e nas afeições; não recua diante da calúnia, e suas pérfidas insinuações, habilmente espalhadas a todos os ventos, se vão avolumando pelo caminho. Em conseqüência, quando o perseguido se apresenta nos lugares por onde passou o sopro do perseguidor,espanta-se de dar com semblantes frios, em vez de fisionomias amigas e benevolentes que outrora o acolhiam. Fica estupefato quando mãos que se lhe estendiam, agora se recusam a apertar as suas. Enfim, sente-se aniquilado, ao verificar que os seus mais caros amigos e parentes se afastam e o evitam, Ah! o covarde que se vinga assim é cem vezes mais culpado do que o que enfrenta o seu inimigo e o insulta em plena face.

Fora, pois, com esses costumes selvagens! Fora com esses processos de outros tempos! Todo espírita que ainda hoje pretendesse ter o direito de vingar-se seria indigno de figurar por mais tempo na falange que tem como divisa: Sem caridade não há salvação! Mas, não, não posso deter-me a pensar que um membro da grande família espírita ouse jamais, de futuro, ceder ao impulso da vingança, senão para perdoar. - Júlio Olivier. (Paris, 1862.)

O ódio

10. Amai-vos uns aos outros e sereis felizes. Tomai sobretudo a peito amar os que vos inspiram indiferença, ódio, ou desprezo. O Cristo, que deveis considerar modelo, deu-vos o exemplo desse devotamento, Missionário do amor, ele amou até dar o sangue e a vida por amor, Penoso vos é o sacrifício de amardes os que vos ultrajam e perseguem; mas, precisamente, esse sacrifício é que vos torna superiores a eles. Se os odiásseis, como vos odeiam, não valeríeis mais do que eles. Amá-los é a hóstia imácula que ofereceis a Deus na ara dos vossos corações, hóstia de agradável aroma e cujo perfume lhe sobe até o seio. Se bem a lei de amor mande que cada um ame indistintamente a todos os seus irmãos, ela não couraça o coração contra os maus procederes; esta é, ao contrário, a prova mais angustiosa, e eu o sei bem, porquanto, durante a minha última existência terrena, experimentei essa tortura. Mas Deus lá está e pune nesta vida e na outra os que violam a lei de amor. Não esqueçais, meus queridos filhos, que o amor aproxima de Deus a criatura e o ódio a distancia dele. - Fénelon,(Bordéus,

1861.)

O duelo

11. Só é verdadeiramente grande aquele que, considerando a vida uma viagem que o há de conduzir a determinado ponto, pouco caso faz das asperezas da jornada e não deixa que seus passos se desviem do caminho reto. Com o olhar constantemente dirigido para o termo a alcançar, nada lhe importa que as urzes e os espinhos ameacem produzir-lhe arranhaduras; umas e outros lhe roçam a epiderme, sem o ferirem, nem impedirem de prosseguir na caminhada. Expor seus dias para se vingar de uma injúria é recuar diante das provações da vida, é sempre um crime aos olhos de Deus; e, se não fôsseis, como sois, iludidos pelos vossos prejuízos, tal coisa seria ridícula e uma suprema loucura aos olhos dos homens.

Há crime no homicídio em duelo; a vossa própria legislação o reconhece. Ninguém tem o direito, em caso algum, de atentar contra a vida de seu semelhante: é um crime aos olhos de Deus, que vos traçou a linha de conduta que tendes de seguir. Nisso, mais do que em qualquer outra circunstância, sois juizes em causa própria. Lembrai-vos de que somente vos será perdoado, conforme perdoardes; pelo perdão vos acercais da Divindade, pois a clemência e irmã do poder. Enquanto na Terra correr uma gota de sangue humano, vertida pela mão dos homens, o verdadeiro reino de Deus ainda se não terá implantado aí, reino de paz e de amor, que há de banir para sempre do vosso planeta a animosidade, a discórdia, a guerra. Então, a palavra duelo somente existirá na vossa linguagem como longínqua e vaga recordação de um passado que se foi. Nenhum outro antagonismo existirá entre os homens, afora a nobre rivalidade do bem. - Adolfo, bispo de Argel. (Marmande, 1861.)

12. Em certos casos, sem dúvida, pode o duelo constituir uma prova de coragem física, de desprezo pela vida, mas também é, incontestavelmente, uma prova de covardia moral, como o suicídio. O suicida não tem coragem de enfrentar as vicissitudes da vida; o duelista não tem a de suportar as ofensas, Não vos disse o Cristo que há mais honra e valor em apresentar a face esquerda aquele que bateu na direita, do que em vingar uma injúria? Não disse ele a Pedro, no jardim das Oliveiras: "Mete a tua espada na bainha, porquanto aquele que matar com a espada perecerá pela espada?" Assim falando, não condenou, para sempre, o duelo? Efetivamente, meus filhos, que é essa coragem oriunda de um gênio violento, de um temperamento sangüíneo e colérico, que ruge à primeira ofensa? Onde a grandeza dalma daquele que, à menor injúria, entende que só com sangue a poderá lavar? Ah! que ele trema! No fundo da sua consciência, uma voz lhe bradará sempre: Caim! Caim! que fizeste de teu irmão? Foi-me necessário derramar sangue para salvar a minha honra, responderá ele a essa voz, Ela, porem, retrucará: Procuraste salvá-la perante os homens, por alguns instantes que te restavam de vida na Terra, e não pensaste em salvá-la perante Deus! Pobre louco! Quanto sangue exigiria de vós o Cristo, por todos os ultrajes que recebeu! Não só o feristes com os espinhos e a lança, não só o pregastes num madeiro infamante, como também o fizestes ouvir, em meio de sua agonia atroz, as zombarias que lhe prodigalizastes, Que reparação a tantos insultos vos pediu ele? O último brado do cordeiro foi unia súplica em favor dos seus algozes! Oh! como ele, perdoai e oral pelos que vos ofendem.

Amigos, lembrai-vos deste preceito: "Amai-vos uns aos outros" e, então, a um golpe desferido pelo ódio respondereis com um Sorriso, e ao ultraje com o perdão. O mundo, sem dúvida, se levantará furioso e vos tratará de covardes; erguei bem alto a fronte e mostrai que também ela se não temeria decingir-se de

espinhos, a exemplo do Cristo, mas, que a vossa mão não quer ser cúmplice de um assassínio autorizado por falsos ares de honra, que, entretanto, não passa de orgulho e amor-próprio. Dar-se-á que, ao criar- vos, Deus vos outorgou o direito de vida e de morte, uns sobre os outros? Não, só à Natureza conferiu ele esse direito, para se reformar e reconstruir; quanto a vós, não permite, sequer, que disponhais de vós mesmos. Como o suicida, o duelista se achará marcado com sangue, quando comparecer perante Deus, e a um e outro o Soberano Juiz reserva rudes e longos castigos. Se ele ameaçou com a sua justiça aquele que disser raca a seu irmão, quão mais severa não será a pena que comine ao que chegar à sua presença com as mãos tintas do sangue de seu irmão! - Santo Agostinho. (Paris, 1862.)

13. O duelo, como o que outrora se denominava o juízo de Deus, é uma das instituições bárbaras que ainda regem a sociedade. Que diríeis, no entanto, se vísseis dois adversários mergulhados em água fervente ou submetidos ao contacto de um ferro em brasa, para ser dirimida a contenda entre eles,reconhecendo-se estar a razão com aquele que melhor sofresse a prova? Qualificaríeis de insensatos esses costumes, não é exato? Pois o duelo é coisa pior do que tudo isso. Para o duelista destro, é um assassínio praticado a sangue frio, com toda a premeditação que possa haver, uma vez que ele está certo da eficácia do golpe que desfechará. Para o adversário, quase certo de sucumbir em virtude de sua fraqueza e inabilidade, é um suicídio cometido com a mais fria reflexão, Sei que muitas vezes se procura evitar essa alternativa igualmente criminosa, confiando ao acaso a questão: - mas, não é isso voltar, sob outra forma, ao juízo de Deus, da Idade Média? E nessa época infinitamente menor era a culpa.

A própria denominação de juízo de Deus indica a fé, ingênua, é verdade, porém, afinal, fé na justiça de Deus, que não podia consentir sucumbisse um inocente, ao passo que, no duelo, tudo se confia à força bruta, de tal sorte que não raro é o ofendido que sucumbe.

Ó estúpido amor-próprio, tola vaidade e louco orgulho, quando sereis substituídos pela caridade cristã, pelo amor do próximo e pela humildade que o Cristo exemplificou e preceituou? Só quando isso se der desaparecerão esses preceitos monstruosos que ainda governam os homens, e que as leis são impotentes para reprimir, porque não basta interditar o mal e prescrever o bem; é preciso que o princípio do bem e o horror ao mal morem no coração do homem. - Um Espírito protetor. (Bordéus, 1861.)

14. Que juízo farão de mim, costumais dizer, se eu recusar a reparação que se me exige, ou se não a reclamar de quem me ofendeu? Os loucos, como vós, os homens atrasados vos censurarão; mas, os que se acham esclarecidos pelo facho do progresso intelectual e moral dirão que procedeis de acordo com a verdadeira sabedoria. Refleti um pouco. Por motivo de uma palavra dita às vezes impensadamente, ou inofensiva, vinda de um dos vossos irmãos, o vosso orgulho se sente ferido, respondeis de modo acre e daí uma provocação. Antes que chegue o momento decisivo, inquiris de vós mesmos se procedeis como cristãos? Que contas ficareis devendo à sociedade, por a privardes de um de seus membros? Pensastes no remorso que vos assaltará, por haverdes roubado a uma mulher o marido, a uma mãe o filho, ao filho o pai que lhes servia de amparo? Certamente, o autor da ofensa deve uma reparação; porém, não lhe será mais honroso dá-la espontaneamente, reconhecendo suas faltas, do que expor a vida daquele que tem o direito de se queixar? Quanto ao ofendido, convenho em que, algumas vezes, por ele achar-se gravemente ferido, ou em sua' pessoa, ou nas dos que lhe são mais caros, não está em jogo somente o amor-próprio: o coração se acha magoado, sofre.

Mas, além de ser estúpido arriscar a vida, lançando-se contra um miserável capaz de praticar infâmias, dar-se-á que, morto este, a afronta, qualquer que seja, deixa de existir? Não é exato que o sangue derramado imprime retumbância maior a um fato que, se falso, cairia por si mesmo, e que, se verdadeiro, deve ficar sepultado no silêncio? Nada mais restará, pois, senão a satisfação da sede de vingança. Ah! triste satisfação que quase sempre dá lugar, já nesta vida, a causticantes remorsos. Se é o ofendido que sucumbe, onde a reparação?

Quando a caridade regular a conduta dos homens, eles conformarão seus atos e palavras a esta máxima: "Não façais aos outros o que não quiserdes que vos façam." Em se verificando isso, desaparecerão todas as causas de dissensões e, com elas, as dos duelos e das guerras, que são os duelos de povo a povo. -

Francisco Xavier, (Bordéus, 1861.)

15.O homem do mundo, o homem venturoso, que por uma palavra chocante, uma coisa ligeira, joga a vida que lhe veio de Deus, joga a vida do seu semelhante, que só a Deus pertence, esse é cem vezes mais culpado do que o miserável que, impelido pela cupidez, algumas vezes pela necessidade, se introduz numa habitação para roubar e matar os que se lhe opõem aos desígnios. Trata-se quase sempre de uma criatura sem educação, com imperfeitas noções do bem e do mal, ao passo que o duelista pertence, em regra, à classe mais culta. Um mata brutalmente, enquanto que o outro o faz com método e polidez, pelo que a sociedade o desculpa. Acrescentarei mesmo que o duelista é infinitamente mais culpado do que o desgraçado que, cedendo a um sentimento de vingança, mata num momento de exasperação. O duelista não tem por escusa o arrebatamento da paixão, pois que, entre o insulto e a reparação, dispõe ele sempre de tempo para refletir. Age, portanto, friamente e com premeditado desígnio; estuda e calcula tu do, para com mais segurança matar o seu adversário. E certo que também expõe a vida e é isso o que reabilita o duelo aos olhos do mundo, que nele então só vê um ato de coragem e pouco caso da vida. Mas, haverá coragem da parte daquele que está seguro de si? O duelo, remanescente dos tempos de barbárie, em os quais o direito do mais forte constituía a lei, desaparecerá por efeito de uma melhor apreciação do verdadeiro ponto de honra e à medida que o homem for depositando fé mais viva na vida futura. - Agostinho. (Bordéus, 1861.)

16.NOTA. Os duelos se vão tornando cada vez mais raros e, se de tempos a tempos alguns de tão dolorosos exemplos se dão, o número deles não se pode comparar com o dos que ocorriam outrora. Antigamente, um homem não saía de casa sem prever um encontro, pelo que tomava sempre as necessárias precauções. Um sinal característico dos costumes do tempo e dos povos se nos depara no porte habitual, ostensivo ou oculto, de armas ofensivas ou defensivas. A abolição de semelhante uso demonstra o abrandamento dos costumes e é curioso acompanhar-lhes a gradação, desde a época em que os cavaleiros só cavalgavam bardados de ferro e armados de lança, até a em que uma simples espada à cinta constituía mais um adorno e um acessório do brasão, do que uma arma de agressão. Outro indício da modificação dos costumes está em que, outrora, os combates singulares se empenhavam em plena rua, diante da turba, que se afastava para deixar livre o campo aos combatentes, ao passo que estes hoje se ocultam. Presentemente, a morte de um homem é acontecimento que causa emoção, enquanto que, noutros tempos, ninguém dava atenção a isso.

O Espiritismo apagará esses últimos vestígios da barbárie, incutindo nos homens o espírito de caridade e de fraternidade.

[Capítulo XIII]

CAPÍTULO XIII

NÃO SAIBA A VOSSA MÃO ESQUERDA O QUE DÊ A VOSSA MÃO DIREITA

Fazer o bem sem ostentação. - Os infortúnios ocultos. - Óbolo da viúva. - Convidar os pobres e os estropiados. Dar sem esperar retribuição. - Instruções dos Espíritos: A caridade material e a caridade moral. - A beneficência. A piedade. - Os órfãos. - Benefícios pagos com a ingratidão. - Beneficência exclusiva.

Fazer o bem sem ostentação

1.Tende cuidado em não praticar as boas obras diante dos homens, para serem vistas, pois, do contrário, não recebereis recompensa de vosso Pai que está nos céus. -Assim, quando derdes esmola, não trombeteeis, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Digo-vos, em verdade, que eles já receberam sua recompensa. - Quando derdes esmola, não saiba a vossa mão esquerda o que faz a vossa mão direita; - a fim de que a esmola fique em segredo, e vosso Pai, que vê o que se passa em segredo, vos recompensará. - (S. MATEUS, cap. VI, vv. 1 a 4.)

2.Tendo Jesus descido do monte, grande multidão o seguiu. - Ao mesmo tempo, um leproso veio ao seu encontro e o adorou, dizendo: Senhor, se quiseres, poderás curar-me. - Jesus, estendendo a mão, o tocou e disse: Quero-o, fica curado; no mesmo instante desapareceu a lepra. - Disse-lhe então Jesus: abstém-te de falar disto a quem quer que seja; mas, vai mostrar-te aos sacerdotes e oferece o dom prescrito por Moisés, a fim de que lhes sirva de prova. (S. MATEUS, cap. VIII, vv.

1a 4.)

3.Em fazer o bem sem ostentação há grande mérito; ainda mais meritório é ocultar a mão que dá; constitui marca incontestável de grande superioridade moral, porquanto, para encarar as coisas de mais alto do que o faz o vulgo, mister se torna abstrair da vida presente e identificar-se com a vida futura; numa palavra, colocar-se acima da Humanidade, para renunciar à satisfação que advém do testemunho dos homens e esperar a aprovação de Deus. Aquele que prefere ao de Deus o sufrágio dos homens prova que mais fé deposita nestes do que na Divindade e que mais valor dá à vida presente do que à futura. Se diz o contrário, procede como se não cresse no que diz.

Quantos há que só dão na esperança de que o que recebe irá bradar por toda a parte o benefício recebido! Quantos os que, de público, dão grandes somas e que, entretanto, às ocultas, não dariam uma só moeda!

Foi por isso que Jesus declarou: "Os que fazem o bem ostentosamente já receberam sua recompensa." Com efeito, aquele que procura a sua própria glorificação na Terra, pelo bem que pratica, já se pagou a si mesmo; Deus nada mais lhe deve; só lhe resta receber a punição do seu orgulho.

Não saber a mão esquerda o que dá a mão direita é uma imagem que caracteriza admiravelmente a beneficência modesta. Mas, se há a modéstia real, também há a falsa modéstia, o simulacro da modéstia. Há pessoas que ocultam a mão que dá, tendo, porém, o cuidado de deixar aparecer um pedacinho, olhando em volta para verificar se alguém não o terá visto ocultá-la. Indigna paródia das máximas do Cristo! Se os benfeitores orgulhosos são depreciados entre os homens, que não será perante Deus? Também esses já receberam na Terra sua recompensa. Foram vistos; estão satisfeitos por terem sido vistos. E tudo o que terão.

E qual poderá ser a recompensa do que faz pesar os seus benefícios sobre aquele que os recebe, que lhe impõe, de certo modo, testemunhos de reconhecimento, que lhe faz sentir a sua posição, exaltando o preço dos sacrifícios a que se vota para beneficiá-lo? Oh! para esse, nem mesmo a recompensa terrestre existe, porquanto ele se vê privado da grata satisfação de ouvir bendizer-lhe do nome e é esse o primeiro castigo do seu orgulho. As lágrimas que seca por vaidade, em vez de subirem ao Céu, recaíram sobre o coração do aflito e o ulceraram. Do bem que praticou nenhum proveito lhe resulta, pois que ele o deplora, e todo benefício deplorado é moeda falsa e sem valor.

A beneficência praticada sem ostentação tem duplo mérito. Além de ser caridade material, é caridade moral, visto que resguarda a suscetibilidade do beneficiado, faz-lhe aceitar o benefício, sem que seu amor-próprio se ressinta e salvaguardando-lhe a dignidade de homem, porquanto aceitar um serviço é coisa bem diversa de receber uma esmola. Ora, converter em esmola o serviço, pela maneira de prestá- lo, é humilhar o que o recebe, e, em humilhar a outrem, há sempre orgulho e maldade. A verdadeira caridade, ao contrário, é delicada e engenhosa no dissimular o benefício, no evitar até as simples aparências capazes de melindrar, dado que todo atrito moral aumenta o sofrimento que se origina da necessidade. Ela sabe encontrar palavras brandas e afáveis que colocam o beneficiado à vontade em presença do benfeitor, ao passo que a caridade orgulhosa o esmaga. A verdadeira generosidade adquire toda a sublimidade, quando o benfeitor, invertendo os papéis, acha meios de figurar como beneficiado diante daquele a quem presta serviço. Eis o que significam estas palavras: "Não saiba a mão esquerda o que dá a direita."

Os infortúnios ocultos

4. Nas grandes calamidades, a caridade se emociona e observam-se impulsos generosos, no sentido de reparar os desastres. Mas, a par desses desastres gerais, há milhares de desastres particulares, que passam despercebidos: os dos que jazem sobre um grabato sem se queixarem. Esses infortúnios discretos e ocultos são os que a verdadeira generosidade sabe descobrir, sem esperar que peçam assistência.

Quem é esta mulher de ar distinto, de traje tão simples, embora bem cuidado, e que traz em sua companhia uma mocinha tão modestamente vestida? Entra numa casa de sórdida aparência, onde sem

dúvida é conhecida, pois que à entrada a saúdam respeitosamente. Aonde vai ela? Sobe até a mansarda, onde jaz uma mãe de família cercada de crianças. À sua chegada, refulge a alegria naqueles rostos emagrecidos. E que ela vai acalmar ali todas as dores. Traz o de que necessitam, condimentado de meigas e consoladoras palavras, que fazem que os seus protegidos, que não são profissionais da mendicância, aceitem o benefício, sem corar. O pai está no hospital e, enquanto lá permanece, a mãe não consegue com o seu trabalho prover às necessidades da família. Graças à boa senhora, aquelas pobres crianças não mais sentirão frio, nem fome; irão à escola agasalhadas e, para as menorzinhas, o leite não secará no seio que as amamenta. Se entre elas alguma adoece, não lhe repugnarão a ela, à boa dama, os cuidados materiais de que essa necessite. Dali vai ao hospital levar ao pai algum reconforto e tranqüilizá- lo sobre a sorte da família. No canto da rua, uma carruagem a espera, verdadeiro armazém de tudo o que destina aos seus protegidos, que todos lhe recebem sucessivamente a visita. Não lhes pergunta qual a crença que professam, nem quais suas opiniões, pois considera como seus irmãos e filhos de Deus todos os homens. Terminado o seu giro, diz de si para consigo: Comecei bem o meu dia. Qual o seu nome? Onde mora? Ninguém o sabe. Para os infelizes, é um nome que nada indica; mas é o anjo da consolação. A noite, um concerto de benções se eleva em seu favor ao Pai celestial: católicos, judeus, protestantes, todos a bendizem.

Por que tão singelo traje? Para não insultar a miséria com o seu luxo. Por que se faz acompanhar da filha? Para que aprenda como se deve praticar a beneficência. A mocinha também quer fazer a caridade. A mãe, porém, lhe diz: "Que podes dar, minha filha, quando nada tens de teu? Se eu te passar às mãos alguma coisa para que dês a outrem, qual será o teu mérito? Nesse caso, em realidade, serei eu quem faz a caridade; que merecimento terias nisso? Não é justo. Quando visitamos os doentes, tu me ajudas a tratá-los. Ora, dispensar cuidados é dar alguma coisa. Não te parece bastante isso? Nada mais simples. Aprende a fazer obras úteis e confeccionarás roupas para essas criancinhas. Desse modo, darás alguma coisa que vem de ti." É assim que aquela mãe verdadeiramente cristã prepara a filha para a prática das virtudes que o Cristo ensinou. É espírita ela? Que importa!

Em casa, é a mulher do mundo, porque a sua posição o exige. Ignoram, porém, o que faz, porque ela não deseja outra aprovação, além da de Deus e da sua consciência. Certo dia, no entanto, imprevista circunstância leva-lhe a casa uma de suas protegidas, que andava a vender trabalhos executados por suas mãos. Esta última, ao vê-la, reconheceu nela a sua benfeitora. "Silêncio! ordena-lhe a senhora.Não o digas a ninguém." Falava assim Jesus.

O óbolo da viúva

5. Estando Jesus sentado defronte do gazofilácio, a observar de que modo o povo lançava ali o dinheiro, viu que muitas pessoas ricas o deitavam em abundância. - Nisso, veio também uma pobre que apenas deitou duas pequenas moedas do valor de dez centavos cada uma. - Chamando então seus discípulos, disse-lhes: Em verdade vos digo que esta pobre viúva deu muito mais do que todos os que antes puseram suas dádivas no gazofilácio; - por isso que todos os outros deram do que lhes abunda, ao passo que ela deu do que lhe faz falta, deu mesmo tudo o que tinha para seu sustento. (SÃO MARCOS, cap. XII, vv. 41 a 44. - S. LUCAS, cap. XXI. vv. 1 a 4.)

6. Multa gente deplora não poder fazer todo o bem que desejara, por falta de recursos suficientes, e, se desejam possuir riquezas, é, dizem, para lhes dar boa aplicação. E sem dúvida louvável a intenção e pode até nalguns ser sincera. Dar-se-á, contudo, seja completamente desinteressada em todos? Não haverá quem, desejando fazer bem aos outros, muito estimaria poder começar por fazê-lo a si próprio, por proporcionar a si mesmo alguns gozos mais, por usufruir de um pouco do supérfluo que lhe falta, pronto a dar aos pobres o resto? Esta segunda intenção, que esses tais porventura dissimulam aos seus próprios olhos, mas que se lhes depararia no fundo dos seus corações, se eles os perscrutassem, anula o mérito do intento, visto que, com a verdadeira caridade, o homem pensa nos outros antes de pensar em si. O ponto sublimado da caridade, nesse caso, estaria em procurar ele no seu trabalho, pelo emprego de suas forças, de sua inteligência, de seus talentos, os recursos de que carece para realizar seus generosos propósitos. Haveria nisso o sacrifício que mais agrada ao Senhor. infelizmente, a maioria vive a sonhar com os meios de mais facilmente se enriquecer de súbito e sem esforço, correndo atrás de quimeras, quais a descoberta de tesouros, de uma favorável ensancha aleatória, do recebimento de inesperadas heranças, etc. Que dizer dos que esperam encontrar nos Espíritos auxiliares que os secundem na consecução de tais objetivos? Certamente não conhecem, nem compreendem a sagrada finalidade do Espiritismo e, ainda menos, a missão dos Espíritos a quem Deus permite se comuniquem com os homens. Daí vem o serem punidos pelas decepções. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, nº 294 e nº 295.) Aqueles cuja intenção está isenta de qualquer idéia pessoal, devem consolar-se da impossibilidade em que se vêem de fazer todo o bem que desejariam,lembrando-se de que o óbolo do pobre, do que dá privando-se do necessário, pesa mais na balança de Deus do que o ouro do rico que dá sem se privar de coisa alguma. Grande seria realmente a satisfação do primeiro, se pudesse socorrer, em larga escala, a indigência; mas, se essa satisfação lhe é negada,submeta-se e se limite a fazer o que possa. Aliás, será só com o dinheiro que se podem secar lágrimas e dever-se-á ficar inativo, desde que se não tenha dinheiro? Todo aquele que sinceramente deseja ser útil a seus irmãos, mil ocasiões encontrará de realizar o seu desejo. Procure-as e elas se lhe depararão; se não for de um modo, será de outro, porque ninguém há que, no pleno gozo de suas faculdades, não possa prestar um serviço qualquer, prodigalizar um consolo, minorar um sofrimento físico ou moral, fazer um esforço útil. Não dispõem todos, à falta de dinheiro, do seu trabalho, do seu tempo, do seu repouso, para de tudo isso dar uma parte ao próximo? Também aí está a dádiva do pobre, o óbolo da viúva.

Convidar os pobres e os estropiados. Dar sem esperar retribuição

7. Disse também àquele que o convidara: Quando derdes um jantar ou uma ceia, não convideis nem os vossos amigos, nem os vossos irmãos, nem os vossos parentes, nem os vossos vizinhos que forem ricos, para que em seguida não vos convidem a seu turno e assim retribuam o que de vós receberam. - Quando derdes um festim, convidai para ele os pobres, os estropiados, os coxos e os cegos. - E sereis ditosos por não terem eles meios de vo-lo retribuir, pois isso será retribuído na ressurreição dos justos.

Um dos que se achavam à mesa, ouvindo essas palavras, disse-lhe: Feliz do que comer do pão no reino de Deus! (S. LUCAS, cap. XIV, vv. 12 a 15.)

8. "Quando derdes um festim, disse Jesus, não convideis para ele os vossos amigos, mas os pobres e os estropiados." Estas palavras, absurdas, se tomadas ao pé da letra, são sublimes, se lhes buscarmos o espírito. Não é possível que Jesus haja pretendido que, em vez de seus amigos, alguém reúna à sua mesa os mendigos da rua. Sua linguagem era quase sempre figurada e, para os homens incapazes de apanhar os delicados matizes do pensamento, precisava servir-se de imagens fortes, que produzissem o efeito de um colorido vivo. O âmago do seu pensamento se revela nesta proposição: "E sereis ditosos por não terem eles meios de vo-lo retribuir." Quer dizer que não se deve fazer o bem tendo em vista uma retribuição, mas tão-só pelo prazer de o praticar. Usando de uma comparação vibrante, disse: Convidai para os vossos festins os pobres, pois sabeis que eles nada vos podem retribuir. Porfestins deveis entender, não os repastos propriamente ditos, mas a participação na abundância de que desfrutais.

Todavia, aquela advertência também pode ser aplicada em sentido mais literal. Quantos não convidam para suas mesas apenas os que podem, como eles dizem, fazer-lhes honra, ou, a seu turno, convidá-los!Outros, ao contrário, encontram satisfação em receber os parentes e amigos menos felizes. Ora, quem não os conta entre os seus? Dessa forma, grande serviço, às vezes, se lhes presta, sem que o pareça. Aqueles, sem irem recrutar os cegos e os estropiados, praticam a máxima de Jesus, se o fazem por benevolência, sem ostentação, e sabem dissimular o benefício, por meio de uma sincera cordialidade.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A caridade material e a caridade moral

9. "Amemo-nos uns aos outros e façamos aos outros o que quereríamos nos fizessem eles." Toda a religião, toda a moral se acham encerradas nestes dois preceitos. Se fossem observados nesse mundo, todos seríeis felizes: não mais aí ódios, nem ressentimentos. Direi ainda: não mais pobreza, porquanto, do supérfluo da mesa de cada rico, muitos pobres se alimentariam e não mais veríeis, nos quarteirões sombrios onde habitei durante a minha última encarnação, pobres mulheres arrastando consigo miseráveis crianças a quem tudo faltava.

Ricos! pensai nisto um pouco. Auxiliai os infelizes o melhor que puderdes. Dai, para que Deus, um dia, vos retribua o bem que houverdes feito, para que tenhais, ao sairdes do vosso invólucro terreno, um cortejo de Espíritos agradecidos, a receber-vos no limiar de um mundo mais ditoso.

Se pudésseis saber da alegria que experimentei ao encontrar no Além aqueles a quem, na minha última

existência, me fora dado servir!...

Amai, portanto, o vosso próximo; amai-o como a vós mesmos, pois já sabeis, agora, que, repelindo um desgraçado, estareis, quiçá, afastando de vós um irmão, um pai, um amigo vosso de outrora. Se assim for, de que desespero não vos sentireis presa, ao reconhecê-lo no mundo dos Espíritos!

Desejo compreendais bem o que seja a caridade moral, que todos podem praticar, que nada custa, materialmente falando, porém, que é a mais difícil de exercer-se.

A caridade moral consiste em se suportarem umas às outras as criaturas e é o que menos fazeis nesse mundo inferior, onde vos achais, por agora, encarnados. Grande mérito há, crede-me, em um homem saber calar-se, deixando fale outro mais tolo do que ele. É um gênero de caridade isso. Saber ser surdo quando uma palavra zombeteira se escapa de uma boca habituada a escarnecer; não ver o sorriso de desdém com que vos recebem pessoas que, muitas vezes erradamente, se supõem acima de vós, quando na vida espírita, a única real, estão, não raro, muito abaixo, constitui merecimento, não do ponto de vista da humildade, mas do da caridade, porquanto não dar atenção ao mau proceder de ou trem é caridade moral.

Essa caridade, no entanto, não deve obstar à outra. Tende, porém, cuidado, principalmente em não tratar com desprezo o vosso semelhante. Lembrai-vos de tudo o que já vos tenho dito: Tende presente sempre que, repelindo um pobre, talvez repilais um Espírito que vos foi caro e que, no momento, se encontra em posição inferior à vossa. Encontrei aqui um dos pobres da Terra, a quem, por felicidade, eu pudera auxiliar algumas vezes, e ao qual, a meu turno, tenho agora de implorar auxilio.

Lembrai-vos de que Jesus disse que todos somos irmãos e pensai sempre nisso, antes de repelirdes o leproso ou o mendigo. Adeus: pensai nos que sofrem e orai. Irmã Rosália. (Paris, 1860.)

10. Meus amigos, a muitos dentre vós tenho ouvido dizer: Como hei de fazer caridade, se amiúde nem mesmo do necessário disponho?

Amigos, de mil maneiras se faz a caridade. Podeis fazê-la por pensamentos, por palavras e por ações. Por pensamentos, orando pelos pobres abandonados, que morreram sem se acharem sequer em condições de ver a luz. Uma prece feita de coração os alivia. Por palavras, dando aos vossos companheiros de todos os dias alguns bons conselhos, dizendo aos que o desespero, as privações azedaram o ânimo e levaram a blasfemar do nome do Altíssimo: "Eu era como sois; sofria, sentia-me desgraçado, mas acreditei no Espiritismo e, vede, agora, sou feliz." Aos velhos que vos disserem: "É inútil; estou no fim da minha jornada; morrerei como vivi", dizei: "Deus usa de justiça igual para com todos nós; lembrai-vos dos obreiros da última hora." As crianças já viciadas pelas companhias de que se cercaram e que vão pelo mundo, prestes a sucumbir às más tentações, dizei: "Deus vos vê, meus caros pequenos", e não vos canseis de lhes repetir essas brandas palavras. Elas acabarão por lhes germinar nas inteligências infantis e, em vez de vagabundos, fareis deles homens. Também isso é caridade.

Dizem, outros dentre vós: "Ora! somos tão numerosos na Terra, que Deus não nos pode ver a todos." Escutai bem isto, meus amigos: Quando estais no cume da montanha, não abrangeis com o olhar os bilhões de grãos de areia que a cobrem? Pois bem: do mesmo modo vos vê Deus. Ele vos deixa usar do vosso livre-arbítrio, como vós deixais que esses grãos de areia se movam ao sabor do vento que os dispersa. Apenas, Deus, em sua misericórdia infinita, vos pôs no fundo do coração uma sentinela vigilante, que se chama consciência. Escutai-a, que somente bons conselhos ela vos dará. As vezes, conseguis entorpecê-la, opondo-lhe o espírito do mal. Ela, então, se cala. Mas, ficai certos de que a pobre escorraçada se fará ouvir, logo que lhe deixardes aperceber-se da sombra do remorso. Ouvi-a,interrogai-a e com freqüência vos achareis consolados com o conselho que dela houverdes recebido.

Meus amigos, a cada regimento novo o general entrega um estandarte. Eu vos dou por divisa esta máxima do Cristo: "Amai-vos uns aos outros." Observai esse preceito, reuni-vos todos em torno dessa bandeira e tereis ventura e consolação. - Um Espírito protetor. (Lião, 1860.)

A beneficência

11.A beneficência, meus amigos, dar-vos-á nesse mundo os mais puros e suaves deleites, as alegrias do coração, que nem o remorso, nem a indiferença perturbam. Oh! pudésseis compreender tudo o que de grande e de agradável encerra a generosidade das almas belas, sentimento que faz olhe a criatura as outras como olha a si mesma, e se dispa, jubilosa, para vestir o seu irmão! Pudésseis, meus amigos, ter por única ocupação tornar felizes os outros! Quais as festas mundanas que podereis comparar às que celebrais quando, como representantes da Divindade, levais a alegria a essas famílias que da vida apenas conhecem as vicissitudes e as amarguras, quando vedes nelas os semblantes macerados refulgirem subitamente de esperança, porque, faltos de pão, os desgraçados ouviam seus filhinhos, ignorantes de que viver é sofrer, gritando repetidamente, a chorar, estas palavras, que, como agudo punhal, se lhes enterravam nos corações maternos: "Estou com fome!..." Oh! compreendei quão deliciosas são as impressões que recebe aquele que vê renascer a alegria onde, um momento antes, só havia desespero! Compreendei as obrigações que tendes para com os vossos irmãos! Ide, ide ao encontro do infortúnio; ide em socorro, sobretudo, das misérias ocultas, por serem as mais dolorosas! Ide, meus bem-amados, e tende em mente estas palavras do Salvador: "Quando vestirdes a um destes pequeninos, lembrai-vos de que é a mim que o fazeis!" Caridade! sublime palavra que sintetiza todas as virtudes, és tu que hás de conduzir os povos à felicidade. Praticando-te, criarão eles para si infinitos gozos no futuro e, enquanto se acharem exilados na Terra, tu lhes serás a consolação, o prelibar das alegrias de que fruirão mais tarde, quando se encontrarem reunidos no seio do Deus de amor. Foste tu, virtude divina, que me proporcionaste os únicos momentos de satisfação de que gozei na Terra. Que os meus irmãos

encarnados creiam na palavra do amigo que lhes fala, dizendo-lhes: E na caridade que deveis procurar a paz do coração, o contentamento da alma, o remédio para as aflições da vida. Oh! quando estiverdes a ponto de acusar a Deus, lançai um olhar para baixo de vós; vede que de misérias a aliviar, que de pobres crianças sem família, que de velhos sem qualquer mão amiga que os ampare e lhes feche os olhos quando a morte os reclame! Quanto bem a fazer! Oh! não vos queixeis; ao contrário, agradecei a Deus e prodigalizai a mancheias a vossa simpatia, o vosso amor, o vosso dinheiro por todos os que, deserdados dos bens desse mundo, enlanguescem na dor e no insulamento! Colhereis nesse mundo bem doces alegrias e, mais tarde... só Deus o sabe!... Adolfo, bispo de Argel. (Bordéus, 1861.)

12.Sede bons e caridosos: essa a chave dos céus, chave que tendes em vossas mãos. Toda a eterna felicidade se contém neste preceito: "Amai-vos uns aos outros." Não pode a alma elevar-se às altas regiões espirituais, senão pelo devotamento ao próximo; somente nos arroubos da caridade encontra ela ventura e consolação. Sede bons, amparai os vossos irmãos, deixai de lado a horrenda chaga do egoísmo. Cumprido esse dever, abrir-se-vos-á o caminho da felicidade eterna. Ao demais, qual dentre vós ainda não sentiu o coração pulsar de júbilo, de íntima alegria, à narrativa de um ato de bela dedicação, de uma obra verdadeiramente caridosa? Se unicamente buscásseis a volúpia que uma ação boa proporciona, conservar-vos-íeis sempre na senda do progresso espiritual. Não vos faltam os

exemplos; rara é apenas a boa-vontade. Notai que a vossa história guarda piedosa lembrança de uma multidão de homens de bem.

Não vos disse Jesus tudo o que concerne às virtudes da caridade e do amor? Por que desprezar os seus ensinamentos divinos? Por que fechar o ouvido às suas divinas palavras, o coração a todos os seus bondosos preceitos? Quisera eu que dispensassem mais interesse, mais fé às leituras evangélicas. Desprezam, porém, esse livro, consideram-no repositório de palavras ocas, uma carta fechada; deixam no esquecimento esse código admirável. Vossos males provêm todos do abandono voluntário a que votais esse resumo das leis divinas. Lede-lhe as páginas cintilantes do devotamento de Jesus, e meditai- as.

Homens fortes, armai-vos; homens fracos, fazei da vossa brandura, da vossa fé, as vossas armas. Sede mais persuasivos, mais constantes na propagação da vossa nova doutrina. Apenas encorajamento é o que vos vimos dar; apenas para vos estimularmos o zelo e as virtudes é que Deus permite nos manifestemos a vós outros. Mas, se cada um o quisesse, bastaria a sua própria vontade e a ajuda de Deus; as manifestações espíritas unicamente se produzem para os de olhos fechados e corações indóceis.

A caridade é a virtude fundamental sobre que há de repousar todo o edifício das virtudes terrenas. Sem ela não existem as outras. Sem a caridade não há esperar melhor sorte, não há interesse moral que nos guie; sem a caridade não há fé, pois a fé não é mais do que pura luminosidade que torna brilhante uma alma caridosa.

A caridade é, em todos os mundos, a eterna âncora de salvação; é a mais pura emanação do próprio Criador; é a sua própria virtude, dada por ele à criatura. Como desprezar essa bondade suprema? Qual o coração, disso ciente, bastante perverso para recalcar em si e expulsar esse sentimento todo divino? Qual o filho bastante mau para se rebelar contra essa doce carícia: a caridade?

Não ouso falar do que fiz, porque também os Espíritos têm o pudor de suas obras; considero, porém, a que iniciei como uma das que mais hão de contribuir para o alívio dos vossos semelhantes. Vejo com freqüência os Espíritos a pedirem lhes seja dado, por missão, continuar a minha tarefa. Vejo-os,minhas bondosas e queridas irmãs, no piedoso e divino ministério; vejo-os praticando a virtude que vos recomendo, com todo o júbilo que deriva de uma existência de dedicação e sacrifícios. Imensa dita é a minha, por ver quanto lhes honra o caráter, quão estimada e protegida é a missão que desempenham. Homens de bem, de boa e firme vontade, uni-vos para continuar amplamente a obra de propagação da caridade; no exercício mesmo dessa virtude, encontrareis a vossa recompensa; não há alegria espiritual que ela não proporcione já na vida presente. Sede unidos, amai-vos uns aos outros, segundo os preceitos do Cristo. Assim seja. - S. Vicente de Paulo. (Paris, 1858.)

13. Chamo-me Caridade; sigo o caminho principal que conduz a Deus. Acompanhai-me, pois conheço a meta a que deveis todos visar.

Dei esta manhã o meu giro habitual e, com o coração amargurado, venho dizer-vos: Oh! meus amigos,

que de misérias, que de lágrimas, quanto tendes de fazer para secá-las todas! Em vão, procurei consolar algumas pobres mães, dizendo-lhes ao ouvido: Coragem! há corações bons que velam por vós; não sereis abandonadas; paciência! Deus lá está; sois dele amadas, sois suas eleitas. Elas pareciam ouvir-me e volviam para o meu lado os olhos arregalados de espanto; eu lhes lia no semblante que seus corpos, tiranos do Espírito, tinham fome e que, se é certo que minhas palavras lhes serenavam um pouco os corações, não lhes reconfortavam os estômagos. Repetia-lhes:Coragem! Coragem! Então, uma pobre mãe, ainda muito moça, que amamentava uma criancinha,tomou-a nos braços e a estendeu no espaço vazio, como a pedir-me que protegesse aquele entezinho que só encontrava, num seio estéril, insuficiente alimentação.

Alhures vi, meus amigos, pobres velhos sem trabalho e, em conseqüência, sem abrigo, presas de todos os sofrimentos da penúria e, envergonhados de sua miséria, sem ousarem, eles que nunca mendigaram, implorar a piedade dos transeuntes. Com o coração túmido de compaixão, eu, que nada tenho, me fiz mendiga para eles e vou, por toda a parte, estimular a beneficência, inspirar bons pensamentos aos corações generosos e compassivos. Por isso é que aqui venho, meus amigos, e vos digo: Há por aí desgraçados, em cujas choupanas falta o pão, os fogões se acham sem lume e os leitos sem cobertas. Não vos digo o que deveis fazer; deixo aos vossos bons corações a iniciativa. Se eu vos ditasse o proceder, nenhum mérito vos traria a vossa boa ação. Digo-vos apenas: Sou a caridade e vos estendo as mãos pelos vossos irmãos que sofrem.

Mas, se peço, também dou e dou muito. Convido-vos para um grande banquete e forneço a árvore onde todos vos saciareis! Vede quanto é bela, como está carregada de flores e de frutos! Ide, ide, colhei, apanhai todos os frutos dessa magnificente árvore que se chama a beneficência. No lugar dos ramos que lhe tirardes, atarei todas as boas ações que praticardes e levarei a árvore a Deus, que a carregará de novo, porquanto a beneficência é inexaurível. Acompanhai-me, pois, meus amigos, a fim de que eu vos conte entre os que se arrolam sob a minha bandeira. Nada temais; eu vos conduzirei pelo caminho da salvação, porque sou - a Caridade. - Cárita, martirizada em Roma. (Lião, 1861.)

14. Várias maneiras há de fazer-se a caridade, que muitos dentre vós confundem com a esmola. Diferença grande vai, no entanto, de uma para outra. A esmola, meus amigos, é algumas vezes útil, porque dá alívio aos pobres; mas é quase sempre humilhante, tanto para o que a dá, como para o que a recebe. A caridade, ao contrário, liga o benfeitor ao beneficiado e se disfarça de tantos modos!Pode-se ser caridoso, mesmo com os parentes e com os amigos, sendo uns indulgentes para com os outros, perdoando-se mutuamente as fraquezas, cuidando não ferir o amor-próprio de ninguém. Vós, espíritas, podeis sê-lo na vossa maneira de proceder para com os que não pensam como vós, induzindo os menos esclarecidos a crer, mas sem os chocar, sem investir contra as suas convicções e, sim, atraindo-os amavelmente às nossas reuniões, onde poderão ouvir-nos e onde saberemos descobrir nos seus corações a brecha para neles penetrarmos. Eis aí um dos aspectos da caridade.

Escutai agora o que é a caridade para com os pobres, os deserdados deste mundo, mas recompensados de Deus, se aceitam sem queixumes as suas misérias, o que de vós depende. Far-me-ei compreender por um exemplo.

Vejo, várias vezes, cada semana, uma reunião de senhoras, havendo-as de todas as idades. Para nós, como sabeis, são todas irmãs. Que fazem? Trabalham depressa, muito depressa; têm ágeis os dedos. Vede como trazem alegres os semblantes e como lhes batem em uníssono os corações. Mas, com que fim trabalham? É que vêem aproximar-se o inverno que será rude para os lares pobres. As formigas não puderam juntar durante o estio as provisões necessárias e a maior parte de suas utilidades está empenhada. As pobres mães se inquietam e choram, pensando nos filhinhos que, durante a estação invernosa, sentirão frio e fome! Tende paciência, infortunadas mulheres. Deus inspirou a outras mais aquinhoadas do que vós; elas se reuniram e estão confeccionando roupinhas; depois, um destes dias, quando a terra se achar coberta de neve e vós vos lamentardes, dizendo: "Deus não é justo'', que é o que vos sai dos lábios sempre que sofreis, vereis surgir a filha de uma dessas boas trabalhadoras que se constituíram obreiras dos pobres, pois que é para vós que elas trabalham assim, e os vossos lamentos se mudarão em bênçãos, dado que no coração dos infelizes o a amor acompanha de bem perto o ódio.

Como essas trabalhadoras precisam de encorajamento, vejo chegarem-lhes de todos os lados as comunicações dos bons espíritos. Os homens que fazem parte dessa sociedade lhes trazem também seu concurso, fazendo-lhes uma dessas leituras que agradam tanto. E nós, para recompensarmos o zelo de todos e de cada um em particular, prometemos às laboriosas obreiras boa clientela, que lhes pagará à vista, em bênçãos, única moeda que tem curso no Céu, garantindo-lhes, além disso, sem receio de errar, que essa moeda não lhes faltará. -Cárita. (Lião, 1861.)

15. Meus caros amigos, todos os (lias ouço entre vós dizerem: "Sou pobre, não posso fazer a caridade", e todos os dias vejo que faltais com a indulgência aos vossos semelhantes. Nada lhes perdoais e vos arvorais em juizes muitas vezes severos, sem quererdes saber se ficaríeis satisfeitos que do mesmo modo procedessem convosco. Não é também caridade a indulgência? Vós, que apenas podeis fazer a caridade praticando a indulgência, fazei-a assim, mas fazei-a largamente. Pelo que toca à caridade material, vou contar-vos uma história do outro mundo.

Dois homens acabavam de morrer. Dissera Deus: Enquanto esses dois homens viverem, deitar-se-ãoem sacos diferentes as boas ações de cada um deles, para que por ocasião de sua morte sejam pesadas. Quando ambos chegaram aos últimos momentos, mandou Deus que lhe trouxessem os dois sacos. Um estava cheio, volumoso, atochado, e nele ressoava o metal que o enchia; o outro era pequenino e tão vazio que se podiam contar as moedas que continha. Este o meu, disse um, reconheço-o; fui rico e dei muito. Este o meu, disse o outro, sempre fui pobre, oh! quase nada tinha para repartir. Mas, oh! surpresa! postos na balança os dois sacos, o mais volumoso se revelou leve, mostrando-se pesado o outro, tanto que fez se elevasse muito o primeiro no prato da balança. Deus, então, disse ao rico: deste muito, é certo, mas deste por ostentação e para que o teu nome figurasse em todos os templos do orgulho e, ao demais, dando, de nada te privaste. Vai para a esquerda e fica satisfeito com o te serem as tuas esmolas, contadas por qualquer coisa. Depois, disse ao pobre: Tu deste pouco, meu amigo; mas, cada uma das moedas que estão nesta balança representa uma privação que te impuseste; não deste esmolas, entretanto, praticaste a caridade, e, o que vale muito mais, fizeste a caridade naturalmente, sem cogitar de que te fosse levada em conta; foste indulgente; não te constituíste juiz do teu semelhante; ao contrário, todas as suas ações lhe relevaste: passa à direita e vai receber a tua recompensa. - Um Espírito protetor. (Lião, 1861.)

16. A mulher rica, venturosa, que não precisa empregar o tempo nos trabalhos de sua casa, não poderá consagrar algumas horas a trabalhos úteis aos seus semelhantes? Compre, com o que lhe sobre dos prazeres, agasalhos para o desgraçado que tirita de frio; confeccione, com suas mãos delicadas, roupas grosseiras, mas quentes; auxilie uma mãe a cobrir o filho que vai nascer. Se por isso seu filho ficar com algumas rendas de menos, o do pobre terá mais com que se aqueça. Trabalhar para os pobres é trabalhar na vinha do Senhor.

E tu, pobre operária, que não tens supérfluo, mas que, cheia de amor aos teus irmãos, também queres dar do pouco com que contas, dá algumas horas do teu dia, do teu tempo, único tesouro que possuis; faze alguns desses trabalhos elegantes que tentam os felizes; vende o produto dos teus serões e poderás igualmente oferecer aos teus irmãos a tua parte de auxílios. Terás, talvez, algumas fitas de menos; darás, porém, calçado a um que anda descalço.

E vós, mulheres que vos votastes a Deus, trabalhai também na sua obra; mas, que os vossos trabalhos não sejam unicamente para adornar as vossas capelas, para chamar a atenção sobre a vossa habilidade e paciência. Trabalhai, minhas filhas, e que o produto de vossas obras se destine a socorrer os vossos irmãos em Deus. Os pobres são seus filhos bem-amados; trabalhar para eles é glorificá-lo. Sede-lhes a providência que diz: "Aos pássaros do céu dá Deus o alimento." Mudem-se o ouro e a prata que se tecem nas vossas mãos em roupas e alimentos para os que não os têm. Fazei isto e abençoado será o vosso trabalho.

Todos vós, que podeis produzir, dai; dai o vosso gênio, dai as vossas inspirações, dai o vosso coração, que Deus vos abençoará. Poetas, literatos, que só pela gente mundana sois lidos!... satisfazei-lhe aos lazeres, mas consagrai o produto de algumas de vossas obras a socorros aos desgraçados. Pintores, escultores, artistas de todos os gêneros!... venha também a vossa inteligência em auxílio dos vossos irmãos; não será por isso menor a vossa glória e alguns sofrimentos haver á de menos.

Todos vós podeis dar. Qualquer que seja a classe a que pertençais, de alguma coisa dispondes que podeis dividir. Seja o que for que Deus vos haja outorgado, uma parte do que ele vos deu deveis àquele que carece do necessário, porquanto, em seu lugar, muito gostaríeis que outro dividisse convosco. Os vossos tesouros da Terra serão um pouco menores; contudo, os vossos tesouros do céu ficarão acrescidos. Lá colhereis pelo cêntuplo o que houverdes semeado em benefícios neste mundo. - João. (Bordéus, 1861.)

A piedade

17. A piedade é a virtude que mais vos aproxima dos anjos; é a irmã da caridade, que vos conduz a Deus. Ah! deixai que o vosso coração se enterneça ante o espetáculo das misérias e dos sofrimentos dos vossos semelhantes. Vossas lágrimas são um bálsamo que lhes derramais nas feridas e, quando, por bondosa simpatia, chegais a lhes proporcionar a esperança e a resignação, que encanto não experimentais! Tem um certo amargor, é certo, esse encanto, porque nasce ao lado da desgraça; mas, não tendo o sabor acre dos gozos mundanos, também não traz as pungentes decepções do vazio que

estes últimos deixam após si Envolve-o penetrante suavidade que enche de jubilo a alma. A piedade, a piedade bem sentida é amor; amor é devotamento; devotamento é o olvido de si mesmo e esse olvido, essa abnegação em favor dos desgraçados, é a virtude por excelência, a que em toda a sua vida praticou o divino Messias e ensinou na sua doutrina tão santa e tão sublime.

Quando esta doutrina for restabelecida na sua pureza primitiva, quando todos os povos se lhe submeterem, ela tomará feliz a Terra, fazendo que reinem aí a concórdia, a paz e o amor.

O sentimento mais apropriado a fazer que progridais, domando em vós o egoísmo e o orgulho, aquele que dispõe vossa alma à humildade, à beneficência e ao amor do próximo, é a piedade! piedade que vos comove até às entranhas à vista dos sofrimentos de vossos irmãos, que vos impele a lhes estender a mão para socorrê-los e vos arranca lágrimas de simpatia. Nunca, portanto, abafeis nos vossos corações essas emoções celestes; não procedais como esses egoístas endurecidos que se afastam dos aflitos, porque o espetáculo de suas misérias lhes perturbaria por instantes a existência álacre. Temei conservar-vosindiferentes, quando puderdes ser úteis. A tranqüilidade comprada à custa de uma indiferença culposa é a tranqüilidade do mar Morto, no fundo de cujas águas se escondem a vasa fétida e a corrupção.

Quão longe, no entanto, se acha a piedade de causar o distúrbio e o aborrecimento de que se arreceia o egoísta! Sem dúvida, ao contacto da desgraça de outrem, a alma, voltando-se para si mesma, experimenta um confrangimento natural e profundo, que põe em vibração todo o ser e o abala penosamente. Grande, porém, é a compensação, quando chegais a dar coragem e esperança a uni irmão infeliz que se enternece ao aperto de uma mão amiga e cujo olhar, úmido, por vezes, de emoção e de reconhecimento, para vós se dirige docemente, antes de se fixar no Céu em agradecimento por lhe ter enviado um consolador, um amparo. A piedade é o melancólico, nas celeste precursor da caridade, primeira das virtudes que a tem por irmã e cujos benefícios ela prepara e enobrece. - Miguel. (Bordéus, 1862)

Os órfãos

l8. Meus irmãos, amai os órfãos. Se soubésseis quanto é triste ser só e abandonado, sobretudo na infância! Deus permite que haja órfãos, para exortar-nos a servir-lhes de pais. Que divina caridade amparar uma pobre criaturinha abandonada, evitar que sofra fome e frio, dirigir-lhe a alma, a fim de que não desgarre para o vício! Agrada a Deus quem estende a mão a uma criança abandonada, porque compreende e pratica a sua lei. Ponderai também que muitas vezes a criança que socorreis vos foi cara noutra encarnação, caso em que, se pudésseis lembrar-vos, já não estaríeis praticando a caridade, mas cumprindo um dever. Assim, pois, meus amigos, todo sofredor é vosso irmão e tem direito à vossa caridade: não, porém, a essa caridade que magoa o coração, não a essa esmola que queima a mão em que cai, pois freqüentemente bem amargos são os vossos óbolos! Quantas vezes seriam eles recusados, se na choupana a enfermidade e a miséria não os estivessem esperando! Dai delicadamente, juntai ao beneficio que fizerdes o mais precioso de todos os benefícios: o de uma boa palavra, de uma carícia, de um sorriso amistoso. Evitai esse ar de proteção, que eqüivale a revolver a lâmina no coração que sangra e considerai que, fazendo o bem, trabalhais por vós mesmos e pelos vossos. - Um Espírito familiar.

(Paris, 1860.)

Benéficos pagos com a ingratidão

19. Que se deve pensar dos que, recebendo a ingratidão em paga de benefícios que fizeram, deixam de praticar o bem para não topar com os ingratos?

Nesses, há mais egoísmo do que caridade, visto que fazer o bem, apenas para receber demonstrações de reconhecimento, é não o fazer com desinteresse, e o bem, feito desinteressadamente, é o único agradável a Deus. Há também orgulho, porquanto os que assim procedem se comprazem na humildade com que o beneficiado lhes vem depor aos pés o testemunho do seu reconhecimento. Aquele que procura, na Terra, recompensa ao bem que pratica não a receberá no céu. Deus, entretanto, terá em apreço aquele que não a busca no mundo.

Deveis sempre ajudar os fracos, embora sabendo de antemão que os a quem fizerdes o bem não vo-loagradecerão. Ficai certos de que, se aquele a quem prestais um serviço o esquece, Deus o levará mais em conta do que se com a sua gratidão o beneficiado vo-lo houvesse pago. Se Deus permite por vezes sejais pagos com a ingratidão, é para experimentar a vossa perseverança em praticar o bem.

E sabeis, porventura, se o benefício momentaneamente esquecido não produzirá mais tarde bons frutos? Tende a certeza de que, ao contrário, é unia semente que com o tempo germinará. Infelizmente, nunca vedes senão o presente; trabalhais para vós e não pelos outros. Os benefícios acabam por abrandar os mais empedernidos corações; podem ser olvidados neste mundo, mas, quando se desembaraçar do seu envoltório carnal, o Espírito que os recebeu se lembrará deles e essa lembrança será o seu castigo. Deplorará a sua ingratidão; desejará reparar a falta, pagar a dívida noutra existência, não raro buscando uma vida de dedicação ao seu benfeitor. Assim, sem o suspeitardes, tereis contribuído para o seu adiantamento moral e vireis a reconhecer a exatidão desta máxima: um benefício jamais se perde. Além disso, também por vós mesmos tereis trabalhado, porquanto granjeareis o mérito de haver feito o bem desinteressadamente e sem que as decepções vos desanimassem.

Ah! meus amigos, se conhecêsseis todos os laços que prendem a vossa vida atual às vossas existências anteriores; se pudésseis apanhar num golpe de vista a imensidade das relações que ligam uns aos outros os seres, para o efeito de um progresso mútuo, admiraríeis muito mais a sabedoria e a bondade do Criador, que vos concede reviver para chegardes a ele. - Guia protetor. (Sens, 1862.)

Beneficência exclusiva

20. É acertada a beneficência, quando praticada exclusivamente entre pessoas da mesma opinião, da mesma crença, ou do mesmo partido?

Não, porquanto precisamente o espírito de seita e de partido é que precisa ser abolido, visto que são irmãos todos os homens. O verdadeiro cristão vê somente irmãos em seus semelhantes e não procura

saber, antes de socorrer o necessitado, qual a sua crença, ou a sua opinião, seja sobre o que for. Obedeceria o cristão, porventura, ao preceito de Jesus-Cristo, segundo o qual devemos amar os nossos inimigos, se repelisse o desgraçado, por professar uma crença diferente da sua? Socorra-o, portanto, sem lhe pedir contas à consciência, pois, se for um inimigo da religião, esse será o meio de conseguir que ele a ame; repelindo-o, faria que a odiasse. - SLuís. (Paris, l860.)

[Capítulo XIV]

CAPÍTULO XIV

HONRAI A VOSSO PAI E A VOSSA MÃE

Piedade filial. - Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? - Parentela corpórea e parentela espiritual. - Instruções dos Espíritos: A ingratidão dos filhos e os laços de família.

1. Sabeis os mandamentos: não cometereis adultério; não matareis; não roubareis; não prestareisfalso-testemunho; não fareis agravo a ninguém; honrai a vosso pai e a vossa mãe. (S. MARCOS, capítulo X, v. 19; S. LUCAS, cap. XVIII, v. 20; S. MATEUS, cap. XIX, vv. 18 e 19.)

Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na terra que o Senhor vosso Deus vos dará. (Decálogo: "Êxodo", cap. XX, v. 12.)

Piedade filial

3. O mandamento: "Honrai a vosso pai e a vossa mãe" é um corolário da lei geral de caridade e de amor ao próximo, visto que não pode amar o seu próximo aquele que não ama a seu pai e a sua mãe; mas, o termo honrai encerra um dever a mais para com eles: o da piedade filial. Quis Deus mostrar por essa forma que ao amor se devem juntar o respeito, as atenções, a submissão e a condescendência, o que envolve a obrigação de cumprir-se para com eles, de modo ainda mais rigoroso, tudo o que a caridade ordena relativamente ao próximo em gera!. Esse dever se estende naturalmente às pessoas que fazem as vezes de pai e de mãe, as quais tanto maior mérito têm, quanto menos obrigatório é para elas o devotamento. Deus pune sempre com rigor toda violação desse mandamento.

Honrar a seu pai e a sua mãe, não consiste apenas em respeitá-los; é também assisti-los na necessidade; é proporcionar-lhes repouso na velhice; é cercá-los de cuidados como eles fizeram conosco, na infância.

Sobretudo para com os pais sem recursos é que se demonstra a verdadeira piedade filial. Obedecem a esse mandamento os que julgam fazer grande coisa porque dão a seus pais o estritamente necessário para não morrerem de fome, enquanto eles de nada se privam, atirando-os para os cômodos mais ínfimos da casa, apenas por não os deixarem na rua, reservando para si o que há de melhor, de mais confortável? Ainda bem quando não o fazem de má-vontade e não os obrigam a comprar caro o que lhes resta a viver, descarregando sobre eles o peso do governo da casa! Será então aos pais velhos e fracos que cabe servir

a filhos jovens e fortes? Ter-lhes-á a mãe vendido o leite, quando os amamentava? Contou porventura suas vigílias, quando eles estavam doentes, os passos que deram para lhes obter o de que necessitavam? Não, os filhos não devem a seus pais pobres só o estritamente necessário, devem-lhestambém, na medida do que puderem, os pequenos nadas supérfluos, as solicitudes, os cuidados amáveis, que são apenas o juro do que receberam, o pagamento de uma dívida sagrada. Unicamente essa é a piedade filial grata a Deus.

Ai, pois, daquele que olvida o que deve aos que o ampararam em sua fraqueza, que com a vida material lhe deram a vida moral, que muitas vezes se impuseram duras privações para lhe garantir obem-estar. Ai do ingrato: será punido com a ingratidão e o abandono; será ferido nas suas mais caras afeições, algumas vezes já na existência atual, mas com certeza noutra, em que sofrerá o que houver feito aos outros.

Alguns pais, é certo, descuram de seus deveres e não são para os filhos o que deviam ser; mas, a Deus é que compete puni-los e não a seus filhos. Não compete a estes censurá-los, porque talvez hajam merecido que aqueles fossem quais se mostram. Se a lei da caridade manda se pague o mal com o bem, se seja indulgente para as imperfeições de outrem, se não diga mal do próximo, se lhe esqueçam e perdoem os agravos, se ame até os inimigos, quão maiores não hão de ser essas obrigações, em se tratando de filhos para com os pais! Devem, pois, os filhos tomar corno regra de conduta para com seus pais todos os preceitos de Jesus concernentes ao próximo e ter presente que todo procedimento censurável, com relação aos estranhos, ainda mais censurável se torna relativamente aos pais; e que o que talvez não passe de simples falta, no primeiro caso, pode ser considerado um crime, no segundo, porque, aqui, à falta de caridade se junta a ingratidão.

4. Deus disse: "Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na terra que o Senhor vosso Deus vos dará." Por que promete ele como recompensa a vida na Terra e não a vida celeste? A explicação se encontra nestas palavras: "que Deus vos dará" , as quais, suprimidas na moderna fórmula do Decálogo, lhe alteram o sentido. Para compreendermos aqueles dizeres, temos de nos reportar à situação e às idéias dos hebreus naquela época. Eles ainda nada sabiam da vida futura, não lhes indo a visão além da vida corpórea. Tinham, pois, de ser impressionados mais pelo que viam, do que pelo que não viam. Fala-lhes Deus então numa linguagem que lhes estava mais ao alcance e, como se se dirigisse a crianças, põe-lhes em perspectiva o que os pode satisfazer.Achavam-se eles ainda no deserto; a terra que Deus lhes dará e a Terra da Promissão, objetivo das suas aspirações. Nada mais desejavam do que isso; Deus lhes diz que viverão nela longo tempo, isto é, que a possuirão por longo tempo, se observarem seus mandamentos.

Mas, ao verificar-se o advento de Jesus, já eles tinham mais desenvolvidas suas idéias. Chegada a ocasião de receberem alimentação menos grosseira, o mesmo Jesus os inicia na vida espiritual, dizendo: "Meu reino não é deste mundo; lá, e não na Terra, é que recebereis a recompensa das vossas boas obras." A estas palavras, a Terra Prometida deixa de ser material, transformando-se numa pátria celeste. Por isso, quando os chama à observância daquele mandamento: "Honrai a vosso pai e a vossa mãe", já não é a Terra que lhes promete e sim o céu. (Caps. II e III.)

Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?

5. E, tendo vindo para casa, reuniu-se aí tão grande multidão de gente, que eles nem sequer podiam fazer sua refeição. - Sabendo disso, vieram seus parentes para se apoderarem dele, pois diziam que perdera o espírito.

Entretanto, tendo vindo sua mãe e seus irmãos e conservando-se do lodo de fora, mandaramchamá-lo. - Ora, o povo se assentara em torno dele e lhe disseram: Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e te chamam. - Ele lhes respondeu: Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? E, perpassando o olhar pelos que estavam assentados ao seu derredor, disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos; - pois, todo aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe. (S. MARCOS. cap. III, vv. 20, 21 e 31 a 35 - S. MATEUS, cap. XII, vv. 46 a 50.)

6.Singulares parecem algumas palavras de Jesus, por contrastarem com a sua bondade e a sua inalterável benevolência para com todos. Os incrédulos não deixaram de tirar daí uma arma, pretendendo que ele se contradizia. Fato, porém, irrecusável é que sua doutrina tem por base principal, por pedra angular, a lei de amor e de caridade. Ora, não é possível que ele destruísse de um lado o que do outro estabelecia, donde esta conseqüência rigorosa: se certas proposições suas se acham em contradição com aquele princípio básico, é que as palavras que se lhe atribuem foram ou mal reproduzidas, ou mal compreendidas, ou não são suas.

7.Causa admiração, e com fundamento, que, neste passo, mostrasse Jesus tanta indiferença para com seus parentes e, de certo modo, renegasse sua mãe.

Pelo que concerne a seus irmãos, sabe-se que não o estimavam. Espíritos pouco adiantados, não lhe compreendiam a missão: tinham por excêntrico o seu proceder e seus ensinamentos não os tocavam, tanto que nenhum deles o seguiu como discípulo. Dir-se-ia mesmo que partilhavam, até certo ponto, das prevenções de seus inimigos. O que é fato, em suma, é que o acolhiam mais como um estranho do que como um irmão, quando aparecia à família. S. João diz, positivamente (cap. VII, v. 5), "que eles não lhe davam crédito".

Quanto à sua mãe, ninguém ousaria contestar a ternura que lhe dedicava. Deve-se, entretanto, convir igualmente em que também ela não fazia idéia muito exata da missão do filho, pois não se vê que lhe tenha nunca seguido os ensinos, nem dado testemunho dele, como fez João Batista. O que nela predominava era a solicitude maternal. Supor que ele haja renegado sua mãe fora desconhecer-lhe o caráter. Semelhante idéia não poderia encontrar guarida naquele que disse: Honrai a vosso pai e a vossa mãe. Necessário, pois, se faz procurar outro sentido para suas palavras, quase sempre envoltas no véu da forma alegórica.

Ele nenhuma ocasião desprezava de dar um ensino; aproveitou, portanto, a que se lhe deparou, com a chegada de sua família, para precisar a diferença que existe entre a parentela corporal e a parentela espiritual.

A parentela corporal e a parentela espiritual

8. Os laços do sangue não criam forçosamente os liames entre os Espíritos. O corpo procede do corpo, mas o Espírito não procede do Espírito, porquanto o Espírito já existia antes da formação do corpo. Não é o pai quem cria o Espírito de seu filho; ele mais não faz do que lhe fornecer o invólucro corpóreo, cumprindo-lhe, no entanto, auxiliar o desenvolvimento intelectual e moral do filho, parafazê-lo progredir.

Os que encarnam numa família, sobretudo como parentes próximos, são, as mais das vezes, Espíritos simpáticos, ligados por anteriores relações, que se expressam por uma afeição recíproca na vida terrena. Mas, também pode acontecer sejam completamente estranhos uns aos outros esses Espíritos, afastados entre si por antipatias igualmente anteriores, que se traduzem na Terra por um mútuo antagonismo, que aí lhes serve de provação. Não são os da consangüinidade os verdadeiros laços de família e sim os da simpatia e da comunhão de idéias, os quais prendem os Espíritos antes, durante e depois de suas encarnações. Segue-se que dois seres nascidos de pais diferentes podem ser mais irmãos pelo Espírito, do que se o fossem pelo sangue. Podem então atrair-se, buscar-se, sentir prazer quando juntos, ao passo que dois irmãos consangüíneos podem repelir-se, conforme se observa todos os dias: problema moral que só o Espiritismo podia resolver pela pluralidade das existências. (Cap. IV, nº 13.) Há, pois, duas espécies de famílias: as famílias pelos laços espirituais e as famílias pelos laços corporais. Duráveis, as primeiras se fortalecem pela purificação e se perpetuam no mundo dos Espíritos, através das várias migrações da alma; as segundas, frágeis como a matéria, se extinguem com o tempo e muitas vezes se dissolvem moralmente, já na existência atual. Foi o que Jesus quis tornar compreensível, dizendo de seus discípulos: Aqui estão minha mãe e meus irmãos, isto é, minha família pelos laços do Espírito, pois todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus é meu irmão, minha irmã e minha mãe.

A hostilidade que lhe moviam seus irmãos se acha claramente expressa em a narração de São Marcos, que diz terem eles o propósito de se apoderarem do Mestre, sob o pretexto de que este perdera o espirito. Informado da chegada deles, conhecendo os sentimentos que nutriam a seu respeito, era natural que Jesus dissesse, referindo-se a seus discípulos, do ponto de vista espiritual: "Eis aqui meus verdadeiros irmãos." Embora na companhia daqueles estivesse sua mãe, ele generaliza o ensino que de maneira alguma implica haja pretendido declarar que sua mãe segundo o corpo nada lhe era como Espírito, que só indiferença lhe merecia. Provou suficientemente o contrário em várias outras circunstâncias.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A ingratidão dos filhos e os laços de família

9. A ingratidão é um dos frutos mais diretos do egoísmo. Revolta sempre os corações honestos. Mas, a dos filhos para com os pais apresenta caráter ainda mais odioso. E, em particular, desse ponto de vista que a vamos considerar, para lhe analisar as causas e os efeitos. Também nesse caso, como em todos os outros, o Espiritismo projeta luz sobre um dos grandes problemas do coração humano.

Quando deixa a Terra, o Espírito leva consigo as paixões ou as virtudes inerentes à sua natureza e se aperfeiçoa no espaço, ou permanece estacionário, até que deseje receber a luz. Muitos, portanto, se vão cheios de ódios violentos e de insaciados desejos de vingança; a alguns dentre eles, porém, mais adiantados do que os outros, é dado entrevejam uma partícula da verdade; apreciam então as funestas conseqüências de suas paixões e são induzidos a tomar resoluções boas. Compreendem que, para chegarem a Deus, lima só é a senha: caridade. Ora, não há caridade sem esquecimento dos ultrajes e das injúrias; não há caridade sem perdão, nem com o coração tomado de ódio.

Então, mediante inaudito esforço, conseguem tais Espíritos observar os a quem eles odiaram na Terra. Ao vê-los, porém, a animosidade se lhes desperta no íntimo; revoltam-se à idéia de perdoar, e, ainda mais, à de abdicarem de si mesmos, sobretudo à de amarem os que lhes destruíram, quiçá, os haveres, a honra, a família. Entretanto, abalado fica o coração desses infelizes. Eles hesitam, vacilam, agitados por sentimentos contrários. Se predomina a boa resolução, oram a Deus, imploram aos bons Espíritos que lhes dêem forças, no momento mais decisivo da prova.

Por fim, após anos de meditações e preces, o Espírito se aproveita de um corpo em preparo na família daquele a quem detestou, e pede aos Espíritos incumbidos de transmitir as ordens superiores permissão para ir preencher na Terra os destinos daquele corpo que acaba de formar-se. Qual será o seu procedimento na família escolhida? Dependerá da sua maior ou menor persistência nas boas resoluções que tomou. O incessante contacto com seres a quem odiou constitui prova terrível, sob a qual não raro sucumbe, se não tem ainda bastante forte a vontade. Assim, conforme prevaleça ou não a resolução boa, ele será o amigo ou inimigo daqueles entre os quais foi chamado a Viver. E como se explicam esses ódios, essas repulsões instintivas que se notam da parte de certas crianças e que parecem injustificáveis. Nada, com efeito, naquela existência há podido provocar semelhante antipatia; para se lhe apreender a causa, necessário se torna volver o olhar ao passado.

Ó espíritas! compreendei agora o grande papel da Humanidade; compreendei que, quando produzis um corpo, a alma que nele encarna vem do espaço para progredir; inteirai-vos dos vossos deveres e ponde todo o vosso amor em aproximar de Deus essa alma; tal a missão que vos está confiada e cuja recompensa recebereis, se fielmente a comprirdes. Os vossos cuidados e a educação que lhe dareis auxiliarão o seu aperfeiçoamento e o seu bem-estar futuro. Lembrai-vos de que a cada pai e a cada mãe perguntará Deus: Que fizestes do filho confiado à vossa guarda? Se por culpa Vossa ele se conservou atrasado, tereis como castigo vê-lo entre os Espíritos sofredores, quando de vós dependia que fosse ditoso. Então, vós mesmos, assediados de remorsos, pedireis vos seja concedido reparar a vossa falta; solicitareis, para vós e para ele, outra encarnação em que o cerqueis de melhores cuidados e em que ele, cheio de reconhecimento, vos retribuirá com o seu amor.

Não escorraceis, pois, a criancinha que repele sua mãe, nem a que vos paga com a ingratidão; não foi o acaso que a fez assim e que vo-la deu. Imperfeita intuição do passado se revela, do qual podeis deduzir que um ou outro já odiou muito, ou foi muito ofendido; que um ou outro veio para perdoar ou para expiar. Mães! abraçai o filho que vos dá desgostos e dizei convosco mesmas: Um de nós dois é culpado.

Fazei-vos merecedoras dos gozos divinos que Deus conjugou à maternidade, ensinando aos vossos filhos que eles estão na Terra para se aperfeiçoar, amar e bendizer. Mas oh! muitas dentre vós, em vez de eliminar por meio da educação os maus princípios inatos de existências anteriores, entretêm e desenvolvem esses princípios, por uma culposa fraqueza, ou por descuido, e, mais tarde, o vosso coração, ulcerado pela ingratidão dos vossos filhos, será para vós, já nesta vida, um começo de expiação.

A tarefa não é tão difícil quanto vos possa parecer. Não exige o saber do mundo. Podemdesempenhá-la assim o ignorante como o sábio, e o Espiritismo lhe facilita o desempenho, dando a conhecer a causa das imperfeições da alma humana.

Desde pequenina, a criança manifesta os instintos bons ou maus que traz da sua existência anterior. Aestudá-los devem os pais aplicar-se. Todos os males se originam do egoísmo e do orgulho. Espreitem, pois, os pais os menores indícios reveladores do gérmen de tais vícios e cuidem de combatê-los, sem esperar que lancem raízes profundas. Façam como o bom jardineiro, que corta os rebentos defeituosos à medida que os vê apontar na árvore. Se deixarem se desenvolvam o egoísmo e o orgulho, não se espantem de serem mais tarde pagos com a ingratidão. Quando os pais hão feito tudo o que devem pelo adiantamento moral de seus filhos, se não alcançam êxito, não têm de que se inculpar a si mesmos e podem conservar tranqüila a consciência. A amargura muito natural que então lhes advém da improdutividade de seus esforços, Deus reserva grande e imensa consolação, na certeza de que se trata apenas de um retardamento, que concedido lhes será concluir noutra existência a obra agora começada Deus não dá prova superior às forças daquele que a pede; só permite as que podem ser cumpridas. Se tal não sucede, não é que falte possibilidade: falta a vontade. Com efeito, quantos há que, em vez de resistirem aos maus pendores, se comprazem neles. A esses ficam reservados o pranto e os gemidos em existências posteriores. Admirai, no entanto, a bondade de Deus, que nunca fecha a porta ao arrependimento. Vem um dia em que ao culpado, cansado de sofrer, com o orgulho afinal abatido, Deus abre os braços para receber o filho pródigo que se lhe lança aos pés. As provas rudes, ouvi-mebem, são quase sempre indício de um fim de sofrimento e de um aperfeiçoamento do Espírito, quando aceitas com o pensamento em Deus. E um momento supremo, no qual, sobretudo, cumpre ao Espírito não falir murmurando, se não quiser perder o fruto de tais provas e ter de recomeçar. Em vez de vos queixardes, agradecei a Deus o ensejo que vos proporciona de vencerdes, a fim de vos deferir o prêmio da vitória. Então, saindo do turbilhão do mundo terrestre, quando entrardes no mundo dos Espíritos, sereis aí aclamados como o soldado que sai triunfante da refrega.

De todas as provas, as mais duras são as que afetam o coração. Um, que suporta com coragem a miséria e as privações materiais, sucumbe ao peso das amarguras domésticas, pungido da ingratidão dos seus. Oh! que pungente angústia essa! Mas, em tais circunstâncias, que mais pode, eficazmente, restabelecer a coragem moral, do que o conhecimento das causas do mal e a certeza de que, se bem haja prolongados despedaçamentos dalma, não há desesperos eternos, porque não é possível seja da vontade de Deus que a sua criatura sofra indefinidamente? Que de mais reconfortante, de mais animador do que a idéia que de cada um dos seus esforços é que depende abreviar o sofrimento, mediante a destruição, em si, das causas do mal? Para isso, porém, preciso se faz que o homem não retenha na Terra o olhar e só veja uma existência; que se eleve, a pairar no infinito do passado e do futuro. Então, a justiça infinita de Deus se vos patenteia, e esperais com paciência, porque explicável se vos torna o que na Terra vos parecia

verdadeiras monstruosidades. As feridas que aí se vos abrem, passais a considerá-las simples arranhaduras. Nesse golpe de vista lançado sobre o conjunto, os laços de família se vos apresentam sob seu aspecto real. Já não vedes, a ligar-lhes os membros, apenas os frágeis laços da matéria; vedes, sim, os laços duradouros do Espírito, que se perpetuam e consolidam com o depurarem-se, em vez de se quebrarem por efeito da reencarnação.

Formam famílias os Espíritos que a analogia dos gostos, a identidade do progresso moral e a afeição induzem a reunir-se. Esses mesmos Espíritos, em suas migrações terrenas, se buscam, para se gruparem, como o fazem no espaço, originando-se daí as famílias unidas e homogêneas. Se, nas suas peregrinações, acontece ficarem temporariamente separados, mais tarde tornam a encontrar-se,venturosos pelos novos progressos que realizaram. Mas, como não lhes cumpre trabalhar apenas para si, permite Deus que Espíritos menos adiantados encarnem entre eles, a fim de receberem conselhos e bons exemplos, a bem de seu progresso. Esses Espíritos se tornam, por vezes, causa de perturbação no meio daqueles outros, o que constitui para estes a prova e a tarefa a desempenhar.

Acolhei-os, portanto, como irmãos; auxiliai-os, e depois, no mundo dos Espíritos, a família se felicitará por haver salvo alguns náufragos que, a seu turno, poderão salvar outros. -Santo Agostinho. (Paris, 1862.)

[Capítulo XV]

CAPÍTULO XV

FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO

O de que precisa o Espírito para se salvar. Parábola do bom samaritano. - O mandamento maior. - Necessidade da caridade, segundo S. Paulo. - Fora da Igreja não há salvação. Fora da verdade não há salvação. - Instruções dos Espíritos: Fora da caridade não há salvação.

O de que precisa o Espírito para ser salvo. Parábola do bom samaritano.

1. Ora, quando o filho do homem vier em sua majestade, acompanhado de todos os anjos, sentar- se-áno trono de sua glória; - reunidas diante dele todas as nações, separará uns dos outros, como o pastor separa dos bodes as ovelhas, - e colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda.

Então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que vos foi preparado desde o princípio do mundo; - porquanto, tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; careci de teto e me hospedastes; - estive nu e me vestistes;achei-me doente e me visitastes; estive preso e me fostes ver.

Então, responder-lhe-ão os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? - Quando foi que te vimos sem teto e te hospedamos; ou despido e te vestimos? - E quando foi que te soubemos doente ou preso e fomos visitar-te? - O Rei lhes

responderá: Em verdade vos digo, todas as vezes que isso fizestes a um destes mais pequeninos dos meus irmãos, foi a mim mesmo que o fizestes.

Dirá em seguida aos que estiverem à sua esquerda: Afastai-vos de mim, malditos; ide para o fogo eterno, que foi preparado para o diabo e seus anjos; - porquanto, tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber; precisei de teto e não me agasalhastes; estive sem roupa e não me vestistes; estive doente e no cárcere e não me visitastes.

Também eles replicarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome e não te demos de comer, com sede e não te demos de beber, sem teto ou sem roupa, doente ou preso e não te assistimos? - Ele então lhes responderá: Em verdade vos digo: todas a vezes que faltastes com a assistência a um destes mais pequenos, deixastes de tê-la para comigo mesmo.

E esses irão para o suplício eterno, e os justos para a vida eterna. (S. MATEUS, cap. XXV, vv. 31 a 46.)

2. Então, levantando-se, disse-lhe um doutor da lei, para o tentar: Mestre, que preciso fazer para possuir a vida eterna? - Respondeu-lhe Jesus: Que é o que está escrito na lei? Que é o que lês nela? - Ele respondeu: Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a tua alma, com todas as tuas forças e de todo o teu espírito, e a teu próximo como a ti mesmo. - Disse-lhe Jesus: Respondeste muito bem; faze isso e viverás.

Mas, o homem, querendo parecer que era um justo, diz a Jesus: Quem é o meu próximo? - Jesus, tomando a palavra, lhe diz: Um homem, que descia de Jerusalém para Jericó, caiu em poder de ladrões, que o despojaram, cobriram de ferimentos e se foram, deixando-o semimorto. - Aconteceu em seguida que um sacerdote, descendo pelo mesmo caminho, o viu e passou adiante. -Um levita, que também veio àquele lugar, tendo-o observado, passou igualmente adiante. - Mas, um samaritano que viajava, chegando ao lugar onde jazia aquele homem etendo-o visto, foi tocado de compaixão. - Aproximou-se dele, deitou-lhe óleo e vinho nas feridas e as pensou; depois, pondo-o no seu cavalo, levou-o a uma hospedaria e cuidou dele. - No dia seguinte tirou dois denários e os deu ao hospedeiro, dizendo: Trata muito bem deste homem e tudo o que despenderes a mais, eu te pagarei quando regressar.

Qual desses três te parece ter sido o próximo daquele que caíra em poder dos ladrões? - O doutor respondeu: Aquele que usou de misericórdia para com ele. - Então, vai, diz Jesus, e faze o mesmo. (S. LUCAS, cap. X, vv. 25 a 37.)

3. Toda a moral de Jesus se resume na caridade e na humildade, isto é, nas duas virtudes contrárias ao egoísmo e ao orgulho. Em todos os seus ensinos, ele aponta essas duas virtudes como sendo as que conduzem à eterna felicidade: Bem-aventurados, disse, os pobres de espírito, isto é, os humildes, porque deles é o reino dos céus; bem-aventurados os que têm puro o coração; bem-aventurados os que são brandos e pacíficos; bem-aventurados os que são misericordiosos; amai o vosso próximo como a vós

mesmos; fazei aos outros o que quereríeis vos fizessem; amai os vossos inimigos; perdoai as ofensas, se quiserdes ser perdoados; praticai o bem sem ostentação; julgai-vos a vós mesmos, antes de julgardes os outros. Humildade e caridade, eis o que não cessa de recomendar e o de que dá, ele próprio, o exemplo. Orgulho e egoísmo, eis o que não se cansa de combater. E não se limita a recomendar a caridade; põe-na claramente e em termos explícitos como condição absoluta da felicidade futura.

No quadro que traçou do juízo final, deve-se, como em muitas outras coisas, separar o que é apenas figura, alegoria. A homens como os a quem falava, ainda incapazes de compreender as questões puramente espirituais, tinha ele de apresentar imagens materiais chocantes e próprias a impressionar. Para melhor apreenderem o que dizia, tinha mesmo de não se afastar muito das idéias correntes, quanto à forma, reservando sempre ao porvir a verdadeira interpretação de suas palavras e dos pontos sobre os quais não podia explicar-se claramente. Mas, ao lado da parte acessória ou figurada do quadro, há uma idéia dominante: a da felicidade reservada ao justo e da infelicidade que espera o mau.

Naquele julgamento supremo, quais os considerandos da sentença? Sobre que se baseia o libelo? Pergunta, porventura, o juiz se o inquirido preencheu tal ou qual formalidade, se observou mais ou menos tal ou qual prática exterior? Não; inquire tão-somente de uma coisa: se a caridade foi praticada, e se pronuncia assim: Passai à direita, vós que assististes os vossos irmãos; passai à esquerda, vós que fostes duros para com eles. Informa-se, por acaso, da ortodoxia da fé? Faz qualquer distinção entre o que crê de um modo e o que cru de outro'? Não, pois Jesus coloca o samaritano, considerado herético, mas que pratica o amor do próximo, acima do ortodoxo que falta com a caridade. Não considera, portanto, a caridade apenas como uma das condições para a salvação, mas como a condição única. Se outras houvesse a serem preenchidas, ele as teria declinado. Desde que coloca a caridade em primeiro lugar, é que ela implicitamente abrange todas as outras: a humildade, a brandura, a benevolência, a indulgência, a justiça, etc., e porque é a negação absoluta do orgulho e do egoísmo.

O mandamento maior

4.Mas, os fariseus, tendo sabido que ele tapara a boca aos saduceus, se reuniram; e um deles, que era doutor da lei, foi propor-lhe esta questão, para o tentar: -Mestre, qual o grande mandamento da lei? - Jesus lhe respondeu: Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito. - Esse o maior e o primeiro mandamento. - E aqui está o segundo, que é semelhante ao primeiro: Amarás o teu próximo, como a ti mesmo. - Toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos. (S. MATEUS, cap. XXII, vv. 34 a 40.)

5.Caridade e humildade, tal a senda única da salvação. Egoísmo e orgulho, tal a da perdição. Este princípio se acha formulado nos seguintes precisos termos: "Amarás a Deus de toda a tua alma e a teu próximo como a ti mesmo; toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos." Epara que não haja equívoco sobre a interpretação do amor de Deus e do próximo, acrescenta: "E aqui está o segundo mandamento que é semelhante ao primeiro" , isto é, que não se pode verdadeiramente amar a Deus sem amar o próximo, nem amar o próximo sem amar a Deus. Logo, tudo o que se faça contra o próximo o mesmo é que fazê-lo contra Deus. Não podendo amar a Deus sem praticar a caridade

para com o próximo, todos os deveres do homem se resumem nesta máxima: FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO.

Necessidade da caridade, segundo S. Paulo

6. Ainda quando eu falasse todas as línguas dos homens e a língua dos próprios anjos, se eu não tiver caridade, serei como o bronze que soa e um címbalo que retine; -ainda quando tivesse o dom de profecia, que penetrasse todos os mistérios, e tivesse perfeita ciência de todas as coisas; ainda quando tivesse a fé possível, até o ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, nada sou. - E, quando houver distribuído os meus bens para alimentar os pobres e houvesse entregado meu corpo para ser queimado, se não tivesse caridade, tudo isso de nada me serviria.

A caridade é paciente; é branda e benfazeja; a caridade não é invejosa; não é temerária, nem precipitada; não se enche de orgulho; - não é desdenhosa; não cuida de seus interesses; não se agasta, nem se azeda com coisa alguma; não suspeita mal; não se rejubila com a injustiça, mas se rejubila com a verdade; tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.

Agora, estas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade permanecem; mas, dentre elas, a mais excelente é a caridade (S. PAULO, 1ª Epístola aos Coríntios, cap. XIII, vv. 1 a 7 e 13.)

7. De tal modo compreendeu S. Paulo essa grande verdade, que disse: Quando mesmo eu tivesse a linguagem dos anjos; quando tivesse o dom de profecia, que penetrasse todos os mistérios; quando tivesse toda a fé possível, até ao ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, nada sou.

Dentre estas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade, a mais excelente é a caridade. Coloca assim, sem equívoco, a caridade acima até da fé. É que a caridade está ao alcance de toda gente: do ignorante, como do sábio, do rico, como do pobre, e independe de qualquer crença particular.

Faz mais: define a verdadeira caridade, mostra-a não só na beneficência, como também no conjunto de todas as qualidades do coração, na bondade e na benevolência para com o próximo.

Fora da Igreja não há salvação. Fora da verdade não há salvação

8Enquanto a máxima - Fora da caridade não há salvação - assenta num princípio universal e abre a todos os filhos de Deus acesso à suprema felicidade, o dogma - Fora da Igreja, não há salvação -se estriba, não na fé fundamental em Deus e na imortalidade da alma, fé comum a todas as religiões, porém numa fé especial, em dogmas particulares; é exclusivo e absoluto. Longe de unir os filhos de Deus, separa-os; em vez deincitá-los ao amor de seus irmãos, alimenta e sanciona a irritação entre sectários dos diferentes cultos que reciprocamente se consideram malditos na eternidade, embora sejam parentes e amigos esses sectários. Desprezando a grande lei de igualdade perante o túmulo, ele os afasta uns dos outros, até no campo do repouso. A máxima - Fora da caridade não há salvação consagra o princípio da igualdade perante Deus e da liberdade de consciência. Tendo-a por norma, todos os homens são irmãos e, qualquer que seja a maneira por que adorem o Criador, eles se estendem as mãos e oram uns pelos

outros. Com o dogma - Fora da Igreja não há salvação, anatematizam-se e se perseguem reciprocamente, vivem como inimigos; o pai não pede pelo filho, nem o filho pelo pai, nem o amigo pelo amigo, desde que mutuamente se consideram condenados sem remissão. É, pois, um dogma essencialmente contrário aos ensinamentos do Cristo e à lei evangélica.

9. Fora da verdade não há salvação eqüivaleria ao Fora da Igreja não há salvação e seria igualmente exclusivo, porquanto nenhuma seita existe que não pretenda ter o privilégio da verdade. Que homem se pode vangloriar de a possuir integral, quando o âmbito dos conhecimentos incessantemente se alarga e todos os dias se retificam as idéias? A verdade absoluta é patrimônio unicamente de Espíritos da categoria mais elevada e a Humanidade terrena não poderia pretenderpossuí-la, porque não lhe é dado saber tudo. Ela somente pode aspirara uma verdade relativa e proporcionada ao seu adiantamento. Se Deus houvera feito da posse da verdade absoluta condição expressa da felicidade futura, teria proferido uma sentença de proscrição geral, ao passo que a caridade, mesmo na sua mais ampla acepção, podem todos praticá-la. O Espiritismo, de acordo com o Evangelho, admitindo a salvação para todos, independente de qualquer crença, contanto que a lei de Deus seja observada, não diz: Fora do Espiritismo não há salvação; e, como não pretende ensinar ainda toda a verdade, também não diz: Fora da verdade não há salvação, pois que esta máxima separaria em lugar de unir e perpetuaria os antagonismos.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Fora da caridade não há salvação

10. Meus filhos, na máxima: Fora da caridade não há salvação, estão encerrados os destinos dos homens, na Terra e no céu; na Terra, porque à sombra desse estandarte eles viverão em paz; no céu, porque os que a houverem praticado acharão graças diante do Senhor. Essa divisa é o facho celeste, a luminosa coluna que guia o homem no deserto da vida, encaminhando-o para a Terra da Promissão. Ela brilha no céu, como auréola santa, na fronte dos eleitos, e, na Terra, se acha gravada no coração daqueles a quem Jesus dirá: Passai à direita, benditos de meu Pai. Reconhecê-los-eis pelo perfume de caridade que espalham em torno de si Nada exprime com mais exatidão o pensamento de Jesus, nada resume tão bem os deveres do homem, como essa máxima de ordem divina. Não poderia o Espiritismo provar melhor a sua origem, do que apresentando-a como regra, por isso que é um reflexo do mais puro Cristianismo. Levando-a por guia, nunca o homem se transviará. Dedicai-vos, assim, meus amigos, a perscrutar-lhe o sentido profundo e as conseqüências, a descobrir-lhe, por vós mesmos, todas as aplicações. Submetei todas as vossas ações ao governo da caridade e a consciência vos responderá. Não só ela evitará que pratiqueis o mal, como também fará que pratiqueis o bem, porquanto uma virtude negativa não basta: é necessária uma virtude ativa. Para fazer-se o bem, mister sempre se torna a ação da vontade; para se não praticar o mal, basta as mais das vezes a inércia e a despreocupação.

Meus amigos, agradecei a Deus o haver permitido que pudésseis gozar a luz do Espiritismo. Não é que somente os que a possuem hajam de ser salvos; é que, ajudando-vos a compreender os ensinos do Cristo, ela vos faz melhores cristãos. Esforçai-vos, pois, para que os vossos irmãos, observando-vos, sejam

induzidos a reconhecer que verdadeiro espírita e verdadeiro cristão são uma só e a mesma coisa, dado que todos quantos praticam a caridade são discípulos de Jesus, sem embargo da seita a que pertençam. Paulo, o apóstolo. (Paris, 1860.)

[Capítulo XVI]

CAPÍTULO XVI

NÃO SE PODE SERVIR A DEUS E A MAMON

Salvação dos ricos. - Preservar-se da avareza. - Jesus em casa de Zaqueu. - Parábola do mau rico. Parábola dos talentos. - Utilidade providencial da riqueza. Provas da riqueza e da miséria. - Desigualdade das riquezas. - Instruções dos Espíritos: A verdadeira propriedade. - Emprego da riqueza. - Desprendimento dos bens terrenos. - Transmissão da riqueza.

Salvação dos ricos

1.Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará a outro, ou se prenderá a um e desprezará o outro. Não podeis servir simultaneamente a Deus e a Mamon. (S. LUCAS, cap. XVI, v. 13.)

2.Então, aproximou-se dele um mancebo e disse: Bom mestre, que bem devo fazer para adquirir a vida eterna? - Respondeu Jesus: Por que me chamas bom? Bom, só Deus o é. Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos. - Que mandamentos? retrucou o mancebo. Disse Jesus: Não matarás; não cometerás adultério; não furtarás; não darás testemunho falso. - Honra a teu pai e a tua mãe e ama a teu próximo como a ti mesmo.

O moço lhe replicou: Tenho guardado todos esses mandamentos desde que cheguei à mocidade. Que é o que ainda me falta? -Disse Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me.

Ouvindo essas palavras, o moço se foi todo tristonho, porque possuía grandes haveres. - Jesus disse então a seus discípulos: Digo-vos em verdade que bem difícil é que um rico entre no reino dos céus. - Ainda uma vez vos digo: É mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulha, do

que entrar um rico no reino dos céus (1). (S. MATEUS, cap. XIX, vv. 16 a 24. - S. LUCAS, cap. XVIII, vv. 18 a 25. - S. MARCOS, cap. X, vv. 17 a 25.)

(1) Esta arrojada figura pode parecer um pouco forçada, pois que não se percebe que relação possa existir entre um camelo e uma agulha. Acontece, no entanto, que, em hebreu, a mesma palavra serve para designar um camelo e um cabo. Na tradução, deram-lhe o primeiro desses significados; mas é provável que

Jesus a tenha empregado com a outra significação. É, pelo menos, mais natural.

Preservar-se da avareza

3. Então, no meia do turba, um homem lhe disse: Mestre, dize a meu irmão que divida comigo a herança que nos tocou. - Jesus lhe disse: Ó homem! quem me designou para vos julgar, ou para fazer as vossas partilhas? - E acrescentou: Tende o cuidado de preservar-vosde toda a avareza, seja qual for a abundância em que o homem se encontre, sua vida não depende dos bens que ele possua.

Disse-lhes a seguir esta parábola: Havia um rico homem cujas terras tinham produzido extraordinariamente - e que se entretinha a pensar consigo mesmo, assim: Que hei de fazer, pois já não tenho lugar onde possa encerrar tudo o que vou colher? -Aqui está, disse, o que farei: Demolirei os meus celeiros e construirei outros maiores, onde porei toda a minha colheita e todos os meus bens. - E direi a minha alma: Minha alma, tens de reserva muitos bens para longos anos; repousa, come, bebe, goza. Mas, Deus, ao mesmo tempo, disse ao homem: Que insensato és! Esta noite mesmo tomar-te-ão a alma; para que servirá o que acumulaste? É o que acontece àquele que acumula tesouros para si próprio e que não é rico diante de Deus. (S. LUCAS, cap. XII, vv. 13 a 21.)

Jesus em casa de Zaqueu

4. Tendo Jesus entrado em Jericó, passava pela cidade - e havia ali um homem chamado Zaqueu, chefe dos publicanos e muito rico, - o qual, desejoso de ver a Jesus, para conhecê-lo,não o conseguia devido à multidão, por ser ele de estatura muito baixa. - Por isso, correu á frente da turba e subiu a um sicômoro, para o ver, porquanto ele tinha de passar por ali. - Chegando a esse lugar, Jesus dirigiu para o alto o olhar e, vendo-o, disse-lhe: Zaqueu, dá-tepressa em descer, porquanto preciso que me hospedes hoje em tua casa. - Zaqueu desceu imediatamente e o recebeu jubiloso. Vendo isso, todos murmuravam, a dizer: Ele foihospedar-se em casa de um homem de má vida. (Veja-se: "Introdução", artigo - Publicanos.)

Entretanto, Zaqueu, pondo-se diante do Senhor, lhe disse: Senhor, dou a metade dos meus bens aos pobres e, se causei dano a alguém, seja no que for, indenizo-o com quatro tantos. Ao que Jesus lhe disse: Esta casa recebeu hoje a salvação, porque também este é filho de Abraão; visto que o Filho do Homem veio para procurar e salvar o que estava perdido. (S. LUCAS, cap. XIX, vv. 1 a 10.)

Parábola do mau rico

5. Havia um homem rico, que vestia púrpura e linho e se tratava magnificamente todos os dias. -

Havia também um pobre, chamado Lázaro, deitado à sua porta, todo coberto de úlceras, - que muito estimaria poder mitigar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico; mas ,ninguém lhas dava e os cães lhe viam lamber as chagas.

Ora, aconteceu que esse pobre morreu e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão. O rico também morreu e teve por sepulcro o inferno. - Quando se achava nos tormentos, levantou os olhos e via de longe Abraão e Lázaro em seu seio - e, exclamando, disse estas palavras: Pai Abraão, tem piedade de mim e manda-me Lázaro, a fim de que molhe a ponta do dedo na água para me refrescar a língua, pois sofro horrível tormento nestas chamas.

Mas Abraão lhe respondeu: Meu filho, lembra-te de que recebeste em vida teus bens e de que Lázaro só teve males; por isso, ele agora esta na consolação e tu nos tormentos.

Ao demais, existe para sempre um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que queiram passar daqui para aí não o podem, como também ninguém pode passar do lugar onde estás para aqui.

Disse o rico: Eu então te suplico, pai Abraão, que o mandes à casa de meu pai, -onde tenho cinco irmãos, a dar-lhes testemunho destas coisas, a fim de que não venham também eles para este lugar de tormento. - Abraão lhe retrucou: Eles têm Moisés e os profetas; que os escutem. - Não, meu pai Abraão, disse o rico: se algum dos mortos for ter com eles, farão penitência. -Respondeu-lhe Abraão: Se eles não ouvem a Moisés, nem aos profetas, também não acreditarão, ainda mesmo que algum dos mortos ressuscite. (S. LUCAS, cap. XVI, vv. 19 a 31.)

Parábola dos talentos

6. O Senhor age como um homem que, tendo de fazer longa viagem fora do seu país, chamou seus servidores e lhes entregou seus bens. - Depois de dar cinco talentos a um, dois a outro e um a outro, a cada um segundo a sua capacidade, partiu imediatamente. - Então, o que recebeu cinco talentos foi-se, negociou com aquele dinheiro e ganhou cinco outros. - O que recebera dois ganhou, do mesmo modo, outros tantos. Mas o que recebera um cavou um buraco na terra e aí escondeu o dinheiro de seu amo. - Passado longo tempo, o amo daqueles servidores voltou e os chamou a contas.

- Veio o que recebera cinco talentos e lhe apresentou outros cinco, dizendo: Senhor, entregaste-mecinco talentos; aqui estão, além desses, mais cinco que ganhei. -Respondeu-lhe o amo: Servidor bom e fiel; pois que foste fiel em pouca coisa, confiar-te-ei muitas outras; compartilha da alegria do teu senhor. - O que recebera dois talentos apresentou-se a seu turno e lhe disse: Senhor, entregaste-medois talentos; aqui estão, além desses, dois outros que ganhei. - O amo lhe respondeu: Bom e fiel servidor; pois que foste fiel em pouca coisa, confiar-te-ei muitas outras; compartilha da alegria do teu senhor. - Veio em seguida o que recebeu apenas um talento e disse: Senhor, sei que és homem severo, que ceifas onde não semeaste e colhes de onde nada puseste; -

por isso, como te temia, escondi o teu talento na terra; aqui o tens: restituo o que te pertence. - O homem, porém, lhe respondeu: Servidor mau e preguiçoso; se sabias que ceifo onde não semeei e que colho onde nada pus, - devias pôr o meu dinheiro nas mãos dos banqueiros, a fim de que, regressando, eu retirasse com juros o que me pertence. -Tirem-lhe, pois, o talento que está com ele e dêem-no ao que tem dez talentos; -porquanto, dar-se-á a todos os que já têm e esses ficarão cumulados de bens; quanto àquele que nada tem, tirar-se-lhe-á mesmo o que pareça ter; e seja esse servidor inútil lançado nas trevas exteriores, onde haverá prantos e ranger de dentes. (S. MATEUS, cap. XXV, vv. 14 a 30.)

Utilidade providencial da riqueza. Provas da riqueza e da miséria

7. Se a riqueza houvesse de constituir obstáculo absoluto à salvação dos que a possuem, conforme se poderia inferir de certas palavras de Jesus, interpretadas segundo a letra e não segundo o espírito, Deus, que a concede, teria posto nas mãos de alguns um instrumento de perdição, sem apelação nenhuma, idéia que repugna à razão. Sem dúvida, pelos arrastamentos a que dá causa, pelas tentações que gera e pela fascinação que exerce, a riqueza constitui uma prova muito arriscada, mais perigosa do que a miséria. É o supremo excitante do orgulho, do egoísmo e da vida sensual. E o laço mais forte que prende o homem à Terra e lhe desvia do céu os pensamentos. Produz tal vertigem que, muitas vezes, aquele que passa da miséria à riqueza esquece de pronto a sua primeira condição, os que com ele a partilharam, os que o ajudaram, e faz-seinsensível, egoísta e vão. Mas, do fato de a riqueza tornar difícil a jornada, não se segue que a torne impossível e não possa vir a ser um meio de salvação para o que dela sabe servir-se, como certos venenos podem restituir a saúde, se empregados a propósito e com discernimento.

Quando Jesus disse ao moço que o inquiria sobre os meios de ganhar a vida eterna: "Desfase-te de todos os teus bens e segue-me", não pretendeu, decerto, estabelecer como princípio absoluto que cada um deva despojar-se do que possui e que a salvação só a esse preço se obtém; mas, apenas mostrar queo apego aos bens terrenos é um obstáculo à salvação. Aquele moço, com efeito, se julgava quite porque observara certos mandamentos e, no entanto, recusava-se à idéia de abandonar os bens de que era dono. Seu desejo de obter a vida eterna não ia até ao extremo de adquiri-la com sacrifício.

O que Jesus lhe propunha era uma prova decisiva, destinada a pôr a nu o fundo do seu pensamento. Ele podia, sem dúvida, ser um homem perfeitamente honesto na opinião do mundo, não causar dano a ninguém, não maldizer do próximo, não ser vão, nem orgulhoso, honrar a seu pai e a sua mãe. Mas, não tinha a verdadeira caridade; sua virtude não chegava até à abnegação. Isso o que Jesus quis demonstrar. Fazia uma aplicação do princípio: "Fora da caridade não há salvação".

A conseqüência dessas palavras, em sua acepção rigorosa, seria a abolição da riqueza por prejudicial à felicidade futura e como causa de uma imensidade de males na Terra; seria, ao demais, a condenação do trabalho que a pode granjear; conseqüência absurda, que reconduziria o homem à vida selvagem e que, por isso mesmo, estaria em contradição com a lei do progresso, que é lei de Deus.

Se a riqueza é causa de muitos males, se exacerba tanto as más paixões, se provoca mesmo tantos

crimes, não é a ela que devemos inculpar, mas ao homem, que dela abusa, como de todos os dons de Deus. Pelo abuso, ele torna pernicioso o que lhe poderia ser de maior utilidade. E a conseqüência do estado de inferioridade do mundo terrestre. Se a riqueza somente males houvesse de produzir, Deus não a teria posto na Terra. Compete ao homem fazê-la produzir o bem. Se não é um elemento direto de progresso moral, é, sem contestação, poderoso elemento de progresso intelectual.

Com efeito, o homem tem por missão trabalhar pela melhoria material do planeta. Cabe-lhe desobstrui- lo,saneá-lo, dispô-lo para receber um dia toda a população que a sua extensão comporta. Para alimentar essa população que cresce incessantemente, preciso se faz aumentar a produção. Se a produção de um país é insuficiente, será necessário buscá-la fora. Por isso mesmo, as relações entre os povos constituem uma necessidade. A fim de mais as facilitar, cumpre sejam destruídos os obstáculos materiais que os separam e tornadas mais rápidas as comunicações. Para trabalhos que são obra dos séculos, teve o homem de extrair os materiais até das entranhas da terra; procurou na Ciência os meios de os executar com maior segurança e rapidez. Mas, para os levar a efeito, precisa de recursos: a necessidade fê-lo criar a riqueza, como o fez descobrir a Ciência. A atividade que esses mesmos trabalhos impõem lhe amplia e desenvolve a inteligência, e essa inteligência que ele concentra, primeiro, na satisfação das necessidades materiais, o ajudará mais tarde a compreender as grandes verdades morais. Sendo a riqueza o meio primordial de execução, sem ela não mais grandes trabalhos, nem atividade, nem estimulante, nem pesquisas. Com razão, pois, é a riqueza considerada elemento de progresso.

Desigualdade das riquezas

8. A desigualdade das riquezas é um dos problemas que inutilmente se procurará resolver, desde que se considere apenas a vida atual. A primeira questão que se apresenta é esta: Por que não são igualmente ricos todos os homens? Não o são por uma razão muito simples: por não serem igualmente inteligentes, ativos e laboriosos para adquirir, nem sóbrios e previdentes para conservar.E, alias, ponto matematicamente demonstrado que a riqueza, repartida com igualdade, a cada um daria uma parcela mínima e insuficiente; que, supondo efetuada essa repartição, o equilíbrio em pouco tempo estaria desfeito, pela diversidade dos caracteres e das aptidões; que, supondo-a possível e durável, tendo cada um somente com que viver, o resultado seria o aniquilamento de todos os grandes trabalhos que concorrem para o progresso e para o bem-estar da Humanidade; que, admitido desse ela a cada um o necessário, já não haveria o aguilhão que impele os homens às grandes descobertas e aos empreendimentos úteis. Se Deus a concentra em certos pontos, é para que daí se expanda em quantidade suficiente, de acordo com as necessidades.

Admitido isso, pergunta-se por que Deus a concede a pessoas incapazes de fazê-la frutificar para o bem de todos. Ainda aí está uma prova da sabedoria e da bondade de Deus. Dando-lhe olivre-arbítrio, quis ele que o homem chegasse, por experiência própria, a distinguir o bem do mal e que a prática do primeiro resultasse de seus esforços e da sua vontade. Não deve o homem ser conduzido fatalmente ao bem, nem ao mal, sem o que não mais fora senão instrumento passivo e irresponsável como os animais. A riqueza é um meio de o experimentar moralmente. Mas, como, ao mesmo tempo, é poderoso meio de ação para o progresso, não quer Deus que ela permaneça longo tempo improdutiva, pelo que incessantemente a desloca. Cada um tem de possuí-la, para se exercitar em utilizá-la e demonstrar que

uso sabe fazer dela. Sendo, no entanto, materialmente impossível que todos a possuam ao mesmo tempo, e acontecendo, além disso, que, se todos a possuíssem, ninguém trabalharia, com o que o melhoramento do planeta ficaria comprometido, cada um a possui por sua vez. Assim, um que não na tem hoje, já a teve ou terá noutra existência; outro, que agora a tem, talvez não na tenha amanhã. Há ricos e pobres, porque sendo Deus justo, como é, a cada um prescreve trabalhar a seu turno. A pobreza é, para os que a sofrem, a prova da paciência e da resignação; a riqueza é, para os outros, a prova da caridade e da abnegação.

Deploram-se, com razão, o péssimo uso que alguns fazem das suas riquezas, as ignóbeis paixões que a cobiça provoca, e pergunta-se: Deus será justo, dando-as a tais criaturas? E exato que, se o homem só tivesse uma única existência, nada justificaria semelhante repartição dos bens da Terra; se, entretanto, não tivermos em vista apenas a vida atual e, ao contrário, considerarmos o conjunto das existências, veremos que tudo se equilibra com justiça. Carece, pois, o pobre de motivo assim para acusar a Providência, como para invejar os ricos e estes para se glorificarem do que possuem. Se abusam, não será com decretos ou leis suntuárias que se remediará o mal. As leis podem, de momento, mudar o exterior, mas não logram mudar o coração; daí vem serem elas de duração efêmera e quase sempre seguidas de uma reação mais desenfreada. A origem do mal reside no egoísmo e no orgulho: os abusos de toda espécie cessarão quando os homens se regerem pela lei da caridade.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A verdadeira propriedade

9. O homem só possui em plena propriedade aquilo que lhe é dado levar deste mundo. Do que encontra ao chegar e deixa ao partir goza ele enquanto aqui permanece. Forçado, porém, que é a abandonar tudo isso, não tem das suas riquezas a posse real, mas, simplesmente, o usufruto. Que é então o que ele possui? Nada do que é de uso do corpo; tudo o que é de uso da alma: a inteligência, os conhecimentos, as qualidades morais. Isso o que ele traz e leva consigo, o que ninguém lhe pode arrebatar, o que lhe será de muito mais utilidade no outro mundo do que neste. Depende dele ser mais rico ao partir do que ao chegar, visto como, do que tiver adquirido em bem, resultará a sua posição futura. Quando alguém vai a um país distante, constitui a sua bagagem de objetos utilizáveis nesse país; não se preocupa com os que ali lhe seriam inúteis. Procedei do mesmo modo com relação à vida futura; aprovisionai-vos de tudo o de que lá vos possais servir.

Ao viajante que chega a um albergue, bom alojamento é dado, se o pode pagar. A outro, de parcos recursos, toca um menos agradável. Quanto ao que nada tenha de seu, vai dormir numa enxerga. O mesmo sucede ao homem, a sua chegada no mundo dos Espíritos: depende dos seus haveres o lugar para onde vá. Não será, todavia, com o seu ouro que ele o pagará. Ninguém lhe perguntará: Quanto tinhas na Terra? Que posição ocupavas? Eras príncipe ou operário? Perguntar-lhe-ão: Que trazes contigo? Não se lhe avaliarão os bens, nem os títulos, mas a soma das virtudes que possua. Ora, sob esse aspecto, pode o operário ser mais rico do que o príncipe. Em vão alegará que antes de partir da Terra pagou a peso de ouro a sua entrada no outro mundo. Responder-lhe-ão: Os lugares aqui não se compram: conquistam-se

por meio da prática do bem. Com a moeda terrestre, hás podido comprar campos, casas, palácios; aqui, tudo se paga com as qualidades da alma. És rico dessas qualidades? Sê bem-vindo e vai para um dos lugares da primeira categoria, onde te esperam todas as venturas. És pobre delas? Vai para um dos da última, onde serás tratado de acordo com os teus haveres. - Pascal. (Genebra, 1860.)

10. Os bens da Terra pertencem a Deus, que os distribui a seu grado, não sendo o homem senão o usufrutuário, o administrador mais ou menos íntegro e inteligente desses bens. Tanto eles não constituem propriedade individual do homem, que Deus freqüentemente anula todas as previsões e a riqueza foge àquele que se julga com os melhores títulos para possuí-la.

Direis, porventura, que isso se compreende no tocante aos bens hereditários, porém, não relativamente aos que são adquiridos pelo trabalho. Sem dúvida alguma, se há riquezas legitimas, são estas últimas, quando honestamente conseguidas, porquanto uma propriedade só é legitimamente adquirida quando, da sua aquisição, não resulta dano para ninguém. Contas serão pedidas até mesmo de um único ceitil mal ganho, isto é, com prejuízo de outrem. Mas, do fato de um homem dever a si próprio a riqueza que possua, seguir-se-á que, ao morrer, alguma vantagem lhe advenha desse fato? Não são amiúde inúteis as precauções que ele toma para transmiti-la a seus descendentes? Decerto, porquanto, se Deus não quiser que ela lhes vá ter às mãos, nada prevalecerá contra a sua vontade. Poderá o homem usar e abusar de seus haveres durante a vida, sem ter de prestar contas? Não. Permitindo-lhe que a adquirisse, é possível haja Deus tido em vista recompensar-lhe, no curso da existência atual, os esforços, a coragem, a perseverança. Se, porém, ele somente os utilizou na satisfação dos seus sentidos ou do seu orgulho; se tais haveres se lhe tornaram causa de falência, melhor fora não os ter possuído, visto que perde de um lado o que ganhou do outro, anulando o mérito de seu trabalho. Quando deixar a Terra, Deus lhe dirá que já recebeu a sua recompensa. - M., Espírito protetor. (Bruxelas, 1861.)

Emprego da riqueza

11. Não podeis servir a Deus e a Mamon. Guardai bem isso em lembrança, vós, a quem o amor do ouro domina; vós, que venderíeis a alma para possuir tesouros, porque eles permitem vos eleveis acima dos outros homens e vos proporcionam os gozos das paixões que vos escravizam. Não; não podeis servir a Deus e a Mamon! Se, pois, sentis vossa alma dominada pelas cobiças da carne,dai-vos pressa em alijar o jugo que vos oprime, porquanto Deus, justo e severo, vos dirá: Que fizeste, ecônomo infiel, dos bens que te confiei? Esse poderoso móvel de boas obras exclusivamente o empregaste na tua satisfação pessoal.

Qual, então, o melhor emprego que se pode dar à riqueza? Procurai - nestas palavras: "Amai-vos uns aos outros", a solução do problema. Elas guardam o segredo do bom emprego das riquezas. Aquele que se acha animado do amor do próximo tem aí toda traçada a sua linha de proceder. Na caridade está, para as riquezas, o emprego que mais apraz a Deus. Não nos referimos, é claro, a essa caridade fria e egoísta, que consiste em a criatura espalhar ao seu derredor o supérfluo de uma existência dourada. Referimo- nos à caridade plena de amor, que procura a desgraça e a ergue, sem a humilhar. Rico!... dá do que te sobra; faze mais: dá um pouco do que te é necessário, porquanto o de que necessitas ainda é supérfluo.

Mas, dá com sabedoria. Não repilas o que se queixa, com receio de que te engane; vai às origens do mal. Alivia, primeiro; em seguida, informa-te, e vê se o trabalho, os conselhos, mesmo a afeição não serão mais eficazes do que a tua esmola. Difunde em torno de ti, como os socorros materiais, o amor de Deus, o amor do trabalho, o amor do próximo. Coloca tuas riquezas sobre uma base que nunca lhes faltará e que te trará grandes lucros: a das boas obras. A riqueza da inteligência deves utilizá-la como a do ouro. Derrama em tomo de ti os tesouros da instrução; derrama sobre teus irmãos os tesouros do teu amor e eles frutificarão. -Cheverus. (Bordéus, 1861.)

12. Quando considero a brevidade da vida, dolorosamente me impressiona a incessante preocupação de que é para vós objeto o bem-estar material, ao passo que tão pouca importância dais ao vosso aperfeiçoamento moral, a que pouco ou nenhum tempo consagrais e que, no entanto, é o que importa para a eternidade. Dir-se-ia, diante da atividade que desenvolveis, tratar-se de uma questão do mais alto interesse para a humanidade, quando não se trata, na maioria dos casos, senão de vos pordes em condições de satisfazer a necessidades exageradas, à vaidade, ou de vos entregardes a excessos. Que de penas, de amofinações, de tormentos cada um se impõe; que de noites de insônia, para aumentar haveres muitas vezes mais que suficientes! Por cúmulo de cegueira, freqüentemente se encontram pessoas, escravizadas a penosos trabalhos pelo amor imoderado da riqueza e dos gozos que ela proporciona, a se vangloriarem de viver uma existência dita de sacrifício e de mérito - como se trabalhassem para os outros e não para si mesmas! Insensatos! Credes, então, realmente, que vos serão levados em conta os cuidados e os esforços que despendeis movidos pelo egoísmo, pela cupidez ou pelo orgulho, enquanto negligenciais do vosso futuro, bem como dos deveres que a solidariedade fraterna impõe a todos os que gozam das vantagens da vida social? Unicamente no vosso corpo haveis pensado; seu bem-estar, seus prazeres foram o objeto exclusivo da vossa solicitude egoística. Por ele, que morre, desprezastes o vosso Espírito, que viverá sempre. Por isso mesmo, esse senhor tão animado e acariciado se tornou o vosso tirano; ele manda sobre o vosso Espírito, que se lhe constituiu escravo. Seria essa a finalidade da existência que Deus vos outorgou? -

Um Espírito Protetor. (Cracóvia, l861.)

13. Sendo o homem o depositário, o administrador dos bens que Deus lhe pôs nas mãos, contas severas lhe serão pedidas do emprego que lhes haja ele dado, em virtude do seu livre-arbítrio. O mau uso consiste em os aplicar exclusivamente na sua satisfação pessoal; bom é o uso, ao contrário, todas as vezes que deles resulta um bem qualquer para outrem. O merecimento de cada um está na proporção do sacrifício que se impõe a si mesmo. A beneficência é apenas um modo de empregar-se a riqueza; ela dá alívio à miséria presente; aplaca a fome, preserva do frio e proporciona abrigo ao que não o tem. Dever, porem, igualmente imperioso e meritório é o de prevenir a miséria. Tal, sobretudo, a missão das grandes fortunas, missão a ser cumprida mediante os trabalhos de todo gênero que com elas se podem executar. Nem, pelo fato de tirarem desses trabalhos legítimo proveito os que assim as empregam, deixaria de existir o bem resultante delas, porquanto o trabalho desenvolve a inteligência e exalça a dignidade do homem, facultando-lhe dizer, altivo, que ganha o pão que come, enquanto a esmola humilha e degrada. A riqueza concentrada em uma mão deve ser qual fonte de água viva que espalha a fecundidade e o bem- estar ao seu derredor. O vós, ricos, que a empregardes segundo as vistas do Senhor! O vosso coração será o primeiro a dessedentar-se nessa fonte benfazeja; já nesta existência fruireis os inefáveis gozos da

alma, em vez dos gozos materiais do egoísta, que produzem no coração o vazio. Vossos nomes serão benditos na Terra e, quando a deixardes, o soberano Senhor vos dirá, como na parábola dos talentos: "Bom e fiel servo, entra na alegria do teu Senhor." Nessa parábola, o servidor que enterrou o dinheiro que lhe fora confiado é a representação dos avarentos, em cujas mãos se conserva improdutiva a riqueza. Se, entretanto, Jesus fala principalmente das esmolas, é que naquele tempo e no país em que ele vivia não se conheciam os trabalhos que as artes e a indústria criaram depois e nas quais as riquezas podem ser aplicadas utilmente para o bem geral. A todos os que podem dar, pouco ou muito, direi, pois: dai esmola quando for preciso; mas, tanto quanto possível, convertei-a em salário, a fim de que aquele que a receba não se envergonhe dela. - Fénelon. (Argel, 1860.)

Desprendimento dos bens terrenos

14. Venho, meus irmãos, meus amigos, trazer-vos o meu óbolo, a fim de vos ajudar a avançar, desassombradamente, pela senda do aperfeiçoamento em que entrastes. Nós nos devemos uns aos outros; somente pela união sincera e fraternal entre os Espíritos e os encarnados será possível a regeneração.

O amor aos bens terrenos constitui um dos mais fortes óbices ao vosso adiantamento moral e espiritual. Pelo apego à posse de tais bens, destruís as vossas faculdades de amar, com as aplicardes todas às coisas materiais. Sede sinceros: proporciona a riqueza uma felicidade sem mescla? Quando tendes cheios os cofres, não há sempre um vazio no vosso coração? No fundo dessa cesta de flores não há sempre oculto um réptil? Compreendo a satisfação, bem justa, aliás, que experimenta o homem que, por meio de trabalho honrado e assíduo, ganhou uma fortuna; mas, dessa satisfação, muito natural e que Deus aprova, a um apego que absorve todos os outros sentimentos e paralisa os impulsos do coração vai grande distância, tão grande quanto a que separa da prodigalidade exagerada a sórdida avareza, dois vícios entre os quais colocou Deus a caridade, santa e salutar virtude que ensina o rico a dar sem ostentação, para que o pobre receba sem baixeza.

Quer a fortuna vos tenha vindo da vossa família, quer a tenhais ganho com o vosso trabalho, há uma coisa que não deveis esquecer nunca: é que tudo promana de Deus, tudo retorna a Deus. Nada vos pertence na Terra, nem sequer o vosso pobre corpo: a morte vos despoja dele, como de todos os bens materiais. Sois depositários e não proprietários, não vos iludais. Deus vo-los emprestou, tendes de lhos restituir; e ele empresta sob a condição de que o supérfluo, pelo menos, caiba aos que carecem do necessário.

Um dos vossos amigos vos empresta certa quantia. Por pouco honesto que sejais, fazeis questão de lha restituirdes escrupulosamente e lhe ficais agradecido. Pois bem: essa a posição de todo homem rico. Deus é o amigo celestial, que lhe emprestou a riqueza, não querendo para si mais do que o amor e o reconhecimento do rico. Exige deste, porém, que a seu turno dê aos pobres, que são, tanto quanto ele, seus filhos.

Ardente e desvairada cobiça despertam nos vossos corações os bens que Deus vos confiou. Já pensastes,

quando vos deixais apegar imoderadamente a uma riqueza perecível e passageira como vós mesmos, que um dia tereis de prestar contas ao Senhor daquilo que vos veio dEle? Olvidais que, pela riqueza, vos revestistes do caráter sagrado de ministros da caridade na Terra, para serdes da aludida riqueza dispensadores inteligentes? Portanto, quando somente em vosso proveito usais do que se vos confiou, que sois, senão depositários infiéis? Que resulta desse esquecimento voluntário dos vossos deveres? A morte, inflexível, inexorável, rasga o véu sob que vos ocultáveis e vos força a prestar contas ao Amigo que vos favorecera e que nesse momento enverga diante de vós a toga de juiz.

Em vão procurais na Terra iludir-vos, colorindo com o nome de virtude o que as mais das vezes não passa de egoísmo. Em vão chamais economia e previdência ao que apenas é cupidez e avareza, ou generosidade ao que não é senão prodigalidade em proveito vosso. Um pai de família, por exemplo, se abstém de praticar a caridade, economizará, amontoará ouro, para, diz ele, deixar aos filhos a maior soma possível de bens e evitar que caiam na miséria. E muito justo e paternal, convenho, e ninguém pode censurar. Mas será sempre esse o único móvel a que ele obedece? Não será muitas vezes um compromisso com a sua consciência, para justificar, aos seus próprios olhos e aos olhos do mundo, seu apego pessoal aos bens terrenais? Admitamos, no entanto, seja o amor paternal o único móvel que o guie. Será isso motivo para que esqueça seus irmãos perante Deus? Quando já ele tem o supérfluo, deixará na miséria os filhos, por lhes ficar um pouco menos desse supérfluo? Não será, antes, dar-lhes uma lição de egoísmo e endurecer-lhes os corações? Não será estiolar neles o amor ao próximo? Pais e mães, laborais em grande erro, se credes que desse modo granjeais maior afeição dos vossos filhos. Ensinando-lhes a ser egoístas para com os outros, ensinais-lhes a sê-lopara com vos mesmos.

A um homem que muito haja trabalhado, e que com o suor de seu rosto acumulou bens, é comum ouvirdes dizer que, quando o dinheiro é ganho, melhor se lhe conhece o valor. Nada mais exato. Pois bem! Pratique a caridade, dentro das suas possibilidades, esse homem que declara conhecer todo o valor do dinheiro, e maior será o seu merecimento, do que o daquele que, nascido na abundância, ignora as rudes fadigas do trabalho. Mas, também, se esse homem, que se recorda dos seus penares, dos seus esforços, for egoísta, impiedoso para com os pobres, bem mais culpado se tornará do que o outro, pois, quanto melhor cada um conhece por si mesmo as dores ocultas da miséria, tanto mais propenso deve sentir-se em aliviá-las nos outros.

Infelizmente, sempre há no homem que possui bens de fortuna um sentimento tão forte quanto o apego aos mesmos bens: é o orgulho. Não raro, vê-se o arrivista atordoar, com a narrativa de seus trabalhos e de suas habilidades, o desgraçado que lhe pede assistência, em vez de acudi-lo, e acabar dizendo: "Faça o que eu fiz." Segundo o seu modo de ver, a bondade de Deus não entra por coisa alguma na obtenção da riqueza que conseguiu acumular; pertence-lhe a ele, exclusivamente, o mérito de a possuir. O orgulho lhe põe sobre os olhos uma venda e lhe tapa os ouvidos. Apesar de toda a sua inteligência e de toda a sua aptidão, não compreende que, com uma só palavra, Deus o pode lançar por terra.

Esbanjar a riqueza não é demonstrar desprendimento dos bens terrenos: é descaso e indiferença. Depositário desses bens, não tem o homem o direito de os dilapidar, como não tem o de os confiscar em seu proveito. Prodigalidade não é generosidade: é, freqüentemente, uma modalidade do egoísmo. Um, que despenda a mancheias o ouro de que disponha, para satisfazer a uma fantasia, talvez não dê um

centavo para prestar um serviço. O desapego aos bens terrenos consiste em apreciá-los no seu justo valor, em saber servir-se deles em benefício dos outros e não apenas em benefício próprio, em não sacrificar por eles os interesses da vida futura, em perdê-los sem murmurar, caso apraza a Deus retirá- los. Se, por efeito de imprevistos reveses, vos tornardes qual Job, dizei, como ele: "Senhor, tu mos havias dado e mos tiraste. Faça-se a tua vontade." Eis ai o verdadeiro desprendimento. Sede, antes de tudo, submissos; confiai nAquele que, tendo-vos dado e tirado, pode novamente restituir-vos o que vos tirou. Resisti animosos ao abatimento, ao desespero, que vos paralisam as forças. Quando Deus vos desferir um golpe, não esqueçais nunca que, ao lado da mais rude prova, coloca sempre uma consolação. Ponderai, sobretudo, que há bens infinitamente mais preciosos do que os da Terra e essa idéia vos ajudará a desprender-vos destes últimos. O pouco apreço que se ligue a uma coisa faz que menos sensível seja a sua perda. O homem que se aferra aos bens terrenos é como a criança que somente vê o momento que passa. O que deles se desprende é como o adulto que vê as coisas mais importantes, por compreender estas proféticas palavras do Salvador: "O meu reino não é deste mundo." A ninguém ordena o Senhor que se despoje do que possua, condenando-se a uma voluntária mendicidade, porquanto o que tal fizesse tornar-se-ia em carga para a sociedade. Proceder assim fora compreender mal o desprendimento dos bens terrenos. Fora egoísmo de outro gênero, porque seria o indivíduo eximir-se da responsabilidade que a riqueza faz pesar sobre aquele que a possui. Deus a concede a quem bem lhe parece, a fim de que a administre em proveito de todos. O rico tem, pois, uma missão, que ele pode embelezar e tornar proveitosa a si mesmo. Rejeitar a riqueza, quando Deus a outorga, é renunciar aos benefícios do bem que se pode fazer, gerindo-a com critério. Sabendo prescindir dela quando não a tem, sabendo empregá-la utilmente quando a possui, sabendo sacrificá-laquando necessário, procede a criatura de acordo com os desígnios do Senhor. Diga, pois, aquele a cujas mãos venha o que no mundo se chama uma boa fortuna: Meu Deus, tu me destinaste um novo encargo; dá-me a força de desempenhá- lo segundo a tua santa vontade.

Aí tendes, meus amigos, o que eu vos queria ensinar acerca do desprendimento dos bens terrenos. Resumirei o que expus, dizendo: Sabei contentar-vos com pouco. Se sois pobres, não invejeis os ricos, porquanto a riqueza não é necessária à felicidade. Se sois ricos, não esqueçais que os bens de que dispondes apenas vos estão confiados e que tendes de justificar o emprego que lhes derdes, como se prestásseis contas de uma tutela. Não sejais depositário infiel, utilizando-os unicamente em satisfação do vosso orgulho e da vossa sensualidade. Não vos julgueis com o direito de dispor em vosso exclusivo proveito daquilo que recebestes, não por doação, mas simplesmente como empréstimo. Se não sabeis restituir, não tendes o direito de pedir, e lembrai-vos de que aquele que dá aos pobres, salda a dívida que contraiu com Deus. - Lacordaire. (Constantina, 1863.)

Transmissão de riqueza

15. O principio, segundo o qual ele é apenas depositário da fortuna de que Deus lhe permite gozar durante a vida, tira ao homem o direito de transmiti-la aos seus descendentes?

O homem pode perfeitamente transmitir, por sua morte, aquilo de que gozou durante a vida, porque o efeito desse direito está subordinado sempre à vontade de Deus, que pode, quando quiser, impedir que aqueles descendentes gozem do que lhes foi transmitido. Não é outra a razão por que desmoronam

fortunas que parecem solidamente constituídas. E, pois, impotente a vontade do homem para conservar nas mãos da sua descendência a fortuna que possua. Isso, entretanto, não o priva do direito de transmitir o empréstimo que recebeu de Deus, uma vez que Deus pode retirá-lo, quando o julgue oportuno. - São Luís. (Paris, 1860.)

[Capítulo XVII]

CAPÍTULO XVII

SEDE PERFEITOS

Caracteres da perfeição. - O homem de bem. - Os bons espíritas. - Parábola do semeador.-Instruções dos Espíritos: O dever. - A virtude. - Os superiores e os inferiores. - O homem no mundo. - Cuidai do corpo e do espírito.

Caracteres da perfeição

1. Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam. - Porque, se somente amardes os que vos amam que recompensa tereis disso? Não fazem assim também os publicanos? - Se unicamente saudardes os vossos irmãos, que fazeis com isso mais do que outros? Não fazem o mesmo os pagãos? -

Sede, pois, vós outros, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celestial. (S. MATEUS, cap. V, vv. 44, 46 a 48.)

2. Pois que Deus possui a perfeição infinita em todas as coisas, esta proposição: "Sede perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celestial", tomada ao pé da letra, pressuporia a possibilidade deatingir-se a perfeição absoluta. Se à criatura fosse dado ser tão perfeita quanto o Criador, tornar-se-iaela igual a este, o que é inadmissível. Mas, os homens a quem Jesus falava não compreenderiam essa nuança, pelo que ele se limitou a lhes apresentar um modelo e a dizer-lhes que se esforçassem pelo alcançar.

Aquelas palavras, portanto, devem entender-se no sentido da perfeição relativa, a de que a Humanidade é suscetível e que mais a aproxima da Divindade. Em que consiste essa perfeição? Jesus o diz: "Em amarmos os nossos inimigos, em fazermos o bem aos que nos odeiam, em orarmos pelos que nos perseguem." Mostra ele desse modo que a essência da perfeição é a caridade na sua mais ampla acepção, porque implica a prática de todas as outras virtudes.

Com efeito, se se observam os resultados de todos os vícios e, mesmo, dos simples defeitos, reconhecer-se-á nenhum haver que não altere mais ou menos o sentimento da caridade, porque todos têm seu princípio no egoísmo e no orgulho, que lhes são a negação; e isso porque tudo o que sobreexcita o sentimento da personalidade destrói, ou, pelo menos, enfraquece os elementos da verdadeira caridade, que são: a benevolência, a indulgência, a abnegação e o devotamento. Não podendo o amor do próximo,

levado até ao amor dos inimigos, aliar-se a nenhum defeito contrário à caridade, aquele amor é sempre, portanto, indício de maior ou menor superioridade moral, donde decorre que o grau da perfeição está na razão direta da sua extensão. Foi por isso que Jesus, depois de haver dado a seus discípulos as regras da caridade, no que tem de mais sublime, lhes disse: "Sede perfeitos, como perfeito é vosso Pai celestial."

O homem de bem

3. O verdadeiro homem de bem é o que cumpre a lei de justiça, de amor e de caridade, na sua maior pureza. Se ele interroga a consciência sobre seus próprios atos, a si mesmo perguntará se violou essa lei, se não praticou o mal, se fez todo o bem que podia, se desprezou voluntariamente alguma ocasião de ser útil, se ninguém tem qualquer queixa dele; enfim, se fez a outrem tudo o que desejara lhe fizessem.

Deposita fé em Deus, na Sua bondade, na Sua justiça e na Sua sabedoria. Sabe que sem a Sua permissão nada acontece e se Lhe submete à vontade em todas as coisas.

Tem fé no futuro, razão por que coloca os bens espirituais acima dos bens temporais.

Sabe que todas as vicissitudes da vida, todas as dores, todas as decepções são provas ou expiações e as aceita sem murmurar.

Possuído do sentimento de caridade e de amor ao próximo, faz o bem pelo bem, sem esperar paga alguma; retribui o mal com o bem, toma a defesa do fraco contra o forte, e sacrifica sempre seus interesses à justiça.

Encontra satisfação nos benefícios que espalha, nos serviços que presta, no fazer ditosos os outros, nas lágrimas que enxuga, nas consolações que prodigaliza aos aflitos. Seu primeiro impulso é para pensar nos outros, antes de pensar em si, é para cuidar dos interesses dos outros antes do seu próprio interesse. O egoísta, ao contrário, calcula os proventos e as perdas decorrentes de toda ação generosa.

O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos, sem distinção de raças, nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos seus.

Respeita nos outros todas as convicções sinceras e não lança anátema aos que como ele não pensam.

Em todas as circunstâncias, toma por guia a caridade, tendo como certo que aquele que prejudica a outrem com palavras malévolas, que fere com o seu orgulho e o seu desprezo a suscetibilidade de alguém, que não recua à idéia de causar um sofrimento, uma contrariedade, ainda que ligeira, quando a pode evitar, falta ao dever de amar o próximo e não merece a demência do Senhor.

Não alimenta ódio, nem rancor, nem desejo de vingança; a exemplo de Jesus, perdoa e esquece as ofensas e só dos benefícios se lembra, por saber que perdoado lhe será conforme houver perdoado.

É indulgente para as fraquezas alheias, porque sabe que também necessita de indulgência e tem presente esta sentença do Cristo: "Atire-lhe a primeira pedra aquele que se achar sem pecado." Nunca se compraz em rebuscar os defeitos alheios, nem, ainda, em evidenciá-los. Se a isso se vê obrigado, procura sempre o bem que possa atenuar o mal.

Estuda suas próprias imperfeições e trabalha incessantemente em combatê-las. Todos os esforços emprega para poder dizer, no dia seguinte, que alguma coisa traz em si de melhor do que na véspera.

Não procura dar valor ao seu espírito, nem aos seus talentos, a expensas de outrem; aproveita, ao revés, todas as ocasiões para fazer ressaltar o que seja proveitoso aos outros.

Não se envaidece da sua riqueza, nem de suas vantagens pessoais, por saber que tudo o que lhe foi dado pode ser-lhe tirado.

Usa, mas não abusa dos bens que lhe são concedidos, porque sabe que é um depósito de que terá de prestar contas e que o mais prejudicial emprego que lhe pode dar é o de aplicá-lo à satisfação de suas paixões.

Se a ordem social colocou sob o seu mando outros homens, trata-os com bondade e benevolência, porque são seus iguais perante Deus; usa da sua autoridade para lhes levantar o moral e não para os esmagar com o seu orgulho. Evita tudo quanto lhes possa tornar mais penosa a posição subalterna em que se encontram.

O subordinado, de sua parte, compreende os deveres da posição que ocupa e se empenha emcumpri-los conscienciosamente. (Cap. XVII, nº 9.) Finalmente, o homem de bem respeita todos os direitos que aos seus semelhantes dão as leis da Natureza, como quer que sejam respeitados os seus.

Não ficam assim enumeradas todas as qualidades que distinguem o homem de bem; mas, aquele que se esforce por possuir as que acabamos de mencionar, no caminho se acha que a todas as demais conduz.

Os bons espíritas

4. Bem compreendido, mas sobretudo bem sentido, o Espiritismo leva aos resultados acima expostos, que caracterizam o verdadeiro espírita, como o cristão verdadeiro, pois que um o mesmo é que outro. O Espiritismo não institui nenhuma nova moral; apenas facilita aos homens a inteligência e a prática da do Cristo, facultando fé inabalável e esclarecida aos que duvidam ou vacilam.

Muitos, entretanto, dos que acreditam nos fatos das manifestações não lhes apreendem as conseqüências, nem o alcance moral, ou, se os apreendem, não os aplicam a si mesmos. A que atribuir isso? A alguma falta de clareza da Doutrina? Não, pois que ela não contém alegorias nem figuras que possam dar lugar a falsas interpretações. A clareza e da sua essência mesma e é donde lhe vem toda a força, porque a faz ir direito à inteligência. Nada tem de misteriosa e seus iniciados não se acham de posse de qualquer

segredo, oculto ao vulgo.

Será então necessária, para compreendê-la, uma inteligência fora do comum? Não, tanto que há homens de notória capacidade que não a compreendem, ao passo que inteligências vulgares, moços mesmo, apenas saídos da adolescência, lhes apreendem, com admirável precisão, os mais delicados matizes. Provém isso de que a parte por assim dizer material da ciência somente requer olhos que observem, enquanto a parte essencial exige um certo grau de sensibilidade, a que se pode chamar maturidade do senso moral, maturidade que independe da idade e do grau de instrução, porque é peculiar ao desenvolvimento, em sentido especial, do Espírito encamado.

Nalguns, ainda muito tenazes são os laços da matéria para permitirem que o Espírito se desprenda das coisas da Terra; a névoa que os envolve tira-lhes a visão do infinito, donde resulta não romperem facilmente com os seus pendores nem com seus hábitos, não percebendo haja qualquer coisa melhor do que aquilo de que são dotados. Têm a crença nos Espíritos como um simples fato, mas que nada ou bem pouco lhes modifica as tendências instintivas. Numa palavra: não divisam mais do que um raio de luz, insuficiente a guiá-los e a lhes facultar uma vigorosa aspiração, capaz de lhes sobrepujar as inclinações. Atêm-se mais aos fenômenos do que a moral, que se lhes afigura cediça e monótona. Pedem aos Espíritos que incessantemente os iniciem em novos mistérios, sem procurar saber se já se tornaram dignos de penetrar Os arcanos do Criador. Esses são os espíritas imperfeitos, alguns dos quais ficam a meio caminho ou se afastam de seus irmãos em crença, porque recuam ante a obrigação de se reformarem, ou então guardam as suas simpatias para os que lhes compartilham das fraquezas ou das prevenções. Contudo, a aceitação do princípio da doutrina é um primeiro passo que lhes tornará mais fácil o segundo, noutra existência.

Aquele que pode ser, com razão, qualificado de espírita verdadeiro e sincero, se acha em grau superior de adiantamento moral. O Espírito, que nele domina de modo mais completo a matéria,dá-lhe uma percepção mais clara do futuro; os princípios da Doutrina lhe fazem vibrar fibras que nos outros se conservam inertes. Em suma: é tocado no coração, pelo que inabalável se lhe torna a fé. Um é qual músico que alguns acordes bastam para comover, ao passo que outro apenas ouve sons.Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más.

Enquanto um se contenta com o seu horizonte limitado, outro, que apreende alguma coisa de melhor, se esforça por desligar-se dele e sempre o consegue, se tem firme a vontade.

Parábola do semeador

5. Naquele mesmo dia, tendo saído de casa, Jesus sentou-se à borda do mar; - em torno dele logoreuniu-se grande multidão de gente; pelo que entrou numa barca, onde sentou-se, permanecendo na margem todo o povo. - Disse então muitas coisas por parábolas, falando-lhes assim: Aquele que semeia saiu a semear; - e, semeando, uma parte da semente caiu ao longo do caminho e os pássaros do céu vieram e a comeram. - Outra parte caiu em lugares pedregosos onde não havia muita terra;

as sementes logo brotaram, porque carecia de profundidade a terra onde haviam caído. - Mas, levantando-se, o sol as queimou e, como não tinham raízes, secaram. - Outra parte caiu entre espinheiros e estes, crescendo, as abafaram. Outra, finalmente, caiu em terra boa e produziu frutos, dando algumas sementes cem por um, outras sessenta e outras trinta. - Ouça quem tem ouvidos de ouvir. (S. MATEUS, cap. XIII, vv. 1 a 9.)

Escutai, pois, vós outros a parábola do semeador. - Quem quer que escuta a palavra do reino e não lhe dá atenção, vem o espírito maligno e tira o que lhe fora semeado no coração. Esse é o que recebeu a semente ao longo do caminho. - Aquele que recebe a semente em meio das pedras é o que escuta a palavra e que a recebe com alegria no primeiro momento. - Mas, não tendo nele raízes, dura apenas algum tempo. Em sobrevindo reveses e perseguições por causa da palavra, tira ele daí motivo de escândalo e de queda. - Aquele que recebe a semente entre espinheiros é o que ouve a palavra; mas, em quem, logo, os cuidados deste século e a ilusão das riquezas abafam aquela palavra e a tornam infrutífera. - Aquele, porém, que recebe a semente em boa terra é o que escuta a palavra, que lhe presta atenção e em quem ela produz frutos, dando cem ou sessenta, ou trinta por um. (S. MATEUS, cap. XIII. vv. 18 a 23.)

6. A parábola do semeador exprime perfeitamente os matizes existentes na maneira de serem utilizados os ensinos do Evangelho. Quantas pessoas há, com efeito, para as quais não passa ele de letra morta e que, como a semente caída sobre pedregulhos, nenhum fruto dá!

Não menos justa aplicação encontra ela nas diferentes categorias espíritas. Não se acham simbolizados nela os que apenas atentam nos fenômenos materiais e nenhuma conseqüência tiram deles, porque neles mais não vêem do que fatos curiosos? Os que apenas se preocupam com o lado brilhante das comunicações dos Espíritos, pelas quais só se interessam quando lhes satisfazem à imaginação, e que, depois de as terem ouvido, se conservam tão frios e indiferentes quanto eram? Os que reconhecem muito bons os conselhos e os admiram, mas para serem aplicados aos outros e não a si próprios? Aqueles, finalmente, para os quais essas instruções são como a semente que cai em terra boa e dá frutos?

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

O dever

7. O dever é a obrigação moral da criatura para consigo mesma, primeiro, e, em seguida, para com os outros. O dever é a lei da vida. Com ele deparamos nas mais ínfimas particularidades, como nos atos mais elevados. Quero aqui falar apenas do dever moral e não do dever que as profissões impõem.

Na ordem dos sentimentos, o dever é muito difícil de cumprir-se, por se achar em antagonismo com as atrações do interesse e do coração. Não têm testemunhas as suas vitórias e não estão sujeitas à repressão suas derrotas. O dever íntimo do homem fica entregue ao seu livre-arbítrio. O aguilhão da consciência, guardião da probidade interior, o adverte e sustenta; mas, muitas vezes, mostra-se impotente diante dos sofismas da paixão. Fielmente observado, o dever do coração eleva o homem; como determiná-lo,

porém, com exatidão? Onde começa ele? onde termina? O dever principia, para cada um de vós, exatamente no ponto em que ameaçais a felicidade ou a tranqüilidade do vosso próximo; acaba no limite que não desejais ninguém transponha com relação a vós.

Deus criou todos os homens iguais para a dor. Pequenos ou grandes, ignorantes ou instruídos, sofrem todos pelas mesmas causas, a fim de que cada um julgue em sã consciência o mal que pode fazer. Com relação ao bem, infinitamente vário nas suas expressões, não é o mesmo o critério. A igualdade em face da dor é uma sublime providência de Deus, que quer que todos os seus filhos, instruídos pela experiência comum, não pratiquem o mal, alegando ignorância de seus efeitos.

O dever é o resumo prático de todas as especulações morais; é uma bravura da alma que enfrenta as angústias da luta; é austero e brando; pronto a dobrar-se às mais diversas complicações, conserva-seinflexível diante das suas tentações. O homem que cumpre o seu dever ama a Deus mais do que as criaturas e ama as criaturas mais do que a si mesmo. E a um tempo juiz e escravo em causa própria.

O dever é o mais belo laurel da razão; descende desta como de sua mãe o filho. O homem tem de amar o dever, não porque preserve de males a vida, males aos quais a Humanidade não podesubtrair-se, mas porque confere à alma o vigor necessário ao seu desenvolvimento.

O dever cresce e irradia sob mais elevada forma, em cada um dos estágios superiores da Humanidade. Jamais cessa a obrigação moral da criatura para com Deus. Tem esta de refletir as virtudes do Eterno, que não aceita esboços imperfeitos, porque quer que a beleza da sua obra resplandeça a seus próprios olhos. - Lázaro. (Paris, 1863.)

A virtude

8. A virtude, no mais alto grau, é o conjunto de todas as qualidades essenciais que constituem o homem de bem. Ser bom, caritativo, laborioso, sóbrio, modesto, são qualidades do homem virtuoso. Infelizmente, quase sempre as acompanham pequenas enfermidades morais que as desornam e atenuam. Não é virtuoso aquele que faz ostentação da sua virtude, pois que lhe falta a qualidade principal: a modéstia, e tem o vício que mais se lhe opõe: o orgulho. A virtude, verdadeiramente digna desse nome, não gosta de estadear-se. Adivinham-na; ela, porém, se oculta na obscuridade e foge à admiração das massas. S. Vicente de Paulo era virtuoso; eram virtuosos o digno cura d'Ars e muitos outros quase desconhecidos do mundo, mas conhecidos de Deus. Todos esses homens de bem ignoravam que fossem virtuosos; deixavam-se ir ao sabor de suas santas inspirações e praticavam o bem com desinteresse completo e inteiro esquecimento de si mesmos.

À virtude assim compreendida e praticada é que vos convido, meus filhos; a essa virtude verdadeiramente cristã e verdadeiramente espírita é que vos concito a consagrar-vos. Afastai, porém, de vossos corações tudo o que seja orgulho, vaidade, amor-próprio, que sempre desadornam as mais belas qualidades. Não imiteis o homem que se apresenta como modelo e trombeteia, ele próprio, suas qualidades a todos os ouvidos complacentes. A virtude que assim se ostenta esconde muitas vezes uma

imensidade de pequenas torpezas e de odiosas covardias.

Em princípio, o homem que se exalça, que ergue uma estátua à sua própria virtude, anula, por esse simples fato, todo mérito real que possa ter. Entretanto, que direi daquele cujo único valor consiste em parecer o que não é? Admito de boamente que o homem que pratica o bem experimenta uma satisfação íntima em seu coração; mas, desde que tal satisfação se exteriorize, para colher elogios, degenera em amor-próprio.

O vós todos a quem a fé espírita aqueceu com seus raios, e que sabeis quão longe da perfeição está o homem, jamais esbarreis em semelhante escolho. A virtude é uma graça que desejo a todos os espíritas sinceros. Contudo, dir-lhes-ei: Mais vale pouca virtude com modéstia, do que muita com orgulho. Pelo orgulho é que as humanidades sucessivamente se hão perdido; pela humildade é que um dia elas se hão de redimir. François-Nicolas-Madeleine. (Paris, 1863.)

Os superiores e os inferiores

9. A autoridade, tanto quanto a riqueza, é uma delegação de que terá de prestar contas aquele que se ache dela investido. Não julgueis que lhe seja ela conferida para lhe proporcionar o vão prazer de mandar; nem, conforme o supõe a maioria dos potentados da Terra, como um direito, uma propriedade. Deus, aliás, lhes prova constantemente que não é nem uma nem outra coisa, pois que deles a retira quando lhe apraz. Se fosse um privilégio inerente às suas personalidades, seria inalienável. A ninguém cabe dizer que uma coisa lhe pertence, quando lhe pode ser tirada sem seu consentimento. Deus confere a autoridade a título de missão, ou de prova, quando o entende, e a retira quando julga conveniente.

Quem quer que seja depositário de autoridade, seja qual for a sua extensão, desde a do senhor sobre o seu servo, até a do soberano sobre o seu povo, não deve olvidar que tem almas a seu cargo; que responderá pela boa ou má diretriz que dê aos seus subordinados e que sobre ele recairão as faltas que estes cometam, os vícios a que sejam arrastados em conseqüência dessa diretriz ou dos maus exemplos, do mesmo modo que colherá os frutos da solicitude que empregar para os conduzir ao bem. Todo homem tem na Terra uma missão, grande ou pequena; qualquer que ela seja, sempre lhe é dada para o bem; falseá-la em seu princípio é, pois, falir ao seu desempenho.

Assim como pergunta ao rico: "Que fizeste da riqueza que nas tuas mãos devera ser um manancial a espalhar a fecundidade ao teu derredor", também Deus inquirirá daquele que disponha de alguma autoridade: "Que uso fizeste dessa autoridade? Que males evitaste? Que progresso facultaste? Se te dei subordinados, não foi para que os fizesses escravos da tua vontade, nem instrumentos dóceis aos teus caprichos ou à tua cupidez; fiz-te forte e confiei-te os que eram fracos, para que os amparasses e ajudasses a subir ao meu seio." O superior, que se ache compenetrado das palavras do Cristo, a nenhum despreza dos que lhe estejam submetidos, porque sabe que as distinções sociais não prevalecem às vistas de Deus. Ensina-lhe o Espiritismo que, se eles hoje lhe obedecem, talvez já lhe tenham dado ordens, ou poderão dar-lhas mais tarde, e que ele então será tratado conforme os haja tratado, quando sobre eles exercia autoridade.

Mas, se o superior tem deveres a cumprir, o inferior, de seu lado, também os tem e não menos sagrados. Se for espírita, sua consciência ainda mais imperiosamente lhe dirá que não podeconsiderar-se dispensado de cumpri-los, nem mesmo quando o seu chefe deixe de dar cumprimento aos que lhe correm, porquanto sabe muito bem não ser lícito retribuir o mal com o mal e que as faltas de uns não justificam as de outrem. Se a sua posição lhe acarreta sofrimentos, reconhecerá que sem dúvida os mereceu, porque, provavelmente, abusou outrora da autoridade que tinha, cabendo-lhe,portanto, experimentar a seu turno o que fizera sofressem os outros. Se se vê forçado a suportar essa posição, por não encontrar outra melhor, o Espiritismo lhe ensina a resignar-se, como constituindo isso uma prova para a sua humildade, necessária ao seu adiantamento. Sua crença lhe orienta a conduta e o induz a proceder como quereria que seus subordinados procedessem para com ele, caso fosse o chefe. Por isso mesmo, mais escrupuloso se mostra no cumprimento de suas obrigações, pois compreende que toda negligência no trabalho que lhe está determinado redunda em prejuízo para aquele que o remunera e a quem deve ele o seu tempo e os seus esforços. Numa palavra: solicita-o o sentimento do dever, oriundo da sua fé, e a certeza de que todo afastamento do caminho reto implica uma dívida que, cedo ou tarde, terá de pagar. - François-Nicolas-Madeleine, Cardeal Morlot. (Paris, 1863.)

O homem no mundo

10. Um sentimento de piedade deve sempre animar o coração dos que se reúnem sob as vistas do Senhor e imploram a assistência dos bons Espíritos. Purificai, pois, os vossos corações; não consintais que neles demore qualquer pensamento mundano ou fútil. Elevai o vosso espírito àqueles por quem chamais, a fim de que, encontrando em vós as necessárias disposições, possam lançar em profusão a semente que é preciso germine em vossas almas e dê frutos de caridade e justiça.

Não julgueis, todavia, que, exortando-vos incessantemente à prece e à evocação mental, pretendamos vivais uma vida mística, que vos conserve fora das leis da sociedade onde estais condenados a viver. Não; vivei com os homens da vossa época, como devem viver os homens. Sacrificai às necessidades, mesmo às frivolidades do dia, mas sacrificai com um sentimento de pureza que as possa santificar.

Sois chamados a estar em contacto com espíritos de naturezas diferentes, de caracteres opostos: não choqueis a nenhum daqueles com quem estiverdes. Sede joviais, sede ditosos, mas seja a vossa jovialidade a que provém de uma consciência limpa, seja a vossa ventura a do herdeiro do Céu que conta os dias que faltam para entrar na posse da sua herança.

Não consiste a virtude em assumirdes severo e lúgubre aspecto, em repelirdes os prazeres que as vossas condições humanas vos permitem. Basta reporteis todos os atos da vossa vida ao Criador quevo-la deu; basta que, quando começardes ou acabardes uma obra, eleveis o pensamento a esse Criador e lhe peçais, num arroubo dalma, ou a sua proteção para que obtenhais êxito, ou a sua bênção para ela, se a concluístes. Em tudo o que fizerdes, remontai à Fonte de todas as coisas, para que nenhuma de vossas ações deixe de ser purificada e santificada pela lembrança de Deus.

A perfeição está toda, como disse o Cristo, na prática da caridade absoluta; mas, os deveres da caridade

alcançam todas as posições sociais, desde o menor até o maior. Nenhuma caridade teria a praticar o homem que vivesse insulado. Unicamente no contacto com os seus semelhantes, nas lutas mais árduas é que ele encontra ensejo de praticá-la. Aquele, pois, que se isola priva-se voluntariamente do mais poderoso meio de aperfeiçoar-se; não tendo de pensar senão em si, sua vida é a de um egoísta. (Capítulo V, nº 26.) Não imagineis, portanto, que, para viverdes em comunicação constante conosco, para viverdes sob as vistas do Senhor, seja preciso vos cilicieis e cubrais de cinzas. Não, não, ainda uma vez vos dizemos. Ditosos sede, segundo as necessidades da Humanidade; mas, que jamais na vossa felicidade entre um pensamento ou um ato que o possa ofender, ou fazer se vele o semblante dos que vos amam e dirigem. Deus é amor, e aqueles que amam santamente ele os abençoa. Um Espírito Protetor. (Bordéus, 1863.)

Cuidar do corpo e do espírito

11. Consistirá na maceração do corpo a perfeição moral? Para resolver essa questão, apoiar-me-ei em princípios elementares e começarei por demonstrar a necessidade de cuidar-se do corpo que, segundo as alternativas de saúde e de enfermidade, influi de maneira muito importante sobre a alma, que cumpre se considere cativa da carne. Para que essa prisioneira viva, se expanda e chegue mesmo a conceber as ilusões da liberdade, tem o corpo de estar são, disposto, forte. Façamos uma comparação: Eis se acham ambos em perfeito estado; que devem fazer para manter o equilíbrio entre as suas aptidões e as suas necessidades tão diferentes? Inevitável parece a luta entre os dois e difícil achar-seo segredo de como chegarem a equilíbrio. (1) Dois sistemas se defrontam: o dos ascetas, que tem por base o aniquilamento do corpo, e o dos materialistas, que se baseia no rebaixamento da alma. Duas violências quase tão insensatas uma quanto a outra. Ao lado desses dois grandes partidos, formiga a numerosa tribo dos indiferentes que, sem convicção e sem paixão, são mornos no amar e econômicos no gozar. Onde, então, a sabedoria? Onde, então, a ciência de viver? Em parte alguma; e o grande problema ficaria sem solução, se o Espiritismo não viesse em auxílio dos pesquisadores,demonstrando-lhes as relações que existem entre o corpo e a alma e dizendo-lhes que, por se acharem em dependência mútua, importa cuidar de ambos. Amai, pois, a vossa alma, porém, cuidai igualmente do vosso corpo, instrumento daquela. Desatender as necessidades que a própria Natureza indica, é desatender a lei de Deus. Não castigueis o corpo pelas faltas que o vosso livre-arbítrio o induziu a cometer e pelas quais é ele tão responsável quanto o cavalo mal dirigido, pelos acidentes que causa. Sereis, porventura, mais perfeitos se, martirizando o corpo, não vos tornardes menos egoístas, nem menos orgulhosos e mais caritativos para com o vosso próximo? Não, a perfeição não está nisso: está toda nas reformas por que fizerdes passar o vosso Espírito. Dobrai-o, submetei-o, humilhai-o,mortificai-o: esse o meio de o tornardes dócil à vontade de Deus e o único de alcançardes a perfeição.Jorge, Espírito Protetor. (Paris, l863.)

(1) O último período desse parágrafo - "inevitável parece a luta entre os dois e difícil achar-se o segredo de como chegarem a equilíbrio" não aparece nas novas edições francesas desde a 3ª, mas se acha na 1ª edição e, por isso, a repomos no texto, corrigindo um evidente erro de impressão. - A Editora.

[Capítulo XVIII]

CAPÍTULO XVIII

MUITOS OS CHAMADOS, POUCOS OS ESCOLHIDOS

Parábola do festim de bodas. - A porta estreita. - Nem todos os que dizem: Senhor! Senhor! entrarão no reino dos céus. - Muito se pedirá àquele que muito recebeu. - Instruções dos Espíritos: Dar-se-áàquele que tem. - Pelas suas obras é que se reconhece o cristão.

Parábola do festim de bodas

1. Falando ainda por parábolas, disse-lhes Jesus: O reino dos céus se assemelha a um rei que, querendo festejar as bodas de seu filho, - despachou seus servos a chamar para as bodas os que tinham sido convidados; estes, porém, recusaram ir. - O rei despachou outros servos com ordem de dizer da sua parte aos convidados: Preparei o meu jantar; mandei matar os meus bois e todos os meus cevados; tudo está pronto; vinde às bodas. - Eles, porém, sem se incomodarem com isso, lá se foram, um para a sua casa de campo, outro para o seu negócio. - Os outros pegaram dos servos e os mataram, depois de lhes haverem feito muitos ultrajes. - Sabendo disso, o rei se tomou de cólera e, mandando contra eles seus exércitos, exterminou os assassinos e lhes queimou a cidade.

Então, disse a seus servos: O festim das bodas está inteiramente preparado; mas, os que para ele foram chamados não eram dignos dele. Ide, pois, às encruzilhadas e chamai para as bodas todos quantos encontrardes. - Os servos então saíram pelas ruas e trouxeram todos os que iam encontrando, bons e maus; a sala das bodas se encheu de pessoas que se puseram à mesa.

Entrou, em seguida, o rei para ver os que estavam à mesa, e, dando com um homem que não vestia a túnica nupcial, - disse-lhe: Meu amigo, como entraste aqui sem a túnica nupcial? O homem guardou silêncio. - Então, disse o rei à sua gente: Atai-lhe as mãos e os pés e lançai-o nas trevas exteriores: aí é que haverá prantos e ranger de dentes; - porquanto, muitos há chamados, mas poucos escolhidos. (S. MATEUS, cap. XXII, vv. 1 a 14.)

2. O incrédulo sorri a esta parábola, que lhe parece de pueril ingenuidade, por não compreender que se possa opor tanta dificuldade para assistir a um festim e, ainda menos, que convidados levem a resistência a ponto de massacrarem os enviados do dono da casa. "As parábolas", diz ele, o incrédulo, "são, sem dúvida, imagens; mas, ainda assim, mister se torna que não ultrapassem os limites do verossímil".

Outro tanto pode ser dito de todas as alegorias, das mais engenhosas fábulas, se não lhes forem tirados os respectivos envoltórios, para ser achado o sentido oculto. Jesus compunha as suas com os hábitos mais vulgares da vida e as adaptava aos costumes e ao caráter do povo a quem falava. A maioria delas

tinha por objeto fazer penetrar nas massas populares a idéia da vida espiritual, parecendo muitas ininteligíveis, quanto ao sentido, apenas por não se colocarem neste ponto de vista os que as interpretam.

Na de que tratamos, Jesus compara o reino dos Céus, onde tudo e alegria e ventura, a um festim. Falando dos primeiros convidados, alude aos hebreus, que foram os primeiros chamados por Deus ao conhecimento da sua Lei. Os enviados do rei são os profetas que os vinham exortar a seguir a trilha da verdadeira felicidade; suas palavras, porém, quase não eram escutadas; suas advertências eram desprezadas; muitos foram mesmo massacrados, como os servos da parábola. Os convidados que se escusam, pretextando terem de ir cuidar de seus campos e de seus negócios, simbolizam as pessoas mundanas que, absorvidas pelas coisas terrenas, se conservam indiferentes às coisas celestes.

Era crença comum aos judeus de então que a nação deles tinha de alcançar supremacia sobre todas as outras. Deus, com efeito, não prometera a Abraão que a sua posteridade cobriria toda a Terra? Mas, como sempre, atendo-se à forma, sem atentarem ao fundo, eles acreditavam tratar-se de uma dominação efetiva e material.

Antes da vinda do Cristo, com exceção dos hebreus, todos os povos eram idólatras e politeístas. Se alguns homens superiores ao vulgo conceberam a idéia da unidade de Deus, essa idéia permaneceu no estado de sistema pessoal, em parte nenhuma foi aceita como verdade fundamental, a não ser por alguns iniciados que ocultavam seus conhecimentos sob um véu de mistério, impenetrável para as massas populares. Os hebreus foram os primeiros a praticar publicamente o monoteísmo; é a eles que Deus transmite a sua lei, primeiramente por via de Moisés, depois por intermédio de Jesus. Foi daquele pequenino foco que partiu a luz destinada a espargir-se pelo mundo inteiro, a triunfar do paganismo e a dar a Abraão uma posteridade espiritual "tão numerosa quanto as estrelas do firmamento. Entretanto, abandonando de todo a idolatria, os judeus desprezaram a lei moral, para se aferrarem ao mais fácil: a prática do culto exterior. O mal chegara ao cúmulo; a nação, além de escravizada, era esfacelada pelas facções e dividida pelas seitas; a incredulidade atingira mesmo o santuário. Foi então que apareceu Jesus, enviado para os chamar à observância da Lei e para lhes rasgar os horizontes novos da vida futura. Dos primeiros a ser convidados para o grande banquete da fé universal, eles repeliram a palavra do Messias celeste e o imolaram. Perderam assim o fruto que teriam colhido da iniciativa que lhes coubera.

Fora, contudo, injusto acusar-se o povo inteiro de tal estado de coisas. A responsabilidade tocava principalmente aos fariseus e saduceus, que sacrificaram a nação por efeito do orgulho e do fanatismo de uns e pela incredulidade dos outros. São, pois, eles, sobretudo, que Jesus identifica nos convidados que recusam comparecer ao festim das bodas. Depois, acrescenta: "Vendo isso. o Senhor mandou convidar a todos os que fossem encontrados nas encruzilhadas, bons e maus." Queria dizer desse modo que a palavra ia ser pregada a todos os outros povos, pagãos e idólatras, e estes, acolhendo-a,seriam admitidos ao festim, em lugar dos primeiros convidados.

Mas não basta a ninguém ser convidado; não basta dizer-se cristão, nem sentar-se à mesa para tomar parte no banquete celestial. É preciso, antes de tudo e sob condição expressa, estar revestido da túnica

nupcial, isto é, ter puro o coração e cumprir a lei segundo o espírito. Ora, a lei toda se contém nestas palavras: Fora da caridade não há salvação. Entre todos, porém, que ouvem a palavra divina, quão poucos são os que a guardam e a aplicam proveitosarnente! Quão poucos se tornam dignos de entrar no reino dos céus! Eis por que disse Jesus: Chamados haverá muitos; poucos, no entanto, serão os escolhidos.

A porta estreita

3. Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta da perdição e espaçoso o caminho que a ela conduz, e muitos são os que por ela entram. - Quão pequena é a porta da vida! quão apertado o caminho que a ela conduz! e quão poucos a encontram! (S. MATEUS, cap. VII, vv. 13 e 14.)

4.Tendo-lhe alguém feito esta pergunta: Senhor, serão poucos os que se salvam?

Respondeu-lhes ele: - Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, pois vos asseguro que muitos procurarão transpô-la e não o poderão. - E quando o pai de família houver entrado e fechado a porta, e vós, de fora, começardes a bater, dizendo: Senhor, abre-nos; ele vos responderá: não sei donde sois: - Pôr-vos-eis a dizer: Comemos e bebemos na tua presença e nos instruíste nas nossas praças públicas. - Ele vos responderá: Não sei donde sois; afastai-vos de mim, todos vós que praticais a iniquidade.

Então, haverá prantos e ranger de dentes, quando virdes que Abraão, Isaac, Jacob e todos os profetas estão no reino de Deus e que vós outros sois dele expelidos. -Virão muitos do Oriente e do Ocidente, do Setentrião e do Meio-Dia, que participarão do festim no reino de Deus. - Então, os que forem últimos serão os primeiros e os que forem primeiros serão os últimos. - (S. LUCAS, cap. XIII, vv. 23 a 30.)

5. Larga é a porta da perdição, porque são numerosas as paixões más e porque o maior número envereda pelo caminho do mal. E estreita a da salvação, porque a grandes esforços sobre si mesmo é obrigado o homem que a queira transpor, para vencer suas más tendências, coisa a que poucos se resignam. E o complemento da máxima: "Muitos são os chamados e poucos os escolhidos." Tal o estado da Humanidade terrena, porque, sendo a Terra mundo de expiação, nela predomina o mal. Quando se achar transformada, a estrada do bem será a mais freqüentada. Aquelas palavras devem, pois, entender-se em sentido relativo e não em sentido absoluto. Se houvesse de ser esse o estado normal da Humanidade, teria Deus condenado à perdição a imensa maioria das suas criaturas, suposição inadmissível, desde que se reconheça que Deus é todo justiça e bondade.

Mas, de que delitos esta Humanidade se houvera feito culpada para merecer tão triste sorte, no presente e no futuro, se toda ela se achasse degredada na Terra e se a alma não tivesse tido outras existências? Por que tantos entraves postos diante de seus passos? Por que essa porta tão estreita que só a muito poucos é dado transpor, se a sorte da alma é determinada para sempre, logo após a morte? Assim é que, com a unicidade da existência, o homem está sempre em contradição consigo mesmo e com a justiça de Deus.

Com a anterioridade da alma e a pluralidade dos mundos, o horizonte se alarga; faz-se luz sobre os pontos mais obscuros da fé; o presente e o futuro tornam-se solidários com o passado, e só então se pode compreender toda a profundeza. toda a verdade e toda a sabedoria das máximas do Cristo.

Nem todos os que dizem: Senhor! Senhor! entrarão no reino dos céus

6.Nem todos os que me dizem: Senhor! Senhor! entrarão no reino dos céus; apenas entrará aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. - Muitos, nesse dia, me dirão: Senhor! Senhor! não profetizamos em teu nome? Não expulsamos em teu nome o demônio? Não fizemos muitos milagres em teu nome? - Eu então lhes direi em altas vozes: Afastai-vos de mim, vós que fazeis obras de iniqüidade. (S. MATEUS, cap. VII, vv. 21 a 23.)

7.Aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica, será comparado a um homem prudente que construiu sobre a rocha a sua casa. - Quando caiu a chuva, os rios transbordaram, sopraram os ventos sobre a casa; ela não ruiu, por estar edificada na rocha. - Mas, aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica, se assemelha a um homem insensato que construiu sua casa na areia. Quando a chuva caiu, os rios transbordaram, os ventos sopraram e a vieram açoitar, ela foi derrubada; grande foi a sua ruína. (S. MATEUS, cap. VII, vv. 24 a 27. - S. LUCAS, cap. VI, vv. 46 a 49.)

8.Aquele que violar um destes menores mandamentos e que ensinar os homens a violá-los,será considerado como último no reino dos céus; mas, será grande no reino dos céus aquele que os cumprir e ensinar. - (S. MATEUS, cap. V, v.19.)

9.Todos os que reconhecem a missão de Jesus dizem: Senhor! Senhor! - Mas, de que serve lhe chamarem Mestre ou Senhor, se não lhe seguem os preceitos? Serão cristãos os que o honram com exteriores atos de devoção e, ao mesmo tempo, sacrificam ao orgulho, ao egoísmo, à cupidez e a todas as suas paixões? Serão seus discípulos os que passam os dias em oração e não se mostram nem melhores, nem mais caridosos, nem mais indulgentes para com seus semelhantes? Não, porquanto, do mesmo modo que os fariseus, eles têm a prece nos lábios e não no coração. Pela forma poderãoimpor-se aos homens; não, porém, a Deus. Em vão dirão eles a Jesus: "Senhor! não profetizamos, isto é, não ensinamos em teu nome; não expulsamos em teu nome os demônios; não comemos e bebemos contigo?" Ele lhes responderá: "Não sei quem sois; afastai-vos de mim, vós que cometeis iniqüidades, vós que desmentis com os atos o que dizeis com os lábios, que caluniais o vosso próximo, que expoliais as viúvas e cometeis adultério. Afastai-vos de mim, vós cujo coração destila ódio e fel, que derramais o sangue dos vossos irmãos em meu nome, que fazeis corram lágrimas, em vez de secá-las.Para vós, haverá prantos e ranger de dentes, porquanto o reino de Deus é para os que são brandos, humildes e caridosos. Não espereis dobrar a justiça do Senhor pela multiplicidade das vossas palavras e das vossas genuflexões. O caminho único que vos está aberto, para achardes graça perante ele, é o da prática sincera da lei de amor e de caridade."

São eternas as palavras de Jesus, porque são a verdade. Constituem não só a salvaguarda da vida celeste,

mas também o penhor da paz, da tranqüilidade e da estabilidade nas coisas da vida terrestre. Eis por que todas as instituições humanas, políticas, sociais e religiosas, que se apoiarem nessas palavras, serão estáveis como a casa construída sobre a rocha. Os homens as conservarão, porque se sentirão felizes nelas. As que, porém, forem uma violação daquelas palavras, serão como a casa edificada na areia. o vento das renovações e o rio do progresso as arrastarão.

Multo se pedirá àquele que multo recebeu

10.O servo que souber da vontade do seu amo e que, entretanto, não estiver pronto e não fizer o que dele queira o amo, será rudemente castigado. - Mas, aquele que não tenha sabido da sua vontade e fizer coisas dignas de castigo menos punido será. Muito se pedirá àquele a quem muito se houver dado e maiores contas serão tomadas àquele a quem mais coisas se haja confiado. (S. LUCAS, cap. XII, vv. 47 e 48.)

11.Vim a este mundo para exercer um juízo, a fim de que os que não vêem vejam e os que vêem se tornem cegos. - Alguns fariseus que estavam, com ele, ouvindo essas palavras, lhe perguntaram: Também nós, então, somos cegos? - Respondeu-lhes Jesus: Se fôsseis cegos, não teríeis pecados; mas, agora, dizeis que vedes e é por isso que em vós permanece o vosso pecado. (S. JOÃO, cap. IX, vv. 39 a 41.)

12.Principalmente ao ensino dos Espíritos é que estas máximas se aplicam. Quem quer que conheça os preceitos do Cristo e não os pratique, é certamente culpado; contudo, além de o Evangelho, que os contém, achar-se espalhado somente no seio das seitas cristãs, mesmo dentro destas quantos há que não o lêem, e, entre os que o lêem, quantos os que o não compreendem! Resulta daí que as próprias palavras de Jesus são perdidas para a maioria dos homens.

O ensino dos Espíritos, reproduzindo essas máximas sob diferentes formas, desenvolvendo-as ecomentando-as, para pô-las ao alcance de todos, tem isto de particular: não é circunscrito: todos, letrados ou iletrados, crentes ou incrédulos, cristãos ou não, o podem receber, pois que os Espíritos se comunicam por toda parte. Nenhum dos que o recebam, diretamente ou por intermédio de outrem, pode pretextar ignorância; não se pode desculpar nem com a falta de instrução, nem com a obscuridade do sentido alegórico. Aquele, portanto, que não aproveita essas máximas paramelhorar-se, que as admira como coisas interessantes c curiosas, sem que lhe toquem o coração, que não se torna nem menos vão, nem menos orgulhoso, nem menos egoísta, nem menos apegado aos bens materiais, nem melhor para seu próximo, mais culpado é, porque mais meios tem de conhecer a verdade.

Os médiuns que obtêm boas comunicações ainda mais censuráveis são, se persistem no mal, porque muitas vezes escrevem sua própria condenação e porque, se não os cegasse o orgulho, reconheceriam que a eles é que se dirigem os Espíritos. Mas, em vez de tomarem para si as lições que escrevem, ou que lêem escritas por outros, têm por única preocupação aplicá-las aos demais, confirmando assim estas palavras de Jesus: "Vedes um argueiro no olho do vosso próximo e não vedes a trave que está no vosso." (Cap. X, nº 9.) Por esta sentença: "Se fôsseis cegos, não teríeis pecados", quis Jesus significar

que a culpabilidade está na razão das luzes que a criatura possua. Ora, os fariseus, que tinham a pretensão de ser, e eram, com efeito, os mais esclarecidos da sua nação, mais culposos se mostravam aos olhos de Deus, do que o povo ignorante. O mesmo se dá hoje.

Aos espíritas, pois, muito será pedido, porque muito hão recebido; mas, também, aos que houverem aproveitado, muito será dado.

O primeiro cuidado de todo espírita sincero deve ser o de procurar saber se, nos conselhos que os Espíritos dão, alguma coisa não há que lhe diga respeito.

O Espiritismo vem multiplicar o número dos chamados. Pela fé que faculta, multiplicará também o número dos escolhidos.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Dar-se-á àquele que tem

13.Aproximando-se dele, seus discípulos lhe disseram: Por que lhes falas por parábolas? Respondendo, disse-lhes ele: É porque, a vós outros, vos foi dado conhecer os mistérios do reino dos céus, ao passo que a eles isso não foi dado. - Porque, àquele que já tem, mais se lhe dará e ele ficará na abundância; àquele, entretanto, que não tem, mesmo o que tem se lhe tirará. - Por isso é que lhes falo por parábolas: porque, vendo, nada vêem e, ouvindo, nada entendem, nem compreendem. - Neles se cumpre a profecia de Isaías, quando diz: Ouvireis com os vossos ouvidos e nada entendereis, olhareis com os vossos olhos e nada vereis. (S. MATEUS, cap. XIII, vv. 10 a 14.)

14.Tende muito cuidado com o que ouvis, porquanto usarão para convosco da mesma medida de que vos houverdes servido para medir os outros, e ainda se vos acrescentará; - pois, ao que já tem,dar-se-á, e, ao que não tem, até o que tem se lhe tirará. (S. MARCOS, cap. IV. vv. 24 e 25.)

15."Dá-se ao que já tem e tira-se ao que não tem." Meditai esses grandes ensinamentos que se vos hão por vezes afigurado paradoxais. Aquele que recebeu é o que possui o sentido da palavra divina; recebeu unicamente porque tentou tornar-se digno dela e porque o Senhor, em seu amor misericordioso, anima os esforços que tendem para o bem. Aturados, perseverantes, esses esforços atraem as graças do Senhor; são um ímã que chama a si o que é progressivamente melhor, as graças copiosas que vos fazem fortes para galgar a montanha santa, em cujo cume está o repouso após o labor.

"Tira-se ao que não tem, ou tem pouco." Tomai isso como uma antítese figurada. Deus não retira das suas criaturas o bem que se haja dignado de fazer-lhes. Homens cegos e surdos! abri as vossas inteligências e os vossos corações; vede pelo vosso espírito; ouvi pela vossa alma e não interpreteis de modo tão grosseiramente injusto as palavras daquele que fez resplandecesse aos vossos olhos a justiça do Senhor. Não é Deus quem retira daquele que pouco recebera: é o próprio Espírito que, por pródigo e

descuidado, não sabe conservar o que tem e aumentar, fecundando-o, o óbolo que lhe caiu no coração.

Aquele que não cultiva o campo que o trabalho de seu pai lhe granjeou, e que lhe coube em herança, o vê cobrir-se de ervas parasitas. E seu pai quem lhe tira as colheitas que ele não quis preparar? Se, â falta de cuidado, deixou fenecessem as sementes destinadas a produzir nesse campo, é a seu pai que lhe cabe acusar por nada produzirem elas? Não e não. Em vez de acusar aquele que tudo lhe preparara, de criticar as doações que recebera, queixe-se do verdadeiro autor de suas misérias e, arrependido e operoso, meta, corajoso, mãos à obra; arroteie o solo ingrato com o esforço de sua vontade; lavre-ofundo com auxílio do arrependimento e da esperança; lance nele, confiante, a semente que haja separado, por boa, dentre as más; regue-o com o seu amor e a sua caridade, e Deus, o Deus de amor e de caridade, dará àquele que já recebera. Verá ele, então, coroados de êxito os seus esforços e um grão produzir cem e outro mil. Animo, trabalhadores! Tomai dos vossos arados e das vossas charruas; lavrai os vossos corações; arrancai deles a cizânia; semeai a boa semente que o Senhor vos confia e o orvalho do amor lhe fará produzir frutos de caridade. - Um Espírito amigo. (Bordéus, 1862.)

Pelas suas obras é que se reconhece o cristão

16. "Nem todos os que me dizem: Senhor! Senhor! entrarão no reino dos céus, mas somente aqueles que fazem a vontade de meu Pai que está nos céus." Escutai essa palavra do Mestre, todos vós que repelis a Doutrina Espírita como obra do demônio. Abri os ouvidos, que é chegado o momento de ouvir.

Será bastante trazer a libré do Senhor, para ser-se fiel servidor seu? Bastará dizer: "Sou cristão", para que alguém seja um seguidor do Cristo? Procurai os verdadeiros cristãos e os reconhecereis pelas suas obras. "Uma árvore boa não pode dar maus frutos, nem uma árvore má pode dar frutos bons." - "Toda árvore que não dá bons frutos é cortada e lançada ao fogo." São do Mestre essas palavras. Discípulos do Cristo,compreendei-as bem! Que frutos deve dar a árvore do Cristianismo, árvore possante, cujos ramos frondosos cobrem com sua sombra uma parte do mundo, mas que ainda não abrigam todos os que se hão de grupar em torno dela? Os da árvore da vida são frutos de vida, de esperança e de fé. O Cristianismo, qual o fizeram há muitos séculos, continua a pregar essas virtudes divinas; esforça-se por espalhar seus frutos, mas quão poucos os colhem! A árvore é boa sempre, porém maus são os jardineiros. Entenderam de moldá-la pelas suas idéias; de talhá-la de acordo com as suas necessidades; cortaram-na, diminuíram- na, mutilaram-na;tomados estéreis, seus ramos não dão maus frutos, porque nenhuns mais produzem. O viajor sedento, que se detém sob seus galhos à procura do fruto da esperança, capaz de lhe restabelecer a força e a coragem, somente vê uma ramaria árida, prenunciando tempestade. Em vão pede ele o fruto de vida à árvore da vida;caem-lhe secas as folhas; tanto as remexeu a mão do homem, que as crestou.

Abri, pois, os ouvidos e os corações, meus bem-amados! Cultivai essa árvore da vida, cujos frutos dão a vida eterna. Aquele que a plantou vos concita a tratá-la com amor, que ainda a vereis dar com abundância seus frutos divinos. Conservai-a tal como o Cristo vo-la entregou: não a mutileis; ela quer estender a sua sombra imensa sobre o Universo: não lhe corteis os galhos. Seus frutos benfazejos caem abundantes para alimentar o viajor faminto que deseja chegar ao termo da jornada; não amontoeis esses frutos, para os armazenar e deixar apodrecer, a fim de que a ninguém sirvam. "Muitos são os chamados

e poucos os escolhidos." É que há açambarcadores do pão da vida, como os há do pão material. Não sejais do número deles; a árvore que dá bons frutos tem que os dar para todos. Ide, pois, procurar os que estão famintos; levai-os para debaixo da fronde da árvore e partilhai com eles do abrigo que ela oferece. - "Não se colhem uvas nos espinheiros." Meus irmãos, afastai-vos dos que vos chamam para vos apresentar as sarças do caminho, segui os que vos conduzem à sombra da árvore da vida.

O divino Salvador, o justo por excelência, disse, e suas palavras não passarão: "Nem todos os que dizem: Senhor! Senhor! entrarão no reino dos céus; entrarão somente os que fazem a vontade de meu Pai que está nos céus." Que o Senhor de bênçãos vos abençoe; que o Deus de luz vos ilumine; que a árvore da vida vos ofereça abundantemente seus frutos! Crede e orai. - Simeão. (Bordéus, 1863.)

[Capítulo XIX]

CAPÍTULO XIX

A FÉ TRANSPORTA MONTANHAS

Poder da fé. - A fé religiosa. Condição da fé inabalável. - Parábola da figueira que secou. -Instruções dos Espíritos: A fé: mãe da esperança e da caridade. - A fé humana e a divina.

Poder da fé

1.Quando ele veio ao encontro do povo, um homem se lhe aproximou e, lançando-se de joelhos a seus pés, disse: Senhor, tem piedade do meu filho, que é lunático e sofre muito, pois cai muitas vezes no fogo e muitas vezes na água. Apresentei-o aos teus discípulos, mas eles não o puderam curar. Jesus respondeu. dizendo: Ó raça incrédula e depravada, até quando estarei convosco? Até quando vos sofrerei? Trazei-me aqui esse menino. - E tendo Jesus ameaçado o demônio, este saiu do menino, que no mesmo instante ficou são. Os discípulos vieram então ter com Jesus em particular e lhe perguntaram: Por que não pudemos nós outros expulsar esse demônio? -Respondeu-lhes Jesus: Por causa da vossa incredulidade. Pois em verdade vos digo, se tivésseis a fé do tamanho de um grão de mostarda, diríeis a esta montanha: Transporta-te daí para ali e ela se transportaria, e nada vos seria impossível. (S. MATEUS, cap. XVII, vv. 14 a 20.)

2.No sentido próprio, é certo que a confiança nas suas próprias forças toma o homem capaz de executar coisas materiais, que não consegue fazer quem duvida de si. Aqui porém unicamente no sentido moral se devem entender essas palavras. As montanhas que a fé desloca são as dificuldades, as resistências, a má- vontade, em suma, com que se depara da parte dos homens, ainda quando se trate das melhores coisas. Os preconceitos da rotina, o interesse material, o egoísmo, a cegueira do fanatismo e as paixões orgulhosas são outras tantas montanhas que barram o caminho a quem trabalha pelo progresso da Humanidade. A fé robusta dá a perseverança, a energia e os recursos que fazem se vençam os obstáculos, assim nas pequenas coisas, que nas grandes. Da fé vacilante resultam a incerteza e a hesitação de que se aproveitam os adversários que se têm de combater; essa fé não procura os meios de

vencer, porque não acredita que possa vencer.

3. Noutra acepção, entende-se como fé a confiança que se tem na realização de uma coisa, a certeza de atingir determinado fim. Ela dá uma espécie de lucidez que permite se veja, em pensamento, a meta que se quer alcançar e os meios de chegar lá, de sorte que aquele que a possui caminha, por assim dizer, com absoluta segurança. Num como noutro caso, pode ela dar lugar a que se executem grandes coisas.

A fé sincera e verdadeira é sempre calma; faculta a paciência que sabe esperar, porque, tendo seu ponto de apoio na inteligência e na compreensão das coisas, tem a certeza de chegar ao objetivo visado. A fé vacilante sente a sua própria fraqueza; quando a estimula o interesse, toma-se furibunda e julga suprir, com a violência, a força que lhe falece. A calma na luta é sempre um sinal de força e de confiança; a violência, ao contrário, denota fraqueza e dúvida de si mesmo.

4.Cumpre não confundir a fé com a presunção. A verdadeira fé se conjuga à humildade; aquele que a possui deposita mais confiança em Deus do que em si próprio, por saber que, simples instrumento da vontade divina, nada pode sem Deus. Por essa razão é que os bons Espíritos lhe vêm em auxílio. A presunção é menos fé do que orgulho, e o orgulho é sempre castigado, cedo ou tarde, pela decepção e pelos malogros que lhe são infligidos.

5.O poder da fé se demonstra, de modo direto e especial, na ação magnética; por seu intermédio, o homem atua sobre o fluido, agente universal, modifica-lhe as qualidades e lhe dá uma impulsão por assim dizer irresistível. Daí decorre que aquele que a um grande poder fluídico normal junta ardente fé, pode, só pela força da sua vontade dirigida para o bem, operar esses singulares fenômenos de cura e outros, tidos antigamente por prodígios, mas que não passam de efeito de uma lei natural. Tal o motivo por que Jesus disse a seus apóstolos: se não o curastes, foi porque não tínheis fé.

A fé religiosa. Condição da fé inabalável

6.Do ponto de vista religioso, a fé consiste na crença em dogmas especiais, que constituem as diferentes religiões. Todas elas têm seus artigos de fé. Sob esse aspecto, pode a fé ser raciocinada oucega. Nada examinando, a fé cega aceita, sem verificação, assim o verdadeiro como o falso, e a cada passo se choca com a evidência e a razão. Levada ao excesso, produz o fanatismo. Em assentando no erro, cedo ou tarde desmorona; somente a fé que se baseia na verdade garante o futuro, porque nada tem a temer do progresso das luzes, dado que o que é verdadeiro na obscuridade, também o é à luz meridiana. Cada religião pretende ter a posse exclusiva da verdade; preconizar alguém a fé cega sobre um ponto de crença é confessar-se impotente para demonstrar que está com a razão.

7.Diz-se vulgarmente que a fé não se prescreve, donde resulta alegar muita gente que não lhe cabe a culpa de não ter fé. Sem dúvida, a fé não se prescreve, nem, o que ainda é mais certo, se impõe. Não; ela se adquire e ninguém há que esteja impedido de possuí-la, mesmo entre os mais refratários. Falamos das verdades espirituais básicas e não de tal ou qual crença particular. Não é à fé que compete procurá-los; a eles é que cumpre ir-lhe, ao encontro e, se a buscarem sinceramente, não deixarão de achá-la. Tende,

pois, como certo que os que dizem: "Nada de melhor desejamos do que crer, mas não o podemos", apenas de lábios o dizem e não do íntimo, porquanto, ao dizerem isso, tapam os ouvidos. As provas, no entanto, chovem-lhes ao derredor; por que fogem de observá-las? Da parte de uns, há descaso; da de outros, o temor de serem forçados a mudar de hábitos; da parte da maioria, há o orgulho,negando-se a reconhecer a existência de uma força superior, porque teria de curvar-se diante dela.

Em certas pessoas, a fé parece de algum modo inata; uma centelha basta para desenvolvê-la. Essa facilidade de assimilar as verdades espirituais é sinal evidente de anterior progresso. Em outras pessoas, ao contrário, elas dificilmente penetram, sinal não menos evidente de naturezas retardatárias. As primeiras já creram e compreenderam; trazem, ao renascerem, a intuição do que souberam: estão com a educação feita; as segundas tudo têm de aprender: estão com a educação por fazer. Ela, entretanto, se fará e, se não ficar concluída nesta existência, ficará em outra.

A resistência do incrédulo, devemos convir, muitas vezes provém menos dele do que da maneira por que lhe apresentam as coisas. A fé necessita de uma base, base que é a inteligência perfeita daquilo em que se deve crer. E, para crer, não basta ver; é preciso, sobretudo, compreender. A fé cega já não é deste século (1), tanto assim que precisamente o dogma da fé cega é que produz hoje o maior número dos incrédulos, porque ela pretende impor-se, exigindo a abdicação de uma das mais preciosas prerrogativas do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio. É principalmente contra essa fé que se levanta o incrédulo, e dela é que se pode, com verdade, dizer que não se prescreve. Não admitindo provas, ela deixa no espírito alguma coisa de vago, que dá nascimento à dúvida. A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica, nenhuma obscuridade deixa. A criatura então crê, porque tem certeza, e ninguém tem certeza senão porque compreendeu. Eis por que não se dobra. Fé inabalável só o é a que pode encarar de frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.

(1) Kardec escreveu essas palavras no século XIX. Hoje, o espírito humano tornou-se ainda mais exigente: a fé cega está abandonada; reina descrença nas Igrejas que a impunham. As massas humanas vivem sem ideal, sem esperança em outra vida e tentam transformar o mundo pela violência. As lutas econômicas engedraram as mais exóticas doutrinas de ação e reação. Duas guerras mundiais assolaram o planeta, numa ânsia furiosa de predomínio econômico.

Toda a esperança da Humanidade hoje se apóia no Espiritismo, na restauração do Cristianismo, baseada em fatos que demonstram os princípios básicos da Doutrina cristã: eternidade da vida, responsabilidade ilimitada de pensamentos, palavras e atos.

Sem a Terceira Revelação o mundo estaria irremediavelmente perdido pelo choque das mais desencontradas ideologias materialistas e violentistas. - A Editora da FEB, em 1948.

A esse resultado conduz o Espiritismo, pelo que triunfa da incredulidade, sempre que não encontra

oposição sistemática e interessada.

Parábola da figueira que secou

8.Quando saiam de Betânia, ele teve fome; e, vendo ao longe uma figueira, para ela encaminhou- se, a ver se acharia alguma coisa; tendo-se, porém, aproximado, só achou folhas, visto não ser tempo de figos. Então, disse Jesus à figueira: Que ninguém coma de ti fruto algum, o que seus discípulos ouviram. - No dia seguinte, ao passarem pela figueira, viram que secara até á raiz. - Pedro, lembrando-se do que dissera Jesus, disse: Mestre, olha como secou a figueira que tu amaldiçoaste. - Jesus, tomando a palavra, lhes disse: Tende fé em Deus. -Digo-vos, em verdade, que aquele que disser a esta montanha: Tira-te daí e lança-te ao mar, mas sem hesitar no seu coração, crente, ao contrário, firmemente, de que tudo o que houver dito acontecerá, verá que, com efeito, acontece. (S. MARCOS, cap. Xl, vv. 12 a 14 e 20 a 23.)

9.A figueira que secou é o símbolo dos que apenas aparentam propensão para o bem, mas que, em realidade, nada de bom produzem; dos oradores que mais brilho têm do que solidez, cujas palavras trazem superficial verniz, de sorte que agradam aos ouvidos, sem que, entretanto, revelem, quando perscrutadas, algo de substancial para os corações. E de perguntar-se que proveito tiraram delas os que as escutaram.

Simboliza também todos aqueles que, tendo meios de ser úteis, não o são; todas as utopias, todos os sistemas ocos, todas as doutrinas carentes de base sólida. O que as mais das vezes falta é a verdadeira fé, a fé produtiva, a fé que abala as fibras do coração, a fé, numa palavra. que transporta montanhas. São árvores cobertas de folhas porém, baldas de frutos. Por isso é que Jesus as condena à esterilidade, porquanto dia virá em que se acharão secas até à raiz. Quer dizer que todos os sistemas, todas as doutrinas que nenhum bem para a Humanidade houverem produzido, cairão reduzidas a nada; que todos os homens deliberadamente inúteis, por não terem posto em ação os recursos que traziam consigo, serão tratados como a figueira que secou.

10. Os médiuns são os intérpretes dos Espíritos; suprem, nestes últimos, a falta de órgãos materiais pelos quais transmitam suas instruções. Daí vem o serem dotados de faculdades para esse efeito. Nos tempos atuais, de renovação social, cabe-lhes uma missão especialíssima; são árvores destinadas a fornecer alimento espiritual a seus irmãos; multiplicam-se em número, para que abunde o alimento;há-os por toda a parte, em todos os países em todas as classes da sociedade, entre os ricos e os pobres, entre os grandes e os pequenos, a fim de que em nenhum ponto faltem e a fim de ficar demonstrado aos homens que todos são chamados. Se porém, eles desviam do objetivo providencial a preciosa faculdade que lhes foi concedida, se a empregam em coisas fúteis ou prejudiciais, se a põem a serviço dos interesses mundanos, se em vez de frutos sazonados dão maus frutos se se recusam a utilizá-la em beneficio dos outros, se nenhum proveito tiram dela para si mesmos, melhorando-se, são quais a figueira estéril. Deus lhes retirará um dom que se tornou inútil neles: a semente que não sabem fazer que frutifique, e consentirá que se tornem presas dos Espíritos maus.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

A fé: mãe da esperança e da caridade

11. Para ser proveitosa, a fé tem de ser ativa; não deve entorpecer-se. Mãe de todas as virtudes que conduzem a Deus, cumpre-lhe velar atentamente pelo desenvolvimento dos filhos que gerou.

A esperança e a caridade são corolários da fé e formam com esta uma trindade inseparável. Não é a fé que faculta a esperança na realização das promessas do Senhor? Se não tiverdes fé, que esperareis? Não é a fé que dá o amor? Se não tendes fé, qual será o vosso reconhecimento e, portanto, o vosso amor?

Inspiração divina, a fé desperta todos os instintos nobres que encaminham o homem para o bem. É a base da regeneração. Preciso é, pois, que essa base seja forte e durável, porquanto, se a mais ligeira dúvida a abalar que será do edifício que sobre ela construirdes? Levantai, conseguintemente, esse edifício sobre alicerces inamovíveis. Seja mais forte a vossa fé do que os sofismas e as zombarias dos incrédulos, visto que a fé que não afronta o ridículo dos homens não é fé verdadeira.

A fé sincera é empolgante e contagiosa; comunica-se aos que não na tinham, ou, mesmo, não desejariam tê-la. Encontra palavras persuasivas que vão à alma. ao passo que a fé aparente usa de palavras sonoras que deixam frio e indiferente quem as escuta. Pregai pelo exemplo da vossa fé, para a incutirdes nos homens. Pregai pelo exemplo das vossas obras para lhes demonstrardes o merecimento da fé. Pregai pela vossa esperança firme, para lhes dardes a ver a confiança que fortifica e põe a criatura em condições de enfrentar todas as vicissitudes da vida.

Tende, pois, a fé, com o que ela contém de belo e de bom, com a sua pureza, com a sua racionalidade. Não admitais a fé sem comprovação, cega filha da cegueira. Amai a Deus, mas sabendo porque o amais; crede nas suas promessas, mas sabendo porque acreditais nelas; segui os nossos conselhos, mas compenetrados do um que vos apontamos e dos meios que vos trazemos para o atingirdes. Crede e esperai sem desfalecimento: os milagres são obras da fé. - José, Espírito protetor. (Bordéus, 1862.)

A fé humana e a divina

12. No homem, a fé é o sentimento inato de seus destinos futuros; é a consciência que ele tem das faculdades imensas depositadas em gérmen no seu íntimo, a princípio em estado latente, e que lhe cumpre fazer que desabrochem e cresçam pela ação da sua vontade.

Até ao presente, a fé não foi compreendida senão pelo lado religioso, porque o Cristo a exalçou como poderosa alavanca e porque o têm considerado apenas como chefe de uma religião. Entretanto, o Cristo, que operou milagres materiais, mostrou, por esses milagres mesmos, o que pode o homem, quando tem fé, isto é, a vontade de querer e a certeza de que essa vontade pode obter satisfação. Também os apóstolos não operaram milagres, seguindo-lhe o exemplo? Ora, que eram esses milagres, senão efeitos naturais, cujas causas os homens de então desconheciam, mas que, hoje, em grande parte se explicam e

que pelo estudo do Espiritismo e do Magnetismo se tornarão completamente compreensíveis?

A fé é humana ou divina, conforme o homem aplica suas faculdades à satisfação das necessidades terrenas, ou das suas aspirações celestiais e futuras. O homem de gênio, que se lança à realização de algum grande empreendimento, triunfa, se tem fé, porque sente em si que pode e há de chegar ao fim colimado, certeza que lhe faculta imensa força. O homem de bem que, crente em seu futuro celeste, deseja encher de belas e nobres ações a sua existência, haure na sua fé, na certeza da felicidade que o espera, a força necessária, e ainda aí se operam milagres de caridade, de devotamento e de abnegação. Enfim, com a fé, não há maus pendures que se não chegue a vencer.

O Magnetismo é uma das maiores provas do poder da fé posta em ação. É pela fé que ele cura e produz esses fenômenos singulares, qualificados outrora de milagres.

Repito: a fé é humana divina. Se todos os encarnados se achassem bem persuadidos da força que em si trazem, e se quisessem pôr a vontade a serviço dessa força, seriam capazes de realizar o a que, até hoje, eles chamaram prodígios e que, no entanto, não passa de um desenvolvimento das faculdades humanas.

Um Espírito Protetor. (Paris, l863.)

[Capítulo XX]

CAPÍTULO XX

OS TRABALHADORES DA ÚLTIMA HORA

Instruções dos Espíritos: Os últimos serão os primeiros. - Missão dos espíritas. - Os obreiros do Senhor.

1. O reino dos céus é semelhante a um pai de família que saiu de madrugada, a fim de assalariar trabalhadores para a sua vinha. - Tendo convencionado com os trabalhadores que pagaria um denário a cada um por dia, mandou-os para a vinha. -Saiu de novo à terceira hora do dia e, vendo outros que se conservavam na praça sem fazer coisa alguma, - disse-lhes: Ide também vós outros para a minha vinha e vos pagarei o que for razoável. Eles foram. - Saiu novamente à hora sexta e à hora nona do dia e fez o mesmo. - Saindo mais uma vez à hora undécima, encontrou ainda outros que estavam desocupados, aos quais disse: Por que permaneceis aí o dia inteiro sem trabalhar? - É, disseram eles, que ninguém nos assalariou. Ele então lhes disse: Ide vós também para a minha vinha.

Ao cair da tarde disse o dono da vinha àquele que cuidava dos seus negócios: Chama os trabalhadores e paga-lhes, começando pelos últimos e indo até aos primeiros.

Aproximando-se então os que só à undécima hora haviam chegado, receberam um denário cada um. - Vindo a seu turno os que tinham sido encontrados em primeiro lugar, julgaram que iam

receber mais; porém, receberam apenas um denário cada um. -Recebendo-o, queixaram-se ao pai de família, - dizendo: Estes últimos trabalharam apenas uma hora e lhes dás tanto quanto a nós que suportamos o peso do dia e do calor.

Mas, respondendo, disse o dono da vinha a um deles: Meu amigo, não te causo dano algum; não convencionaste comigo receber um denário pelo teu dia? Toma o que te pertence e vai-te;apraz- me a mim dar a este último tanto quanto a ti. - Não me é então lícito fazer o que quero? Tens mau olho, porque sou bom?

Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos, porque muitos são os chamados e poucos os escolhidos. (S. MATEUS, cap. XX, vv. 1 a 16. Ver também: "Parábola do festim das bodas", cap. XVIII, nº 1.)

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Os últimos serão os primeiros

2. O obreiro da última hora tem direito ao salário, mas é preciso que a sua boa-vontade o haja conservado à disposição daquele que o tinha de empregar e que o seu retardamento não seja fruto da preguiça ou da má-vontade. Tem ele direito ao salário, porque desde a alvorada esperava com impaciência aquele que por fim o chamaria para o trabalho. Laborioso, apenas lhe faltava o labor.

Se, porém, se houvesse negado ao trabalho a qualquer hora do dia; se houvesse dito: "tenhamos paciência, o repouso me é agradável; quando soar a última hora é que será tempo de pensar no salário do dia; que necessidade tenho de me incomodar por um patrão a quem não conheço e não estimo! quanto mais tarde, melhor"; esse tal, meus amigos, não teria tido o salário do obreiro, mas o da preguiça.

Que dizer, então, daquele que, em vez de apenas se conservar inativo, haja empregado as horas destinadas ao labor do dia em praticar atos culposos; que haja blasfemado de Deus, derramado o sangue de seus irmãos, lançado a perturbação nas famílias, arruinado os que nele confiaram, abusado da inocência, que, enfim, se haja cevado em todas as ignominias da Humanidade? Que será desse? Bastar- lhe-á dizer à última hora: Senhor, empreguei mal o meu tempo; toma-me até ao fim do dia, para que eu execute um pouco, embora bem pouco, da minha tarefa, e dá-me o salário do trabalhador de boa vontade? Não, não; o Senhor lhe dirá: "Não tenho presentemente trabalho para te dar; malbarataste o teu tempo; esqueceste o que havias aprendido; já não sabes trabalhar na minha vinha. Recomeça, portanto, a aprender c, quando te achares mais bem disposto, vem ter comigo e eu te franquearei o meu vasto campo, onde poderás trabalhar a qualquer hora do dia.

Bons espíritas, meus bem-amados, sois todos obreiros da última hora. Bem orgulhoso seria aquele que dissesse: Comecei o trabalho ao alvorecer do dia e só o terminarei ao anoitecer. Todos viestes quando fostes chamados, um pouco mais cedo, um pouco mais tarde, para a encarnação cujos grilhões arrastais; mas há quantos séculos e séculos o Senhor vos chamava para a sua vinha, sem que quisésseis penetrar

nela! Eis-vos no momento de embolsar o salário; empregai bem a hora que vos resta e não esqueçais nunca que a vossa existência, por longa que vos pareça, mais não é do que um instante fugitivo na imensidade dos tempos que formam para vós a eternidade. - Constantino, Espírito Protetor. (Bordéus, 1863.)

3. Jesus gostava da simplicidade dos símbolos e, na sua linguagem máscula, os obreiros que chegaram na primeira hora são os profetas, Moisés e todos os iniciadores que marcaram as etapas do progresso, as quais continuaram a ser assinaladas através dos séculos pelos apóstolos, pelos mártires, pelos Pais da Igreja, pelos sábios, pelos filósofos e, finalmente, pelos espíritas. Estes, que por último vieram, foram anunciados e preditos desde a aurora do advento do Messias e receberão a mesma recompensa. Que digo? recompensa maior. Últimos chegados, eles aproveitam dos labores intelectuais dos seus predecessores, porque o homem tem de herdar do homem e porque coletivos são os trabalhos humanos: Deus abençoa a solidariedade. Aliás, muitos dentre aqueles revivem hoje, ou reviverão amanhã, para terminarem a obra que começaram outrora. Mais de um patriarca, mais de um profeta, mais de um discípulo do Cristo, mais de um propagador da fé cristã se encontram no meio deles, porém, mais esclarecidos, mais adiantados, trabalhando, não já na base e sim na cumeeira do edifício. Receberão, pois, salário proporcionado ao valor da obra.

O belo dogma da reencarnação eterniza e precisa a filiação espiritual. Chamado a prestar contas do seu mandato terreno, o Espírito se apercebe da continuidade da tarefa interrompida, mas sempre retomada. Ele vê, sente que apanhou, de passagem, o pensamento dos que o precederam. Entra de novo na liça, amadurecido pela experiência, para avançar mais. E todos, trabalhadores da primeira e da última hora, com os olhos bem abertos sobre a profunda justiça de Deus, não mais murmuram: adoram.

Tal um dos verdadeiros sentidos desta parábola, que encerra, como todas as de que Jesus se utilizou falando ao povo, o gérmen do futuro e também, sob todas as formas, sob todas as imagens, a revelação da magnífica unidade que harmoniza todas as coisas no Universo, da solidariedade que liga todos os seres presentes ao passado e ao futuro. - Henri Heine. (Paris, 1863.)

Missão dos espíritas

4. Não escutais já o ruído da tempestade que há de arrebatar o velho mundo e abismar no nada o conjunto das iniqüidades terrenas? Ah! bendizei o Senhor, vós que haveis posto a vossa fé na sua soberana justiça e que, novos apóstolos da crença revelada pelas proféticas vozes superiores, ides pregar o novo dogma da reencarnação e da elevação dos Espíritos, conforme tenham cumprido, bem ou mal, suas missões e suportado suas provas terrestres.

Não mais vos assusteis! As línguas de fogo estão sobre as vossas cabeças. O verdadeiros adeptos do Espiritismo!... sois os escolhidos de Deus! Ide e pregai a palavra divina. É chegada a hora em que deveis sacrificar à sua propagação os vossos hábitos, os vossos trabalhos, as vossas ocupações fúteis. Ide e pregai. Convosco estão os Espíritos elevados. Certamente falareis a criaturas que não quererão escutar a voz de Deus, porque essa voz as exorta incessantemente à abnegação. Pregareis o desinteresse aos

avaros, a abstinência aos dissolutos, a mansidão aos tiranos domésticos, como aos déspotas! Palavras perdidas, eu o sei; mas não importa. Faz-se mister regueis com os vossos suores o terreno onde tendes de semear, porquanto ele não frutificará e não produzirá senão sob os reiterados golpes da enxada e da charrua evangélicas. Ide e pregai!

Ó todos vós, homens de boa-fé, conscientes da vossa inferioridade em face dos mundos disseminados pelo infinito!... lançai-vos em cruzada contra a injustiça e a iniqüidade. Ide e proscrevei esse culto do bezerro de ouro, que cada dia mais se alastra. Ide, Deus vos guia! Homens simples e ignorantes, vossas línguas se soltarão e falareis como nenhum orador fala. Ide e pregai, que as populações atentas recolherão ditosas as vossas palavras de consolação, de fraternidade, de esperança e de paz.

Que importam as emboscadas que vos armem pelo caminho! Somente lobos caem em armadilhas para lobos, porquanto o pastor saberá defender suas ovelhas das fogueiras imoladoras.

Ide, homens, que, grandes diante de Deus, mais ditosos do que Tomé, credes sem fazerdes questão de ver e aceitais os fatos da mediunidade, mesmo quando não tenhais conseguido obtê-los por vós mesmos; ide, o Espírito de Deus vos conduz.

Marcha, pois, avante, falange imponente pela tua fé! Diante de ti os grandes batalhões dos incrédulos se dissiparão, como a bruma da manhã aos primeiros raios do Sol nascente.

A fé é a virtude que desloca montanhas, disse Jesus. Todavia, mais pesados do que as maiores montanhas, jazem depositados nos corações dos homens a impureza e todos os vícios que derivam da impureza. Parti, então, cheios de coragem, para removerdes essa montanha de iniqüidades que as futuras gerações só deverão conhecer como lenda, do mesmo modo que vós, que só muito imperfeitamente conheceis os tempos que antecederam a civilização pagã.

Sim, em todos os pontos do Globo vão produzir-se as subversões morais e filosóficas;aproxima-se a hora em que a luz divina se espargirá sobre os dois mundos.

Ide, pois, e levai a palavra divina: aos grandes que a desprezarão, aos eruditos que exigirão provas, aos pequenos e simples que a aceitarão; porque, principalmente entre os mártires do trabalho, desta provação terrena, encontrareis fervor e fé. Ide; estes receberão, com hinos de gratidão e louvores a Deus, a santa consolação que lhes levareis, e baixarão a fronte, rendendo-lhe graças pelas aflições que a Terra lhes destina.

Arme-se a vossa falange de decisão e coragem! Mãos à obra! o arado está pronto; a terra espera; arai!

Ide e agradecei a Deus a gloriosa tarefa que Ele vos confiou; mas, atenção! entre os chamados para o Espiritismo muitos se transviaram; reparai, pois, vosso caminho e segui a verdade.

Pergunta. - Se, entre os chamados para o Espiritismo, muitos se transviaram, quais os sinais pelos quais

reconheceremos os que se acham no bom caminho?

Resposta. Reconhecê-los-eis pelos princípios da verdadeira caridade que eles ensinarão e praticarão.Reconhecê-los-eis pelo número de aflitos a que levem consolo; reconhecê-los-eis pelo seu amor ao próximo, pela sua abnegação, pelo seu desinteresse pessoal; reconhecê-los-eis, finalmente, pelo triunfo de seus princípios, porque Deus quer o triunfo de Sua lei; os que seguem Sua lei, esses são os escolhidos e Ele lhes dará a vitória; mas Ele destruirá aqueles que falseiam o espírito dessa lei e fazem dela degrau para contentar sua vaidade e sua ambição. - Erasto, anjo da guarda do médium. (Paris, 1863.) (1)

(1) Na terceira edição francesa esta mensagem saiu incompleta e sem assinatura. Completamo-la em confronto com a 1ª edição do original. - A Editora da FEB, em 1948.

Os obreiros de Senhor

5. Aproxima-se o tempo em que se cumprirão as coisas anunciadas para a transformação da Humanidade. Ditosos serão os que houverem trabalhado no campo do Senhor, com desinteresse e sem outro móvel, senão a caridade! Seus dias de trabalho serão pagos pelo cêntuplo do que tiverem esperado. Ditosos os que hajam dito a seus irmãos: "Trabalhemos juntos e unamos os nossos esforços, a fim de que o Senhor, ao chegar, encontre acabada a obra", porquanto o Senhor lhes dirá: "Vinde a mim, vós que sois bons servidores, vós que soubestes impor silêncio aos vossos ciúmes e às vossas discórdias, a fim de que daí não viesse dano para a obra!" Mas, ai daqueles que, por efeito das suas dissensões, houverem retardado a hora da colheita, pois a tempestade virá e eles serão levados no turbilhão! Clamarão: "Graça! graça!" O Senhor, porém, lhes dirá: "Como implorais graças, vós que não tivestes piedade dos vossos irmãos e que vos negastes a estender-lhes as mãos, que esmagastes o fraco, em vez de o amparardes? Como suplicais graças, vós que buscastes a vossa recompensa nos gozos da Terra e na satisfação do vosso orgulho? Já recebestes a vossa recompensa, tal qual a quisestes. Nada mais vos cabe pedir; as recompensas celestes são para os que não tenham buscado as recompensas da Terra." Deus procede, neste momento, ao censo dos seus servidores fiéis e já marcou com o dedo aqueles cujo devotamento é apenas aparente, a fim de que não usurpem o salário dos servidores animosos, pois aos que não recuarem diante de suas tarefas é que ele vai confiar os postos mais difíceis na grande obra da regeneração pelo Espiritismo. Cumprir-se-ão estas palavras: "Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros no reino dos céus." - O Espírito de Verdade. (Paris, 1862.)

[Capítulo XXI]

CAPÍTULO XXI

HAVERÁ FALSOS CRISTOS E FALSOS PROFETAS

Conhece-se a árvore pelo fruto. - Missão dos profetas. - Prodígios dos falsos profetas.

- Não creais em todos os Espíritos. - Instruções dos Espíritos: Os falsos profetas. -Caracteresdo verdadeiro profeta. - Os falsos profetas da erraticidade. - Jeremias e os falsos profetas.

Conhece-se a árvore pelo fruto

1.A árvore que produz maus frutos não é boa e a árvore que produz bons frutos não é má; - porquanto, cada árvore se conhece pelo seu próprio fruto. Não se colhem figos nos espinheiros, nem cachos de uvas nas sarças. - O homem de bem tira boas coisas do bom tesouro do seu coração e o mau tira-as más do mau tesouro do seu coração; porquanto, a boca fala do de que está cheio o coração. (S. LUCAS, cap. VI, vv. 43 a 45.)

2.Guardai-vos dos falsos profetas que vêm ter convosco cobertos de peles de ovelha e que por dentro são lobos rapaces. - Conhecê-lo-eis pelos seus frutos. Podem colher-se uvas nos espinheiros ou figos nas sarças? - Assim, toda árvore boa produz bons frutos e toda árvore má produz maus frutos. - Uma árvore boa não pode produzir frutos maus e uma árvore má não pode produzir frutos bons. - Toda árvore que não produz bons frutos será cortada e lançada ao fogo. - Conhecê-la-eis, pois, pelos seus frutos. (S. MATEUS, cap. VII, vv. 15 a 20.)

3.Tende cuidado para que alguém não vos seduza; - porque muitos virão em meu nome, dizendo: "Eu sou o Cristo", e seduzirão a muitos.

Levantar-se-ão muitos falsos profetas que seduzirão a muitas pessoas; - e porque abundará a iniqüidade, a caridade de muitos esfriará. - Mas aquele que perseverar até o fim se salvará.

Então, se alguém vos disser: O Cristo está aqui, ou está ali, não acrediteis absolutamente; - porquanto falsos Cristos e falsos profetas se levantarão que farão grandes prodígios e coisas de espantar, ao ponto de seduzirem, se fosse possível, os próprios escolhidos. (S. MATEUS, cap. XXIV, vv. 4, 5, 11 a 13, 23, e 24; S. MARCOS, cap. XIII, vv. 5, 6, 21 e 22.)

Missão dos profetas

4. Atribui-se comumente aos profetas o dom de adivinhar o futuro, de sorte que as palavras profecia epredição se tornaram sinônimas. No sentido evangélico, o vocábulo profeta tem mais extensa significação.Diz-se de todo enviado de Deus com a missão de instruir os homens e de lhes revelar as coisas ocultas e os mistérios da vida espiritual. Pode, pois, um homem ser profeta, sem fazer predições. Aquela era a idéia dos judeus, ao tempo de Jesus. Daí vem que, quando o levaram à presença do sumo- sacerdote Caifás, os escribas e os anciães, reunidos, lhe cuspiram no rosto, lhe deram socos e bofetadas, dizendo: "Cristo, profetiza para nós e dize quem foi que te bateu." Entretanto, deu-se o caso de haver profetas que tiveram a presciência do futura, quer por intuição, quer por providencial revelação, a fim de

transmitirem avisos aos homens. Tendo-se realizado os acontecimentos preditos, o dom de predizer o futuro foi considerado como um dos atributos da qualidade de profeta.

Prodígios dos falsos profetas

5. "Levantar-se-ão falsos Cristos e falsos profetas, que farão grandes prodígios e coisas de espantar, a ponto de seduzirem os próprios escolhidos." Estas palavras dão o verdadeiro sentido do termo prodígio. Na acepção teológica, os prodígios e os milagres são fenômenos excepcionais, fora das leis da Natureza. Sendo estas, exclusivamente, obra de Deus, pode ele, sem dúvida, derrogá-las, se lhe apraz; o simples bom senso, porém, diz que não é possível haja ele dado a seres inferiores e perversos um poder igual ao seu, nem, ainda menos, o direito de desfazer o que ele tenha feito. Semelhante princípio não no pode Jesus ter consagrado. Se, portanto, de acordo com o sentido que se atribui a essas palavras, o Espírito do mal tem o poder de fazer prodígios tais que os próprios escolhidos se deixem enganar, o resultado seria que, podendo fazer o que Deus faz, os prodígios e os milagres não são privilégio exclusivo dos enviados de Deus e nada provam, pois que nada distingue os milagres dos santos dos milagres do demônio. Necessário, então, se torna procurar um sentido mais racional para aquelas palavras.

Para o vulgo ignorante, todo fenômeno cuja causa é desconhecida passa por sobrenatural, maravilhoso e miraculoso; uma vez encontrada a causa, reconhece-se que o fenômeno, por muito extraordinário que pareça, mais não é do que aplicação de urna lei da Natureza. Assim, o círculo dos fatos sobrenaturais se restringe à medida que o da Ciência se alarga. Em todos os tempos, homens houve que exploraram, em proveito de suas ambições, de seus interesses e do seu anseio de dominação, certos conhecimentos que possuíam, a fim de alcançarem o prestígio de um pseudopodersobre-humano, ou de Lima pretendida missão divina. São esses os falsos Cristos e falsos profetas. A difusão das luzes lhes aniquila o crédito, donde resulta que o número deles diminui à proporção que os homens se esclarecem. O fato de operar o que certas pessoas consideram prodígios não constitui, pois, sinal de uma missão divina, visto que pode resultar de conhecimento cuja aquisição está ao alcance de qualquer um, ou de faculdades orgânicas especiais, que o mais indigno não se acha inibido de possuir, tanto quanto o mais digno. O verdadeiro profeta se reconhece por mais sérios caracteres e exclusivamente morais.

Não creais em todos os Espíritos

6.Meus bem-amados, não creais em qualquer Espírito; experimentai se os Espíritos são de Deus, porquanto muitos falsos profetas se têm levantado no mundo(S. JOÃO, Epístola 1ª, cap. IV, v. 1.)

7.Os fenômenos espíritas, longe de abonarem os falsos Cristos e os falsos profetas, como a algumas pessoas apraz dizer, golpe mortal desferem neles. Não peçais ao Espiritismo prodígios, nem milagres, porquanto ele formalmente declara que os não opera. Do mesmo modo que a Física, a Química, a Astronomia, a Geologia revelaram as leis do inundo material, ele revela outras leis desconhecidas, as que regem as relações do mundo corpóreo com o mundo espiritual, leis que, tanto quanto aquelas outras da Ciência, são leis da Natureza. Facultando a explicação de certa ordem de fenômenos incompreendidos até o presente, ele destrói o que ainda restava do domínio do maravilhoso. Quem,

portanto, se sentisse tentado a lhe explorar em proveito próprio os fenômenos, fazendo-se passar por messias de Deus, não conseguiria abusar por muito tempo da credulidade alheia e seria logo desmascarado. Aliás, como já se tem dito, tais fenômenos, por si sós, nada provam: a missão se prova por efeitos morais, o que não é dado a qualquer um produzir. Esse um dos resultados do desenvolvimento da ciência espírita; pesquisando a causa de certos fenômenos, de sobre muitos mistérios levanta ela o véu. Só os que preferem a obscuridade à luz, têm interesse em combatê-la;mas, a verdade é como o Sol: dissipa os mais densos nevoeiros.

O Espiritismo revela outra categoria bem mais perigosa de falsos Cristos e de falsos profetas, que se encontram, não entre os homens, mas entre os desencarnados: a dos Espíritos enganadores, hipócritas, orgulhosos e pseudo-sábios, que passaram da Terra para a erraticidade e tomam nomes venerados para, sob a máscara de que se cobrem, facilitarem a aceitação das mais singulares e absurdas idéias. Antes que se conhecessem as relações mediúnicas, eles atuavam de maneira menos ostensiva, pela inspiração, pela mediunidade inconsciente, audiente ou falante. É considerável o número dos que, em diversas épocas, mas, sobretudo, nestes últimos tempos, se hão apresentado como alguns dos antigos profetas, como o Cristo, como Maria, sua mãe, e até como Deus. S. João adverte contra eles os homens, dizendo: "Meusbem-amados, não acrediteis em todo Espírito; mas, experimentai se os Espíritos são de Deus, porquanto muitos falsos profetas se tem levantado no mundo." O Espiritismo nos faculta os meios de experimentá- los, apontando os caracteres pelos quais se reconhecem os bons Espíritos, caracteres sempre morais, nunca materiais (1). É a maneira de se distinguirem dos maus os bons Espíritos que, principalmente, podemaplicar-se estas palavras de Jesus: "Pelo fruto é que se reconhece a qualidade da árvore; uma árvore boa não pode produzir maus frutos, e uma árvore má não os pode produzir bons." Julgam-se os Espíritos pela qualidade de suas obras, como uma árvore pela qualidade dos seus frutos.

(1) Ver, sobre a maneira de se distinguirem os Espíritos: O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXIV e seguintes.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Os falsos profetas

8. Se vos disserem: "O Cristo está aqui", não vades; ao contrário, tende-vos em guarda, porquanto numerosos serão os falsos profetas. Não vedes que as folhas da figueira começam a branquear; não vedes os seus múltiplos rebentos aguardando a época da floração; e não vos disse o Cristo:Conhece-se a árvore pelo fruto? Se, pois, são amargos os frutos, já sabeis que má é a árvore; se, porém, são doces e saudáveis, direis: "Nada que seja puro pode provir de fonte má." É assim, meus irmãos, que deveis julgar; são as obras que deveis examinar. Se os que se dizem investidos de poder divino revelam sinais de uma missão de natureza elevada, isto é, se possuem no mais alto grau as virtudes cristãs e eternas: a

caridade, o amor, a indulgência, a bondade que concilia os corações; se, em apoio das palavras, apresentam os atos, podereis então dizer: Estes são realmente enviados de Deus.

Desconfiai, porém, das palavras melífluas, desconfiai dos escribas e dos fariseus que oram nas praças públicas, vestidos de longas túnicas. Desconfiai dos que pretendem ter o monopólio da verdade!

Não, não, o Cristo não está entre esses, porquanto os que ele envia para propagar a sua santa doutrina e regenerar o seu povo serão, acima de tudo, seguindo-lhe o exemplo, brandos e humildes de coração; os que hajam, com os exemplos e conselhos que prodigalizem, de salvar a humanidade, que corre para a perdição e pervaga por caminhos tortuosos, serão essencialmente modestos e humildes. De tudo o que revele um átomo de orgulho, fugi, como de uma lepra contagiosa, que corrompe tudo em que toca.Lembrai-vos de que cada criatura traz na fronte, mas principalmente nos atos, o cunho da sua grandeza ou da sua inferioridade.

Ide, portanto, meus filhos bem-amados, caminhai sem tergiversações, sem pensamentos ocultos, na rota bendita que tomastes. Ide, ide sempre, sem temor; afastai, cuidadosamente, tudo o que vos possa entravar a marcha para o objetivo eterno. Viajores, só por pouco tempo mais estareis nas trevas e nas dores da provação, se abrirdes o vosso coração a essa suave doutrina que vos vem revelar as leis eternas e satisfazer a todas as aspirações de vossa alma acerca do desconhecido. Já podeis dar corpo a esses silfos ligeiros que vedes passar nos vossos sonhos e que, efêmeros, apenas vos encantavam o espírito, sem coisa alguma dizerem ao vosso coração. Agora, meus amados, a morte desapareceu, dando lugar ao anjo radioso que conheceis, o anjo do novo encontro e da reunião! Agora, vós que bem desempenhado haveis a tarefa que o Criador confia às suas criaturas, nada mais tendes de temer da sua justiça, pois ele é pai e perdoa sempre aos filhos transviados que clamam por misericórdia. Continuai, portanto, avançai incessantemente. Seja vossa divisa a do progresso, do progresso contínuo em todas as coisas, até que, finalmente, chegueis ao termo feliz da jornada, onde vos esperam todos os que vos precederam. - Luís. (Bordéus, 1861.)

Caracteres de verdadeiro profeta

9. Desconfiai dos falsos profetas. É útil em todos os tempos essa recomendação, mas, sobretudo, nos momentos de transição em que, como no atual, se elabora uma transformação da Humanidade, porque, então, uma multidão de ambiciosos e intrigantes se arvoram em reformadores e messias. E contra esses impostores que se deve estar em guarda, correndo a todo homem honesto o dever de os desmascarar. Perguntareis, sem dúvida, como reconhecê-los. Aqui tendes o que os assinala: Somente a um hábil general, capaz de o dirigir, se confia o comando de um exército. Julgais que Deus seja menos prudente do que os homens? Ficai certos de que só confia missões importantes aos que ele sabe capazes de as cumprir, porquanto as grandes missões são fardos pesados que esmagariam o homem carente de forças para carregá-los. Em todas as coisas, o mestre há de sempre saber mais do que o discípulo; para fazer que a Humanidade avance moralmente e intelectualmente, são precisos homens superiores em inteligência e em moralidade. Por isso, para essas missões são sempre escolhidos Espíritos já adiantados, que fizeram suas provas noutras existências, visto que, se não fossem superiores ao meio em que têm da

atuar, nula lhes resultaria a ação.

Isto posto, haveis de concluir que o verdadeiro missionário de Deus tem de justificar, pela sua superioridade, pelas suas virtudes, pela grandeza, pelo resultado e pela influência moralizadora de suas obras, a missão de que se diz portador. Tirai também esta outra conseqüência: se, pelo seu caráter, pelas suas virtudes, pela sua inteligência, ele se mostra abaixo do papel com que se apresente, ou da personagem sob cujo nome se coloca, mais não é do que um histrião de baixo estofo, que nem sequer sabe imitar o modelo que escolheu.

Outra consideração: os verdadeiros missionários de Deus ignoram-se a si mesmos, em sua maior parte; desempenham a missão a que foram chamados pela força do gênio que possuem, secundado pelo poder oculto que os inspira e dirige a seu mau grado, mas sem desígnio premeditado. Numa palavra: os verdadeiros profetas se revelam por seus atos, são adivinhados, ao passo que os falsos profetas se dão, eles próprios, como enviados de Deus.

O primeiro é humilde e modesto; o segundo, orgulhoso e cheio de si, fala com altivez e, como todos os mendazes, parece sempre temeroso de que não lhe dêem crédito.

Alguns desses impostores têm havido, pretendendo passar por apóstolos do Cristo, outros pelo próprio Cristo, e, para vergonha da Humanidade, hão encontrado pessoas assaz crédulas que lhes crêem nas torpezas. Entretanto, uma ponderação bem simples seria bastante a abrir os olhos do mais cego, a de que se o Cristo reencarnasse na Terra, viria com todo o seu poder e todas as suas virtudes, a menos se admitisse, o que fora absurdo, que houvesse degenerado. Ora, do mesmo modo que, se tirardes a Deus um só de seus atributos, já não tereis Deus, se tirardes uma só de suas virtudes ao Cristo, já não mais o tereis. Possuem todas as suas virtudes os que se dão como sendo o Cristo? Essa a questão. Observai-os, perscrutai-lhes as idéias e os atos e reconhecereis que, acima de tudo, lhes faltam as qualidades distintivas do Cristo; a humildade e a caridade, sobejando-lhes as que o Cristo não tinha: a cupidez e o orgulho. Notai, ao demais, que neste momento há, em vários países, muitos pretensos Cristos, como há muitos pretensos Elias, muitos S. João ou S. Pedro e que não é absolutamente possível sejam verdadeiros todos, Tende como certo que são apenas criaturas que exploram a credulidade dos outros e acham cômodo viver à custa dos que lhes prestam ouvidos.

Desconfiai, pois, dos falsos profetas, máxime numa época de renovação, qual a presente, porque muitos impostores se dirão enviados de Deus. Eles procuram satisfazer na Terra à sua vaidade; mas uma terrível justiça os espera, podeis estar certos. - Erasto. (Paris, 1862.)

Os falsos profetas da erraticidade

10. Os falsos profetas não se encontram unicamente entre os encarnados. Há-os também, e em muito maior número, entre os Espíritos orgulhosos que, aparentando amor e caridade, semeiam a desunião e retardam a obra de emancipação da Humanidade, lançando-lhe de través seus sistemas absurdos, depois de terem feito que seus médiuns os aceitem. E, para melhor fascinarem aqueles a quem desejam iludir,

para darem mais peso às suas teorias, se apropriam sem escrúpulo de nomes que só com muito respeito os homens pronunciam.

São eles que espalham o fermento dos antagonismos entre os grupos, que os impelem a isolarem-seuns dos outros e a olharem-se com prevenção. Isso por si só bastaria para os desmascarar, pois, procedendo assim, são os primeiros a dar o mais formal desmentido às suas pretensões. Cegos, portanto, são os homens que se deixam cair em tão grosseiro embuste.

Mas, há muitos outros meios de serem reconhecidos. Espíritos da categoria em que eles dizemachar-se têm de ser não só muito bons, como também eminentemente racionais. Pois bem: passai-lhesos sistemas pelo crivo da razão e do bom senso e vede o que restará. Convinde, pois, comigo, em que, todas as vezes que um Espírito indica, como remédio aos males da Humanidade ou como meio deconseguir-se a sua transformação, coisas utópicas e impraticáveis, medidas pueris e ridículas; quando formula um sistema que as mais rudimentares noções da Ciência contradizem, não pode ser senão um Espírito ignorante e mentiroso.

Por outro lado, crede que, se nem sempre os indivíduos apreciam a verdade, esta é apreciada sempre pelo bom senso das massas, constituindo isso mais um critério. Se dois princípios se contradizem, achareis a medida do valor intrínseco de ambos, verificando qual dos dois encontra mais ecos e simpatias. Fora, com efeito, ilógico admitir-se que uma doutrina cujo número de adeptos diminua progressivamente seja mais verdadeira do que outra que veja o dos seus em continuo aumento.

Querendo que a verdade chegue a todos, Deus não a confina num círculo acanhado: fá-la surgir em diferentes pontos, a fim de que por toda a parte a luz esteja ao lado das trevas.

Repeli sem condescendência todos esses Espíritos que se apresentam como conselheiros exclusivos, pregando a separação e o insulamento. São quase sempre Espíritos vaidosos e medíocres, que procuram impor-se a homens fracos e crédulos, prodigalizando-lhes exagerados louvores, a fim de os fascinar e de tê-los dominados. São, geralmente, Espíritos sequiosos de poder e que, déspotas públicos ou nos lares, quando vivos, ainda querem vitimas para tiranizar depois de terem morrido. Em geral, desconfiai das comunicações que trazem um caráter de misticismo e de singularidade, ou que prescrevem cerimônias e atos extravagantes. Há sempre, nesses casos, motivo legítimo de suspeição.

Estai certos, igualmente, de que quando uma verdade tem de ser revelada aos homens, é, por assim dizer, comunicada instantaneamente a todos os grupos sérios, que dispõem de médiuns também sérios, e não a tais ou quais, com exclusão dos outros. Nenhum médium é perfeito, se está obsidiado; e há manifesta obsessão quando um médium só é apto a receber comunicações de determinado Espírito, por mais alto que este procure colocar-se. Conseguintemente, todo médium e todo grupo que considerem privilégio seu receber as comunicações que obtêm e que, por outro lado, se submetem a práticas que tendem para a superstição, indubitavelmente se acham presas de uma obsessão bem caracterizada, sobretudo quando o Espírito dominador se pavoneia com um nome que todos, encarnados e desencarnados, devem honrar e respeitar e não permitir seja declinado a todo propósito.

É incontestável que, submetendo ao crivo da razão e da lógica todos os dados e todas as comunicações dos Espíritos, fácil se torna rejeitar a absurdidade e o erro, Pode um médium ser fascinado, e iludido um grupo; mas, a verificação severa a que procedam os outros grupos, a ciência adquirida, a alta autoridade moral dos diretores de grupos, as comunicações que os principais médiuns recebam, com um cunho de lógica e de autenticidade dos melhores Espíritos, justiçarão rapidamente esses ditados mentirosos e astuciosos, emanados de uma turba de Espíritos mistificadores ou maus. - Erasto,discípulo de São Paulo. (Paris, 1862,) (Veja-se, na "Introdução", o parágrafo II: Verificação universal do ensino dos

Espíritos. - O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXIII, Da obsessão.)

Jeremias e os falsos profetas

11. Eis o que diz o Senhor dos Exércitos: Não escuteis as palavras dos profetas que vos profetizam e que vos enganam. Eles publicam as visões de seus corações e não o que aprenderam da boca do Senhor. - Dizem aos que de mim blasfemam: O Senhor o disse, tereis paz; e a todos os que andam na corrupção de seus corações: Nenhum mal vos acontecerá. - Mas, qual dentre eles assistiu ao conselho de Deus? Qual o que o viu e escutou o que ele disse? - Eu não enviava esses profetas; eles corriam por si mesmos; eu absolutamente não lhes falava; eles profetizavam de suas cabeças. - Eu ouvi o que disseram esses profetas que profetizavam a mentira em meu nome, dizendo: Sonhei, sonhei. - Até quando essa' imaginação estará no coração dos que profetizam a mentira e cujas profecias não são senão as seduções do coração deles? Se, pois, este povo, ou um profeta, ou um sacerdote vos interrogar e disser: Qual o fardo do Senhor? dir-lhe-eis: vós mesmos sois o fardo e eu vos lançarei bem longe de mim, diz o Senhor. (JEREMIAS, cap. XXIII, vv. 16 a 18, 21, 25, 26 e 33.)

É dessa passagem do profeta Jeremias que quero tratar convosco, meus amigos. Falando pela sua boca, diz Deus: "É a visão do coração deles que os faz falar." Essas palavras claramente indicam que, já naquela época, os charlatães e os exaltados abusavam do dom de profecia e o exploravam. Abusavam, por conseguinte, da fé simples e quase cega do povo, predizendo, por dinheiro, coisas boas e agradáveis. Muito generalizada se achava essa espécie de fraude na nação judia, e fácil é decompreender-se que o pobre povo, em sua ignorância, nenhuma possibilidade tinha de distinguir os bons dos maus, sendo sempre mais ou menos ludibriado pelos pseudoprofetas, que não passavam de impostores ou fanáticos. Nada há de mais significativo do que estas palavras: "Eu não enviei esses profetas e eles correram por si mesmos; não lhes falei e eles profetizaram." Mais adiante, diz: "Eu ouvi esses profetas que profetizavam a mentira em meu nome, dizendo: Sonhei, sonhei." Indicava assim um dos meios que eles empregavam para explorar a confiança de que eram objeto. A multidão, sempre crédula, não pensava em lhes contestar a veracidade dos sonhos, ou das visões; achava isso muito natural e constantemente os convidava a falar.

Após as palavras do profeta, escutai os sábios conselhos do apóstolo S. João, quando diz: "Não acrediteis em todo Espírito; experimentai se os Espíritos são de Deus", porque, entre os invisíveis, também há os que se comprazem em iludir, se se lhes depara ocasião. Os iludidos são, está-se a ver, os médiuns que se não precatam bastante. Aí se encontra, é fora de toda dúvida, um dos maiores escolhos em que muitos funestamente esbarram, mormente se são novatos no Espiritismo. É-lhes isso uma prova

de que só com muita prudência podem triunfar. Aprendei, pois, antes de tudo, a distinguir os bons e os maus Espíritos, para, por vossa vez, não vos tornardes falsos profetas. - Luoz, Espírito Protetor. (Carlsruhe, 1861.)

[Capítulo XXII]

CAPÍTULO XXII

NÃO SEPAREIS O QUE DEUS JUNTOU

Indissolubilidade do casamento. - Divórcio.

Indissolubilidade do casamento

1. Também os fariseus vieram ter com ele para o tentarem e lhe disseram: Será permitido a um homem despedir sua mulher, por qualquer motivo? Ele respondeu: Não lestes que aquele que criou o homem desde o princípio os criou macho e fêmea e disse: -Por esta razão, o homem deixará seu pai e sua mãe e se ligará à sua mulher e não farão os dois senão uma só carne? - Assim, já não serão duas, mas uma só carne. Não separe, pois, o homem o que Deus juntou.

Mas, por que então, retrucaram eles, ordenava Moisés que o marido desse à sua mulher um escrito de separação e a despedisse? - Jesus respondeu: Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés permitiu despedísseis vossas mulheres; mas, no começo, não foi assim. - Por isso eu vos declaro que aquele que despede sua mulher, a não ser em caso de adultério, e desposa outra, comete adultério; e que aquele que desposa a mulher que outro despediu também comete adultério. (S. MATEUS, cap. XIX, vv. 3 a 9.)

2.Imutável só há o que vem de Deus. Tudo o que é obra dos homens está sujeito a mudança. As leis da Natureza são as mesmas em todos os tempos e em todos os países. As leis humanas mudam segundo os tempos, os lugares e o progresso da inteligência. No casamento, o que é de ordem divina é a união dos sexos, para que se opere a substituição dos seres que morrem; mas, as condições que regulam essa união são de tal modo humanas, que não há, no inundo inteiro, nem mesmo na cristandade, dois países onde elas sejam absolutamente idênticas, e nenhum onde não hajam, com o tempo, sofrido mudanças. Daí resulta que, em face da lei civil, o que é legítimo num país e em dada época, é adultério noutro país e noutra época, isso pela razão de que a lei civil tem por fim regular os interesses das famílias, interesses que variam segundo os costumes e as necessidades locais. Assim é, por exemplo, que, em certos países, o casamento religioso é o único legítimo; noutros é necessário, além desse, o casamento civil; noutros, finalmente, este último casamento basta.

3.Mas, na união dos sexos, a par da lei divina material, comum a todos os seres vivos, há outra lei divina, imutável como todas as leis de Deus, exclusivamente moral: a lei de amor. Quis Deus que os seres se unissem não só pelos laços da carne, mas também pelos da alma, a fim de que a afeição mútua

dos esposos se lhes transmitisse aos filhos e que fossem dois, e não um somente, a amá-los, a cuidar deles e a fazê-los progredir. Nas condições ordinárias do casamento, a lei de amor é tida em consideração? De modo nenhum. Não se leva em conta a afeição de dois seres que, por sentimentos recíprocos, se atraem um para o outro, visto que, as mais das vezes, essa afeição é rompida. O de que se cogita, não é da satisfação do coração e sim da do orgulho, da vaidade, da cupidez, numa palavra: de todos os interesses materiais. Quando tudo vai pelo melhor consoante esses interesses, diz-se que o casamento é de conveniência e, quando as bolsas estão bem aquinhoadas, diz-se que os esposos igualmente o são e muito felizes hão de ser.

Nem a lei civil, porém, nem os compromissos que ela faz se contraiam podem suprir a lei do amor, se esta não preside à união, resultando, freqüentemente, separarem-se por si mesmos os que à força se uniram; torna-se um perjúrio, se pronunciado como fórmula banal, o juramento feito ao pé do altar. Daí as uniões infelizes, que acabam tornando-se criminosas, dupla desgraça que se evitaria se, ao estabelecerem-se as condições do matrimônio, se não abstraísse da única que o sanciona aos olhos de Deus: a lei de amor. Ao dizer Deus: "Não sereis senão uma só carne", e quando Jesus disse: "Não separeis o que Deus uniu", essas palavras se devem entender com referência à união segundo a lei imutável de Deus e não segundo a lei mutável dos homens.

4. Será então supérflua a lei civil e dever-se-á volver aos casamentos segundo a Natureza? Não, decerto. A lei civil tem por fim regular as relações sociais e os interesses das famílias, de acordo com as exigências da civilização; por isso, é útil, necessária, mas variável. Deve ser previdente, porque o homem civilizado não pode viver como selvagem; nada, entretanto, nada absolutamente se opõe a que ela seja um corolário da lei de Deus. Os obstáculos ao cumprimento da lei divina promanam dos

prejuízos e não da lei civil. Esses prejuízos, se bem ainda vivazes, já perderam muito do seu predomínio no seio dos povos esclarecidos; desaparecerão com o progresso moral que, por fim, abrirá os olhos aos homens para os males sem conto, as faltas, mesmo os crimes que decorrem das uniões contraídas com vistas unicamente nos interesses materiais. Um dia perguntar-se-á o que é mais humano, mais caridoso, mais moral: se encadear um ao outro dois seres que não podem viver juntos, se restituir-lhes a liberdade; se a perspectiva de uma cadeia indissolúvel não aumenta o número de uniões irregulares.

O divórcio

5. O divórcio é lei humana que tem por objeto separar legalmente o que já, de fato, está separado. Não é contrário à lei de Deus, pois que apenas reforma o que os homens hão feito e só é aplicável nos casos em que não se levou em conta a lei divina. Se fosse contrario a essa lei, a própria Igreja seria obrigada a considerar prevaricadores aqueles de seus chefes que, por autoridade própria e em nome da religião, hão imposto o divórcio em mais de uma ocasião. E dupla seria aí a prevaricação, porque, nesses casos, o divórcio há objetivado unicamente interesses materiais e não a satisfação da lei de amor.

Mas, nem mesmo Jesus consagrou a indissolubilidade absoluta do casamento. Não disse ele: "Foi por causa da dureza dos vossos corações que Moisés permitiu despedísseis vossas mulheres?" Isso significa que, já ao tempo de Moisés, não sendo a afeição mútua a única determinante do casamento, a separação

podia tornar-se necessária. Acrescenta, porém: "no princípio, não foi assim", isto é, na origem da Humanidade, quando os homens ainda não estavam pervertidos pelo egoísmo e pelo orgulho e viviam segundo a lei de Deus, as uniões, derivando da simpatia, e não da vaidade ou da ambição, nenhum ensejo davam ao repúdio.

Vai mais longe: especifica o caso em que pode dar-se o repúdio, o de adultério. Ora, não existe adultério onde reina sincera afeição recíproca. É verdade que ele proíbe ao homem desposar a mulher repudiada; mas, cumpre se tenham em vista os costumes e o caráter dos homens daquela época. A lei moisaica, nesse caso, prescrevia a lapidação. Querendo abolir um uso bárbaro, precisou de uma penalidade que o substituísse e a encontrou no opróbrio que adviria da proibição de um segundo casamento. Era, de certo modo, uma lei civil substituída por outra lei civil, mas que, como todas as leis dessa natureza, tinha de passar pela prova do tempo.

[Capítulo XXIII]

CAPÍTULO XXIII

ESTRANHA MORAL

Odiar os pais. - Abandonar pai, mãe e filhos. - Deixar aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos. - Não vim trazer a paz, mas, a divisão.

Odiar os pais

1.Como nas suas pegadas caminhasse grande massa de povo, Jesus, voltando-se, disse-lhes: - Se alguém vem a mim e não odeia a seu pai e a sua mãe, a sua mulher e a seus filhos, a seus irmãos e irmãs, mesmo a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. -E quem quer que não carregue a sua cruz e me siga, não pode ser meu discípulo. - Assim, aquele dentre vós que não renunciar a tudo o que tem não pode ser meu discípulo. (S. LUCAS, cap. XIV, vv. 25 a 27 e 33.)

2.Aquele que ama a seu pai ou a sua mãe, mais do que a mim, de mim não é digno; aquele que ama a seu filho ou a sua filha, mais do que a mim, de mim não é digno. (S. MATEUS, cap. X, v. 37.)

3.Certas palavras, aliás muito raras, atribuídas ao Cristo, fazem tão singular contraste com o seu modo habitual de falar que, instintivamente, se lhes repele o sentido literal, sem que a sublimidade da sua doutrina sofra qualquer dano. Escritas depois de sua morte, pois que nenhum dos Evangelhos foi redigido enquanto ele vivia, lícito é acreditar-se que, em casos como este, o fundo do seu pensamento não foi bem expresso, ou, o que não é menos provável, o sentido primitivo, passando de uma língua para outra, há de ter experimentado alguma alteração. Basta que um erro se haja cometido uma vez, para que os copiadores o tenham repetido, como se dá freqüentemente com relação aos fatos históricos.

O termo odiar, nesta frase de S. Lucas: Se alguém vem mim e não odeia seu pai e sua mãe,está compreendido nessa hipótese. A ninguém acudirá atribuí-la a Jesus. Será então supérfluodiscuti-la e, ainda menos, tentar justificá-la. Importaria, primeiro, saber se ele a pronunciou e, em caso afirmativo, se, na língua em que se exprimia, a palavra em questão tinha o mesmo valor que na nossa. Nesta passagem de S. João: "Aquele que odeia sua vida, neste mundo, a conserva para a vida eterna", é indubitável que ela não exprime a idéia que lhe atribuímos.

A língua hebraica não era rica e continha muitas palavras com várias significações. Tal, por exemplo, a que no Gênese, designa as fases da criação: servia, simultaneamente, para exprimir um período qualquer de tempo e a revolução diurna. Daí, mais tarde, a sua tradução pelo termo dia e a crença de que o mundo foi obra de seis vezes vinte e quatro horas. Tal, também, a palavra com que se designava um camelo e um cabo, uma vez que os cabos eram feitos de pêlos de camelo. Daí o haverem-natraduzido pelo termo camelo, na alegoria do buraco de uma agulha. (Ver capítulo XVI, nº 2.) (1)

(1) Non odit, em latim: Kaï ou miseï em grego, não quer dizer odiar, porém, amar menos. O que o verbo grego miseïn exprime, ainda melhor o expressa o verbo hebreu, de que Jesus se há de ter servido. Esse verbo não significa apenas odiar, mas, também amar menos, não amar igualmente, tanto quanto a um outro. No dialeto siríaco, do qual, dizem, Jesus usava com mais freqüência, ainda melhor acentuada é essa significação. Nesse sentido é que o Gênese (capítulo XXIX, vv. 30 e 31) diz: "E Jacob amou também mais a Raquel do que a Lia, e Jeová, vendo que Lia era odiada..." É evidente que o verdadeiro sentido aqui é: menos amada. Assim se deve traduzir. Em muitas outras passagens hebraicas e, sobretudo, siríacas, o mesmo verbo é empregado no sentido de não amar tanto quanto a outro, de sorte que fora contra-sensotraduzi-lo por odiar, que tem outra acepção bem determinada. O texto de S. Mateus, aliás, afasta toda a dificuldade. - ( Nota do Sr. Pezzani.)

Cumpre, ao demais, se atenda aos costumes e ao caráter dos povos, pelo muito que influem sobre o gênio particular de seus idiomas. Sem esse conhecimento, escapa amiúde o sentido verdadeiro de certas palavras. De uma língua para outra, o mesmo termo se reveste de maior OU menor energia. Pode, numa, envolver injúria ou blasfêmia, e carecer de importância noutra, conforme a idéia que suscite. Na mesma língua, algumas palavras perdem seu valor com o correr dos séculos. Por isso é que uma tradução rigorosamente literal nem sempre exprime perfeitamente o pensamento e que, para manter a exatidão, se tem às vezes de empregar, não termos correspondentes, mas outros equivalentes, ou perífrases.

Estas notas encontram aplicação especial na interpretação das Santas Escrituras e, em particular, dos Evangelhos. Se se não tiver em conta o meio em que Jesus vivia, fica-se exposto a equívocos sobre o valor de certas expressões e de certos fatos, em conseqüência do hábito em que se está de assimilar os outros a si próprio. Em todo caso, cumpre despojar o termo odiar da sua acepção moderna, como contrária ao espírito do ensino de Jesus. (Veja-se também o cap. XIV, nº 5 e seguintes.)

Abandonar pai, mãe e filhos

4Aquele que houver deixado, pelo meu nome, sua casa, os seus irmãos, ou suas irmãs, ou seu pai, ou sua mãe, ou sua mulher, ou seus filhos, ou suas terras, receberá o cêntuplo de tudo isso e terá por herança a vida eterna. (S. MATEUS, cap. XIX, v. 29.)

5.Então, disse-lhe Pedro: Quanto a nós, vês que tudo deixamos e te seguimos. -Jesus lhe observou: Digo-vos, em verdade, que ninguém deixará, pelo reino de Deus, sua casa, ou seu pai, ou sua mãe, ou seus irmãos, ou sua mulher, ou seus filhos - que não receba, já neste mundo, muito mais, e no século vindouro a vida eterna(S. LUCAS, cap. XVIII, vv. 28 a 30.)

6.Disse-lhe outro: Senhor, eu te seguirei; mas, permite que, antes, disponha do que tenho em minha casa. - Jesus lhe respondeu: Quem quer que, tendo posto a mão na charrua, olhar para trás, não esta apto para o reino de Deus. (S. LUCAS, cap. IX, vv. 61 e 62.)

Sem discutir as palavras, deve-se aqui procurar o pensamento, que era, evidentemente, este: "Os interesses da vida futura prevalecem sobre todos os interesses e todas as considerações humanas", porque esse pensamento está de acordo com a substância da doutrina de Jesus, ao passo que a idéia de uma renunciação à família seria a negação dessa doutrina.

Não temos, aliás, sob as vistas a aplicação dessas máximas no sacrifício dos interesses e das afeições de família aos da Pátria? Censura-se, porventura, aquele que deixa seu pai, sua mãe, seus irmãos, sua mulher, seus filhos, para marchar em defesa do seu país? Não se lhe reconhece, ao contrário, grande mérito em arrancar-se às doçuras do lar doméstico, aos liames da amizade, para cumprir um dever? E que, então, há deveres que sobrelevam a outros deveres. Não impõe a lei à filha a obrigação de deixar os pais, para acompanhar o esposo? Formigam no mundo os casos em que são necessárias as mais penosas separações. Nem por isso, entretanto, as afeições se rompem. O afastamento não diminui o respeito, nem a solicitude do filho para com os pais, nem a ternura destes para com aquele. Vê-se,portanto, que, mesmo tomadas ao pé da letra, excetuado o termo odiar, aquelas palavras não seriam uma negação do mandamento que prescreve ao homem honrar a seu pai e a sua mãe, nem do afeto paternal; com mais forte razão, não o seriam, se tomadas segundo o espírito. Tinham elas por fim mostrar, mediante uma hipérbole, quão imperioso é para a criatura o dever de ocupar-se com a vida futura. Aliás, pouco chocantes haviam de ser para um povo e numa época em que, como conseqüência dos costumes, os laços de família eram menos fortes, do que no seio de uma civilização moral mais avançada. Esses laços, mais fracos nos povos primitivos, fortalecem-se com o desenvolvimento da sensibilidade e do senso moral. A própria separação é necessária ao progresso. Assim as famílias como as raças se abastardam, desde que se não entrecruzem, se não enxertem umas nas outras. E essa urna lei da Natureza, tanto no interesse do progresso moral, quanto no do progresso físico.

Aqui, as coisas são consideradas apenas do ponto de vista terreno. O Espiritismo no-las faz ver de mais alto, mostrando serem os do Espírito e não os do corpo os verdadeiros laços de afeição; que aqueles laços não se quebram pela separação, nem mesmo pela morte do corpo; que se robustecem na vida

espiritual, pela depuração do Espírito, verdade consoladora da qual grande força haurem as criaturas, para suportarem as vicissitudes da vida. (Cap. IV, nº 18; cap. XIV, nº 8.)

Deixar aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos

7.Disse a outro: Segue-me; e o outro respondeu: Senhor, consente que, primeiro, eu vá enterrar meu pai. - Jesus lhe retrucou: Deixa aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos; quanto a ti, vai anunciar o reino de Deus. (S. LUCAS, cap. IX, vv. 59 e 60.)

8.Que podem significar estas palavras: "Deixa aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos"? As considerações precedentes mostram, em primeiro lugar, que, nas circunstâncias em que foram proferidas, não podiam conter censura àquele que considerava um dever de piedade filial ir sepultar seu pai. Tem, no entanto, um sentido profundo, que só o conhecimento mais completo da vida espiritual podia tomar perceptível.

A vida espiritual é, com efeito, a verdadeira vida, é a vida normal do Espírito, sendo-lhe transitória e passageira a existência terrestre, espécie de morte, se comparada ao esplendor e à atividade da outra. O corpo não passa de simples vestimenta grosseira que temporariamente cobre o Espírito, verdadeiro grilhão que o prende à gleba terrena, do qual se sente ele feliz em libertar-se. O respeito que aos mortos se consagra não é a matéria que o inspira; é, pela lembrança, o Espírito ausente quem o infunde. Ele é análogo àquele que se vota aos objetos que lhe pertenceram, que ele tocou e que as pessoas que lhe são afeiçoadas guardam como relíquias. Era isso o que aquele homem não podia por si mesmo compreender. Jesus lho ensina, dizendo: Não te preocupes com o corpo, pensa antes no Espírito; vai ensinar o reino de Deus; vai dizer aos homens que a pátria deles não é a Terra, mas o céu, porquanto somente lá transcorre a verdadeira vida.

Não vim trazer a paz, mas, a divisão

9Não penseis que eu tenha vindo trazer paz à Terra; não vim trazer a paz, mas a espada; - porquanto vim separar de seu pai o filho, de sua mãe a filha, de sua sogra a nora; - e o homem terá por inimigos os de sua própria casa. (S. MATEUS, cap. X, vv. 34 a 36.)

10. Vim para lançar fogo à Terra; e que é o que desejo senão que ele se acenda? -Tenho de ser batizado com um batismo e quanto me sinto desejoso de que ele se cumpra!

Julgais que eu tenha vindo trazer paz à Terra? Não, eu vos afirmo; ao contrário, vim trazer a divisão; - pois, doravante, se se acharem numa casa cinco pessoas, estarão elas divididas umas contra as outras: três contra duas e duas contra três. - O pai estará em divisão com o filho e o filho com o pai, a mãe com a filha e a filha com a mãe, a sogra com a nora e a nora com a sogra. (S. LUCAS, cap. XII, vv. 49 a 53.)

11. Será mesmo possível que Jesus, a personificação da doçura e da bondade, Jesus, que não cessou de

pregar o amor do próximo, haja dito: "Não vim trazer a paz, mas a espada; vim separar do pai o filho, do esposo a esposa; vim lançar fogo à Terra e tenho pressa de que ele se acenda"? Não estarão essas palavras em contradição flagrante com os seus ensinos? Não haverá blasfêmia em lhe atribuírem a linguagem de um conquistador sanguinário e devastador? Não, não há blasfêmia, nem contradição nessas palavras, pois foi mesmo ele quem as pronunciou, e elas dão testemunho da sua alta sabedoria. Apenas, um pouco equivoca, a forma não lhe exprime com exatidão o pensamento, o que deu lugar a que se enganassem relativamente ao verdadeiro sentido delas. Tomadas à letra, tenderiam a transformar a sua missão, toda de paz, noutra de perturbação e discórdia, conseqüência absurda, que obom-senso repele, porquanto Jesus não podia desmentir-se. (Cap. XIV, nº 6.)

12. Toda idéia nova forçosamente encontra oposição e nenhuma há que se implante sem lutas. Ora, nesses casos, a resistência é sempre proporcional à importância dos resultados previstos, porque, quanto maior ela é, tanto mais numerosos são os interesses que fere. Se for notoriamente falsa, se a julgam isenta de conseqüências, ninguém se alarma; deixam-na todos passar, certos de que lhe falta vitalidade. Se, porém, é verdadeira, se assenta em sólida base, se lhe prevêem futuro, um secreto pressentimento adverte os seus antagonistas de que constitui uni perigo para eles e para a ordem de coisas em cuja manutenção se empenham. Atiram-se, então, contra ela e contra os seus adeptos.

Assim, pois, a medida da importância e dos resultados de uma idéia nova se encontra na emoção que o seu aparecimento causa, na violência da oposição que provoca, bem como no grau e na persistência da ira de seus adversários.

13.Jesus vinha proclamar uma doutrina que solaparia pela base os abusos de que viviam os fariseus, os escribas e os sacerdotes do seu tempo. Imolaram-no, portanto, certos de que, matando o homem, matariam a idéia. Esta, porém, sobreviveu, porque era verdadeira; engrandeceu-se, porque correspondia aos desígnios de Deus e, nascida num pequeno e obscuro burgo da Judéia, foi plantar o seu estandarte na capital mesma do mundo pagão, à face dos seus mais encarniçados inimigos, daqueles que mais porfiavam em combatê-la, porque subvertia crenças seculares a que eles se apegavam muito mais por interesse do que por convicção. Lutas das mais terríveis esperavam aí pelos seus apóstolos; foram inumeráveis as vítimas; a idéia, no entanto, avolumou-se sempre e triunfou, porque, como verdade, sobrelevava as que a precederam.

14.É de notar-se que o Cristianismo surgiu quando o Paganismo já entrara em declínio e se debatia contra as luzes da razão. Ainda era praticado pro forma; a crença, porém, desaparecera; apenas o interesse pessoal o sustentava. Ora, é tenaz o interesse; jamais cede à evidência; irrita-se tanto mais quanto mais peremptórios e demonstrativos de seu erro são os argumentos que se lhe opõem. Sabe ele muito bem que está errado, mas isso não o abala, porquanto a verdadeira fé não lhe está na alma. O que mais teme é a luz, que dá vista aos cegos. É-lhe proveitoso o erro; ele se lhe agarra e o defende.

Sócrates, também, não ensinara uma doutrina até certo ponto análoga à do Cristo? Por que não prevaleceu naquela época a sua doutrina, no seio de um dos povos mais inteligentes da Terra? É que ainda não chegara o tempo. Ele semeou numa terra não lavrada; o Paganismo ainda se não achavagasto.

O Cristo recebeu em propício tempo a sua missão. Muito faltavaé certo, para que todos os homens da sua época estivessem à altura das idéias cristãs, mas havia entre eles uma aptidão mais geral para as assimilar, pois que já se começava a sentir o vazio que as crenças vulgares deixavam na alma. Sócrates e Platão haviam aberto o caminho e predisposto os espíritos. (Veja-se, na "Introdução", o § IV: Sócrates e Platão, precursores da idéia cristã e do Espiritismo.)

15. Infelizmente, os adeptos da nova doutrina não se entenderam quanto à interpretação das palavras do Mestre, veladas, as mais das vezes, pela alegoria e pelas figuras da linguagem. Daí o nascerem, sem demora, numerosas seitas, pretendendo todas possuir, exclusivamente, a verdade e o não bastarem dezoito séculos para pô-las de acordo. Olvidando o mais importante dos preceitos divinos, o que Jesus colocou por pedra angular do seu edifício e como condição expressa da salvação: a caridade, a fraternidade e o amor do próximo, aquelas seitas lançaram anátema umas sobre as outras, e umas contra as outras se atiraram, as mais fortes esmagando as mais fracas, afogando-as em sangue, aniquilando-as nas torturas e nas chamas das fogueiras. Vencedores do Paganismo, os cristãos, de perseguidos que eram, fizeram-se perseguidores. A ferro e fogo foi que se puseram a plantar a cruz do Cordeiro sem mácula nos dois mundos. E fato constante que as guerras de religião foram as mais cruéis, mais vítimas causaram do que as guerras políticas; em nenhumas outras se praticaram tantos atos de atrocidade e de barbárie.

Cabe a culpa à doutrina do Cristo? Não, decerto, que ela formalmente condena toda violência. Disse ele alguma vez a seus discípulos: Ide, matai, massacrai, queimai os que não crerem como vós? Não; o que, ao contrário, lhes disse, foi: Todos os homens são irmãos e Deus é soberanamente misericordioso; amai o vosso próximo; amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos persigam. Disse-lhes, outrossim:

Quem matar com a espada pela espada perecerá. A responsabilidade, portanto, não pertence à doutrina de Jesus, mas aos que a interpretaram falsamente e a transformaram em instrumento próprio a lhes satisfazer às paixões; pertence aos que desprezaram estas palavras: "Meu reino não é deste mundo." Em sua profunda sabedoria, ele tinha a previdência do que aconteceria. Mas, essas coisas eram inevitáveis, porque inerentes à inferioridade da natureza humana, que não podia transformar-serepentinamente. Cumpria que o Cristianismo passasse por essa longa e cruel prova de dezoito séculos, para mostrar toda a sua força, visto que, mau grado a todo o mal cometido em seu nome, ele saiu dela puro. Jamais esteve em causa. As invectivas sempre recaíram sobre os que dele abusaram. A cada ato de intolerância, sempre se disse: Se o Cristianismo fosse mais bem compreendido e mais bem praticado, isso não se daria.

16. Quando Jesus declara: "Não creais que eu tenha vindo trazer a paz, mas, sim, a divisão", seu pensamento era este: "Não creais que a minha doutrina se estabeleça pacificamente; ela trará lutas sangrentas, tendo por pretexto o meu nome, porque os homens não me terão compreendido, ou não me terão querido compreender. Os irmãos, separados pelas suas respectivas crenças, desembainharão a espada um contra o outro e a divisão reinará no seio de uma mesma família, cujos membros não partilhem da mesma crença. Vim lançar fogo à Terra para expungi-la dos erros e dos preconceitos, do mesmo modo que se põe fogo a um campo para destruir nele as ervas más, e tenho pressa de que o fogo se acenda para que a depuração seja mais rápida, visto que do conflito sairá triunfante a verdade. A guerra sucederá a paz; ao ódio dos partidos, a fraternidade universal; às trevas do fanatismo, a luz da fé

esclarecida. Então, quando o campo estiver preparado, eu vos enviarei o Consolador, o Espírito de Verdade, que virá restabelecer todas as coisas, isto é, que, dando a conhecer o sentido verdadeiro das minhas palavras, que os homens mais esclarecidos poderão enfim compreender, porá termo â luta fratricida que desune os filhos do mesmo Deus. Cansados, afinal, de um combate sem resultado, que consigo traz unicamente a desolação e a perturbação até ao seio das famílias, reconhecerão os homens onde estão seus verdadeiros interesses, com relação a este mundo e ao outro. Verão de que lado estão os amigos e os inimigos da tranqüilidade deles. Todos então se porão sob a mesma bandeira: a da caridade, e as coisas serão restabelecidas na Terra, de acordo com a verdade e os princípios que vos tenho ensinado."

17. O Espiritismo vem realizar, na época prevista, as promessas do Cristo. Entretanto, não o pode fazer sem destruir os abusos. Como Jesus, ele topa com o orgulho, o egoísmo, a ambição, a cupidez, o fanatismo cego, os quais, levados às suas últimas trincheiras, tentam barrar-lhe o caminho e lhe suscitam entraves e perseguições.

Também ele, portanto, tem de combater; mas, o tempo das lutas e das perseguições sanguinolentas passou; são todas de ordem moral as que terá de sofrer e próximo lhes está o termo. As primeiras duraram séculos; estas durarão apenas alguns anos, porque a luz, em vez de partir de um único foco, irrompe de todos os pontos do Globo e abrirá mais de pronto os olhos aos cegos.

l8. Essas palavras de Jesus devem, pois, entender-se com referência às cóleras que a sua doutrina provocaria, aos conflitos momentâneos a que ia dar causa, às lutas que teria de sustentar antes de se firmar, como aconteceu aos hebreus antes de entrarem na Terra Prometida, e não como decorrentes de um desígnio premeditado de sua parte de semear a desordem e a confusão. O mal viria dos homens e não dele, que era como o médico que se apresenta para curar, mas cujos remédios provocam uma crise salutar, atacando os maus humores do doente.

[Capítulo XXIV]

CAPÍTULO XXIV

NÃO PONHAIS A CANDEIA DEBAIXO DO ALQUEIRE

Candeia sob o alqueire. Porque fala Jesus por parábolas. - Não vades ter com os gentios. - Não são os que gozam saúde que precisam de médico. A coragem e a fé. - Carregar sua cruz. Quem quiser salvar a vida, perdê-la-á.

Candeia sob o alqueire. Porque fala Jesus por parábolas

1. Ninguém acende uma candeia para pô-la debaixo do alqueire; põe-na, ao contrário, sobre o candeeiro, a fim de que ilumine a todos os que estão na casa. (S. MATEUS, cap. V, v.15.)

2. Ninguém há que, depois de ter acendido uma candeia, a cubra com um vaso, ou a ponha debaixo da cama; põe-na sobre o candeeiro, a fim de que os que entrem vejam a luz; - pois nada há secreto que não haja de ser descoberto, nem nada oculto que não haja de ser conhecido e de aparecer publicamente. (S. LUCAS, cap. VIII, vv. 16 e 17.)

3.Aproximando-se, disseram-lhe os discípulos: Por que lhes falas por parábolas?

Respondendo-lhes, disse ele: É porque, a vós outros, foi dado conhecer os mistérios do reino dos céus; mas, a eles, isso não lhes foi dado (1). Porque, àquele que já tem, mais se lhe dará e ele ficará na abundância; àquele, entretanto, que não tem, mesmo o que tem se lhe tirará. -Falo-lhes por parábolas, porque, vendo, não vêem e, ouvindo, não escutam e não compreendem. -E neles se cumprirá a profecia de Isaías, que diz: Ouvireis com os vossos ouvidos e não escutareis; olhareis com os vossos olhos e não vereis. Porque, o coração deste povo se tornou pesado, e seus ouvidos se tornaram surdos e fecharam os olhos para que seus olhos não vejam e seus ouvidos não ouçam, para que seu coração não compreenda e para que,tendo-se convertido, eu não os cure. (S. MATEUS, cap. XIII, vv. 10 a 15.)

(1) No original francês falta o versículo 12 que aqui repomos. - A Editora da FEB, em 1948.

4. É de causar admiração diga Jesus que a luz não deve ser colocada debaixo do alqueire, quando ele próprio constantemente oculta o sentido de suas palavras sob o véu da alegoria, que nem todos podem compreender. Ele se explica, dizendo a seus apóstolos: "Falo-lhes por parábolas, porque não estão em condições de compreender certas coisas. Eles vêem, olham, ouvem, mas não entendem. Fora, pois, inútil tudo dizer-lhes, por enquanto. Digo-o, porém, a vós, porque dado vos foi compreender estes mistérios." Procedia, portanto, com o povo, como se faz com crianças cujas idéias ainda se não desenvolveram. Desse modo, indica o verdadeiro sentido da sentença: "Não se deve pôr a candeia debaixo do alqueire, mas sobre o candeeiro, a fim de que todos os que entrem a possam ver." Tal sentença não significa que se deva revelar inconsideradamente todas as coisas. Todo ensinamento deve ser proporcionado à inteligência daquele a quem se queira instruir, porquanto há pessoas a quem uma luz por demais viva deslumbraria, sem as esclarecer.

Dá-se com os homens, em geral, o que se dá em particular com os indivíduos. As gerações têm sua infância, sua juventude e sua maturidade. Cada coisa tem de vir na época própria; a semente lançada à terra, fora da estação, não germina. Mas, o que a prudência manda calar, momentaneamente, cedo ou tarde será descoberto, porque, chegados a certo grau de desenvolvimento, os homens procuram por si mesmos a luz viva; pesa-lhes a obscuridade. Tendo-lhes Deus outorgado a inteligência para compreenderem e se guiarem por entre as coisas da Terra e do céu, eles tratam de raciocinar sobre sua fé. E então que não se deve pôr a candeia debaixo do alqueire, visto que, sem a luz da razão, desfalece a

. (Cap. XIX, nº 7.)

5. Se, pois, em sua previdente sabedoria, a Providência só gradualmente revela as verdades, é claro que as desvenda à proporção que a Humanidade se vai mostrando amadurecida para as receber. Ela as mantém de reserva e não sob o alqueire. Os homens, porém, que entram a possuí-las, quase sempre as ocultam do vulgo com o intento de o dominarem. São esses os que, verdadeiramente, colocam a luz debaixo do alqueire. É por isso que todas as religiões têm tido seus mistérios, cujo exame proíbem. Mas, ao passo que essas religiões iam ficando para trás, a Ciência e a inteligência avançaram e romperam o véu misterioso. Havendo-se tornado adulto, o vulgo entendeu de penetrar o fundo das coisas e eliminou de sua fé o que era contrário à observação.

Não podem existir mistérios absolutos e Jesus está com a razão quando diz que nada há secreto que não venha a ser conhecido. Tudo o que se acha oculto será descoberto um dia e o que o homem ainda não pode compreender lhe será sucessivamente desvendado, em mundos mais adiantados, quando se houver purificado. Aqui na Terra, ele ainda se encontra em pleno nevoeiro.

6.Pergunta-se: que proveito podia o povo tirar dessa multidão de parábolas, cujo sentido se lhe conservava impenetrável? E de notar-se que Jesus somente se exprimiu por parábolas sobre as partes de certo modo abstratas da sua doutrina. Mas, tendo feito da caridade para com o próximo e da humildade condições básicas da salvação, tudo o que disse a esse respeito é inteiramente claro, explícito e sem ambigüidade alguma. Assim devia ser, porque era a regra de conduta, regra que todos tinham de compreender para poderem observá-la. Era o essencial para a multidão ignorante, à qual ele se limitava a dizer: "Eis o que é preciso se faça para ganhar o reino dos céus." Sobre as outras partes, apenas aos discípulos desenvolvia o seu pensamento. Por serem eles mais adiantados, moral e intelectualmente, Jesus pôde iniciá-los no conhecimento de verdades mais abstratas. Daí o haver dito:Aos que já têm, ainda mais se dará. (Cap. XVIII, nº 15.) Entretanto, mesmo com os apóstolos,conservou-se impreciso acerca de muitos pontos, cuja completa inteligência ficava reservada a ulteriores tempos. Foram esses pontos que deram ensejo a tão diversas interpretações, até que a Ciência, de um lado, e o Espiritismo, de outro, revelassem as novas leis da Natureza, que lhes tornaram perceptível o verdadeiro sentido.

7.O Espiritismo, hoje, projeta luz sobre uma imensidade de pontos obscuros; não a lança, porém, inconsideradamente. Com admirável prudência se conduzem os Espíritos, ao darem suas instruções. Só gradual e sucessivamente consideraram as diversas partes já conhecidas da Doutrina, deixando as outras partes para serem reveladas à medida que se for tornando oportuno fazê-las sair da obscuridade. Se a houvessem apresentado completa desde o primeiro momento, somente a reduzido número de pessoas se teria ela mostrado acessível; houvera mesmo assustado as que não se achassem preparadas para recebê- la, do que resultaria ficar prejudicada a sua propagação. Se, pois, os Espíritos ainda não dizem tudo ostensivamente, não é porque haja na Doutrina mistérios em que só alguns privilegiados possam penetrar, nem porque eles coloquem a lâmpada debaixo do alqueire; é porque cada coisa tem de vir no

momento oportuno. Eles dão a cada idéia tempo para amadurecer e propagar-se, antes que apresentem outra, eaos

acontecimentos o de preparar a aceitação dessa outra.

Não vades ter com os gentios

8.Jesus enviou seus doze apóstolos, depois de lhes haver dado as instruções seguintes: Não procureis os gentios e não entreis nas cidades dos samaritanos. - Ide, antes, em busca das ovelhas perdidas da casa de Israel; - e, nos lugares onde fordes, pregai, dizendo que o reino dos céus está próximo. (S. MATEUS, cap. X, vv. 5 a 7.)

9.Em muitas circunstâncias, prova Jesus que suas vistas não se circunscrevem ao povo judeu, mas que abrangem a Humanidade toda. Se, portanto, diz a seus apóstolos que não vão ter com os pagãos, não é que desdenhe da conversão deles, o que nada teria de caridoso; é que os judeus, que já acreditavam no Deus uno e esperavam o Messias, estavam preparados, pela lei de Moisés e pelos profetas, a lhes acolherem a palavra. Com os pagãos, onde até mesmo a base faltava, estava tudo por fazer e os apóstolos não se achavam ainda bastante esclarecidos para tão pesada tarefa. Foi por isso que lhes disse: "Ide em busca das ovelhas transviadas de Israel", isto é, ide semear em terreno já arroteado. Sabia que a conversão dos gentios se daria a seu tempo. Mais tarde, com efeito, os apóstolos foram plantar a cruz no centro mesmo do Paganismo.

10.Essas palavras podem também aplicar-se aos adeptos e aos disseminados do Espiritismo. Os incrédulos sistemáticos, os zombadores obstinados, os adversários interessados são para eles o que eram os gentios para os apóstolos. Que, pois, a exemplo destes, procurem, primeiramente, fazer prosélitos entre os de boa vontade, entre os que desejam luz, nos quais um gérmen fecundo se encontra e cujo número é grande, sem perderem tempo com os que não querem ver, nem ouvir e tanto mais resistem, por orgulho, quanto maior for a importância que se pareça ligar à sua conversão. Mais vale abrir os olhos a cem cegos que desejam ver claro, do que a um só que se compraza na treva, porque, assim procedendo, em maior proporção se aumentará o número dos sustentadores da causa. Deixar tranqüilos os outros não é dar mostra de indiferença, mas de boa política. Chegar-lhes-á a vez, quando estiverem dominados pela opinião geral e ouvirem a mesma coisa incessantemente repetida ao seu derredor. Aí, julgarão que aceitam voluntariamente, por impulso próprio, a idéia, e não por pressão de outrem. Depois, há idéias que são como as sementes: não podem germinar fora da estação apropriada, nem em terreno que não tenha sido de antemão preparado, pelo que melhor é se espere o tempo propício e se cultivem primeiro as que germinem, para não acontecer que abortem as outras, em virtude de um cultivo demasiado intenso.

Na época de Jesus e em conseqüência das idéias acanhadas e materiais então em curso, tudo se circunscrevia e localizava. A casa de Israel era um pequeno povo; os gentios eram outros pequenos povos circunvizinhos. Hoje, as idéias se universalizam e espiritualizam. A luz nova não constitui privilégio de nenhuma nação; para ela não existem barreiras, tem o seu foco em toda a parte e todos os homens são irmãos. Mas, também, os gentios já não são um povo, são apenas uma opinião com que se topa em toda parte e da qual a verdade triunfa pouco a pouco, como do Paganismo triunfou o Cristianismo. Já não são combatidos com armas de guerra, mas com a força da idéia.

Não são os que gozam saúde que precisam de médico

11.Estando Jesus à mesa em casa desse homem (Mateus), vieram aí ter muitos publicanos e gente de má vida, que se puseram à mesa com Jesus e seus discípulos; - o que fez que os fariseus,notando-o, disseram aos discípulos: Como é que o vosso Mestre come com publicanos e pessoas de má vida? - Tendo-os ouvido, disse-lhes Jesus: Não são os que gozam saúde que precisam de médico. (S. MATEUS, cap. IX, vv. 10 a 12.)

12.Jesus se acercava, principalmente, dos pobres e dos deserdados, porque são os que mais necessitam de consolações; dos cegos dóceis e de boa fé, porque pedem se lhes dê a vista, e não dos orgulhosos que julgam possuir toda a luz e de nada precisar. (Veja-se: "Introdução", artigo: Publicanos, Portageiros.)

Essas palavras, como tantas outras, encontram no Espiritismo a aplicação que lhes cabe. Há quem se admire de que, por vezes, a mediunidade seja concedida a pessoas indignas, capazes de a usarem mal. Parece, dizem, que tão preciosa faculdade devera ser atributo exclusivo dos de maior merecimento.

Digamos, antes de tudo, que a mediunidade é inerente a uma disposição orgânica, de que qualquer homem pode ser dotado, como da de ver, de ouvir, de falar. Ora, nenhuma há de que o homem, por efeito do seu livre-arbítrio, não possa abusar, e se Deus não houvesse concedido, por exemplo, a palavra senão aos incapazes de proferirem coisas más, maior seria o número dos mudos do que o dos que falam. l)cus outorgou faculdades ao homem e lhe dá a liberdade de usá-las, mas não deixa de punir o que delas abusa.

Se só aos mais dignos fosse concedida a faculdade de comunicar com os Espíritos, quem ousariapretendê-la? Onde, ao demais, o limite entre a dignidade e a indignidade? A mediunidade é conferida sem distinção, a fim de que os Espíritos possam trazer a luz a todas as camadas, a todas as classes da sociedade, ao pobre como ao rico; aos retos, para os fortificar no bem, aos viciosos para os corrigir. Não são estes últimos os doentes que necessitam de médico? Por que Deus, que não quer a morte do pecador, o privaria do socorro que o pode arrancar ao lameiro? Os bons Espíritos lhe vêm em auxílio e seus conselhos, dados diretamente, são de natureza a impressioná-lo de modo mais vivo, do que se os recebesse indiretamente. Deus, em sua bondade, para lhe poupar o trabalho de ir buscá-la longe, nas mãos lhe coloca a luz. Não será ele bem mais culpado, se não a quiser ver? Poderá desculpar-secom a sua ignorância, quando ele mesmo haja escrito com suas mãos, visto com seus próprios olhos, ouvido com seus próprios ouvidos, e pronunciado com a própria boca a sua condenação? Se não aproveitar, será então punido pela perda ou pela perversão da faculdade que lhe fora outorgada e da qual, nesse caso, se aproveitam os maus Espíritos para o obsidiarem e enganarem, sem prejuízo das aflições reais com que Deus castiga os servidores indignos e os corações que o orgulho e o egoísmo endureceram.

A mediunidade não implica necessariamente relações habituais com os Espíritos superiores. E apenas uma aptidão para servir de instrumento mais ou menos dúctil aos Espíritos, em geral. O bom médium, pois, não é aquele que comunica facilmente, mas aquele que é simpático aos bons Espíritos e somente deles tem assistência. Unicamente neste sentido é que a excelência das qualidades morais se torna onipotente sobre a mediunidade.

Coragem da fé

13.Aquele que me confessar e me reconhecer diante dos homens, eu também o reconhecerei e confessarei diante de meu Pai que está nos céus; - e aquele que me renegar diante dos homens, também eu o renegarei diante de meu Pai que está nos céus. - (S. MATEUS, cap. X, vv. 32 e 33.)

14.Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, o Filho do Homem também dele se envergonhará, quando vier na sua glória e na de seu Pai e dos santos anjos. (S. LUCAS, capítulo IX, v. 26.)

15.A coragem das opiniões próprias sempre foi tida em grande estima entre os homens, porque há mérito em afrontar os perigos, as perseguições, as contradições e até os simples sarcasmos, aos quais se expõe, quase sempre, aquele que não teme proclamar abertamente idéias que não são as de toda gente. Aqui, como em tudo, o merecimento é proporcionado às circunstâncias e à importância do resultado. Há sempre fraqueza em recuar alguém diante das conseqüências que lhe acarreta a sua opinião e em renegá- la; mas, há casos em que isso constitui covardia tão grande, quanto fugir no momento do combate.

Jesus profliga essa covardia, do ponto de vista especial da sua doutrina, dizendo que, se alguém se envergonhar de suas palavras, desse também ele se envergonhará; que renegará aquele que o haja renegado; que reconhecerá, perante o Pai que está nos céus, aquele que o confessar diante dos homens. Por outras palavras: aqueles que se houverem arreceado de se confessarem discípulos da verdade não são dignos de se verem admitidos no reino da verdade. Perderão as vantagens da fé que alimentem, porque se trata de uma fé egoísta que eles guardam para si, ocultando-a para que não lhes traga prejuízo neste mundo, ao passo que aqueles que, pondo a verdade acima de seus interesses materiais, a proclamam abertamente, trabalham pelo seu próprio futuro e pelo dos outros.

16. Assim será com os adeptos do Espiritismo. Pois que a doutrina que professam mais não é do que o desenvolvimento e a aplicação da do Evangelho, também a eles se dirigem as palavras do Cristo. Eles semeiam na Terra o que colherão na vida espiritual. Colherão lá os frutos da sua coragem ou da sua fraqueza.

Carregar sua cruz. Quem quiser salvar a vida, perdê-la-á

17.Bem ditosos sereis, quando os homens vos odiarem e separarem, quando vos tratarem injuriosamente, quando repelirem como mau o vosso nome, por causa do Filho do Homem. - Rejubilai nesse dia e ficai em transportes de alegria, porque grande recompensa vos está reservada no céu, visto que era assim que os pais deles tratavam os profetas. (S. LUCAS, cap. VI, vv. 22 e 23.)

18.Chamando para perto de si o povo e os discípulos, disse-lhes: Se alguém quiser vir nas minhas pegadas, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me; -porquanto, aquele que se quiser salvar a si mesmo, perder-se-á; e aquele que se perder por amor de mim e do Evangelho se salvará. - Com efeito, de que serviria a um homem ganhar o mundo todo e perder-se a si mesmo? (S. MARCOS, cap. VIII, vv. 34 a 36; - S. LUCAS, cap. IX, vv. 23 a 25; - S. MATEUS, cap. X, vv. 38 e

39; - S. JOÃO, cap. XII, vv. 25 e 26.)

19. "Rejubilai-vos, diz Jesus, quando os homens vos odiarem e perseguirem por minha causa, visto que sereis recompensados no céu." Podem traduzir-se assim essas verdades: "Considerai-vos ditosos, quando haja homens que, pela sua má-vontade para convosco, vos dêem ocasião de provar a sinceridade da vossa fé, porquanto o mal que vos façam redundará em proveito vosso. Lamentai-lhes a cegueira, porém, não os maldigais." Depois, acrescenta: "Tome a sua cruz aquele que me quiser seguir", isto é, suporte corajosamente as tribulações que sua fé lhe acarretar, dado que aquele que quiser salvar a vida e seus bens, renunciando-me a mim, perderá as vantagens do reino dos céus, enquanto os que tudo houverem perdido neste mundo, mesmo a vida, para que a verdade triunfe, receberão, na vida futura, o prêmio da coragem, da perseverança e da abnegação de que deram prova. Mas, aos que sacrificam os bens celestes aos gozos terrestres, Deus dirá: "Já recebestes a vossa recompensa. "

[Capítulo XXV]

CAPÍTULO XXV

BUSCAI E ACHAREIS

Ajuda-te a ti mesmo, que o céu te ajudará. - Observai os pássaros do céu. - Não vos afadigueis pela posse do ouro.

Ajuda-te a ti mesmo, que o céu te ajudará

1. Pedi e se vos dará; buscai e achareis; batei à porta e se vos abrirá; porquanto, quem pede recebe e quem procura acha e, àquele que bata à porta, abrir-se-á.

Qual o homem, dentre vós, que dá uma pedra ao filho que lhe pede pão? - Ou, se pedir um peixe, dar-lhe-á uma serpente? -Ora, se, sendo maus como sois, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, não é lógico que, com mais forte razão, vosso Pai que está nos céus dê os bens verdadeiros aos que lhos pedirem? (S. MATEUS, cap. VII, vv. 7 a 11.)

2.Do ponto de vista terreno, a máxima: Buscai e achareis é análoga a esta outra:

Ajuda-te a ti mesmo, que o céu te ajudará. É o princípio da lei do trabalho e, por conseguinte, da lei do progresso, porquanto o progresso é filho do trabalho, visto que este põe em ação as forças da inteligência.

Na infância da Humanidade, o homem só aplica a inteligência à cata do alimento, dos meios de se preservar das intempéries e de se defender dos seus inimigos. Deus, porém, lhe deu, a mais do que outorgou ao animal, o desejo incessante do melhor, e é esse desejo que o impele à pesquisa dos meios de

melhorar a sua posição, que o leva às descobertas, às invenções, ao aperfeiçoamento da Ciência, porquanto é a Ciência que lhe proporciona o que lhe falta. Pelas suas pesquisas, a inteligência se lhe engrandece, o moral se lhe depura. As necessidades do corpo sucedem as do espírito: depois do alimento material, precisa ele do alimento espiritual. E assim que o homem passa da selvageria à civilização.

Mas, bem pouca coisa é, imperceptível mesmo, em grande número deles, o progresso que cada um realiza individualmente no curso da vida. Como poderia então progredir a Humanidade, sem a preexistência e a reexistência da alma? Se as almas se fossem todos os dias, para não mais voltarem, a Humanidade se renovaria incessantemente com os elementos primitivos, tendo de fazer tudo, de aprender tudo. Não haveria, nesse caso, razão para que o homem se achasse hoje mais adiantado do que nas primeiras idades do mundo, uma vez que a cada nascimento todo o trabalho intelectual teria de recomeçar. Ao contrário, voltando com o progresso que já realizou e adquirindo de cada vez alguma coisa a mais, a alma passa gradualmente da barbárie à civilização material e desta àcivilização moral. (Vede: cap. IV, nº 17.)

3.Se Deus houvesse isentado do trabalho do corpo o homem, seus membros se teriam atrofiado; se o houvesse isentado do trabalho da inteligência, seu espírito teria permanecido na infância, no estado de instinto animal. Por isso é que lhe fez do trabalho uma necessidade e lhe disse: Procura e acharás; trabalha e produzirás. Dessa maneira serás filho das tuas obras, terás delas o mérito e serás recompensado de acordo com o que hajas feito.

4.Em virtude desse princípio é que os Espíritos não acorrem a poupar o homem ao trabalho das pesquisas, trazendo-lhe, já feitas e prontas a ser utilizadas, descobertas e invenções, de modo a não ter ele mais do que tomar o que lhe ponham nas mãos, sem o incômodo, sequer, de abaixar-se para apanhar, nem mesmo o de pensar. Se assim fosse, o mais preguiçoso poderia enriquecer-se e o mais ignorante tornar-se sábio à custa de nada e ambos se atribuírem o mérito do que não fizeram. Não, os Espíritos não vêm isentar o homem da lei do trabalho: vêm unicamente mostrar-lhe a meta que lhe cumpre atingir e o caminho que a ela conduz, dizendo-lhe: Anda e chegarás. Toparás com pedras; olha e afasta-as tu mesmo. Nós te daremos a força necessária, se a quiseres empregar. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXVI, nº 291 e seguintes.)

5.Do ponto de vista moral, essas palavras de Jesus significam: Pedi a luz que vos clareie o caminho e ela vos será dada; pedi forças para resistirdes ao mal e as tereis; pedi a assistência dos bons Espíritos e eles virão acompanhar-vos e, como o anjo de Tobias, vos guiarão; pedi bons conselhos e eles não vos serão jamais recusados; batei à nossa porta e ela se vos abrirá; mas, pedi sinceramente, com fé, confiança e fervor; apresentai-vos com humildade e não com arrogância, sem o que sereis abandonados às vossas próprias forças e as quedas que derdes serão o castigo do vosso orgulho.

Tal o sentido das palavras: buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á.

Observai os pássaros do céu

6. Não acumuleis tesouros na Terra, onde a ferrugem e os vermes os comem e onde os ladrões os desenterram e roubam; - acumulai tesouros no céu, onde nem a ferrugem, nem os vermes os comem; - porquanto, onde está o vosso tesouro aí está também o vosso coração.

Eis por que vos digo: Não vos inquieteis por saber onde achareis o que comer para sustento da vossa vida, nem de onde tirareis vestes para cobrir o vosso corpo. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que as vestes?

Observai os pássaros do céu: não semeiam, não ceifam, nada guardam em celeiros; mas, vosso Pai celestial os alimenta. Não sois muito mais do que eles? - e qual, dentre vós, o que pode, com todos os seus esforços, aumentar de um côvado a sua estatura?

Por que, também, vos inquietais pelo vestuário? Observai como crescem os lírios dos campos: não trabalham, nem fiam; - entretanto, eu vos declaro que nem Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um deles. - Ora, se Deus tem o cuidado de vestir dessa maneira a erva dos campos, que existe hoje e amanhã será lançada na fornalha, quanto maior cuidado não terá em vos vestir, ó homens de pouca fé!

Não vos inquieteis, pois, dizendo: Que comeremos? ou: que beberemos? ou: de que nos vestiremos? - como fazem os pagãos, que andam à procura de todas essas coisas; porque vosso Pai sabe que tendes necessidades delas.

Buscai primeiramente o reino de Deus e a sua justiça, que todas essas coisas vos serão dadas de acréscimo. - Assim, pois, não vos ponhais inquietos pelo dia de amanhã, porquanto o amanhã cuidará de si. A cada dia basta o seu mal. (S. MATEUS, cap. VI, vv. 19 a 21 e 25 a 34.)

7. Interpretadas à letra, essas palavras seriam a negação de toda previdência, de todo trabalho e,conseguinte-mente, de todo progresso. Com semelhante princípio, o homem limitar-se-ia a esperar passivamente. Suas forças físicas e intelectuais conservar-se-iam inativas. Se tal fora a sua condição normal na Terra, jamais houvera ele saído do estado primitivo e, se dessa condição fizesse ele a sua lei para a atualidade, só lhe caberia viver sem fazer coisa alguma. Não pode ter sido esse o pensamento de Jesus, pois estaria em contradição com o que disse de outras vezes, com as próprias leis da Natureza. Deus criou o homem sem vestes e sem abrigo, mas deu-lhe a inteligência para fabricá-los.(Cap. XIV, nº 6; cap. XXV, nº 2.) Não se deve, portanto, ver, nessas palavras, mais do que uma poética alegoria da Providência, que nunca deixa ao abandono os que nela confiam, querendo, todavia, que esses, por seu lado, trabalhem. Se ela nem sempre acode com um auxílio material, inspira as idéias com que se encontram os meios de sair da dificuldade. (Cap. XXVII, nº 8.) Deus conhece as nossas necessidades e a elas provê, como for necessário. O homem, porém, insaciável nos seus desejos, nem sempre sabe contentar-se com o que tem: o necessário não lhe basta; reclama o supérfluo. A Providência, então, o deixa entregue a si mesmo. Freqüentemente, ele se torna infeliz por culpa sua e por haver desatendido à voz que por intermédio da consciência o advertia. Nesses casos, Deus fá-lo sofrer as conseqüências, a fim de que lhe sirvam de lição para o futuro. (Cap. V, nº 4.)

8. A Terra produzirá o suficiente para alimentar a todos os seus habitantes, quando os homens souberem administrar, segundo as leis de justiça, de caridade e de amor ao próximo, os bens que ela dá. Quando a fraternidade reinar entre os povos, como entre as províncias de um mesmo império, o momentâneo supérfluo de um suprirá a momentânea insuficiência do outro; e cada um terá o necessário. O rico, então, considerar-se-á como um que possui grande quantidade de sementes; se as espalhar, elas produzirão pelo cêntuplo para si e para os outros; se, entretanto, comer sozinho as sementes, se as desperdiçar e deixar se perca o excedente do que haja comido, nada produzirão, e não haverá o bastante para todos. Se as amontoar no seu celeiro, os vermes as devorarão. Daí o haver Jesus dito: "Não acumuleis tesouros na Terra, pois que são perecíveis; acumulai-os no céu, onde são eternos." Em outros termos: não ligueis aos bens materiais mais importância do que aos espirituais e sabei sacrificar os primeiros aos segundos. (Cap. XVI, nº 7 e seguintes.) A caridade e a fraternidade não se decretam em leis. Se urna e outra não estiverem no coração, o egoísmo aí sempre imperará. Cabe ao Espiritismo fazê-las penetrar nele.

Não vos afadigueis pela posse do ouro

9Não vos afadigueis por possuir ouro, ou prata, ou qualquer outra moeda em vossos bolsos. - Não prepareis saco para a viagem, nem dois fatos, nem calçados, nem cajados, porquanto aquele que trabalha merece sustentado.

10. Ao entrardes em qualquer cidade ou aldeia, procurai saber quem é digno de vos hospedar e ficai na sua casa até que partais de novo. - Entrando na casa, saudai-a assim: Que a paz seja nesta casa. Se a casa for digna disso, a vossa paz virá sobre ela; se não o for, a vossa paz voltará para vós.

Quando alguém não vos queira receber, nem escutar, sacudi, ao sairdes dessa casa ou cidade, a poeira dos vossos pés. - Digo-vos, em verdade: no dia do juízo, Sodoma e Gomorra serão tratadas menos rigorosamente do que essa cidade. (S. MATEUS, cap. X, vv. 9 a 15.)

11. Naquela época, nada tinham de estranhável essas palavras que Jesus dirigiu a seus apóstolos, quando os mandou, pela primeira vez, anunciar a boa-nova. Estavam de acordo com os costumes patriarcais do Oriente, onde o viajor encontrava sempre acolhida na tenda. Mas, então, os viajantes eram raros. Entre os povos modernos, o desenvolvimento da circulação houve de criar costumes novos. Os dos tempos antigos somente se conservam em países longínquos, onde ainda não penetrou o grande movimento. Se Jesus voltasse hoje, já não poderia dizer a seus aposto-los: "Ponde-vos a caminho sem provisões." A par do sentido próprio, essas palavras guardam um sentido moral muito profundo. Proferindo-as, ensinava Jesus a seus discípulos que confiassem na Providência. Ao demais, eles, nada tendo, não despertariam a cobiça nos que os recebessem. Era um meio de distinguirem dos egoístas os caridosos. Por isso foi que lhes disse: "Procurai saber quem é digno de vos hospedar" ou: quem é bastante humano para agasalhar o viajante que não tem com que pagar, porquanto esses são dignos de escutar as vossas palavras; pela caridade deles é que os reconhecereis.

Quanto aos que não os quisessem receber, nem ouvir, recomendou ele porventura aos apóstolos que os

amaldiçoassem, que se lhes impusessem, que usassem de violência e de constrangimento para os converterem? Não; mandou, pura e simplesmente, que se fossem embora, à procura de pessoas de boa vontade.

O mesmo diz hoje o Espiritismo a seus adeptos: não violenteis nenhuma consciência; a ninguém forceis para que deixe a sua crença, a fim de adotar a vossa; não anatematizeis os que não pensem como vós; acolhei os que venham ter convosco e deixai tranqüilos os que vos repelem. Lembrai-vosdas palavras do Cristo. Outrora, o céu era tomado com violência; hoje o é pela brandura. (Cap. IV, nº 10 e 11.)

[Capítulo XXVI]

CAPÍTULO XXVI

DAI GRATUITAMENTE O QUE GRATUITAMENTE RECEBESTES

Dom de curar. -Preces pagas. - Mercadores expulsos do templo. - Mediunidade gratuita.

Dom de curar

1.Restituí a saúde aos doentes, ressuscitai os mortos, curai os leprosos, expulsai os demônios. Dai gratuitamente o que gratuitamente haveis recebido. (S. MATEUS, cap. X, v. 8.)

2."Dai gratuitamente o que gratuitamente haveis recebido", diz Jesus a seus discípulos. Com essa recomendação, prescreve que ninguém se faça pagar daquilo por que nada pagou. Ora, o que eles haviam recebido gratuitamente era a faculdade de curar os doentes e de expulsar os demônios, isto é, os maus Espíritos. Esse dom Deus lhes dera gratuitamente, para alívio dos que sofrem e como meio de propagação da fé; Jesus, pois, recomendava-lhes que não fizessem dele objeto de comércio, nem de especulação, nem meio de vida.

Preces pagas

3.Disse em seguida a seus discípulos, diante de todo o povo que o escutava: -Precatai-vos dos escribas que se exibem a passear com longas túnicas, que gostam de ser saudados nas praças públicas e de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas e os primeiros lugares nos festins - que, a pretexto de extensas preces, devoram as casas das viúvas. Essas pessoas receberão condenação mais rigorosa. (S. LUCAS, cap. XX, vv. 45 a 47; S. MARCOS, cap. XII, vv. 38 a 40; S. MATEUS, cap. XXIII, v. 14.)

4.Disse também Jesus: não façais que vos paguem as vossas preces; não façais como os escribas que, "a pretexto de longas preces, devoram as casas das viuvas", isto é, abocanham as fortunas. A prece é ato de caridade, é um arroubo do coração. Cobrar alguém que se dirija a Deus por outrem é transformar-se em intermediário assalariado. A prece, então, fica sendo uma fórmula, cujo comprimento se proporciona à

soma que custe. Ora, uma de duas: Deus ou mede ou não mede as suas graças pelo número das palavras. Se estas forem necessárias em grande número, por que dizê-las poucas, ou quase nenhumas, por aquele que não pode pagar? E falta de caridade. Se uma só basta, é inútil dizê-las em excesso. Por que então cobrá-las? É prevaricação.

Deus não vende os benefícios que concede. Como, pois, um que não é, sequer, o distribuidor deles, que não pode garantir a sua obtenção, cobraria um pedido que talvez nenhum resultado produza? Não é possível que Deus subordine um ato de demência, de bondade ou de justiça, que da sua misericórdia se solicite, a uma soma em dinheiro. Do contrário, se a soma não fosse paga, ou fosse insuficiente, a justiça, a bondade e a demência de Deus ficariam em suspenso. A razão, o bom senso e a lógica dizem ser impossível que Deus, a perfeição absoluta, delegue a criaturas imperfeitas o direito de estabelecer preço para a sua justiça. A justiça de Deus é como o Sol: existe para todos, para o pobre como para o rico. Pois que se considera imoral traficar com as graças de um soberano da Terra, poder-se-á ter por lícito o comércio com as do soberano do Universo?

Ainda outro inconveniente apresentam as preces pagas: é que aquele que as compra se julga, as mais das vezes, dispensado de orar ele próprio, porquanto se considera quite, desde que deu o seu dinheiro. Sabe- se que os Espíritos se sentem tocados pelo fervor de quem por eles se interessa. Qual pode ser o fervor daquele que comete a terceiro o encargo de por ele orar, mediante paga? Qual o fervor desse terceiro, quando delega o seu mandato a outro, este a outro e assim por diante? Não será isso reduzir a eficácia da prece ao valor de uma moeda em curso?

Mercadores expulsos do templo

5.Eles vieram em seguida a Jerusalém, e Jesus, entrando no templo, começou por expulsar dali os que vendiam e compravam; derribou as mesas dos cambistas e os bancos dos que vendiam pombos: - e não permitiu que alguém transportasse qualquer utensílio pelo templo. - Ao mesmo tempo os instruía, dizendo: Não está escrito: Minha casa será chamada casa de oração por todas as nações? Entretanto, fizestes dela um covil de ladrões! - Os príncipes dos sacerdotes, ouvindo isso, procuravam meio de o perderem, pois o temiam, visto que todo o povo era tomado de admiração pela sua doutrina. (S. MARCOS, cap. XI, vv. 15 a 18; - S. MATEUS, cap. XXI, vv. 12 e 13.)

6.Jesus expulsou do templo os mercadores. Condenou assim o tráfico das coisas santas sob qualquer forma. Deus não vende a sua bênção, nem o seu perdão, nem a entrada no reino dos céus. Não tem, pois, o homem, o direito de lhes estipular preço.

Mediunidade gratuita

7. Os médiuns atuais - pois que também os apóstolos tinham mediunidade -igualmente receberam de Deus um dom gratuito: o de serem intérpretes dos Espíritos, para instrução dos homens, para lhes mostrar o caminho do bem e conduzi-los à fé, não para lhes vender palavras que não lhes pertencem, a

eles médiuns, visto que não são fruto de suas concepções, nem de suas pesquisas, nem de seus trabalhos pessoais. Deus quer que a luz chegue a todos; não quer que o mais pobre fique dela privado e possa dizer: não tenho fé, porque não a pude pagar; não tive o consolo de receber os encorajamentos e os testemunhos de afeição dos que pranteio, porque sou pobre. Tal a razão por que a mediunidade não constitui privilégio e se encontra por toda parte. Fazê-la paga seria, pois, desviá-lado seu providencial objetivo.

8.Quem conhece as condições em que os bons Espíritos se comunicam, a repulsão que sentem por tudo o que é de interesse egoístico, e sabe quão pouca coisa se faz mister para que eles se afastem, jamais poderá admitir que os Espíritos superiores estejam à disposição do primeiro que apareça e os convoque a tanto por sessão. O simples bom senso repele semelhante idéia. Não seria também uma profanação evocarmos, por dinheiro, os seres que respeitamos, ou que nos são caros? E fora de dúvida que se podem assim obter manifestações; mas, quem lhes poderia garantir a sinceridade? Os Espíritos levianos, mentirosos, brincalhões e toda a caterva dos Espíritos inferiores, nada escrupulosos, sempre acorrem, prontos a responder ao que se lhes pergunte, sem se preocuparem com a verdade. Quem, pois, deseje comunicações sérias deve, antes de tudo, pedi-las seriamente e, em seguida, inteirar-se da natureza das simpatias do médium com os seres do mundo espiritual. Ora, a primeira condição para se granjear a benevolência dos bons Espíritos é a humildade, o devotamento, a abnegação, o mais absoluto desinteresse moral e material.

9.A par da questão moral, apresenta-se uma consideração efetiva não menos importante, que entende com a natureza mesma da faculdade. A mediunidade séria não pode ser e não o será nunca uma profissão, não só porque se desacreditaria moralmente, identificada para logo com a dos ledores da boa- sorte, como também porque um obstáculo a isso se opõe. E que se trata de uma faculdade essencialmente móvel, fugidia e mutável, com cuja perenidade, pois, ninguém pode contar. Constituiria, portanto, para o explorador, uma fonte absolutamente incerta de receitas, de natureza a poder faltar-lhe no momento exato em que mais necessária lhe fosse. Coisa diversa é o talento adquirido pelo estudo, pelo trabalho e que, por essa razão mesma, representa uma propriedade da qual naturalmente lícito é, ao seu possuidor, tirar partido. A mediunidade, porém, não é uma arte, nem um talento, pelo que não pode tornar-se uma profissão. Ela não existe sem o concurso dos Espíritos; faltando estes, já não há mediunidade. Pode subsistir a aptidão, mas o seu exercício se anula. Daí vem não haver no mundo um único médium capaz de garantir a obtenção de qualquer fenômeno espírita em dado instante. Explorar alguém a mediunidade é, conseguinte-mente, dispor de uma coisa da qual não é realmente dono. Afirmar o contrário é enganar a quem paga. Há mais: não é de si próprio que o explorador dispõe; é do concurso dos Espíritos, das almas dos mortos, que ele põe a preço de moeda. Essa idéia causa instintiva repugnância. Foi esse tráfico, degenerado em abuso, explorado pelo charlatanismo, pela ignorância, pela credulidade e pela superstição que motivou a proibição de Moisés. O moderno Espiritismo, compreendendo o lado sério da questão, pelo descrédito a que lançou essa exploração, elevou a mediunidade à categoria de missão. (Veja-se: O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXVIII. - O Céu e o Inferno, 1ª Parte, cap. XI.)

10.A mediunidade é coisa santa, que deve ser praticada santamente, religiosamente. Se há um gênero de mediunidade que requeira essa condição de modo ainda mais absoluto é a mediunidade curadora. O

médico dá o fruto de seus estudos, feitos, muita vez, à custa de sacrifícios penosos. O magnetizador dá o seu próprio fluido, por vezes até a sua saúde. Podem pôr-lhes preço. O médium curador transmite o fluido salutar dos bons Espíritos; não tem o direito de vendê-lo. Jesus e os apóstolos, ainda que pobres, nada cobravam pelas curas que operavam.

Procure, pois, aquele que carece do que viver, recursos em qualquer parte, menos na mediunidade; não lhe consagre, se assim for preciso, senão o tempo de que materialmente possa dispor. Os Espíritos lhe levarão em conta o devotamento e os sacrifícios, ao passo que se afastam dos que esperam fazer deles uma escada por onde subam.

[Capítulo XXVII]

CAPÍTULO XXVII

PEDI E OBTEREIS

Qualidades da prece. - Eficácia da prece. - Ação da prece. Transmissão do pensamento. - Preces inteligíveis. - Da prece pelos mortos e pelos Espíritos sofredores. -Instruções dos Espíritos: Maneira de orar. - Felicidade que a prece proporciona.

Qualidades da prece

1. Quando orardes, não vos assemelheis aos hipócritas, que, afetadamente, oram de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas para serem vistos pelos homens. - Digo-vos, em verdade, que eles já receberam sua recompensa. - Quando quiserdes orar, entrai para o vosso quarto e, fechada a porta, orai a vosso Pai em secreto; e vosso Pai, que vê o que se passa em secreto, vos dará a recompensa.

Não cuideis de pedir muito nas vossas preces, como fazem os pagãos, os quais imaginam que pela multiplicidade das palavras é que serão atendidos. Não vos torneis semelhantes a eles, porque vosso Pai sabe do que é que tendes necessidade, antes que lho peçais. (S. MATEUS, cap. VI, vv., 5 a 8.)

2.Quando vos aprestardes para orar, se tiverdes qualquer coisa contra alguém, perdoai-lhe, a fim de que vosso Pai, que está nos céus, também vos perdoe os vossos pecados. - Se não perdoardes, vosso Pai, que está nos céus, também não vos perdoará os pecados. (S. MARCOS, cap. XI, vv. 25 e 26.)

3.Também disse esta parábola a alguns que punham a sua confiança em si mesmos, como sendo justos, e desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu, publicano o outro. -O fariseu, conservando-se de pé, orava assim, consigo mesmo: Meu Deus,rendo-vos graças por não ser como os outros homens, que são ladrões, injustos e adúlteros, nem

mesmo como esse publicano. Jejuo duas vezes na semana; dou o dízimo de tudo o que possuo.

O publicano, ao contrário, conservando-se afastado, não ousava, sequer, erguer os olhos ao céu; mas, batia no peito, dizendo: Meu Deus, tem piedade de mim, que sou um pecador.

Declaro-vos que este voltou para a sua casa, justificado, e o outro não; porquanto, aquele que se eleva será rebaixado e aquele que se humilha será elevado. (S. LUCAS, cap. XVIII, vv. 9 a 14.)

4. Jesus definiu claramente as qualidades da prece. Quando orardes, diz ele, não vos ponhais em evidência; antes, orai em secreto. Não afeteis orar muito, pois não é pela multiplicidade das palavras que sereis escutados, mas pela sinceridade delas. Antes de orardes, se tiverdes qualquer coisa contra alguém, perdoai-lhe, visto que a prece não pode ser agradável a Deus, se não parte de um coração purificado de todo sentimento contrário à caridade. Oral, enfim, com humildade, como o publicano, e não com orgulho, como o fariseu. Examinai os vossos defeitos, não as vossas qualidades e, se vos comparardes aos outros, procurai o que há em vós de mau. (Cap. X, nº 7 e nº 8.)

Eficácia da prece

5.Seja o que for que peçais na prece, crede que o obtereis e concedido vos será o que pedirdes. (S. MARCOS, cap. XI, v. 24.)

6.Há quem conteste a eficácia da prece, com fundamento no princípio de que, conhecendo Deus as nossas necessidades, inútil se torna expor-lhas. E acrescentam os que assim pensam que, achando-se tudo no Universo encadeado por leis eternas, não podem as nossas súplicas mudar os decretos de Deus.

Sem dúvida alguma, há leis naturais e imutáveis que não podem ser ab-rogadas ao capricho de cada um; mas, daí a crer-se que todas as circunstâncias da vida estão submetidas à fatalidade, vai grande distância. Se assim fosse, nada mais seria o homem do que instrumento passivo, sem livre-arbítrio e sem iniciativa. Nessa hipótese, só lhe caberia curvar a cabeça ao jugo dos acontecimentos, sem cogitar de evitá-los; não devera ter procurado desviar o raio. Deus não lhe outorgou a razão e a inteligência, para que ele as deixasse sem serventia; a vontade, para não querer; a atividade, para ficar inativo. Sendo livre o homem de agir num sentido ou noutro, seus atos lhe acarretam, e aos demais, conseqüências subordinadas ao

que ele faz ou não. Há, pois, devidos à sua iniciativa, sucessos que forçosamente escapam à fatalidade e que não quebram a harmonia das leis universais, do mesmo modo que o avanço ou o atraso do ponteiro de um relógio não anula a lei do movimento sobre a qual se funda o mecanismo. Possível é, portanto, que Deus aceda a certos pedidos, sem perturbar a imutabilidade das leis que regem o conjunto, subordinada sempre essa anuência à sua vontade.

7. Desta máxima: "Concedido vos será o que quer que pedirdes pela prece", fora ilógico deduzir que basta pedir para obter e fora injusto acusar a Providência se não acede a toda súplica que se lhe faça, uma vez que ela sabe, melhor do que nós, o que é para nosso bem. É como procede um pai criterioso que recusa ao filho o que seja contrário aos seus interesses. Em geral, o homem apenas vê o presente; ora, se

o sofrimento é de utilidade para a sua felicidade futura, Deus o deixará sofrer, como o cirurgião deixa que o doente sofra as dores de uma operação que lhe trará a cura.

O que Deus lhe concederá sempre, se ele o pedir com confiança, é a coragem, a paciência, a resignação. Também lhe concederá os meios de se tirar por si mesmo das dificuldades, mediante idéias que fará lhe sugiram os bons Espíritos, deixando-lhe dessa forma o mérito da ação.

Ele assiste os que se ajudam a si mesmos, de conformidade com esta máxima: "Ajuda-te, que o Céu te ajudará"; não assiste, porém, os que tudo esperam de um socorro estranho, sem fazer uso das faculdades que possui. Entretanto, as mais das vezes, o que o homem quer é ser socorrido por milagre, sem despender o mínimo esforço. (Cap. XXV, nº 1 e seguintes.)

8. Tomemos um exemplo. Um homem se acha perdido no deserto. A sede o martiriza horrivelmente. Desfalecido, cai por terra. Pede a Deus que o assista, e espera. Nenhum anjo lhe virá dar de beber. Contudo, um bom Espírito lhe sugere a idéia de levantar-se e tomar um dos caminhos que tem diante de si Por um movimento maquinal, reunindo todas as forças que lhe restam, ele se ergue, caminha e descobre ao longe um regato. Ao divisá-lo, ganha coragem. Se tem fé, exclamará: "Obrigado, meu Deus, pela idéia que me inspiraste e pela força que me deste." Se lhe falta a fé, exclamará: "Que boa idéia tive! Que sorte a minha de tomar o caminho da direita, em vez do da esquerda; o acaso, às vezes, nos serve admiravelmente! Quanto me felicito pela minha coragem e por não me ter deixado abater!" Mas, dirão, por que o bom Espírito não lhe disse claramente: "Segue este caminho, que encontrarás o de que necessitas"? Por que não se lhe mostrou para o guiar e sustentar no seu desfalecimento? Dessa maneira tê-lo-ia convencido da intervenção da Providência. Primeiramente, para lhe ensinar que cada um deve ajudar-se a si mesmo e fazer uso das suas forças. Depois, pela incerteza, Deus põe a prova a confiança que nele deposita a criatura e a submissão desta à sua vontade. Aquele homem estava na situação de uma criança que cai e que, dando com alguém, se põe a gritar e fica à espera de que a venham levantar; se não vê pessoa alguma, faz esforços e se ergue sozinha.

Se o anjo que acompanhou a Tobias lhe houvera dito: "Sou enviado por Deus para te guiar na tua viagem e te preservar de todo perigo", nenhum mérito teria tido Tobias. Fiando-se no seu companheiro, nem sequer de pensar teria precisado. Essa a razão por que o anjo só se deu a conhecer ao regressarem.

Ação da prece. - Transmissão do pensamento

9.A prece é uma invocação, mediante a qual o homem entra, pelo pensamento, em comunicação com o ser a quem se dirige. Pode ter por objeto um pedido, um agradecimento, ou uma glorificação. Podemos orar por nós mesmos ou por outrem, pelos vivos ou pelos mortos. As preces feitas a Deusescutam-nas os Espíritos incumbidos da execução de suas vontades; as que se dirigem aos bons Espíritos são reportadas a Deus. Quando alguém ora a outros seres que não a Deus, fá-lo recorrendo a intermediários, a intercessores, porquanto nada sucede sem a vontade de Deus.

10.O Espiritismo torna compreensível a ação da prece, explicando o modo de transmissão do

pensamento, quer no caso em que o ser a quem oramos acuda ao nosso apelo, quer no em que apenas lhe chegue o nosso pensamento. Para apreendermos o que ocorre em tal circunstância, precisamos conceber mergulhados no fluido universal, que ocupa o espaço, todos os seres, encarnados e desencarnados, tal qual nos achamos, neste mundo, dentro da atmosfera. Esse fluido recebe da vontade uma impulsão; ele é o veículo do pensamento, como o ar o é do som, com a diferença de que as vibrações do ar são circunscritas, ao passo que as do fluido universal se estendem ao infinito. Dirigido, pois, o pensamento para um ser qualquer, na Terra ou no espaço, de encarnado para desencarnado, ouvice-versa, uma corrente fluídica se estabelece entre um e outro, transmitindo de um ao outro o pensamento, como o ar transmite o som.

A energia da corrente guarda proporção com a do pensamento e da vontade. E assim que os Espíritos ouvem a prece que lhes é dirigida, qualquer que seja o lugar onde se encontrem; é assim que os Espíritos se comunicam entre si, que nos transmitem suas inspirações, que relações se estabelecem a distância entre encarnados.

Essa explicação vai, sobretudo, com vistas aos que não compreendem a utilidade da prece puramente mística. Não tem por fim materializar a prece, mas tornar-lhe inteligíveis os efeitos, mostrando que pode exercer ação direta e efetiva. Nem por isso deixa essa ação de estar subordinada à vontade de Deus, juiz supremo em todas as coisas, único apto a torná-la eficaz.

11.Pela prece, obtém o homem o concurso dos bons Espíritos que acorrem a sustentá-lo em suas boas resoluções e a inspirar-lhe idéias sãs. Ele adquire, desse modo, a força moral necessária a vencer as dificuldades e a volver ao caminho reto, se deste se afastou. Por esse meio, pode também desviar de si os males que atrairia pelas suas próprias faltas. Um homem, por exemplo, vê arruinada a sua saúde, em consequência de excessos a que se entregou, e arrasta, até o termo de seus dias, uma vida de sofrimento: terá ele o direito de queixar-se, se não obtiver a cura que deseja? Não, pois que houvera podido encontrar na prece a força de resistir às tentações.

12.Se em duas partes se dividirem os males da vida, uma constituída dos que o homem não pode evitar e a outra das tribulações de que ele se constituiu a causa primária, pela sua incúria ou por seus excessos (cap. V, n~ 4), ver-se-á que a segunda, em quantidade, excede de muito à primeira. Faz-se,portanto, evidente que o homem é o autor da maior parte das suas aflições, às quais se pouparia, se sempre obrasse com sabedoria e prudência.

Não menos certo é que todas essas misérias resultam das nossas infrações às leis de Deus e que, se as observássemos pontualmente, seríamos inteiramente ditosos. Se não ultrapassássemos o limite do necessário, na satisfação das nossas necessidades, não apanharíamos as enfermidades que resultam dos excessos, nem experimentaríamos as vicissitudes que as doenças acarretam. Se puséssemos freio à nossa ambição, não teríamos de temer a ruína; se não quiséssemos subir mais alto do que podemos, não teríamos de recear a queda; se fôssemos humildes, não sofreríamos as decepções do orgulho abatido; se praticássemos a lei de caridade, não seríamos maldizentes, nem invejosos, nem ciosos, e evitaríamos as disputas e dissensões; se mal a ninguém fizéssemos, não houvéramos de temer as vinganças, etc.

Admitamos que o homem nada possa com relação aos outros males; que toda prece lhe seja inútil paralivrar-se deles; já não seria muito o ter a possibilidade de ficar isento de todos os que decorrem da sua maneira de proceder? Ora, aqui, facilmente se concebe a ação da prece, visto ter por efeito atrair a salutar inspiração dos Espíritos bons, granjear deles força para resistir aos maus pensamentos, cuja realização nos pode ser funesta. Nesse caso, o que eles fazem não é afastar de nós o mal, porém, sim,desviar-nos a nós do mau pensamento que nos pode causar dano; eles em nada obstam ao cumprimento dos decretos de Deus, nem suspendem o curso das leis da Natureza; apenas evitam que as infrinjamos, dirigindo o nosso livre-arbítrio. Agem, contudo, à nossa revelia, de maneira imperceptível, para nos não subjugar a vontade. O homem se acha então na posição de um que solicita bons conselhos e os põe em prática, mas conservando a liberdade de segui-los, ou não. Quer Deus que seja assim, para que aquele tenha a responsabilidade dos seus atos e o mérito da escolha entre o bem e o mal. E isso o que o homem pode estar sempre certo de receber, se o pedir com fervor, sendo, pois, a isso que se podem sobretudo aplicar estas palavras: "Pedi e obtereis." Mesmo com sua eficácia reduzida a essas proporções, já não traria a prece resultados imensos? Ao Espiritismo fora reservadoprovar-nos a sua ação, com o nos revelar as relações existentes entre o mundo corpóreo e o mundo espiritual. Os efeitos da prece, porém, não se limitam aos que vimos de apontar.

Recomendam-na todos os Espíritos. Renunciar alguém à prece é negar a bondade de Deus; é recusar, para si, a sua assistência e, para com os outros, abrir mão do bem que lhes pode fazer.

13.Acedendo ao pedido que se lhe faz, Deus muitas vezes objetiva recompensar a intenção, o devotamento e a fé daquele que ora. Daí decorre que a prece do homem de bem tem mais merecimento aos olhos de Deus e sempre mais eficácia, porquanto o homem vicioso e mau não pode orar com o fervor e a confiança que somente nascem do sentimento da verdadeira piedade. Do coração do egoísta, do daquele que apenas de lábios ora, unicamente saem palavras, nunca os ímpetos de caridade que dão à prece todo o seu poder. Tão claramente isso se compreende que, por um movimento instintivo, quem se quer recomendar às preces de outrem fá-lo de preferência às daqueles cujo proceder, sente-se, há de ser mais agradável a Deus, pois que são mais prontamente ouvidos.

14.Por exercer a prece uma como ação magnética, poder-se-ia supor que o seu efeito depende da força fluídica. Assim, entretanto, não é. Exercendo sobre os homens essa ação, os Espíritos, em sendo preciso, suprem a insuficiência daquele que ora, ou agindo diretamente em seu nome, ou dando-lhemomentaneamente uma força excepcional, quando o julgam digno dessa graça, ou que ela lhe pode ser proveitosa.

O homem que não se considere suficientemente bom para exercer salutar influencia, não deve por isso abster-se de orar a bem de outrem, com a idéia de que não é digno de ser escutado. A consciência da sua inferioridade constitui uma prova de humildade, grata sempre a Deus, que leva em conta a intenção caridosa que o anima. Seu fervor e sua confiança são um primeiro passo para a sua conversão ao bem, conversão que os Espíritos bons se sentem ditosos em incentivar. Repelida só o é a prece do orgulhoso que deposita fé no seu poder e nos seus merecimentos e acredita ser-lhepossível sobrepor-se à vontade do Eterno.

15. Está no pensamento o poder da prece, que por nada depende nem das palavras, nem do lugar, nem do momento em que seja feita. Pode-se, portanto, orar em toda parte e a qualquer hora, a sós ou em comum. A influência do lugar ou do tempo só se faz sentir nas circunstâncias que favoreçam o recolhimento. A prece em comum tem ação mais poderosa, quando todos os que oram se associam de coração a um mesmo pensamento e colimam o mesmo objetivo, porquanto é como se muitos clamassem juntos e em uníssono. Mas, que importa seja grande o número de pessoas reunidas para orar, se cada uma atua isoladamente e por conta própria?! Cem pessoas juntas podem orar como egoístas, enquanto duas ou três, ligadas por uma mesma aspiração, orarão quais verdadeiros irmãos em Deus, e mais força terá a prece que lhe dirijam do que a das cem outras. (Cap. XXVIII, nº 4 e nº 5.)

Preces inteligíveis

16.Se eu não entender o que significam as palavras, serei um bárbaro para aquele a quem falo e aquele que me fala será para mim um bárbaro. - Se oro numa língua que não entendo, meu coração ora, mas a minha inteligência não colhe fruto. - Se louvais a Deus apenas de coração, como é que um homem do número daqueles que só entendem a sua própria língua responderá amém no fim da vossa ação de graças, uma vez que ele não entende o que dizeis? - Não é que a vossa ação não seja boa, mas os outros não se edificam com ela. (S. PAULO, 1ª aos Coríntios, cap. XIV, vv. 11, 14, 16 e 17.)

17.A prece só tem valor pelo pensamento que lhe está conjugado. Ora, é impossível conjugar um pensamento qualquer ao que se não compreende, porquanto o que não se compreende não pode tocar o coração. Para a imensa maioria das criaturas, as preces feitas numa língua que elas não entendem não passam de amálgamas de palavras que nada dizem ao espírito. Para que a prece toque, preciso se torna que cada palavra desperte uma idéia e, desde que não seja entendida, nenhuma idéia poderá despertar. Será dita como simples fórmula, cuja virtude dependerá do maior ou menor número de vezes que a repitam. Muitos oram por dever; alguns, mesmos, por obediência aos usos, pelo que se julgam quites, desde que tenham dito uma oração determinado número de vezes e em tal ou tal ordem. Deus vê o que se passa no fundo dos corações; lê o pensamento e percebe a sinceridade.Julgá-lo, pois, mais sensível à forma do que ao fundo é rebaixá-lo. (Cap. XXVIII, nº 2.)

Da prece pelos mortos e pelos Espíritos sofredores

18.Os Espíritos sofredores reclamam preces e estas lhes são proveitosas, porque, verificando que há quem neles pense, menos abandonados se sentem, menos infelizes. Entretanto, a prece tem sobre eles ação mais direta: reanima-os, incute-lhes o desejo de se elevarem pelo arrependimento e pela reparação e, possivelmente, desvia-lhes do mal o pensamento. E nesse sentido que lhes pode não só aliviar, como abreviar os sofrimentos. (Veja-se: O Céu e o Inferno, 2ª Parte - "Exemplos".)

19.Pessoas há que não admitem a prece pelos mortos, porque, segundo acreditam, a alma só tem duas alternativas: ser salva ou ser condenada às penas eternas, resultando, pois, em ambos os casos, inútil a prece. Sem discutir o valor dessa crença, admitamos, por instantes, a realidade das penas eternas e

irremissíveis e que as nossas preces sejam impotentes para lhes pôr termo. Perguntamos se, nessa hipótese, será lógico, será caridoso, será cristão recusar a prece pelos réprobos? Tais preces, por mais impotentes que fossem para os liberar, não lhes seriam uma demonstração de piedade capaz de abrandar- lhes os sofrimentos? Na Terra, quando um homem é condenado a galés perpétuas, quando mesmo não haja a mínima esperança de obter-se para ele perdão, será defeso a uma pessoa caridosa ircarregar-lhe os grilhões, para aliviá-lo do peso destes? Em sendo alguém atacado de mal incurável,dever-se-á, por não haver para o doente esperança nenhuma de cura, abandoná-lo, sem lhe proporcionar qualquer alivio? Lembrai-vos de que, entre os réprobos, pode achar-se uma pessoa que vos foi cara, um amigo, talvez um pai, uma mãe, ou um filho, e dizei se, não havendo, segundo credes, possibilidade de ser perdoado esse ente, lhe recusaríeis um copo dágua para mitigar-lhe a sede? um bálsamo que lhe seque as chagas? Não faríeis por ele o que faríeis por um galé? Não lhe daríeis uma prova de amor, uma consolação? Não, isso cristão não seria. Uma crença que petrifica o coração é incompatível com a crença em um Deus que põe na primeira categoria dos deveres o amor ao próximo.

A não eternidade das penas não implica a negação de uma penalidade temporária, dado não ser possível que Deus, em sua justiça, confunda o bem e o mal. Ora, negar, neste caso, a eficácia da prece, fora negar a eficácia da consolação, dos encorajamentos, dos bons conselhos; fora negar a força que haurimos da assistência moral dos que nos querem bem.

20. Outros se fundam numa razão mais especiosa: a imutabilidade dos decretos divinos. Deus, dizem esses, não pode mudar as suas decisões a pedido das criaturas; a não ser assim, careceria de estabilidade o mundo. O homem, pois, nada tem de pedir a Deus, só lhe cabendo submeter-se e adorá-lo.

Há, nesse modo de raciocinar, uma aplicação falsa do princípio da imutabilidade da lei divina, ou melhor, ignorância da lei, no que concerne à penalidade futura. Essa lei revelam-na hoje os Espíritos do Senhor, quando o homem se tornou suficientemente maduro para compreender o que, na fé, é conforme ou contrário aos atributos divinos.

Segundo o dogma da eternidade absoluta das penas, não se levam em conta ao culpado os remorsos, nem o arrependimento. É-lhe inútil todo desejo de melhorar-se: está condenado a conservar-se perpetuamente no mal. Se a sua condenação foi por determinado tempo, a pena cessará, uma vez expirado esse tempo. Mas, quem poderá afirmar que ele então possua melhores sentimentos? Quem poderá dizer que, a exemplo de muitos condenados da Terra, ao sair da prisão, ele não seja tão mau quanto antes? No primeiro caso, seria manter na dor do castigo um homem que volveu ao bem; no segundo, seria agraciar a um que continua culpado. A lei de Deus é mais previdente. Sempre justa, eqüitativa e misericordiosa, não estabelece para a pena, qualquer que esta seja, duração alguma. Ela se resume assim:

21. "O homem sofre sempre a conseqüência de suas faltas; não há uma só infração à lei de Deus que fique sem a correspondente punição.

"A severidade do castigo é proporcionada à gravidade da falta.

"Indeterminada é a duração do castigo, para qualquer falta; fica subordinada ao arrependimento do culpado e ao seu retorno a senda do bem; a pena dura tanto quanto a obstinação no mal; seria perpétua, se perpétua fosse a obstinação; dura pouco, se pronto é o arrependimento.

"Desde que o culpado clame por misericórdia, Deus o ouve e lhe concede a esperança. Mas, não basta o simples pesar do mal causado; é necessária a reparação, pelo que o culpado se vê submetido a novas provas em que pode, sempre por sua livre vontade, praticar o bem, reparando o mal que haja feito.

"O homem é, assim, constantemente, o árbitro de sua própria sorte; pertence-lhe abreviar ou prolongar indefinidamente o seu suplício; a sua felicidade ou a sua desgraça dependem da vontade que tenha de praticar o bem." Tal a lei, lei imutável e em conformidade com a bondade e a justiça de Deus.

Assim, o Espírito culpado e infeliz pode sempre salvar-se a si mesmo: a lei de Deus estabelece a condição em que se lhe toma possível fazê-lo. O que as mais das vezes lhe falta é a vontade, a força, a coragem. Se, por nossas preces, lhe inspiramos essa vontade, se o amparamos e animamos; se, pelos nossos conselhos, lhe damos as luzes de que carece, em lugar de pedirmos a Deus que derrogue a sua lei, tornamo-nos instrumentos da execução de outra lei, também sua, a de amor e de caridade,execução em que, desse modo, ele nos permite participar, dando nós mesmos, com isso, uma prova de caridade. (Veja-se O Céu e o Inferno, lª Parte, caps. IV, VII, VIII.)

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

Maneira de orar

22. O dever primordial de toda criatura humana, o primeiro ato que deve assinalar a sua volta à vida ativa de cada dia, é a prece. Quase todos vós orais, mas quão poucos são os que sabem orar! Que importam ao Senhor as frases que maquinalmente articulais umas às outras, fazendo disso um hábito, um dever que cumpris e que vos pesa como qualquer dever?

A prece do cristão, do espírita, seja qual for o seu culto, deve ele dizê-la logo que o Espírito haja retomado o jugo da carne; deve elevar-se aos pés da Majestade Divina com humildade, com profundeza, num ímpeto de reconhecimento por todos os benefícios recebidos até àquele dia; pela noite transcorrida e durante a qual lhe foi permitido, ainda que sem consciência disso, ir ter com os seus amigos, com os seus guias, para haurir, no contacto com eles, mais força e perseverança. Deve ela subir humilde aos pés do Senhor, para lhe recomendar a vossa fraqueza, para lhe suplicar amparo, indulgência e misericórdia. Deve ser profunda, porquanto é a vossa alma que tem de elevar-se para o Criador, de transfigurar-se, como Jesus no Tabor, a fim de lá chegar nívea e radiosa de esperança e de amor.

A vossa prece deve conter o pedido das graças de que necessitais, mas de que necessitais em realidade. Inútil, portanto, pedir ao Senhor que vos abrevie as provas, que vos dê alegrias e riquezas. Rogai-lhe que vos conceda os bens mais preciosos da paciência, da resignação e da fé. Não digais, como o fazem muitos: "Não vale a pena orar, porquanto Deus não me atende." Que é o que, na maioria dos casos, pedis

a Deus? Já vos tendes lembrado de pedir-lhe a vossa melhoria moral? Oh! não; bem poucas vezes o tendes feito. O que preferentemente vos lembrais de pedir é o bom êxito para os vossos empreendimentos terrenos e haveis com freqüência exclamado: "Deus não se ocupa conosco; se se ocupasse, não se verificariam tantas injustiças." Insensatos! Ingratos! Se descêsseis ao fundo da vossa consciência, quase sempre depararíeis, em vós mesmos, com o ponto de partida dos males de que vos queixais. Pedi, pois, antes de tudo, que vos possais melhorar e vereis que torrente de graças e de consolações se derramará sobre vós. (Cap. V, nº 4.) Deveis orar incessantemente, sem que, para isso, se faça mister vos recolhais ao vosso oratório, ou vos lanceis de joelhos nas praças públicas. A prece do dia é o cumprimento dos vossos deveres, sem exceção de nenhum, qualquer que seja a natureza deles. Não é ato de amor a Deus assistirdes os vossos irmãos numa necessidade, moral ou física? Não é ato de reconhecimento o elevardes a ele o vosso pensamento, quando uma felicidade vos advém, quando evitais um acidente, quando mesmo uma simples contrariedade apenas vos roça a alma, desde que vos não esqueçais de exclamar: Sede bendito, meu Pai?! Não é ato de contrição o vos humilhardes diante do supremo Juiz, quando sentis que falistes, ainda que somente por um pensamento fugaz, para lhe dizerdes: Perdoai-me, meu Deus, pois pequei (por orgulho, por egoísmo, ou por falta de caridade); dai- me forças para não falir de novo e coragem para a reparação da minha falta?!

Isso independe das preces regulares da manhã e da noite e dos dias consagrados. Como o vedes, a prece pode ser de todos os instantes, sem nenhuma interrupção acarretar aos vossos trabalhos. Dita assim, ela, ao contrário, os santifica. Tende como certo que um só desses pensamentos, se partir do coração, é mais ouvido pelo vosso Pai celestial do que as longas orações ditas por hábito, muitas vezes sem causa determinante e às quais apenas maquinalmente vos chama a hora convencional. - V. Monod. (Bordéus, 1862.)

Felicidade que a prece proporciona

23. Vinde, vós que desejais crer. Os Espíritos celestes acorrem a vos anunciar grandes coisas. Deus, meus filhos, abre os seus tesouros, para vos outorgar todos os beneficios. Homens incrédulos! Se soubésseis quão grande bem faz a fé ao coração e como induz a alma ao arrependimento e à prece! A prece! ah! como são tocantes as palavras que saem da boca daquele que ora! A prece é o orvalho divino que aplaca o calor excessivo das paixões. Filha primogênita da fé, ela nos encaminha para a senda que conduz a Deus. No recolhimento e na solidão, estais com Deus. Para vós, já não há mistérios; eles se vos desvendam. Apóstolos do pensamento, é para vós a vida. Vossa alma se desprende da matéria e rola por esses mundos infinitos e etéreos, que os pobres humanos desconhecem.

Avançai, avançai pelas veredas da prece e ouvireis as vozes dos anjos. Que harmonia! Já não são o ruído confuso e os sons estrídulos da Terra; são as liras dos arcanjos; são as vozes brandas e suaves dos serafins, mais delicadas do que as brisas matinais, quando brincam na folhagem dos vossos bosques. Por entre que delícias não caminhareis! A vossa linguagem não poderá exprimir essa ventura, tão rápida entra ela por todos os vossos poros, tão vivo e refrigerante é o manancial em que, orando, se bebe. Dulçurosas vozes, inebriantes perfumes, que a alma ouve e aspira, quando se lança a essas esferas desconhecidas e habitadas pela prece! Sem mescla de desejos carnais, são divinas todas as aspirações. Também vós, orai como o Cristo, levando a sua cruz ao Gólgota, ao Calvário. Carregai a vossa cruz e

sentireis as doces emoções que lhe perpassavam nalma, se bem que vergado ao peso de um madeiro infamante. Ele ia morrer, mas para viver a vida celestial na morada de seu Pai. - Santo Agostinho.(Paris, 1861.)

[Capítulo XXVIII]

CAPÍTULO XXVIII

COLETÂNEA DE PRECES ESPÍRITAS

Preâmbulo

1. Os Espíritos hão dito sempre: "A forma nada vale, o pensamento é tudo. Ore, pois, cada um segundo suas convicções e da maneira que mais o toque. Um bom pensamento vale mais do que grande número de palavras com as quais nada tenha o coração." Os Espíritos jamais prescreveram qualquer fórmula absoluta de preces. Quando dão alguma, é apenas para fixar as idéias e, sobretudo, para chamar a atenção sobre certos princípios da Doutrina Espírita. Fazem-no também com o fim de auxiliar os que sentem embaraço para externar suas idéias, pois alguns há que não acreditariam ter orado realmente, desde que não formulassem seus pensamentos.

A coletânea de preces, que este capítulo encerra, representa uma escolha feita entre muitas que os Espíritos ditaram em várias circunstâncias. Eles, sem dúvida, podem ter ditado outras e em termos diversos, apropriadas a certas idéias ou a casos especiais; mas, pouco importa a forma, se o pensamento é essencialmente o mesmo. O objetivo da prece consiste em elevar nossa alma a Deus; a diversidade das fórmulas nenhuma diferença deve criar entre os que nele crêem, nem, ainda menos, entre os adeptos do Espiritismo, porquanto Deus as aceita todas quando sinceras.

Não há, pois, considerar esta coletânea como um formulário absoluto e único, mas, apenas, uma variedade no conjunto das instruções que os Espíritos ministram. E uma aplicação dos princípios da moral evangélica desenvolvidos neste livro, um complemento aos ditados deles, relativos aos deveres para com Deus e o próximo, complemento em que são lembrados todos os princípios da Doutrina.

O Espiritismo reconhece como boas as preces de todos os cultos, quando ditas de coração e não de lábios somente. Nenhuma impõe, nem reprova nenhuma. Deus, segundo ele, é sumamente grande para repelir a voz que lhe suplica ou lhe entoa louvores, porque o faz de um modo e não de outro. Quem quer que lance anátema às preces que não estejam no seu formulário provará que desconhece a grandeza de Deus. Crer que Deus se atenha a uma fórmula é emprestar-lhe a pequenez e as paixões da Humanidade.

Condição essencial à prece, segundo S. Paulo (cap. XXVII, nº 16), é que seja inteligível, a fim de que nos possa falar ao espírito. Para isso, não basta seja dita numa língua que aquele que ora compreenda. Há preces em língua vulgar que não dizem ao pensamento muito mais do que se fossem proferidas em língua estrangeira, e que, por isso mesmo, não chegam ao coração. As raras idéias que elas contêm

ficam, as mais das vezes, abafadas pela superabundância das palavras e pelo misticismo da linguagem.

A qualidade principal da prece é ser clara, simples e concisa, sem fraseologia inútil, nem luxo de epítetos, que são meros adornos de lentejoulas. Cada palavra deve ter alcance próprio, despertar uma idéia, pôr em vibração uma fibra da alma. Numa palavra: deve fazer refletir. Somente sob essa condição pode a prece alcançar o seu objetivo; de outro modo, não passa de ruído. Entretanto, notai com que ar distraído e com que volubilidade elas são ditas na maioria dos casos. Vêem-se lábios amover-se; mas, pela expressão da fisionomia, pelo som mesmo da voz, verifica-se que ali apenas há um ato maquinal, puramente exterior, ao qual se conserva indiferente a alma.

Estão divididas em cinco categorias as preces constantes nesta coletânea; 1ª) Preces gerais; 2ª) Preces por aquele mesmo que ora; 3ª) Preces pelos vivos; 4ª) Preces pelos mortos; 5ª) Preces especiais pelos enfermos e pelos obsidiados.

Com o propósito de chamar, de maneira especial, a atenção sobre o objeto de cada prece e de lhe tornar mais compreensível o alcance, vão todas precedidas de uma instrução preliminar, de uma espécie de exposição de motivos, sob o titulo de prefácio.

I - PRECES GERAIS

Oração dominical

2. PREFÁCIO. Os Espíritos recomendaram que, encabeçando esta coletânea, puséssemos a Oração dominical, não somente como prece, mas também como símbolo. De todas as preces, é a que eles colocam em primeiro lugar, seja porque procede do próprio Jesus (S. Mateus, cap. VI, vv. 9 a 13), seja porque pode suprir a todas, conforme os pensamentos que se lhe conjuguem; é o mais perfeito modelo de concisão, verdadeira obra-prima de sublimidade na simplicidade. Com efeito, sob a mais singela forma, ela resume todos os deveres do homem para com Deus, para consigo mesmo e para com o próximo. Encerra uma profissão de fé, um ato de adoração e de submissão; o pedido das coisas necessárias à vida e o princípio da caridade. Quem a diga, em intenção de alguém, pede para este o que pediria para si.

Contudo, em virtude mesmo da sua brevidade, o sentido profundo que encerram as poucas palavras de que ela se compõe escapa à maioria das pessoas. Daí vem o dizerem-na, geralmente, sem que os pensamentos se detenham sobre as aplicações de cada uma de suas partes. Dizem-na como uma fórmula cuja eficácia se ache condicionada ao número de vezes que seja repetida. Ora, quase sempre esse é um dos números cabalísticos: três, sete ou nove tomados à antiga crença supersticiosa na virtude dos números e de uso nas operações da magia.

Para preencher o que de vago a concisão desta prece deixa na mente, a cada uma de suas proposições aditamos, aconselhado pelos Espíritos e com a assistência deles, um comentário que lhes desenvolve o sentido e mostra as aplicações. Conforme, pois, as circunstâncias e o tempo de que disponha, poderá,

aquele que ore, dizer a oração dominical, ou na sua forma simples, ou na desenvolvida.

3. PRECE. - I. Pai nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome!

Cremos em ti, Senhor, porque tudo revela o teu poder e a tua bondade. A harmonia do Universo dá testemunho de uma sabedoria, de uma prudência e de uma previdência que ultrapassam todas as faculdades humanas. Em todas as obras da Criação, desde o raminho de erva minúscula e o pequenino inseto, até os astros que se movem no espaço, o nome se acha inscrito de um ser soberanamente grande e sábio. Por toda a parte se nos depara a prova de paternal solicitude. Cego, portanto, é aquele que te não reconhece nas tuas obras, orgulhoso aquele que te não glorifica e ingrato aquele que te não rende graças.

II. Venha o teu reino!

Senhor, deste aos homens leis plenas de sabedoria e que lhes dariam a felicidade, se eles as cumprissem. Com essas leis, fariam reinar entre si a paz e a justiça e mutuamente se auxiliariam, em vez de se maltratarem, como o fazem. O forte sustentaria o fraco, em vez de o esmagar. Evitados seriam os males, que se geram dos excessos e dos abusos. Todas as misérias deste mundo provêm da violação de tuas leis, porquanto nenhuma infração delas deixa de ocasionar fatais conseqüências.

Deste ao bruto o instinto, que lhe traça o limite do necessário, e ele maquinalmente se conforma; ao homem, no entanto, além desse instinto, deste a inteligência e a razão; também lhe deste a liberdade de cumprir ou infringir aquelas das tuas leis que pessoalmente lhe concernem, isto é, a liberdade de escolher entre o bem e o mal, a fim de que tenha o mérito e a responsabilidade das suas ações.

Ninguém pode pretextar ignorância das tuas leis, pois, com paternal previdência, quiseste que elas se gravassem na consciência de cada um, sem distinção de cultos, nem de nações. Se as violam, é porque as desprezam.

Dia virá em que, segundo a tua promessa, todos as praticarão. Desaparecido terá, então, a incredulidade. Todos te reconhecerão por soberano Senhor de todas as coisas, e o reinado das tuas leis será o teu reino na Terra.

Digna-te, Senhor, de apressar-lhe o advento, outorgando aos homens a luz necessária, que os conduza ao caminho da verdade.

III. Faça-se a tua vontade, assim na Terra como no Céu.

Se a submissão é um dever do filho para com o pai, do inferior para com o seu superior, quão maior não deve ser a da criatura para com o seu Criador! Fazer a tua vontade, Senhor, é observar as tuas leis e submeter-se, sem queixumes, aos teus decretos. O homem a ela se submeterá, quando compreender que és a fonte de toda a sabedoria e que sem ti ele nada pode. Fará, então, a tua vontade na Terra, como os eleitos a fazem no Céu.

IV. Dá-nos o pão de cada dia.

Dá-nos o alimento indispensável à sustentação das forças do corpo; mas, dá-nos também o alimento espiritual para o desenvolvimento do nosso Espírito.

O bruto encontra a sua pastagem; o homem, porém, deve o sustento à sua própria atividade e aos recursos da sua inteligência, porque o criaste livre.

Tu lhe hás dito: "Tirarás da terra o alimento com o suor da tua fronte." Desse modo, fizeste do trabalho, para ele, uma obrigação, a fim de que exercitasse a inteligência na procura dos meios de prover às suas necessidades e ao seu bem-estar, uns mediante o labor manual, outros pelo labor intelectual. Sem o trabalho, ele se conservaria estacionário e não poderia aspirar à felicidade dos Espíritos superiores.

Ajudas o homem de boa-vontade que em ti confia, pelo que concerne ao necessário; não, porém, àquele que se compraz na ociosidade e desejara tudo obter sem esforço, nem àquele que busca o supérfluo. (Cap. XXV.)

Quantos e quantos sucumbem por culpa própria, pela sua incúria, pela sua imprevidência, ou pela sua ambição e por não terem querido contentar-se com o que lhes havias concedido! Esses são os artífices do seu infortúnio e carecem do direito de queixar-se, pois que são punidos naquilo em que pecaram. Mas, nem a esses mesmos abandonas, porque és infinitamente misericordioso. As mãos lhes estendes para socorrê-los,desde que, como o filho pródigo, se voltem sinceramente para ti. (Cap. V, nº 4.) Antes de nos queixarmos da sorte, inquiramos de nós mesmos se ela não é obra nossa. A cada desgraça que nos chegue, cuidemos de saber se não teria estado em nossas mãos evitá-la. Consideremos também que Deus nos outorgou a inteligência para tirar-nos do lameiro, e que de nós depende o modo de a utilizarmos.

Pois que à lei do trabalho se acha submetido o homem na Terra, dá-nos coragem e forças para obedecer a essa lei. Dá-nos também a prudência, a previdência e a moderação, a fim de não perdermos o respectivo fruto.

Dá-nos, pois, Senhor, o pão de cada dia, isto é, os meios de adquirirmos, pelo trabalho, as coisas necessárias à vida, porquanto ninguém tem o direito de reclamar o supérfluo.

Se trabalhar nos é impossível, à tua divina providência nos confiamos.

Se está nos teus desígnios experimentar-nos pelas mais duras provações, mau grado aos nossos esforços,aceitamo-las como justa expiação das faltas que tenhamos cometido nesta existência, ou noutra anterior, porquanto és justo. Sabemos que não há penas imerecidas e que jamais castigas sem causa.

Preserva-nos, ó meu Deus, de invejar os que possuem o que não temos, nem mesmo os que dispõem do supérfluo, ao passo que a nós nos falta o necessário. Perdoa-lhes, se esquecem a lei de caridade e de

amor do próximo, que lhes ensinaste. (Cap. XVI, nº 8.) Afasta, igualmente, do nosso espírito a idéia de negar a tua justiça, ao notarmos a prosperidade do mau e a desgraça que cai por vezes sobre o homem de bem. Já sabemos, graças às novas luzes que te aprouve conceder-nos, que a tua justiça se cumpre sempre e a ninguém excetua; que a prosperidade material do mau é efêmera, quanto a sua existência corpórea, e que experimentará terríveis reveses, ao passo que eterno será o júbilo daquele que sofre resignado. (Cap. V, nº 7, nº 9, nº 12 e nº 18.)

V. Perdoa as nossas dívidas, como perdoamos aos que nos devem. - Perdoa as nossas ofensas, como perdoamos aos que nos ofenderam.

Cada uma das nossas infrações às tuas leis, Senhor, é uma ofensa que te fazemos e uma dívida que contraímos e que cedo ou tarde teremos de saldar. Rogamos-te que no-las perdoes pela tua infinita misericórdia, sob a promessa, que te fazemos, de empregarmos os maiores esforços para não contrair outras.

Tu nos impuseste por lei expressa a caridade; mas, a caridade não consiste apenas em assistirmos os nossos semelhantes em suas necessidades; também consiste no esquecimento e no perdão das ofensas. Com que direito reclamaríamos a tua indulgência, se dela não usássemos para com aqueles que nos hão dado motivo de queixa?

Concede-nos, ó meu Deus, forças para apagar de nossa alma todo ressentimento, todo ódio e todo rancor. Faze que a morte não nos surpreenda guardando nós no coração desejos de vingança. Se te aprouver tirar-nos hoje mesmo deste mundo, faze que nos possamos apresentar, diante de ti, puros de toda animosidade, a exemplo do Cristo, cujos últimos pensamentos foram em prol dos seus algozes. (Cap. X.) Constituem parte das nossas provas terrenas as perseguições que os maus nos infligem. Devemos, então, recebê-las sem nos queixarmos, como todas as outras provas, e não maldizer dos que, por suas maldades, nos rasgam o caminho da felicidade eterna, visto que nos disseste, por intermédio de Jesus: "Bem-aventurados os que sofrem pela justiça!" Bendigamos, portanto, a mão que nos fere e humilha, uma vez que as mortificações do corpo nos fortificam a alma e que seremos exalçados por efeito da nossa humildade. (Cap. XII, nº 4.) Bendito seja teu nome, Senhor, por nos teres ensinado que nossa sorte não está irrevogavelmente fixada depois da morte; que encontraremos, em outras existências, os meios de resgatar e de reparar nossas culpas passadas, de cumprir em nova vida o que não podemos fazer nesta, para nosso progresso. (Cap. IV, e cap. V, nº 5.) Assim se explicam, afinal, todas as anomalias aparentes da vida. É a luz que se projeta sobre o nosso passado e o nosso futuro, sinal evidente da tua justiça soberana e da tua infinita bondade.

VI. Não nos deixes entregues à tentação, mas livra-nos do mal. (1)

(1) Algumas traduções dizem: Não nos induzas à tentação (et ne nos inducas in tentationem). Essa expressão daria a entender que a tentação promana de Deus, que ele, voluntariamente, impele os homens

ao mal, idéia blasfematória que igualaria Deus a Satanás e que, portanto, não poderia estar na mente de Jesus. É, aliás, conforme à doutrina vulgar sobre o papel dos demônios. (Veja-se: O Céu e o Inferno, 1ª Parte, cap. IX, "Os demônios".)

Dá-nos, Senhor, a força de resistir às sugestões dos Espíritos maus, que tentem desviar-nos da senda do bem, inspirando-nos maus pensamentos.

Mas, somos Espíritos imperfeitos, encarnados na Terra para expiar nossas faltas e melhorar-nos. Em nós mesmos está a causa primária do mal e os maus Espíritos mais não fazem do que aproveitar os nossos pendores viciosos, em que nos entretêm para nos tentarem.

Cada imperfeição é uma porta aberta à influência deles, ao passo que são impotentes e renunciam a toda tentativa contra os seres perfeitos. E inútil tudo o que possamos fazer para afastá-los, se não lhes opusermos decidida e inabalável vontade de permanecer no bem e absoluta renunciação ao mal. Contra nós mesmos, pois, é que precisamos dirigir os nossos esforços e, se o fizermos, os maus Espíritos naturalmente se afastarão, porquanto o mal é que os atrai, ao passo que o bem os repele.(Veja-se aqui adiante: "Preces pelos obsidiados".) Senhor, ampara-nos em nossa fraqueza;inspira-nos, pelos nossos anjos guardiães e pelos bons Espíritos, a vontade de nos corrigirmos de todas as imperfeições a fim de obstarmos aos Espíritos maus o acesso à nossa alma. (Veja-se aqui adiante o nº 11.) O mal não é obra tua, Senhor, porquanto o manancial de todo o bem nada de mau pode gerar. Somos nós mesmos que criamos o mal, infringindo as tuas leis e fazendo mau uso da liberdade que nos outorgaste. Quando os homens as cumprirmos, o mal desaparecerá da Terra, como já desapareceu de mundos mais adiantados que o nosso.

O mal não constitui para ninguém uma necessidade fatal e só parece irresistível aos que nele se comprazem. Desde que temos vontade para o fazer, também podemos ter a de praticar o bem, pelo que, ó meu Deus, pedimos a tua assistência e a dos Espíritos bons, a fim de resistirmos à tentação.

VII. Assim seja.

Praza-te, Senhor, que os nossos desejos se efetivem. Mas, curvamo-nos perante a tua sabedoria infinita. Que em todas as coisas que nos escapam à compreensão se faça a tua santa vontade e não a nossa, pois somente queres o nosso bem e melhor do que nós sabes o que nos convém.

Dirigimos-te esta prece, ó Deus, por nós mesmos e também por todas as almas sofredoras, encarnadas e desencarnadas, pelos nossos amigos e inimigos, por todos os que solicitem a nossa assistência e, em particular, por N...

Para todos suplicamos a tua misericórdia e a tua bênção.

Nota - Aqui, podem formular-se os agradecimentos que se queiram dirigir a Deus e o que se deseje pedir para si mesmo ou para outrem. (Vejam-se, adiante, as preces nº 26 e nº 27.)

Reuniões espíritas

4.Onde quer que se encontrem duas ou três pessoas reunidas em meu nome, eu com elas estarei. (S. MATEUS, cap. XVIII, v. 20.)

5.PREFÁCIO. Estarem reunidas, em nome de Jesus, duas, três ou mais pessoas, não quer dizer que basta se achem materialmente juntas. É preciso que o estejam espiritualmente, em comunhão de intentos e de idéias, para o bem. Jesus, então, ou os Espíritos puros, que o representam, se encontrarão na assembléia, O Espiritismo nos faz compreender como podem os Espíritos achar-seentre nós. Comparecem com seu corpo fluídico ou espiritual e sob a aparência que nos levaria areconhecê-los, se se tornassem visíveis. Quanto mais elevados são na hierarquia espiritual, tanto maior é neles o poder de irradiação. É assim que possuem o dom da ubiqüidade e que podem estar simultaneamente em muitos lugares, bastando para isso que enviem a cada um desses lugares um raio de suas mentes.

Dizendo as palavras acima transcritas, quis Jesus revelar o efeito da união e da fraternidade. O que o atrai não é o maior ou menor número de pessoas que se reúnam, pois, em vez de duas ou três, houvera ele podido dizer dez ou vinte, mas o sentimento de caridade que reciprocamente as anime. Ora, para isso, basta que elas sejam duas. Contudo, se essas duas pessoas oram cada uma por seu lado, emboradirigindo-se ambas a Jesus, não há entre elas comunhão de pensamentos, sobretudo se ali não estão sob o influxo de um sentimento de mútua benevolência. Se se olham com prevenção, com ódio, inveja ou ciúme, as correntes fluídicas de seus pensamentos, longe de se conjugarem por um comum impulso de simpatia, repelem-se. Nesse caso, não estarão reunidas em nome de Jesus, que, então, não passa depretexto para a reunião, não o tendo esta por verdadeiro motivo. (Cap. XXVII, nº 9.) Isso não significa que ele se mostre surdo ao que lhe diga uma única pessoa; e se ele não disse: "Atenderei a todo aquele que me chamar", é que, antes de tudo, exige o amor do próximo; e desse amor mais provas podemdar-se quando são muitos os que exoram, com exclusão de todo sentimento pessoal, e não um apenas.Segue-se que, se, numa assembléia numerosa, somente duas ou três pessoas se unem de coração, pelo sentimento de verdadeira caridade, enquanto as outras se isolam e se concentram em pensamentos egoísticos ou mundanos, ele estará com as primeiras e não com as outras. Não é, pois, a simultaneidade das palavras, dos cânticos ou dos atos exteriores que constitui a reunião em nome de Jesus, mas a comunhão de pensamentos, em concordância com o espírito de caridade que ele personifica. (Capítulo X, nº 7 e nº 8; cap. XXVII, nº 2 a nº 4.) Tal o caráter de que devem revestir-seas reuniões espíritas sérias, aquelas em que sinceramente se deseja o concurso dos bons Espíritos.

6. Prece. (Para o começo da reunião.) - Ao Senhor Deus onipotente suplicamos que envie, para nos assistirem, Espíritos bons; que afaste os que nos possam induzir em erro e nos conceda a luz necessária para distinguirmos da impostura a verdade.

Afasta, igualmente, Senhor, os Espíritos malfazejos, encarnados e desencarnados, que tentem lançar

entre nós a discórdia e desviar-nos da caridade e do amor ao próximo. Se procurarem alguns deles introduzir-se aqui, faze não achem acesso no coração de nenhum de nós.

Bons Espíritos que vos dignais de vir instruir-nos, tornai-nos dóceis aos vossos conselhos;preservai-nos de toda idéia de egoísmo, orgulho, inveja e ciúme; inspirai-nos indulgência e benevolência para com os nossos semelhantes, presentes e ausentes, amigos ou inimigos; fazei, em suma, que, pelos sentimentos de que nos achemos animados, reconheçamos a vossa influência salutar.

Dai aos médiuns que escolherdes para transmissores dos vossos ensinamentos, consciência do mandato que lhes é conferido e da gravidade do ato que vão praticar, a fim de que o façam com o fervor e o recolhimento precisos.

Se, em nossa reunião, estiverem pessoas que tenham vindo impelidas por sentimentos outros que não os do bem, abri-lhes os olhos à luz e perdoai-lhes, como nós lhes perdoamos, se trouxerem malévolas intenções.

Pedimos, especialmente, ao Espírito N..., nosso guia espiritual, que nos assista e por nós vele.

7. (Para o fim da reunião.) - Agradecemos aos bons Espíritos que se dignaram de comunicar-seconosco e lhes rogamos que nos ajudem a pôr em prática as instruções que nos deram e façam que, ao sair daqui, cada um de nós se sinta fortalecido para a prática do bem e do amor ao próximo.

Também desejamos que as suas instruções aproveitem aos Espíritos sofredores, ignorantes ou viciosos, que tenham participado da nossa reunião e para os quais imploramos a misericórdia de Deus.

Para os médiuns

8. Nos últimos tempos, diz o Senhor, difundirei do meu Espírito sobre toda carne; vossos filhos e filhas profetizarão; vossos jovens terão visões e vossos velhos, sonhos. Nesses dias, difundirei do meu Espírito sobre os meus servidores e servidoras, e eles profetizarão. (Atos, cap. II, vv. 17 e 18.)

(1)

(1) Confrontando o v. 18 de Atos, cap. II com o correspondente de Joel, II, 29, notamos que, na transcrição da profecia para o Novo Testamento, há uma diferença: Pela profecia, trata-se de servos e servas (escravos e escravas) dos homens e não de Deus, como se acha na transcrição. Eis o texto dos versículos, nas duas traduções mais modernas e fiéis: a Brasileira e a do Esperanto, as quais estão de acordo também com a Inglesa: Joel, II, 29: "Também sobre os servos e sobre as servas naqueles dias derramarei o meu Espírito" - Atos,, II, 18: "E, sobre os meus servos e sobre as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e profetizarão." Na tradução em Esperanto ainda está mais claro que se trata até dos escravos e escravas dos homens, e não de servos de Deus. Ei-la: "Joel, II, 29: Ec sur la sklavojn kaj sur la sklavinoju Mi en tiu tempo el versos Mian Spiriton!" - Atos, II, 18: "Kaj eê sur Miajn sklavojn kaj Miajn sklavinojn

en tiu tempo Mi elversos Mian spiriton, kaj ili profetos." Até os escravos e escravas (dos homens) receberão o Espírito, não somente os servos e servas de Deus (sacerdotes e sacerdotisas). A profecia em sua forma original está-se cumprindo em nossos dias porque a mediunidade brota em todas as classes, até nas pessoas mais humildes e obscuras, e não somente, como faz supor o texto de Atos, entre os sacerdotes (servos de Deus). - Nota da Editora da FEB, em 1947.

9. PREFÁCIO. Quis o Senhor que a luz se fizesse para todos os homens e que em toda a parte penetrasse a voz dos Espíritos, a fim de que cada um pudesse obter a prova da imortalidade. Com esse objetivo é que os Espíritos se manifestam hoje em todos os pontos da Terra e a mediunidade se revela em pessoas de todas as idades e de todas as condições, nos homens como nas mulheres, nas crianças como nos velhos. É um dos sinais de que chegaram os tempos preditos.

Para conhecer as coisas do mundo visível e descobrir os segredos da Natureza material, outorgou Deus ao homem a vista corpórea, os sentidos e instrumentos especiais. Com o telescópio, ele mergulha o olhar nas profundezas do espaço, e, com o microscópio, descobriu o mundo dos infinitamente pequenos. Para penetrar no mundo invisível, deu-lhe a mediunidade.

Os médiuns são os intérpretes incumbidos de transmitir aos homens os ensinos dos Espíritos; ou, melhor, são os órgãos materiais de que se servem os Espíritos para se expressarem aos homens por maneira inteligível. Santa é a missão que desempenham, visto ter por fim rasgar os horizontes da vida eterna.

Os Espíritos vêm instruir o homem sobre seus destinos, a fim de o reconduzirem à senda do bem, e não para o pouparem ao trabalho material que lhe cumpre executar neste mundo, tendo por meta o seu adiantamento, nem para lhe favorecerem a ambição e a cupidez. Aí têm os médiuns o de que devemcompenetrar-se bem, para não fazerem mau uso de suas faculdades. Aquele que, médium, compreende a gravidade do mandato de que se acha investido, religiosamente o desempenha. Sua consciência lhe profligaria, como ato sacrílego, utilizar por divertimento e distração, para si ou paraos outros, faculdades que lhe são concedidas para fins sobremaneira sérios e que o põem em comunicação com os seres de além-túmulo.

Como intérpretes do ensino dos Espíritos, têm os médiuns de desempenhar importante papel na transformação moral que se opera. Os serviços que podem prestar guardam proporção com a boa diretriz que imprimam às suas faculdades, porquanto os que enveredam por mau caminho são mais nocivos do que úteis à causa do Espiritismo. Pela má impressão que produzem, mais de uma conversão retardam. Terão, por isso mesmo, de dar contas do uso que hajam feito de um dom que lhes foi concedido para o bem de seus semelhantes.

O médium que queira gozar sempre da assistência dos bons Espíritos tem de trabalhar pormelhorar-se. O que deseja que a sua faculdade se desenvolva e engrandeça tem de se engrandecer moralmente e de se

abster de tudo o que possa concorrer para desviá-la do seu fim providencial.

Se, às vezes, os Espíritos bons se servem de médiuns imperfeitos, é para dar bons conselhos, com os quais procuram fazê-los retomar a estrada do bem. Se, porém, topam com corações endurecidos e se suas advertências não são escutadas, afastam-se, ficando livre o campo aos maus. (Cap. XXIV, n° 11 e 12.) Prova a experiência que, da parte dos que não aproveitam os conselhos que recebem dos bons Espíritos, as comunicações, depois de terem revelado certo brilho durante algum tempo, degeneram pouco a pouco e acabam caindo no erro, na vertigem, ou no ridículo, sinal incontestável do afastamento dos bons Espíritos.

Conseguir a assistência destes, afastar os Espíritos levianos e mentirosos tal deve ser a meta para onde convirjam os esforços constantes de todos os médiuns sérios. Sem isso, a mediunidade se torna uma faculdade estéril, capaz mesmo de redundar em prejuízo daquele que a possua, pois pode degenerar em perigosa obsessão.

O médium que compreende o seu dever, longe de se orgulhar de uma faculdade que não lhe pertence, visto que lhe pode ser retirada, atribui a Deus as boas coisas que obtém. Se as suas comunicações receberem elogios, não se envaidecerá com isso, porque as sabe independentes do seu mérito pessoal; agradece a Deus o haver consentido que por seu intermédio bons Espíritos se manifestassem. Se dão lugar à crítica, não se ofende, porque não obra do seu próprio Espírito. Ao contrário, reconhece no seu íntimo que não foi um instrumento bom e que não dispõe de todas as qualidades necessárias a obstar a imiscuência dos Espíritos maus. Cuida, então, de adquirir essas qualidades e suplica, por meio da prece, as forças que lhe faltam.

10. Prece. Deus onipotente, permite que os bons Espíritos me assistam na comunicação que solicito. Preserva-me da presunção de me julgar resguardado dos Espíritos maus; do orgulho que me induza em erro sobre o valor do que obtenha; de todo sentimento oposto à caridade para com outros médiuns. Se cair em erro, inspira a alguém a idéia de me advertir disso e a mim a humildade que me faça aceitar reconhecido a crítica e tomar como endereçados a mim mesmo, e não aos outros, os conselhos que os bons Espíritos me queiram ditar.

Se for tentado a cometer abuso, no que quer que seja, ou a me envaidecer da faculdade que te aprouve conceder-me, peço que ma retires, de preferência a consentires seja ela desviada do seu objetivo providencial, que é o bem de todos e o meu próprio avanço moral.

II - PRECES POR AQUELE MESMO QUE ORA

Aos anjos guardiães e aos Espíritos protetores

11. PREFÁCIO. Todos temos, ligado a nós, desde o nosso nascimento, um Espírito bom, que nos tomou sob a sua proteção. Desempenha, junto de nós, a missão de um pai para com seu filho: a de nos conduzir pelo caminho do bem e do progresso, através das provações da vida. Sente-se feliz, quando

correspondemos à sua solicitude; sofre, quando nos vê sucumbir.

Seu nome pouco importa, pois bem pode dar-se que não tenha nome conhecido na Terra.Invocamo-lo, então, como nosso anjo guardião, nosso bom gênio. Podemos mesmo invocá-lo sob o nome de qualquer Espírito superior, que mais viva e particular simpatia nos inspire.

Além do Anjo guardião, que é sempre um Espírito superior, temos Espíritos protetores que, embora menos elevados, não são menos bons e magnânimos. Contamo-los entre amigos, ou parentes, ou, até, entre pessoas que não conhecemos na existência atual. Eles nos assistem com seus conselhos e, não raro, intervindo nos atos da nossa vida.

Espíritos simpáticos são os que se nos ligam por uma certa analogia de gostos e pendores. Podem ser bons ou maus, conforme a natureza das inclinações nossas que os atraiam.

Os Espíritos sedutores se esforçam por nos afastar das veredas do bem, sugerindo-nos maus pensamentos. Aproveitam-se de todas as nossas fraquezas, como de outras tantas portas abertas, que lhes facultam acesso à nossa alma. Alguns há que se nos aferram, como a uma presa, mas que se afastam, em se reconhecendo impotentes para lutar contra nossa vontade.

Deus, em o nosso anjo guardião, nos deu um guia principal e superior e, nos Espíritos protetores e familiares, guias secundários. Fora erro, porém, acreditarmos que forçosamente, temos um mau gênio ao nosso lado, para contrabalançar as boas influências que sobre nós se exerçam. Os maus Espíritos acorrem voluntariamente, desde que achem meio de assumir predomínio sobre nós, ou pela nossa fraqueza, ou pela negligência que ponhamos em seguir as inspirações dos bons Espíritos. Somos nós, portanto, que os atraímos. Resulta desse fato que jamais nos encontramos privados da assistência dos bons Espíritos e que de nós depende o afastamento dos maus. Sendo, por suas imperfeições, a causa primária das misérias que o afligem, o homem é, as mais das vezes, o seu próprio mau gênio. (Cap. V, nº 4.) A prece aos anjos guardiães e aos Espíritos protetores deve ter por objeto solicitar-lhes a intercessão junto de Deus, pedir-lhes a força de resistir às más sugestões e que nos assistam nas contingências da vida.

12. Prece- Espíritos esclarecidos e benevolentes, mensageiros de Deus, que tendes por missão assistir os homens e conduzi-los pelo bom caminho, sustentai-me nas provas desta vida; dai-me a força de suportá-la sem queixumes; livrai-me dos maus pensamentos e fazei que eu não dê entrada a nenhum mau Espírito que queira induzir-me ao mal. Esclarecei a minha consciência com relação aos meus defeitos e tirai-me de sobre os olhos o véu do orgulho, capaz de impedir que eu os perceba e os confesse a mim mesmo.

A ti sobretudo, N..., meu anjo guardião, que mais particularmente velas por mim, e a todos vós, Espíritos protetores, que por mim vos interessais, peço fazerdes que me torne digno da vossa proteção. Conheceis as minhas necessidades; sejam elas atendidas, segundo a vontade de Deus.

13.(Outra) - Meu Deus, permite que os bons Espíritos que me cercam venham em meu auxílio, quando me achar em sofrimento, e que me sustentem se desfalecer. Faze, Senhor, que eles me incutam fé, esperança e caridade; que sejam para mim um amparo, uma inspiração e um testemunho da tua misericórdia. Faze, enfim, que neles encontre eu a força que me falta nas provas da vida e, para resistir às inspirações do mal, a fé que salva e o amor que consola.

14.(Outra) - Espíritos bem-amados, anjos guardiães que, com a permissão de Deus, pela sua infinita misericórdia, velais sobre os homens, sede nossos protetores nas provas da vida terrena. Dai-nosforça, coragem e resignação; inspirai-nos tudo o que é bom, detende-nos no declive do mal; que a vossa bondosa influência nos penetre a alma; fazei sintamos que um amigo devotado está ao nosso lado, que vê os nossos sofrimentos e partilha das nossas alegrias.

E tu, meu bom anjo, não me abandones. Necessito de toda a tua proteção, para suportar com fé e amor as provas que praza a Deus enviar-me.

Para afastar os maus Espíritos

15.Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que limpais por fora o copo e o prato e estais, por dentro, cheios de rapinas e impurezas. - Fariseus cegos, limpai primeiramente o interior do copo e do prato, a fim de que também o exterior fique limpo. - Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que vos assemelhais a sepulcros branqueados, que por fora parecem belos aos olhos dos homens, mas que, por dentro, estão cheios de toda espécie de podridões. - Assim, pelo exterior, pareceis justos aos olhos dos homens, mas, por dentro, estais cheios de hipocrisia e de iniquidades. (S. MATEUS, cap. XXIII, vv. 25 a 28.)

16.PREFÁCIO. Os maus Espíritos somente procuram os lugares onde encontrem possibilidades de dar expansão à sua perversidade. Para os afastar, não basta pedir-lhes, nem mesmo ordenar-lhes que se vão; é preciso que o homem elimine de si o que os atrai. Os Espíritos maus farejam as chagas da alma, como as moscas farejam as chagas do corpo. Assim como se limpa o corpo, para evitar a bicheira, também se deve limpar de suas impurezas a alma, para evitar os maus Espíritos. Vivendo num mundo onde estes pululam, nem sempre as boas qualidades do coração nos põem a salvo de suas tentativas; dão, entretanto, forças para que lhes resistamos.

17.Prece. - Em nome de Deus Todo-Poderoso, afastem-se de mim os maus Espíritos, servindo-meos bons de antemural contra eles.

Espíritos malfazejos, que inspirais maus pensamentos aos homens; Espíritos velhacos e mentirosos, que os enganais; Espíritos zombeteiros, que vos divertis com a credulidade deles, eu vos repilo com todas as forças de minha alma e fecho os ouvidos às vossas sugestões; mas, imploro para vós a misericórdia de Deus.

Bons Espíritos que vos dignais de assistir-me, dai-me a força de resistir à influência dos Espíritos maus e

as luzes de que necessito para não ser vítima de suas tramas. Preservai-me do orgulho e da presunção; isentai o meu coração do ciúme, do ódio, da malevolência, de todo sentimento contrário à caridade, que são outras tantas portas abertas ao Espírito do mal.

Para pedir a corrigenda de um defeito

18. PREFÁCIO. Os nossos maus instintos resultam da imperfeição do nosso próprio Espírito e não da nossa organização física; a não ser assim, o homem se acharia isento de toda espécie de responsabilidade.

De nós depende a nossa melhoria, pois todo aquele que se acha no gozo de suas faculdades tem, com relação a todas as coisas, a liberdade de fazer ou de não fazer. Para praticar o bem, de nada mais precisa senão do querer. (Cap. XV, nº 10; cap. XIX, nº 12.)

19. Prece-- Deste-me, ó meu Deus, a inteligência necessária a distinguir o que é bem do que é mal. Ora, do momento em que reconheço que uma coisa é mal, torno-me culpado, se não me esforçar por lhe resistir.

Preserva-me do orgulho que me poderia impedir de perceber os meus defeitos e dos maus Espíritos que me possam incitar a perseverar neles.

Entre as minhas imperfeições, reconheço que sou particularmente propenso a...; e, se não resisto a esse pendor, é porque contrai o hábito de a ele ceder.

Não me criaste culpado, pois que és justo, mas com igual aptidão para o bem e para o mal; se tomei o mau caminho, foi por efeito do meu livre-arbítrio. Todavia, pela mesma razão que tive a liberdade de fazer o mal tenho a de fazer o bem e, conseguintemente, a de mudar de caminho.

Meus atuais defeitos são restos das imperfeições que conservei das minhas precedentes existências; são o meu pecado original, de que me posso libertar pela ação da minha vontade e com a ajuda dos Espíritos bons.

Bons Espíritos que me protegeis, e sobretudo tu, meu anjo da guarda, dai-me forças para resistir às más sugestões e para sair vitorioso da luta.

Os defeitos são barreiras que nos separam de Deus e cada um que eu suprima será um passo dado na senda do progresso que dele me há de aproximar.

O Senhor, em sua infinita misericórdia, houve por bem conceder-me a existência atual, para que servisse ao meu adiantamento. Bons Espíritos, ajudai-me a aproveitá-la, para que me não fique perdida e para que, quando ao Senhor aprouver ma retirar, eu dela saia melhor do que entrei. (Cap. V, n° 5; cap. XVII, n ° 3.)

Para pedir a força de resistir a uma tentação

20. PREFÁCIO. Duas origens pede ter qualquer pensamento mau: a própria imperfeição de nossa alma, ou uma funesta influência que sobre ela se exerça. Neste último caso, há sempre indício de uma fraqueza que nos sujeita a receber essa influência; há, por conseguinte, indício de uma alma imperfeita. De sorte que aquele que venha a falir não poderá invocar por escusa a influência de um Espírito estranho, visto que esse Espírito não o teria arrastado ao mal, se o considerasse inacessível à sedução.

Quando surge em nós um mau pensamento, podemos, pois, imaginar um Espírito maléfico a nos atrair para o mal, mas a cuja atração podemos ceder ou resistir, como se se tratara das solicitações de uma pessoa viva. Devemos, ao mesmo tempo, imaginar que, por seu lado, o nosso anjo guardião, ou Espírito protetor, combate em nós a influência e espera com ansiedade a decisão que tomemos. A nossa hesitação em praticar o mal é a voz do Espírito bom, a se fazer ouvir pela nossa consciência.

Reconhece-se que um pensamento é mau, quando se afasta da caridade, que constitui a base da verdadeira moral, quando tem por princípio o orgulho, a vaidade, ou o egoísmo; quando a sua realização pode causar qualquer prejuízo a outrem; quando, enfim, nos induz a fazer aos outros o que não quereríamos que nos fizessem. (Cap. XXVIII, n° 15; cap. XV, nº 10.)

21. Prece. - Deus Todo-Poderoso, não me deixes sucumbir à tentação que me impele a falir. Espíritos benfazejos, que me protegeis, afastai de mim este mau pensa mento e dai-me a força de resistir à sugestão do mal. Se eu sucumbir, merecerei expiar a minha falta nesta vida e na outra, porque tenho a liberdade de escolher.

Ação de graças pela vitória alcançada sobre uma tentação

22.PREFÁCIO. Aquele que resistiu a uma tentação deve-o à assistência dos bons Espíritos, a cuja voz atendeu. Cumpre-lhe agradecê-lo a Deus e ao seu anjo de guarda.

23.PreceMeu Deus, agradeço-te o haveres permitido eu saísse vitorioso da luta que acabo de sustentar contra o mal. Faze que essa vitória me dê a força de resistir a novas tentações.

E a ti, meu anjo guardião, agradeço a assistência com que me valeste. Possa a minha submissão aos teus conselhos granjear-me de novo a tua proteção!

Para pedir um conselho

24. PREFÁCIO. Quando estamos indecisos sobre o fazer ou não fazer uma coisa, devemos antes de tudo propor-nos a nós mesmos as questões seguintes: 1ª - Aquilo que eu hesito em fazer pode acarretar qualquer prejuízo a outrem?

2ª - Pode ser proveitoso a alguém?

3ª - Se agissem assim comigo, ficaria eu satisfeito?

Se o que pensamos fazer, somente a nós nos interessa, licito nos é pesar as vantagens e os inconvenientes pessoais que nos possam advir.

Se interessa a outrem e se, resultando em bem para um, redundará em mal para outro, cumpre, igualmente, pesemos a soma de bem ou de mal que Se produzirá, para nos decidirmos a agir, ou a abster- nos.

Enfim, mesmo em se tratando das melhores coisas, importa ainda consideremos a oportunidade e as circunstâncias concomitantes, porquanto uma coisa boa, em si mesma, pode dar maus resultados em mãos inábeis, se não for conduzida com prudência e circunspecção. Antes deempreendê-la, convém consultemos as nossas forças e meios de execução.

Em todos os casos, sempre podemos solicitar a assistência dos nossos Espíritos protetores, lembrados desta sábia advertência: Na dúvida, abstém-te. (Cap. XXVIII, nº 38.)

25. PreceEm nome de Deus Todo-Poderoso, inspirai-me, bons Espíritos que me protegeis, a melhor resolução a ser tomada na incerteza em que me encontro. Encaminhai meu pensamento para o bem e livrai-me da influência dos que tentarem transviar-me.

Nas aflições da vida.

26.PREFÁCIO. Podemos pedir a Deus favores terrenos e Ele no-los pode conceder, quando tenham um fim útil e sério. Mas, como a utilidade das coisas sempre a julgamos do nosso ponto de vista e como as nossas vistas se circunscrevem ao presente, nem sempre vemos o lado mau do que desejamos, Deus, que vê muito melhor do que nós e que só o nosso bem quer, pode recusar o que pecamos, como um pai nega ao filho o que lhe seja prejudicial. Se não nos é concedido o que pedimos, não devemos por isso entregar-nos ao desânimo; devemos pensar, ao contrário, que a privação do que desejamos nos é imposta como prova, ou como expiação, e que a nossa recompensa será proporcionada à resignação com que a houvermos suportado. (Cap. XXVII, nº 6; cap. II, nº 5 a nº 7.)

27.Prece. - Deus Onipotente, que vês as nossas misérias, digna-te de escutar, benevolente, a súplica que neste momento te dirijo. Se é desarrazoado o meu pedido, perdoa-me; se é justo e conveniente segundo as tuas vistas, que os bons Espíritos, executores das tuas vontades, venham em meu auxílio para que ele seja satisfeito.

Como quer que seja, meu Deus, faça-se a tua vontade. Se os meus desejos não forem atendidos, é que está nos teus desígnios experimentar-me e eu me submeto sem me queixar. Faze que por isso nenhum desânimo me assalte e que nem a minha fé nem a minha resignação sofram qualquer abalo.

(Formular o pedido.)

Ação de graças por um favor obtido

28. PREFÁCIO. Não se devem considerar como sucessos ditosos apenas o que seja de grande importância. Muitas vezes, coisas aparentemente insignificantes são as que mais influem em nosso destino. O homem facilmente esquece o bem, para, de preferência, lembrar-se do que o aflige. Se registrássemos, dia a dia, os benéficos de que somos objeto, sem os havermos pedido, ficaríamos, com freqüência, espantados de termos recebido tantos e tantos que se nos varreram da memória, e nos sentiríamos humilhados com a nossa ingratidão.

Todas as noites, ao elevarmos a Deus a nossa alma, devemos recordar em nosso íntimo os favores que Ele nos fez durante o dia e agradecer-lhos. Sobretudo no momento mesmo em que experimentamos o efeito da sua bondade e da sua proteção, é que nos cumpre, por um movimento espontâneo, testemunhar- lhe a nossa gratidão. Basta, para isso, que lhe dirijamos um pensamento, atribuindo-lhe o benefício, sem que se faça mister interrompamos o nosso trabalho.

Não consistem os benefícios de Deus unicamente em coisas materiais. Devemos tambémagradecer-lhe as boas idéias, as felizes inspirações que recebemos. Ao passo que o egoísta atribui tudo isso aos seus méritos pessoais e o incrédulo ao acaso, aquele que tem fé rende graças a Deus e aos bons Espíritos. São desnecessárias, para esse efeito, longas frases.

"Obrigado, meu Deus, pelo bom pensamento que me foi inspirado", diz mais do que multas palavras. O impulso espontâneo, que nos faz atribuir a Deus o que de bom nos sucede, dá testemunho de um ato de reconhecimento e de humildade, que nos granjeia a simpatia dos bons Espíritos. (Cap. XXVII, nº 7 e nº 8.)

29. Prece. Deus infinitamente bom, que o teu nome seja bendito pelos benéficos que me hás concedido. Indigno eu seria, se os atribuísse ao acaso dos acontecimentos, ou ao meu próprio mérito.

Bons Espíritos, que fostes os executores das vontades de Deus, agradeço-vos e especialmente a ti, meu Anjo Guardião. Afastai de mim a idéia de orgulhar-me do que recebi e de não o aproveitar somente para o bem.

Agradeço-vos, em particular,...

Ato de submissão e de resignação

30. PREFÁCIO. Quando um motivo de aflição nos advém, se lhe procurarmos a causa, amiúde reconheceremos estar numa imprudência ou imprevidência nossa, ou, quando não, em um ato anterior. Em qualquer desses casos, só de nós mesmos nos devemos queixar. Se a causa de um infortúnio

independe completamente de qualquer ação nossa, é ou uma prova para a existência atual, ou expiação de falta de uma existência anterior, caso, este último, em que, pela natureza da expiação, poderemos conhecer a natureza da falta, visto que somos sempre punidos por aquilo em que pecamos. (Cap. V, nº 4, nº 6 e seguintes.) No que nos aflige, só vemos, em geral, o presente e não as ulteriores conseqüências favoráveis que possa ter a nossa aflição. Muitas vezes, o bem é a conseqüência de um mal passageiro, como a cura de uma enfermidade é o resultado dos meios dolorosos que se empregaram para combatê-la, Em todos os casos devemos submeter-nos à vontade de Deus, suportar com coragem as tribulações da vida, se queremos que elas nos sejam levadas em conta e que se nos possam aplicar estas palavras do Cristo: "Bem-aventurados os que sofrem." (Cap. V, nº 18.)

31. Prece- Meu Deus, és soberanamente justo; todo sofrimento, neste mundo, há, pois, de ter a sua causa e a sua utilidade. Aceito a aflição que acabo de experimentar, como expiação de minhas faltas passadas e como prova para o futuro.

Bons Espíritos que me protegeis, dai-me forças para suportá-la sem lamentos. Fazei que ela me seja um aviso salutar; que me acresça a experiência; que abata em mim o orgulho, a ambição, a tola vaidade e o egoísmo, e que contribua assim para o meu adiantamento.

32.(Outra) Sinto, ó meu Deus, necessidade de te pedir me dês forças para suportar as provações que te aprouve destinar-me. Permite que a luz se faça bastante viva em meu espírito, para que eu aprecie toda a extensão de um amor que me aflige porque me quer salvar. Submeto-me resignado, ó meu Deus; mas, a criatura é tão fraca, que temo sucumbir, se me não amparares. Não me abandones, Senhor, que sem ti nada posso.

33.(Outra) A ti, dirigi o meu olhar, ó Eterno, e me senti fortalecido. Es a minha força, não me abandones. O meu Deus, sinto-me esmagado sob o peso das minhas iniquidades. Ajuda-me.Conheces a fraqueza da minha carne, não desvies de mim o teu olhar!

Ardente sede me devora; faze brotar a fonte da água viva onde eu me dessedente. Que a minha boca só se abra para te entoar louvores e não para soltar queixas nas aflições da minha vida. Sou fraco, Senhor, mas o teu amor me sustentará.

Ó Eterno, só tu és grande, só tu és o fim e o objetivo da minha vida! Bendito seja o teu nome, se me fazes sofrer, porquanto és o Senhor e eu o servo infiel. Curvarei a fronte sem me queixar, porquanto só tu és grande, só tu és a meta.

Num perigo iminente

34. PREFÁCIO. Pelos perigos que corremos, Deus nos adverte da nossa fraqueza e da fragilidade da nossa existência. Mostra-nos que entre suas mãos está a nossa vida e que ela se acha presa por um fio que Se pode romper no momento em que menos o esperamos. Sob esse aspecto, não há privilégio para ninguém, pois que às mesmas alternativas se encontram sujeitos assim o grande, como o pequeno.

Se examinarmos a natureza e as conseqüências do perigo, veremos que estas, as mais das vezes, se se verificassem, teriam sido a punição de uma falta cometida, ou da falta do cumprimento de um dever.

35Prece. - Deus Todo-Poderoso, e tu, meu anjo guardião, socorrei-me! Se tenho de sucumbir, que a vontade de Deus se cumpra. Se devo ser salvo, que o restante da minha vida repare o mal que eu haja feito e do qual me arrependo.

Ação de graças por haver escapado a um perigo

36. PREFÁCIO. Pelo perigo que tenhamos corrido, mostra-nos Deus que, de um momento para outro, podemos ser chamados a prestar contas do modo por que utilizamos a vida. Avisa-nos, assim, que devemos tomar tento e emendar-nos.

37Prece. - Meu Deus, meu anjo de guarda, agradeço-vos o socorro que me proporcionastes no perigo de que estive ameaçado. Seja para mim um aviso esse perigo e me esclareça sobre as faltas que me hajam colocado sob a sua ameaça. Compreendo, Senhor, que nas tuas mãos está a minha vida e que ma podes tirar, quando te apraza. Inspira-me, por intermédio dos bons Espíritos que me assistem, o propósito de empregar utilmente o tempo que ainda me concederes de vida neste mundo.

Meu Anjo Guardião, firma-me na resolução que tomo de reparar os meus erros e de fazer todo o bem que esteja ao meu alcance, a fim de chegar menos onerado de imperfeições ao mundo dos Espíritos, quando Deus determine o meu regresso para lá.

À hora de dormir

38. PREFÁCIO. O sono tem por fim dar repouso ao corpo; o Espírito, porém, não precisa de repousar. Enquanto os sentidos físicos se acham entorpecidos, a alma se desprende, em parte, da matéria e entra no gozo das faculdades do Espírito. O sono foi dado ao homem para reparação das forças orgânicas e também para a das forças morais. Enquanto o corpo recupera os elementos que perdeu por efeito da

atividade da vigília, o Espírito vai retemperar-se entre os outros Espíritos. Haure, no que vê, no que ouve e nos conselhos que lhe dão, idéias que, ao despertar, lhe surgem em estado de intuição. É a volta temporária do exilado à sua verdadeira pátria. É o prisioneiro restituído por momentos à liberdade.

Mas, como se dá com o presidiário perverso, acontece que nem sempre o Espírito aproveita dessa hora de liberdade para seu adiantamento. Se conserva instintos maus, em vez de procurar a companhia de Espíritos bons, busca a de seus iguais e vai visitar os lugares onde possa dar livre curso aos seus pendores.

Eleve, pois, aquele que se ache compenetrado desta verdade, o seu pensamento a Deus, quando sintaaproximar-se o sono, e peça o conselho dos bons Espíritos e de todos cuja memória lhe seja cara, a fim de que venham juntar-se-lhe, nos curtos instantes de liberdade que lhe são concedidos, e, ao despertar,

sentir-se-á mais forte contra o mal, mais corajoso diante da adversidade.

39. Prece. - Minha alma vai estar por alguns instantes com os outros Espíritos. Venham os bons ajudar- me com seus conselhos. Faze, meu anjo guardião, que, ao despertar, eu conserve durável e salutar impressão desse convívio.

Prevendo próxima a morte

40. PREFÁCIO. A fé no futuro, a orientação do pensamento, durante a vida, para os destinos

vindouros, favorecem e aceleram o desligamento do Espírito, por enfraquecerem os laços que o prendem ao corpo, tanto que, freqüentemente, a vida corpórea ainda se não extinguiu de todo, e a alma, impaciente, já alçou o vôo para a imensidade. Ao contrário, no homem que concentra nas coisas materiais todos os seus cuidados, aqueles laços são mais tenazes, penosa e dolorosa é a separação e cheio de perturbação e ansiedade o despertar no além-túmulo.

41. Prece- Meu Deus, creio em ti e na tua bondade infinita e, por isso mesmo, não posso crer hajas dado ao homem a inteligência, que lhe faculta conhecer-te, e a aspiração pelo futuro, para o mergulhares no nada.

Creio que o meu corpo é apenas o envoltório perecível de minha alma e que, quando eu tenha deixado de viver, acordarei no mundo dos Espíritos.

Deus Todo-Poderoso, sinto se rompem os laços que me prendem a alma ao corpo e que dentro em pouco irei prestar contas do uso que fiz da vida que me foge.

Vou experimentar as conseqüências do bem e do mal que pratiquei. Lá não haverá ilusões, nem subterfúgios possíveis. Diante de mim vai desenrolar-se todo o meu passado e serei julgado segundo as minhas obras.

Nada levarei dos bens da Terra. Honras, riquezas, satisfações da vaidade e do orgulho, tudo, enfim, que é peculiar ao corpo permanecerá neste mundo. Nem a mais mínima parcela de todas essas coisas me acompanhará, nem me será de utilidade alguma no mundo dos Espíritos. Apenas levarei comigo o que pertence à alma, isto é, as boas e as más qualidades, para serem pesadas na balança da mais rigorosa justiça. E tanto maior severidade haverá no meu julgamento, quanto maior número de ocasiões para fazer o bem, que não fiz, me tenha proporcionado a posição que ocupei na Terra. (Cap. XVI, n° 9.) Deus de misericórdia, que o meu arrependimento te chegue aos pés! Digna-te de lançar sobre mim o manto da tua indulgência.

Se te aprouver prolongar a minha existência, seja esse prolongamento empregado em reparar, tanto quanto em mim esteja, o mal que eu tenha praticado. Se soou, sem dilação possível, a minha hora, levo comigo o consolador pensamento de que me será permitido redimir-me, por meio de novas provas, a fim de merecer um dia a felicidade dos eleitos.

Se não me for dado gozar imediatamente dessa felicidade sem mescla, partilha tão-só do justo por excelência, sei que me não é defesa para sempre a esperança e que, pelo trabalho, alcançarei o fim, mais tarde ou mais cedo, conforme os meus esforços.

Sei que próximos de mim, para me receberem, estão Espíritos bons e o meu anjo de guarda, aos quais dentro em pouco verei, como eles me vêem. Sei que, se o tiver merecido, encontrarei de novo aqueles a quem amei na Terra e que aqueles que aqui deixo irão juntar-se a mim, que um dia estaremos todos reunidos para sempre e que, enquanto esse dia não chegar, poderei vir visitá-los.

Sei também que vou encontrar aqueles a quem ofendi. Possam eles perdoar-me o que tenham areprochar-me: o meu orgulho, a minha dureza, minhas injustiças, a fim de que a presença deles não me acabrunhe de vergonha!

Perdôo aos que me tenham feito ou querido fazer mal; nenhum rancor contra eles alimento epeço-te, meu Deus, que lhes perdoes.

Senhor, dá-me forças para deixar sem pena os prazeres grosseiros deste mundo, que nada são em confronto com as alegrias sãs e puras do mundo em que vou penetrar e onde, para o justo, não há mais tormentos, nem sofrimentos, nem misérias, onde somente o culpado sofre, mas tendo aconfortá-lo a esperança.

A vós, bons Espíritos, e a ti, meu anjo guardião, suplico que me não deixeis falir neste momento supremo. Fazei que a luz divina brilhe aos meus olhos, a fim de que a minha fé se reanime, se vier a abalar-se.

Nota Veja-se, adiante, o parágrafo V: "Preces pelos doentes e obsidiados".

III - PRECES POR OUTREM

Por alguém que esteja em aflição

42. PREFÁCIO. Se é do interesse do aflito que a sua prova prossiga, ela não será abreviada a nosso pedido. Mas fora ato de impiedade desanimarmos por não ter sido satisfeita a nossa súplica. Aliás, em falta de cessação da prova, podemos esperar alguma outra consolação que lhe mitigue o amargor. O que de mais necessário há para aquele que se acha aflito, são a resignação e a coragem, sem as quais não lhe será possível sofrê-la com proveito para si, porque terá de recomeçá-la. É, pois, para esse objetivo que nos cumpre, sobretudo, orientar os nossos esforços, quer pedindo lhe venham em auxílio os bons Espíritos, quer levantando-lhe o moral por meio de conselhos e encorajamentos, quer, enfim, assistindo- o materialmente, se for possível.

A prece, neste caso, pode também ter efeito direto, dirigindo, sobre a pessoa por quem é feita, uma

corrente fluídica com o intento de lhe fortalecer o moral. (Cap. V, nº 5 e nº 27; cap. XXVII, nº 6 e nº 10.)

43PreceDeus de infinita bondade, digna-te de suavizar o amargor da posição em que se encontra N..., se assim for a tua vontade.

Bons Espíritos, em nome de Deus Todo-Poderoso, eu vos suplico que o assistais nas suas aflições. Se, no seu interesse, elas lhe não puderem ser poupadas, fazei compreenda que são necessárias ao seu progresso. Dai-lhe confiança em Deus e no futuro que lhas tornará menos acerbas. Dai-lhetambém forças para não sucumbir ao desespero, que lhe faria perder o fruto de seus sofrimentos e lhe tornaria ainda mais penosa no futuro a situação. Encaminhai para ele o meu pensamento, a fim de que o ajude a manter-se corajoso.

Ação de graças por um benefício concedido a outrem

44.PREFÁCIO. Quem não se acha dominado pelo egoísmo rejubila-se com o bem que acontece ao seu próximo, ainda mesmo que o não haja solicitado por meio da prece.

45.Prece. - Meu Deus, sê bendito pela felicidade que adveio a N...

Bons Espíritos, fazei que nisso ele veja um efeito da bondade de Deus. Se o bem que lhe aconteceu é uma prova, inspirai-lhe a lembrança de fazer bom uso dele e de se não envaidecer, a fim de que esse bem não redunde, de futuro, em prejuízo seu.

A ti, bom gênio que me proteges e desejas a minha felicidade, peço afastes do meu coração todo sentimento de inveja ou de ciúme.

Pelos nossos inimigos e pelos que nos querem mal

46. PREFÁCIO. Disse Jesus: Amai os vossos inimigos. Esta máxima é o sublime da caridade cristã; mas, enunciando-a, não pretendeu Jesus preceituar que devamos ter para com os nossos Inimigos o carinho que dispensamos aos amigos. Por aquelas palavras, ele nos recomenda que lhes esqueçamosas ofensas, que lhes perdoemos o mal que nos façam, que lhes paguemos com o bem esse mal. Além do merecimento que, aos olhos de Deus, resulta de semelhante proceder, ele eqüivale a mostrar aos homens o em que consiste a verdadeira superioridade. (Cap. XII, nº 3 e nº 4.)

47Prece- Meu Deus, perdôo a N... o mal que me fez e o que me quis fazer, como desejo me perdoes e também ele me perdoe as faltas que eu haja cometido. Se o colocaste no meu caminho, como prova para mim, faça-se a tua vontade.

Livra-me, ó meu Deus, da idéia de o maldizer e de todo desejo malévolo contra ele. Faze que jamais me alegre com as desgraças que lhe cheguem, nem me desgoste com os bens que lhe poderão ser

concedidos, a fim de não macular minha alma por pensamentos indignos de um cristão.

Possa a tua bondade, Senhor, estendendo-se sobre ele, induzi-lo a alimentar melhores sentimentos para comigo!

Bons Espíritos, inspirai-me o esquecimento do mal e a lembrança do bem. Que nem o ódio, nem o rancor, nem o desejo de lhe retribuir o mal com outro mal me entrem no coração, porquanto o ódio e a vingança só são próprios dos Espíritos maus, encarnados e desencarnados! Pronto esteja eu, ao contrário, a lhe estender mão fraterna, a lhe pagar com o bem o mal e a auxiliá-lo, se estiver ao meu alcance.

Desejo, para experimentar a sinceridade do que digo, que ocasião se me apresente de lhe ser útil; mas, sobretudo, ó meu Deus, preserva-me de fazê-lo por orgulho ou ostentação, abatendo-o com uma generosidade humilhante, o que me acarretaria a perda do fruto da minha ação, pois, nesse caso, eu mereceria me fossem aplicadas estas palavras do Cristo: Já recebeste a tua recompensa. (Cap. XIII, nº 1 e seguintes.)

Ação de graças pelo bem concedido aos nossos inimigos

48.PREFÁCIO. Não desejar mal aos seus inimigos é ser apenas meio caridoso. A verdadeira caridade quer que lhes almejemos o bem e que nos sintamos felizes com o bem que lhes advenha. (Cap. XII, nº 7 e nº 8.)

49.Prece- Meu Deus, entendeste em tua justiça encher de júbilo o coração de N... Agradeço-te por ele, sem embargo do mal que me fez ou que tem procurado fazer-me. Se desse bem ele se aproveitasse para me humilhar, eu receberia isso como uma prova para a minha caridade.

Bons Espíritos que me protegeis, não permitais que me sinta pesaroso por isso. Isentai-me da inveja e do ciúme que rebaixam. Inspirai-me, ao contrário, a generosidade que eleva. A humilhação está no mal e não no bem; e sabemos que, cedo ou tarde, justiça será feita a cada um, segundo suas obras.

Pelos inimigos do Espiritismo

50. Bem-aventurados os famintos de justiça, porque serão saciados.

Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos céus.

Ditosos sereis, quando os homens vos carregarem de maldições, vos perseguirem e falsamente disserem contra vós toda espécie de mal, por minha causa. - Rejubilai-vos, então, porque grande recompensa vos está reservada nos céus, pois assim perseguiram eles os profetas enviados antes de vós. (S. MATEUS, cap. V, vv. 6 e 10 a 12.) Não temais os que matam o corpo, mas que não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode perder alma e corpo no inferno. (S. MATEUS, cap. X, v. 28.)

51. PREFÁCIO. De todas as liberdades, a mais inviolável é a de pensar, que abrange a de a de consciência. Lançar alguém anátema sobre os que não pensam como ele é reclamar para si essa liberdade e negá-la aos outros, é violar o primeiro mandamento de Jesus: a caridade e o amor do próximo. Perseguir os outros, por motivos de suas crenças, é atentar contra o mais sagrado direito que tem todo homem o de crer no que lhe convém e de adorar a Deus como o entenda. Constrangê-los a atos exteriores Semelhantes aos nossos é mostrarmos que damos mais valor à forma do que ao fundo, mais às aparências, do que à convicção. Nunca a abjuração forçada deu a quem quer que fosse a fé; apenas pode fazer hipócritas. E um abuso da força material, que não prova a verdade. A verdade ésenhora de siconvence e não persegue, porque não precisa perseguir.

O Espiritismo é uma opinião, uma crença; fosse (1) até uma religião, por que se não teria a liberdade de se dizer espírita, como se tem a de se dizer católico, protestante, ou judeu, adepto de tal ou qual doutrina filosófica, de tal ou qual sistema econômico? Essa crença é falsa, ou é verdadeira, se é falsa, cairá por si mesma, visto que o erro não pode prevalecer contra a verdade, quando se faz luz nas inteligências. Se é verdadeira, não haverá perseguição que a torne falsa.

(1) Ver "Reformador" de 1946, pág. 253; "Revue Spirite", de dezembro de 1868; "Allan Kardec", de Zêus Wantuil e Francisco Thiesen, vol. III, pág. 100. Nota da Editora da FEB.

A perseguição é o batismo de toda idéia nova, grande e justa e cresce com a magnitude e a importância da idéia. O furor e o desabrimento dos seus inimigos são proporcionais ao temor que ela lhes inspira. Tal a razão por que o Cristianismo foi perseguido outrora e por que o Espiritismo o é hoje, com a diferença, todavia, de que aquele o foi pelos pagãos, enquanto o segundo o é por cristãos. Passou o tempo das perseguições sangrentas. é exato; contudo, se já não matam o corpo, torturam a alma, atacam-na até nos seus mais íntimos sentimentos, nas suas mais caras afeições. Lança-se a desunião nas famílias, excita-se a mãe contra a filha, a mulher contra o marido; investe-se mesmo contra o corpo, agravando-se-lhe as necessidades materiais, tirando-se-lhe o ganha-pão, para reduzir pela fome o crente. (Cap. XXIII, nº 9 e seguintes.) Espíritas, não vos aflijais com os golpes que vos desfiram, pois eles provam que estais com a verdade. Se assim não fosse, deixar-vos-iam tranqüilos e não vos procurariam ferir. Constitui uma prova para a vossa fé, porquanto é pela vossa coragem, pela vossa resignação e pela vossa paciência que Deus vos reconhecerá entre os seus servidores fiéis, a cuja contagem ele hoje procede, para dar a cada um a parte que lhe toca, segundo suas obras.

A exemplo dos primeiros cristãos, carregai com altivez a vossa cruz. Crede na palavra do Cristo, que disse: "Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, que deles é o reino dos céus. Não temais os que matam o corpo, mas que não podem matar a alma." Ele também disse: "Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos fazem mal e orai pelos que vos perseguem. Mostrai que sois

seus verdadeiros discípulos e que a vossa doutrina é boa, fazendo o que ele disse e fez.

A perseguição pouco durará. Aguardai com paciência o romper da aurora, pois que já rutila no horizonte a estrela d'alva. (Cap. XXIV, nº 13 e seguintes.)

52. Prece- Senhor, tu nos disseste pela boca de Jesus, o teu Messias: "Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça; perdoai aos vossos inimigos; orai pelos que vos persigam." E ele próprio nos deu o exemplo, orando pelos seus algozes.

Seguindo esse exemplo, meu Deus, imploramos a tua misericórdia para os que desprezam os teus sacratíssimos preceitos, únicos capazes de facultar a paz neste mundo e no outro. Como o Cristo, também nós te dizemos: "Perdoa-lhes, Pai, que eles não sabem o que fazem." Dá-nos forças para suportar com paciência e resignação, como provas para a nossa fé e a nossa humildade, seus escárnios, injúrias, calúnias e perseguições; isenta-nos de toda idéia de represálias, visto que para todos soará a hora da tua justiça, hora que esperamos submissos à tua vontade santa.

Por uma criança que acaba de nascer

53.PREFÁCIO. Somente depois de terem passado pelas provas da vida corpórea, chegam à perfeição os Espíritos. Os que se encontram na erraticidade aguardam que Deus lhes permita volver a uma existência que lhes proporcione meios de progredir, quer pela expiação de suas faltas passadas, mediante as vicissitudes a que fiquem sujeitos, quer desempenhando uma missão proveitosa para a Humanidade. O seu adiantamento e a sua felicidade futura serão proporcionados à maneira por que empreguem o tempo que hajam de estar na Terra. O encargo de lhes guiar os primeiros passos e de os encaminhar para

o bem cabe a seus pais, que responderão perante Deus pelo desempenho que derem a esse mandato. Para lhos facilitar, foi que Deus fez do amor paterno e do amor filial uma lei da Natureza, lei que jamais se transgride impunemente.

54.Prece(Para ser dita pelos pais) - Espírito que encarnaste no corpo do nosso filho, sê bem-vindo.Sê bendito, ó Deus Onipotente, que no-lo mandaste.

É um depósito que nos foi confiado e do qual teremos um dia de prestar contas. Se ele pertence à nova geração de Espíritos bons que hão de povoar a Terra, obrigado, ó meu Deus, por essa graça! Se é uma alma imperfeita, corre-nos o dever de ajudá-lo a progredir na senda do bem, pelos nossos conselhos e bons exemplos. Se cair no mal, por culpa nossa, responderemos por isso, visto que, então, teremos falido em nossa missão junto dele.

Senhor, ampara-nos em nossa tarefa e dá-nos a força e a vontade de cumpri-la. Se este filho nos vem como provação para os nossos Espíritos, faça-se a tua vontade!

Bons Espíritos que presidistes ao seu nascimento e que tendes de acompanhá-lo no curso de sua existência, não o abandoneis. Afastai dele os maus Espíritos que tentem orientá-lo para o mal.Dai-lhe

forças para lhes resistir às sugestões e coragem para sofrer com paciência e resignação as provas que o esperam na Terra. (Cap. XIV, n° 9.)

55. (Outra) Meu Deus, confiaste-me a sorte de um dos teus Espíritos; faze, Senhor, que eu seja digno do encargo que me impuseste. Concede-me a tua proteção. Ilumina a minha inteligência, a fim de que eu possa perceber desde cedo as tendências daquele que me compete preparar para ascender à tua paz.

56(Outra) Deus de bondade, pois que te aprouve permitir que o Espírito desta criança viesse de novo sofrer as provas terrenas, destinadas a fazê-lo progredir, dá-lhe luz, a fim de que aprenda aconhecer-te, amar-te e adorar-te. Faze, pela tua onipotência, que esta alma se regenere na fonte das tuas sábias instruções; que, sob a égide do seu anjo guardião, a sua inteligência se desenvolva e amplie e o leve a ter por aspiração aproximar-se cada vez mais de ti; que a ciência do Espiritismo seja a luz brilhante que o ilumine através dos escolhos da vida; que ele, enfim, saiba apreciar toda a extensão do teu amor, que nos põe em prova, para purificar-nos.

Senhor, lança paterno olhar sobre a família a que confiaste esta alma, para que ela compreenda a importância da sua missão e faça que germinem nesta criança as boas sementes, até ao dia em que ela possa, por suas próprias aspirações, elevar-se sozinha para ti.

Digna-te, ó meu Deus, de atender a esta humilde prece, em nome e pelos merecimentos dAquele que disse: "Deixai venham a mim as criancinhas, porquanto o reino dos céus é para os que se lhes assemelham."

Por um agonizante

57.PREFÁCIO. A agonia é o prelúdio da separação da alma e do corpo. Pode dizer-se que, nesse momento, o homem tem um pé neste mundo e um no outro. É penosa às vezes essa passagem, para os que muito apegados se acham à matéria e viveram mais para os bens deste mundo do que para os do outro, ou cuja consciência se encontra agitada pelos pesares e remorsos. Para aqueles cujos pensamentos, ao contrário, buscaram o Infinito e se desprenderam da matéria, menos difíceis de romper- se são os laços que o prendem à Terra e nada têm de dolorosos os seus últimos momentos. Apenas um fio liga, então, a alma ao corpo, enquanto que no outro caso profundas raízes a conservam presa a este. Em todos os casos, a prece exerce ação poderosa sobre o trabalho de separação. (Ver, adiante, "Preces pelos doentes"; também O Céu e o Inferno, 2ª Parte, cap. I - "O Passamento".)

58.Prece. - Deus onipotente e misericordioso, aqui está uma alma prestes a deixar o seu envoltório terreno para volver ao mundo dos Espíritos, sua verdadeira pátria. Dado lhe seja fazê-lo em paz e que sobre ela se estenda a tua misericórdia.

Bons Espíritos, que a acompanhastes na Terra, não a abandoneis neste momento supremo. Dai-lhe forças para suportar os últimos sofrimentos por que lhe cumpre passar neste mundo, a bem do seu progresso futuro.Inspirai-a, para que consagre ao arrependimento de suas faltas os últimos clarões de inteligência

que lhe restem, ou que momentaneamente lhe advenham.

Dirigi o meu pensamento, a fim de que atue de modo a tomar menos penoso para ela o trabalho da separação e a fim de que leve consigo, ao abandonar a Terra, as consolações da esperança.

IV - PRECES PELOS QUE JÁ NÃO SÃO DA TERRA

Por alguém que acaba de morrer

59. PREFÁCIO. As preces pelos Espíritos que acabam de deixar a Terra não objetivam, unicamente, dar-lhes um testemunho de simpatia: também têm por efeito auxiliar-lhes o desprendimento e, desse modo, abreviar-lhes a perturbação que sempre se segue à separação,tornando-lhes mais calmo o despertar. Ainda aí, porém, como em qualquer outra circunstância, a eficácia está na sinceridade do pensamento e não na quantidade das palavras que se profiram mais ou menos pomposamente e em que, amiúde, nenhuma parte toma o coração.

As preces que deste se elevam ressoam em torno do Espírito, cujas idéias ainda estão confusas, como as vozes amigas que nos fazem despertar do sono. (Cap. XXVII, n° l0.)

60. Prece. Onipotente Deus, que a tua misericórdia se derrame sobre a alma de N..., a quem acabaste de chamar da Terra. Possam ser-lhe contadas as provas que aqui sofreu, bem como ter suavizadas e encurtadas as penas que ainda haja de suportar na Espiritualidade!

Bons Espíritos que o viestes receber e tu, particularmente, seu anjo guardião, ajudai-o a despojar-seda matéria; dai-lhe luz e a consciência de si mesmo, a fim de que saia presto da perturbação inerente à passagem da vida corpórea para a vida espiritual. inspirai-lhe o arrependimento das faltas que haja cometido e o desejo de obter permissão pata as reparar, a fim de acelerar o seu avanço rumo à vida eterna bem-aventurada.

N..., acabas de entrar no mundo dos Espíritos e, no entanto, presente aqui te achas entre nós; tu nos vês e ouves, por isso que de menos do que havia, entre ti e nós, só há o corpo perecível que vens de abandonar e que em breve estará reduzido a pó.

Despiste o envoltório grosseiro, sujeito a vicissitudes e à morte, e conservaste apenas o envoltório etéreo, imperecível e inacessível aos sofrimentos. Já não vives pelo corpo; vives da vida dos Espíritos, vida essa isenta das misérias que afligem a Humanidade.

Já não tens diante de ti o véu que às nossas vistas oculta os esplendores da vida no Além. Podes, doravante, contemplar novas maravilhas, ao passo que nós ainda continuamos mergulhados em trevas.

Vais, em plena liberdade, percorrer o espaço e visitar os mundos, enquanto nós rastejaremos penosamente na Terra, à qual se conserva preso o nosso corpo material, semelhante, para nós, a pesado

fardo.

Diante de ti, vai desenrolar-se o panorama do Infinito e, em face de tanta grandeza, compreenderás a vacuidade dos nossos desejos terrestres, das nossas ambições mundanas e dos gozos fúteis com que os homens tanto se deleitam.

A morte, para os homens, mais não é do que uma separação material de alguns instantes. Do exílio onde ainda nos retém a vontade de Deus, bem assim os deveres que nos correm neste mundo,acompanhar-te- emos pelo pensamento, até que nos seja permitido juntar-nos a ti, como tu te reuniste aos que te precederam.

Não podemos ir onde te achas, mas tu podes vir ter conosco. Vem, pois, aos que te amam e que tu amaste; ampara-os nas provas da vida; vela pelos que te são caros; protege-os, como puderes; suaviza- lhes os pesares, fazendo-lhes perceber, pelo pensamento, que és mais ditoso agora edando-lhes a consoladora certeza de que um dia estareis todos reunidos num mundo melhor.

Nesse, onde te encontras, devem extinguir-se todos os ressentimentos. Que a eles, daqui em diante, sejas inacessível, a bem da tua felicidade futura! Perdoa, portanto, aos que hajam incorrido em falta para contigo, como eles te perdoam as que tenhas cometido para com eles.

Nota. Podem acrescentar-se a esta prece, que se aplica a todos, algumas palavras especiais, conforme as circunstâncias particulares de família ou de relações, bem como a posição social que ocupava o defunto.

Se se trata de uma criança, ensina-nos o Espiritismo que não está ali um Espírito de criação recente, mas um que já viveu e que pode, mesmo, já ser muito adiantado. Se foi curta a sua última existência, é que não devia passar de uma completação de prova, ou constituir uma prova para os pais. (Cap.V, n° 21.)

61. (Outra) (1). Senhor onipotente, que a tua misericórdia se estenda sobre os nossos irmãos que acabam de deixar a Terra! Que a tua luz brilhe para eles! Tira-os das trevas; abre-lhes os olhos e os ouvidos! Que os bons Espíritos os cerquem e lhes façam ouvir palavras de paz e de esperança!

(1) Esta prece foi ditada a um médium de Bordéus, na ocasião em que passava pela sua casa o féretro de um desconhecido.

Senhor, ainda que muito indignos, ousamos implorar a tua misericordiosa indulgencia para este irmão nosso que acaba de ser chamado do exílio. Faze que o seu regresso seja o do filho pródigo. Esquece, ó meu Deus, as faltas que haja cometido, para te lembrares somente do bem que haja praticado. Imutável é

a tua justiça, nós o sabemos; mas, imenso é o teu amor. Suplicamos-te que abrandes aquela, na fonte de bondade que emana do teu seio.

Brilhe a luz para os teus olhos, irmão que vens de deixar a Terra! Que os bons Espíritos de ti se aproximem, te cerquem e ajudem a romper as cadeias terrenas! Compreende e vê a grandeza do nosso Senhor:submete-te, sem queixumes, à sua justiça, porém, não desesperes nunca da sua misericórdia. Irmão! que um sério retrospecto do teu passado te abra as portas do futuro, fazendo-te perceber as faltas que deixas para trás e o trabalho cuja execução te incumbe para as reparares! Que Deus te perdoe e que os bons Espíritos te amparem e animem. Por ti orarão os teus irmãos da Terra e pedem que por eles ores.

Pelas pessoas a quem tivemos afeição

62. PREFÁCIO. Que horrenda é a idéia do Nada! Quão de lastimar são os que acreditam que no vácuo se perde, sem encontrar eco que lhe responda, a voz do amigo que chora o seu amigo! Jamais conheceram as puras e santas afeiçoes os que pensam que todo morre com o corpo; que o gênio, que com a sua vasta inteligência iluminou o mundo; é uma combinação de matéria, que, qual sopro, se extingue para sempre; que do mais querido ente, de um pai, de uma mãe, ou de um filho adorado não restará senão um pouco de pó que o vento irremediavelmente dispersará.

Como pode um homem de coração conservar-se frio a essa idéia? Como não o gela de terror a idéia de um aniquilamento absoluto e não lhe faz, ao menos, desejar que não seja assim? Se até hoje não lhe foi suficiente a razão para afastar de seu espírito quaisquer dúvidas, aí está o Espiritismo a dissipar toda incerteza com relação ao futuro, por meio das provas materiais que dá da sobrevivência da alma e da existência dos seres de além-túmulo. Tanto assim é que por toda a parte essas provas são acolhidas com júbilo; a confiança renasce, pois que o homem doravante sabe que a vida terrestre é apenas uma breve passagem conducente a melhor vida; que seus trabalhos neste mundo não lhe ficam perdidos e que as mais santas afeições não se despedaçam sem mais esperanças. (Cap. IV, n° 18; Cap. V, n° 21.)

63. Prece. - Digna-te, ó meu Deus, de acolher, benévolo, a prece que te dirijo pelo Espírito N...Faze-lhe entrever as claridades divinas e torna-lhe fácil o caminho da felicidade eterna. Permite que os bons Espíritos lhe levem as minhas palavras e o meu pensamento.

Tu, que tão caro me eras neste mundo, escuta a minha voz, que te chama para te oferecer novo penhor da minha afeição. Permitiu Deus que te libertasses antes de mim e eu disso me não poderia queixar sem egoísmo, porquanto fora querer-te sujeito ainda às penas e sofrimentos da vida. Espero, pois, resignado, o momento de nos reunirmos de novo no mundo mais venturoso no qual me precedeste.

Sei que é apenas temporária a nossa separação e que, por mais longa que me possa parecer, a sua duração nada é em face da ditosa eternidade que Deus promete aos seus escolhidos. Que a sua bondade me preserve de fazer o que quer que retarde esse desejado instante e me poupe assim à dor de te não encontrar, ao sair do meu cativeiro terreno.

Oh! quão doce e consoladora é a certeza de que não há entre nós mais do que um véu material que te oculta às minhas vistas! de que podes estar aqui, ao meu lado, a me ver e ouvir como outrora, senão ainda melhor do que outrora; de que não me esqueces, do mesmo modo que eu te não esqueço; de que os nossos pensamentos constantemente se entreluzam e que o teu sempre me acompanha e ampara.

Que a paz do Senhor seja contigo.

Pelas almas sofredoras que pedem preces

64.PREFÁCIO. Para se compreender o alívio que a prece pode proporcionar aos Espíritos sofredores, faz-se preciso saber de que maneira ela atua, conforme atrás ficou explicado. (Cap. XXVII, n° 9, n° 18 e seguintes.) Aquele que se ache compenetrado dessa verdade ora com mais fervor, pela certeza que tem de não orar em vão.

65.Prece. - Deus clemente e misericordioso, que a tua bondade se estenda por sobre todos os Espíritos que se recomendam às nossas preces e particularmente sobre a alma de N...

Bons Espíritos, que tendes por única ocupação fazer o bem, intercedei comigo pelo alívio deles. Fazei que lhes brilhe diante dos olhos um raio de esperança e que a luz divina os esclareça acerca das imperfeições que os conservam distantes da morada dos bem-aventurados. Abri-lhes o coração ao arrependimento e ao desejo de se depurarem, para que se lhes acelere o adiantamento. Fazei-lhescompreender que, por seus esforços, podem eles encurtar a duração de suas provas.

Que Deus, em sua bondade, lhes dê a força de perseverarem nas boas resoluções! Possam essas palavras repassadas de benevolência suavizar-lhes as penas, mostrando-lhes que há na Terra seres que deles se compadecem e lhes desejam toda a felicidade.

66. (Outra) - Nós te pedimos, Senhor, que espalhes as graças do teu amor e da tua misericórdia por todos Os que sofrem, quer no espaço como Espíritos errantes, quer entre nós como encarnados. Tem piedade das nossas fraquezas. Falíveis nos fizeste, mas dando-nos capacidade para resistir ao mal evencê-lo. Que a tua misericórdia se estenda sobre todos os que não hão podido resistir aos seus maus pendores e que ainda se deixam arrastar por maus caminhos. Que os bons Espíritos os cerquem; que a tua luz lhes brilhe aos olhos e que, atraídos pelo calor vivificante dessa luz, eles venham prosternar-sea teus pés, humildes, arrependidos e submissos.

Pedimos-te, igualmente, Pai de misericórdia, por aqueles dos nossos irmãos que não tiveram forças para suportar suas provas terrenas. Tu, Senhor, nos deste um fardo a carregar e só aos teus pés temos de o depor. Grande, porém, é a nossa fraqueza e a coragem nos falta algumas vezes no curso da jornada. Compadece-tedesses servos indolentes que abandonaram antes da hora o trabalho. Que a tua justiça os poupe, e consente que os bons Espíritos lhes levem alivio, consolações e esperanças no futuro. A perspectiva do perdão fortalece a alma; mostra-a, Senhor, aos culpados que desesperam e, sustentados por essa esperança, eles haurirão forças na grandeza mesma de suas faltas e de seus sofrimentos, a fim

de resgatarem o passado e se prepararem a conquistar o futuro.

Por um inimigo que morreu

67.PREFÁCIO. A caridade para com os nossos inimigos deve acompanhá-los ao além-túmulo.Precisamos ponderar que o mal que eles nos fizeram foi para nós uma prova, que há de ter sido propícia ao nosso adiantamento, se a soubemos aproveitar. Pode ternos sido, mesmo, de maior proveito do que as aflições puramente materiais, pelo fato de nos haver facultado juntar, à coragem e à resignação, a caridade e o esquecimento das ofensas. (Cap. X, n° 6; cap. XII, n° 5 e n° 6.)

68.Prece. - Senhor, foi do teu agrado chamar, antes da minha, a alma de N... Perdôo-lhe o mal que me fez e as más intenções que nutriu com referência a mim. Possa ele ter pesar disso, agora que já não alimenta as ilusões deste mundo.

Que a tua misericórdia, meu Deus, desça sobre ele e afaste de mim a idéia de me alegrar com a sua morte. Se incorri em faltas para com ele, que mas perdoe, como eu esqueço as que cometeu para comigo.

Por um criminoso

69.PREFÁCIO. Se a eficácia das preces fosse proporcional à extensão delas, as mais longas deveriam ficar reservadas para os mais culpados, porque mais lhes são elas necessárias do que àqueles que santamente viveram. Recusá-las aos criminosos é faltar com a caridade e desconhecer a misericórdia de Deus; julgá-las inúteis, quando um homem haja praticado tal ou tal erro, fora prejulgar a justiça do Altíssimo. (Cap. XI, n° 14.)

70.Prece. Senhor, Deus de misericórdia, não repilas esse criminoso que acaba de deixar a Terra. A justiça dos homens o castigou, mas não o isentou da tua, se o remorso não lhe penetrou o coração.

Tira-lhe dos olhos a venda que lhe oculta a gravidade de suas faltas. Possa o seu arrependimento merecer de ti acolhimento benévolo e abrandar os sofrimentos de sua alma! Possam também as nossas preces e a intercessão dos bons Espíritos levar-lhe esperança e consolação; inspirar-lhe o desejo de reparar suas ações más numa nova existência e dar-lhe forças para não sucumbir nas novas lutas em que se empenhar!

Senhor, tem piedade dele!

Por um suicida

71. PREFÁCIO. Jamais tem o homem o direito de dispor da sua vida, porquanto só a Deus cabe retirá- lo do cativeiro da Terra, quando o julgue oportuno. Todavia, a justiça divina pode abrandar-lhe os rigores, de acordo com as circunstâncias, reservando, porém, toda a severidade para com aquele que se

quis subtrair às provas da vida. O suicida é qual prisioneiro que se evade da prisão, antes de cumprida a pena; quando preso de novo, é mais severamente tratado. O mesmo se dá com o suicida que julga escapar às misérias do presente e mergulha em desgraças maiores. (Cap. V, n° 14 e seguintes.)

72. Prece. Sabemos, ó meu Deus, qual a sorte que espera os que violam a tua lei, abreviando voluntariamente seus dias; mas, também sabemos que infinita é a tua misericórdia. Digna-te, pois, de estendê-la sobre a alma de N... Possam as nossas preces e a tua comiseração abrandar a acerbidade dos sofrimentos que ele está experimentando, por não haver tido a coragem de aguardar o fim de suas provas.

Bons Espíritos, que tendes por missão assistir os desgraçados, tomai-o sob a vossa proteção;inspirai-lhe o pesar da falta que cometeu. Que a vossa assistência lhe dê forças para suportar com mais resignação as novas provas por que haja de passar, a fim de repará-la. Afastai dele os maus Espíritos, capazes de o impelirem novamente para o mal e prolongar-lhe os sofrimentos, fazendo-operder o fruto de suas futuras provas.

A ti, cuja desgraça motiva as nossas preces, nos dirigimos também, para te exprimir o desejo de que a nossa comiseração te diminua o amargor e te faça nascer no íntimo a esperança de melhor porvir! Nas tuas mãos está ele; confia na bondade de Deus, cujo seio se abre a todos os arrependimentos e só se conserva fechado aos corações endurecidos.

Pelos Espíritos penitentes

73.PREFÁCIO. Fora injusto incluir na categoria dos Espíritos maus os sofredores e penitentes, que pedem preces. Podem eles ter sido maus, porém, já não o são, desde que reconhecem suas faltas e as deploram; são apenas infelizes. Já alguns começam mesmo a gozar de relativa felicidade.

74.Prece. - Deus de misericórdia, que aceitas o arrependimento sincero do pecador, encarnado ou desencarnado, aqui está um Espírito que se há comprazido no mal, porém, que reconhece seus erros e entra no bom caminho. Digna-te, ó meu Deus, de recebê-lo como filho pródigo e de lhe perdoar.

Bons Espíritos, doravante ele deseja ouvir a vossa voz, que até hoje desatendeu; permiti-lhe que entreveja a felicidade dos eleitos do Senhor, a fim de que persista no desejo de purificar-se para alcançá- la. Amparai-o em suas boas resoluções e dai-lhe forças para resistir aos seus maus instintos.

Espírito de N... nós te felicitamos pela mudança que em ti se operou e agradecemos aos bons Espíritos que te ajudaram.

Se te comprazias outrora em fazer o mal, é que não compreendias quão doce é o gozo de fazer o bem; também te sentias por demais baixo para esperar consegui-lo. Mas, do momento em que puseste o pé no bom caminho, uma luz nova brilhou aos teus olhos; começaste a gozar de uma felicidade que desconhecias e a esperança te entrou no coração. E que Deus ouve sempre a prece do pecador que se

arrepende; não repele a nenhum dos que o buscam.

Para entrares de novo e completamente na sua graça, esforça-te daqui por diante não só para não mais praticares o mal, senão que para fazeres o bem e, sobretudo, reparares o mal que fizeste. Terás então satisfeito à justiça de Deus; cada uma das boas ações que praticares apagará uma das tuas faltas passadas.

Já está dado o primeiro passo; agora, quanto mais avançares no caminho, tanto mais fácil e agradável ele te parecerá. Persevera, pois, e um dia terás a glória de ser contado entre os Espíritos bons e os bem- aventurados.

Pelos Espíritos endurecidos

75. PREFÁCIO. Os maus Espíritos são aqueles que ainda não foram tocados de arrependimento; que se deleitam no mal e nenhum pesar por isso sentem; que são insensíveis às reprimendas, repelem a prece e muitas vezes blasfemam do nome de Deus. São essas almas endurecidas que, após a morte, se vingam nos homens dos sofrimentos que suportam, e perseguem com o seu ódio aqueles a quem odiaram durante a vida, quer obsidiando-os quer exercendo sobre eles qualquer influência funesta. (Cap. X, n° 6; Cap. XII, n° 5 e n° 6.)

Duas categorias há bem distintas de Espíritos perversos: a dos que são francamente maus e a dos hipócritas. Infinitamente mais fácil é reconduzir ao bem os primeiros do que os segundos. Aqueles, as mais das vezes, são naturezas brutas e grosseiras, como se nota entre os homens; praticam o mal mais por instinto do que por cálculo e não procuram passar por melhores do que são. Há neles, entretanto, um gérmen latente que é preciso fazer desabrochar, o que se consegue quase sempre por meio da perseverança, da firmeza aliada à benevolência, dos conselhos, do raciocínio e da prece. Através da mediunidade, a dificuldade que eles encontram para escrever o nome de Deus é sinal de um temor instintivo, de uma voz íntima da consciência que lhes diz serem indignos de fazê-lo. Nesse ponto estão a pique de converter-se e tudo se pode esperar deles: basta se lhes encontre o ponto vulnerável do coração.

Os Espíritos hipócritas quase sempre são muito inteligentes, mas nenhuma fibra sensível possuem no coração; nada os toca; simulam todos os bons sentimentos para captar a confiança, e felizes se sentem quando encontram tolos que os aceitam como santos Espíritos, pois que possível se lhes torna governá- los à vontade. O nome de Deus, longe de lhes inspirar o menor temor, serve-lhes de máscara para encobrirem suas torpezas. No mundo invisível, como no mundo visível, os hipócritas são os seres mais perigosos, porque atuam na sombra, sem que ninguém disso desconfie; têm apenas as aparências da fé, mas fé sincera, jamais.

76. Prece. - Senhor, digna-te de lançar um olhar de bondade sobre os Espíritos imperfeitos, que ainda se

encontram na treva da ignorância e te desconhecem, particularmente sobre N...

Bons Espíritos, ajudai-nos a fazer-lhe compreender que, induzindo os homens ao mal, obsidiando-os e

atormentando-os, ele prolonga os seus próprios sofrimentos; fazei que o exemplo da felicidade de que gozais lhe seja um encorajamento.

Espírito que ainda te comprazes no mal, vem ouvir a prece que por ti fazemos; ela te há de provar que desejamos o teu bem, conquanto faças o mal.

És desgraçado, pois não se pode ser feliz fazendo o mal. Por que então te conservarás no sofrimento quando de ti depende evitá-lo? Olha os bons Espíritos que te cercam; vê quão ditosos são e se te não seria mais agradável fruir da mesma felicidade.

Dirás que te é impossível; porém, nada é impossível àquele que quer, porquanto Deus te deu, como a todas as suas criaturas, a liberdade de escolher entre o bem e o mal, isto é, entre a felicidade e a desgraça, e ninguém se acha condenado a praticar o mal. Assim como tens vontade de fazê-lo,também podes ter a de fazer o bem e de ser feliz.

Volve para Deus o teu olhar; dirige-lhe por um instante o teu pensamento e um raio da divina luz viráiluminar-te. Dize conosco estas simples palavras: Meu Deus; eu me arrependo, perdoa-me. Tentaarrepender-te e fazer o bem, em vez de fazer o mal, e verás que logo a sua misericórdia descerá sobre ti, que um bem-estar indizível substituirá as angústias que experimentas.

Desde que hajas dado um passo no bom caminho, o resto deste te parecerá fácil de percorrer. Compreenderás então quanto tempo perdeste de felicidade por culpa tua; mas, um futuro radioso e pleno de esperança se abrirá diante de ti e te fará esquecer o teu miserável passado, prenhe de perturbação e de torturas morais, que seriam para ti o inferno, se houvessem de durar eternamente. Dia virá em que essas torturas serão tais que a qualquer preço quererás fazê-las cessar; porém, quanto mais te demorares, tanto mais difícil será isso.

Não creias que permanecerás sempre no estado em que te achas; não, que isso é impossível. Duas perspectivas tens diante de ti: a de sofreres muitíssimo mais do que tens sofrido até agora e a de seres ditoso como os bons Espíritos que te rodeiam. A primeira será inevitável, se persistires na tua obstinação, quando um simples esforço da tua vontade bastará para te tirar da má situação em que te encontras. Apressa-te, pois, visto que cada dia de demora é um dia perdido para a tua felicidade.

Bons Espíritos, fazei que estas palavras ecoem nessa alma ainda atrasada, a fim de que a ajudem aaproximar-se de Deus. Nós vo-lo pedimos em nome de Jesus-Cristo, que tão grande poder tinha sobre os maus Espíritos.

V - PRECES PELOS DOENTES E PELOS OBSIDIADOS

Pelos doentes

77. PREFÁCIO. As doenças fazem parte das provas e das vicissitudes da vida terrena; são inerentes à

grosseria da nossa natureza material e à inferioridade do mundo que habitamos. As paixões e os excessos de toda ordem semeiam em nós germens malsãos, às vezes hereditários. Nos mundos mais adiantados, física ou moralmente, o organismo humano, mais depurado e menos material, não está sujeito às mesmas enfermidades e o corpo não é minado surdamente pelo corrosivo das paixões. (Cap. III, n° 9.) Temos, assim, de nos resignar às conseqüências do meio onde nos coloca a nossa inferioridade, até que mereçamos passar a outro. Isso, no entanto, não é de molde a impedir que, esperando tal se dê, façamos o que de nós depende para melhorar as nossas condições atuais. Se, porém, mau grado aos nossos esforços, não o conseguirmos, o Espiritismo nos ensina a suportar com resignação os nossos passageiros males.

Se Deus não houvesse querido que os sofrimentos corporais se dissipassem ou abrandassem em certos casos, não houvera posto ao nosso alcance meios de cura. A esse respeito, a sua solicitude, em conformidade com o instinto de conservação, indica que é dever nosso procurar esses meios e aplicá-los.

A par da medicação ordinária, elaborada pela Ciência, o magnetismo nos dá a conhecer o poder da ação fluídica e o Espiritismo nos revela outra força poderosa na mediunidade curadora e a influência da prece. (Ver, no Cap. XXVI, a notícia sobre a mediunidade curadora.)

78. Prece. (Para ser dita pelo doente.) - Senhor, pois que és todo justiça, a enfermidade que te aprouvemandar-me necessariamente eu a merecia, visto que nunca impões sofrimento algum sem causa. Confio- me, para minha cura, à tua infinita misericórdia. Se for do teu agrado restituir-me a saúde, bendito seja o teu santo nome. Se, ao contrário, me cumpre sofrer mais, bendito seja ele do mesmo modo. Submeto- me, sem queixas, aos teus sábios desígnios, porquanto o que fazes só pode ter por fim o bem das tuas criaturas.

Dá, ó meu Deus, que esta enfermidade seja para mim um aviso salutar e me leve a refletir sobre a minha conduta. Aceito-a como uma expiação do passado e como uma prova para a minha fé e a minha submissão à tua santa vontade. (Veja-se a prece n° 40.)

79. Prece. (Pelo doente.) - Meu Deus, são impenetráveis os teus desígnios e na tua sabedoria entendeste de afligir a N... pela enfermidade. Lança, eu te suplico, um olhar de compaixão sobre os seus sofrimentos e digna-te de pôr-lhes termo.

Bons Espíritos, ministros do Onipotente, secundai, eu vos peço, o meu desejo de aliviá-lo; encaminhai o meu pensamento, a fim de que vá derramar um bálsamo salutar em seu corpo e a consolação em sua alma.

Inspirai-lhe a paciência e a submissão à vontade de Deus; dai-lhe a força de suportar suas dores com resignação cristã, a fim de que não perca o fruto desta prova. (Veja-se a prece n° 57.)

80. Prece. (Para ser dita pelo médium curador.) -Meu Deus, se te dignas servir-te de mim, indigno como sou, poderei curar esta enfermidade, se assim o quiseres, porque em ti deposito fé. Mas, sem ti, nada

posso. Permite que os bons Espíritos me cumulem de seus fluidos benéficos, a fim de que eu os transmita a esse doente, e livra-me de toda idéia de orgulho e de egoísmo que lhes pudesse alterar a pureza.

Pelos obsidiados

81. PREFÁCIO. A obsessão é a ação persistente que um Espírito mau exerce sobre um indivíduo. Apresenta caracteres muito diversos, desde a simples influência moral, sem perceptíveis sinais exteriores, até a perturbação completa do organismo e das faculdades mentais. Oblitera todas as faculdades mediúnicas; traduz-se, na mediunidade escrevente, pela obstinação de um Espírito em se manifestar, com exclusão de todos os outros.

Os Espíritos maus pululam em torno da Terra, em virtude da inferioridade moral de seus habitantes. A ação malfazeja que eles desenvolvem faz parte dos flagelos com que a Humanidade se vê a braços neste mundo. A obsessão, como as enfermidades e todas as tribulações da vida, deve ser considerada prova ou expiação e como tal aceita.

Do mesmo modo que as doenças resultam das imperfeições físicas, que tornam o corpo acessível às influências perniciosas exteriores, a obsessão é sempre o resultado de uma imperfeição moral, que dá acesso a um Espírito mau. A causas físicas se opõem forças físicas; a uma causa moral, tem-se de opor uma força moral. Para preservá-lo das enfermidades, fortifica-se o corpo; para isentá-lo da obsessão, é preciso fortificar a alma, pelo que necessário se torna que o obsidiado trabalhe pela sua própria melhoria, o que as mais das vezes basta para o livrar do obsessor, sem recorrer a terceiros. O auxílio destes se faz indispensável, quando a obsessão degenera em subjugação e em possessão, porque aí não raro o paciente perde a vontade e o livre-arbítrio.

Quase sempre, a obsessão exprime a vingança que um Espírito tira e que com freqüência se radica nas relações que o obsidiado manteve com ele em precedente existência. (Veja-se: Cap. X, n° 6; cap. XII, n° 5 e n° 6.) Nos casos de obsessão grave, o obsidiado se acha como que envolvido e impregnado de um fluido pernicioso, que neutraliza a ação dos fluidos salutares e os repele. É desse fluido que importa desembaraçá-lo. Ora, um fluido mau não pode ser eliminado por outro fluido mau. Mediante ação idêntica à do médium curador nos casos de enfermidade, cumpre se elimine o fluido mau com o auxílio de um fluido melhor, que produz, de certo modo, o efeito de um reativo. Esta a ação mecânica, mas que não basta; necessário, sobretudo, é que se atue sobre o ser inteligente, ao qual importa se possa falar com autoridade, que só existe onde há superioridade moral. Quanto maior for esta, tanto maior será igualmente a autoridade.

E não é tudo: para garantir-se a libertação, cumpre induzir o Espírito perverso a renunciar aos seus maus desígnios; fazer que nele despontem o arrependimento e o desejo do bem, por meio de instruções habilmente ministradas, em evocações particulares, objetivando a sua educação moral.Pode-se então lograr a dupla satisfação de libertar um encarnado e de converter um Espírito imperfeito.

A tarefa se apresenta mais fácil quando o obsidiado, compreendendo a sua situação, presta o concurso da sua vontade e da sua prece. O mesmo não se dá, quando, seduzido pelo Espírito embusteiro, ele se ilude no tocante às qualidades daquele que o domina e se compraz no erro em que este último o lança, visto que, então, longe de secundar, repele toda assistência, É o caso da fascinação, infinitamente mais rebelde do que a mais violenta subjugação. (O Livro aos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXIII.) Em todos os casos de obsessão, a prece é o mais poderoso auxiliar de quem haja de atuar sobre o Espírito obsessor.

82. Prece(Para ser dita pelo obsidiado.) - Meu Deus, permite que os bons Espíritos me livrem do Espírito malfazejo que se ligou a mim. Se é uma vingança que toma dos agravos que eu lhe haja feito outrora, tu a consentes, meu Deus, para minha punição e eu sofro a conseqüência da minha falta. Que o meu arrependimento me granjeie o teu perdão e a minha liberdade! Mas, seja qual for o motivo, imploro para o meu perseguidor a tua misericórdia. Digna-te de lhe mostrar o caminho do progresso, que o desviará do pensamento de praticar o mal. Possa eu, de meu lado, retribuindo-lhe com o bem o mal, induzi-lo a melhores sentimentos.

Mas, também sei, ó meu Deus, que são as minhas imperfeições que me tornam passível das influências dos Espíritos imperfeitos. Dá-me a luz de que necessito para as reconhecer; combate, sobretudo, em mim o orgulho que me cega com relação aos meus defeitos.

Qual não será a minha indignidade, pois que um ser malfazejo me pode subjugar! Faze, ó meu Deus, que me sirva de lição para o futuro este golpe desferido na minha vaidade; que ele fortifique a resolução que tomo de me depurar pela prática do bem, da caridade e da humildade, a fim de opor, daqui por diante, uma barreira às más influências.

Senhor, dá-me forças para suportar com paciência e resignação esta prova. Compreendo que, como todas as outras, há de ela concorrer para o meu adiantamento, se eu não lhe estragar o fruto com os meus queixumes, pois me proporciona ensejo de mostrar a minha submissão e de exercitar minha caridade para com um irmão infeliz, perdoando-lhe o mal que me fez. (Cap. XII, nº 5 e nº 6; Cap. XXVIII, nº 15 e seguintes, 46 e 47.)

83. Prece(Pelo obsidiado.) - Deus Onipotente, digna-te de me dar o poder de libertar N... da influência do Espírito que o obsidia. Se está nos teus desígnios pôr termo a essa prova, concede-me a graça de falar com autoridade a esse Espírito.

Bons Espíritos que me assistis e tu, seu anjo guardião, dai-me o vosso concurso; ajudai-me a livrá-lodo fluido impuro em que se acha envolvido.

Em nome de Deus Onipotente, adjuro o Espírito malfazejo que o atormenta a que se retire.

84. Prece. (Pelo Espírito obsessor.) - Deus infinitamente bom, a tua misericórdia imploro para o Espírito que obsidia N... Faze-lhe entrever as divinas claridades, a fim de que reconheça falso o caminho por onde enveredou. Bons Espíritos, ajudai-me a fazer-lhe compreender que ele tudo tem a perder,

praticando o mal, e tudo a ganhar, fazendo o bem.

Espírito que te comprazes em atormentar N..., escuta-me, pois que te falo em nome de Deus.

Se quiseres refletir, compreenderás que o mal nunca sobrepujará o bem e que não podes ser mais forte do que Deus e os bons Espíritos. Possível lhes fora preservar N... dos teus ataques; se não o fizeram, foi porque ele (ou ela) tinha de passar por uma prova. Mas, quando essa prova chegar a seu termo, toda ação sobre tua vitima te será vedada. O mal que lhe houveres feito, em vez de prejudicá-la, terá contribuído para o seu adiantamento e para torná-la por isso mais feliz. Assim, a tua maldade tê-la-ásempregado em pura perda e se voltará contra ti.

Deus, que é Todo-Poderoso, e os Espíritos superiores, seus delegados, mais poderosos do que tu, serão capazes de pôr fim a essa obsessão e a tua tenacidade se quebrará de encontro a essa autoridade suprema. Mas, por isso mesmo que é bom, quer Deus deixar-te o mérito de fazeres que ela cesse pela tua própria vontade. E uma mora que te concede; se não a aproveitares, sofrer-lhe-ás as deploráveis conseqüências. Grandes castigos e cruéis sofrimentos te esperarão. Serás forçado a suplicar a piedade e as preces da tua vítima, que já te perdoa e ora por ti, o que constitui grande merecimento aos olhos de Deus e apressará a libertação dela.

Reflete, pois, enquanto ainda é tempo, visto que a justiça de Deus cairá sobre ti, como sobre todos os Espíritos rebeldes. Pondera que o mal que neste momento praticas terá forçosamente um limite, ao passo que, se persistires na tua obstinação, aumentarão de contínuo os teus sofrimentos.

Quando estavas na Terra, não terias considerado estúpido sacrificar um grande bem por uma pequena satisfação de momento? O mesmo acontece agora, quando és Espírito. Que ganhas com o que fazes? O triste prazer de atormentar alguém, o que não obsta a que sejas desgraçado, digas o que disseres, e que te tornes ainda mais desgraçado.

A par disso, vê o que perdes; observa os bons Espíritos que te cercam e dize se não é preferível à tua a sorte deles. Da felicidade de que gozam, também tu partilharás, quando o quiseres. Que é preciso para isso? Implorar a Deus e fazer, em vez do mal, o bem. Sei que não te podes transformar repentinamente; mas, Deus não exige o impossível; quer apenas a boa-vontade. Experimenta e nós te ajudaremos. Faze que em breve possamos dizer em teu favor a prece pelos Espíritos penitentes (nº 73) e não mais considerar-te entre os maus Espíritos, enquanto te não contes entre os bons.

(Veja-se também, atrás, o nº 75: "Preces pelos Espíritos endurecidos".)

Observação. - A cura das obsessões graves requer muita paciência, perseverança e devotamento. Exige também tato e habilidade, a fim de encaminhar para o bem Espíritos muitas vezes perversos, endurecidos e astuciosos, porquanto há-os rebeldes ao extremo. Na maioria dos casos, temos de nos guiar pelas circunstâncias. Qualquer que seja, porém, o caráter do Espírito, nada se obtém, é isto um fato incontestável pelo constrangimento ou pela ameaça. Toda influência reside no ascendente moral. Outra verdade igualmente comprovada pela experiência tanto quanto pela lógica, é a completa ineficácia dos

exorcismos, fórmulas, palavras sacramentais, amuletos, talismãs, práticas exteriores, ou quaisquer sinais materiais.

A obsessão muito prolongada pode ocasionar desordens patológicas e reclama, por vezes, tratamento simultâneo ou consecutivo, quer magnético, quer médico, para restabelecer a saúde do organismo. Destruída a causa, resta combater os efeitos. (Veja-se: O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXIII - "Da obsessão". - Revue Spirite, fevereiro e março de 1864; abril de 1865: exemplos de curas de obsessões.)